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O trabalho de assistentes sociais com famílias mediado pelo Projeto Ético-Político

The social workers mediated by the Ethical-Political Project work with families

Resumo:

O objetivo do artigo é contribuir para o trabalho de assistentes sociais com famílias mediado pelo projeto ético-­político. Partindo de problemáticas presentes no trabalho com famílias, buscamos analisá-las à luz dos fundamentos da profissão na contemporaneidade com vistas à construção de estratégias que possibilitem, com base nas três dimensões do trabalho profissional: teórico-metodológico, ético-política e técnico-operativa, um exercício profissional com famílias na perspectiva do PEP.

Palavras-chave:
Serviço Social; Família; Projeto Ético-Político

Abstract:

The objective of the article is to contribute to the work of social workers with families mediated by the ethical-political project. Starting from problems present in work with families, we seek to analyze them in the light of the foundations of the profession in contemporary times, with a view to building strategies that enable, from the three dimensions of professional work: theoretical-methodological, ethical-political and technical-operative, a professional exercise with families from the perspective of the PEP.

Keywords:
Social work; Family; Ethical-Political Project

1. Introdução

Tratada em sua generalidade, a família vem sendo considerada por boa parte de assistentes sociais como a base da sociedade, por isso, a ênfase das ações profissionais na formação social e moral das famílias. Busca-se no âmbito da família os elementos que explicam os comportamentos individuais e as situações que os indivíduos estão enfrentando. Nessa direção, ao elegermos a família como instituição de referência para compreender a realidade, abrimos mão das determinações da estrutura social, do sistema do capital e das classes sociais para focar nas relações, que só pode resultar na psicologização da “questão social” e na moralização dos indivíduos e suas famílias.

A família na contemporaneidade, independentemente da composição, é compreendida a partir das três grandes tarefas que cumpre: a) transmissão da propriedade privada, patrimônios e bens; b) manutenção da vida e da força de trabalho de seus membros, a partir do trabalho não pago de mulheres (cuidado/reprodução); c) inculcação dos desvalores1 1 Compreendemos como desvalor toda forma de agir que obscurece ou aliene os indivíduos. E que, portanto, impede a realização de ações éticas que criem liberdade e impeça as violências, o desrespeito, as injustiças e todas as formas de opressões e explorações (Barroco, 2010). .

Trata-se do papel decisivo atribuído à família, tanto assegurando a reprodução de cada membro da sociedade - a partir do sistema estabelecido de divisão social, técnica e racial do trabalho - como perpetuando as relações discriminatórias e do sistema de (des)valores.

A família está entrelaçada às outras instituições a serviço da reprodução do sistema dominante de valores, ocupando uma posição essencial em relação a elas, entre as quais estão as igrejas e as instituições de educação formal da sociedade. Tanto isso é verdade que, quando há grandes dificuldades e perturbações no processo de reprodução, manifesta de maneira dramática também no nível do sistema geral de valores - como a crescente onda de crimes, por exemplo -, os porta-vozes do capital na política e no mundo empresarial procuram lançar sobre a família o peso da responsabilidade pelas falhas e “disfunções” cada vez mais frequentes, pregando de todos os púlpitos disponíveis a necessidade de “retornar os valores da família tradicional” e aos “valores básicos”. Às vezes tentam encerrar essa necessidade até mesmo na forma de leis quixotescas, procurando jogar nos ombros dos pais [...] a responsabilidade pelo “comportamento antissocial” dos filhos (mais um exemplo característico da tentativa de se resolver problemas brincando com os efeitos e consequências, por jamais conseguir tratar das causas subjacentes) (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. Para Além do Capital. Rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002., p. 272).

Na realidade contemporânea, vivenciamos o avanço da extrema-direita, que carrega consigo o mito da defesa da família que, longe de assegurar proteção social pública e estatal às famílias, vem concretizando o familismo (Horst; Mioto, 2021HORST, C. H. M.; MIOTO, R. C. T. Crise, Neoconservadorismo e Ideologia da Família. In: Beatriz Augusto de Paiva; Simone Sobral Sampaio (org.). Serviço Social, Questão Social e Direitos Humanos. 1. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2021.). Tais determinações apontam para um exercício profissional que, ao desconsiderar as expressões da “questão social” vivenciadas pelas famílias como determinadas pela estrutura societária, as responsabiliza. Por isso, o foco nos comportamentos, a opção muitas vezes pelo trato relacional das percepções, que recaem na terapia comportamental e que culminam na responsabilização da individualidade, descoladas da realidade concreta, entendidas no cotidiano como problemas intrafamiliares, casos de família.

O artigo está organizado em dois momentos, afora a introdução e as considerações finais. No primeiro, recuperamos alguns equívocos no trabalho com famílias ao longo da história da profissão e que ainda se fazem presentes. No segundo, a partir dos fundamentos do serviço social brasileiro, apontamos estratégias e reflexões para se construir, a partir das três dimensões do trabalho profissional - teórico-metodológico, ético-política e técnico-operativa -, o exercício profissional com famílias na perspectiva do projeto ético-político.

2. Enfrentando questões cristalizadas no trabalho com famílias

Conforme sabemos, apesar de trabalharmos com famílias desde a gênese da profissão, este estudo não proporcionou um amplo avanço teórico sobre o tema. Tal ausência vem culminando na polaridade entre compreender a totalidade e culpabilizar as famílias no cotidiano das/os profissionais que enfrentam dificuldades para visualizar e atender as famílias fugindo de uma visão moralista, bem como contextualizando o indivíduo e o grupo familiar na sociedade de classes, estruturada no racismo e no patriarcado.

A família é interpretada de diversas maneiras e perspectivas. Especificamente ao longo da história do Serviço Social brasileiro, tal instituição recebeu as mais variadas explicações teóricas, majoritariamente sustentadas por orientações conservadoras, devido, principalmente, à sua naturalização.

Sendo assim, como pressupostos para o trabalho com famílias orientado pelo Projeto Ético-Político, iremos destacar duas problemáticas que precisam ser superadas: a) a que concebe a família como o objeto do trabalho profissional e/ou a referência para leitura da realidade; b) a que parte da experiência pessoal como referência para o trabalho profissional.

2.1 A família como objeto do trabalho profissional e/ou referência para a leitura da realidade

Nessa perspectiva, as expressões da “questão social”, vivenciadas pelos indivíduos - entendidas como problemas -, derivam, essencialmente, da sua “desestruturação” familiar, por não ser composta por um modelo ideal, da não possibilidade de suporte/apoio na própria família e/ou, ainda, dos problemas comportamentais, como desvio de caráter. Tal entendimento é diametralmente oposto à direção social do projeto ético-político, uma vez que a definição da “questão social” e suas expressões são centrais para o trabalho e para a formação.

Uma das inovações das diretrizes curriculares da ABEPSS foi propor o trato do conjunto de conhecimentos indissociáveis para uma formação profissional crítica, de maneira articulada em núcleos de fundamentação2 2 São eles: Núcleos de Fundamentos Teórico-Metodológicos da Vida Social; Núcleo de Fundamentos da Formação Sócio-Histórica da Sociedade Brasileira; Núcleo de Fundamentos do Trabalho Profissional. Compreendemos que os fundamentos da profissão - expressos a partir da unidade dos três núcleos - possibilitam a compreensão da família, por meio de fundamentos críticos, condizentes com o Projeto Ético-Político, conforme demonstramos em Horst (2020). .

A leitura da unidade articulada dos núcleos de fundamentação considera a questão social assentada na teoria do valor trabalho na sociedade capitalista, apreendida na lei geral da acumulação capitalista e suas refrações, objeto do trabalho profissional, nas particularidades sócio-históricas da sociedade brasileira. Quando não se considera esses aspectos, o objeto da intervenção profissional deixa de ser as expressões da questão social e pode vir a se configurar a política social como objeto de trabalho (Teixeira, 2019TEIXEIRA, R. J. Fundamentos do serviço social: uma análise a partir da unidade dos núcleos de fundamentação das diretrizes curriculares da ABEPSS. Tese (Doutorado em Serviço Social) -Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019., p. 83).

Em detrimento da “questão social” e suas expressões, a ênfase no que tange ao trabalho pode recair na família, em suas relações e nos comportamentos entre seus membros, configurando como objeto do trabalho a própria família. Por esse motivo, o primeiro pressuposto para o trabalho profissional é reafirmarmos que as expressões da “questão social” atravessam as famílias e seus indivíduos, os quais são pertencentes a uma classe social, raça, gênero e território.

A leitura da realidade, reduzida ao binômio indivíduo-família, impossibilita, no exercício profissional, identificarmos as causas subjacentes da estrutura do sistema do capital que interpela os sujeitos e suas famílias. A ausência da perspectiva de totalidade contribui para a moralização, a culpabilização, a responsabilização dos indivíduos e suas famílias em detrimento dos determinantes estruturais e da luta de classes. Resultando na concepção de família como produtora de patologias (Mioto, 2004MIOTO, R. C. T. Trabalho com famílias: um desafio para os assistentes sociais. Revista Textos & Contextos, n. 3, dez. 2004.).

As/os assistentes sociais foram convocadas/os, desde a gênese da profissão, a trabalhar no âmbito da produção e reprodução da vida da classe trabalhadora - cuja expressão particular da família se mostra como instituição universal indispensável à reprodução capitalista junto aos indivíduos - sustentada por uma função política de cunho educativo, moralizador, disciplinador que a legitimava enquanto profissão.

Além da noção de comunidade [...], merece destaque a ênfase na formação social, moral e intelectual da família, considerada como célula básica da sociedade. Trata-se de um trabalho “educativo” entre a família operária, especialmente entre os mais carentes que têm acesso aos equipamentos socioassistenciais, com o objetivo de reforçar o núcleo familiar e integrar seus membros à sociedade. Buscam-se na história familiar os elementos explicativos de comportamentos individuais “anômalos” ou “desviantes” de um padrão tido como “normal”. A família, como grupo social básico, é erigida como núcleo do trabalho profissional e como referência para a apreensão da vida em sociedade, em contrapartida às classes sociais (Iamamoto, 2013IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no serviço social: ensaios críticos. 12. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2013., p. 33, grifos nossos).

Portanto, é preciso enfrentar a compreensão da família como núcleo do trabalho profissional e/ou como referência para a apreensão da vida em sociedade. A partir da pesquisa realizada com assistentes sociais no Estado do Rio Grande do Sul, Reidel et al. (2019REIDEL, T. et al. Perfil, formação e trabalho dos assistentes sociais no Rio Grande do Sul. Pesquisa interinstitucional CRESS-RS, UFRGS, PUCRS, 2019.) apresentam resultados curiosos em relação à pergunta sobre o objeto do trabalho profissional dos assistentes sociais. 1.415 assistentes sociais responderam serem as relações sociais e/ou familiares o objeto de trabalho profissional. Em segundo lugar, ficou as expressões da “questão social”. Ou seja, há uma compreensão na profissão - conforme nossas pesquisas e formações junto às assistentes sociais nos serviços vêm demonstrando (Horst, 2018HORST, C. H. M. Família, marxismo e Serviço Social: desvendando o invólucro místico. 2018. 217 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.), que concebe a família como objeto do trabalho.

É preciso, portanto, subverter essa artimanha ideológica e mistificadora, que elimina a dimensão coletiva da “questão social” expressa na vida dos indivíduos singulares que atendemos, fazendo com que nossa leitura no dia a dia reduza as expressões da “questão social” a uma dificuldade do indivíduo, isolado, com se fossem disfunções sociais, desajustes e que resultam em um trabalho com famílias conservador de caráter individualizador, moralizador e psicologizante.

2.2 A tendência que parte das experiências individuais das/dos assistentes sociais

É importante assinalar que tal tendência não nos parece ser discutida e defendida, deliberadamente, nos espaços da formação em Serviço Social. No entanto, é presente no trabalho profissional. A tendência pragmatista tem mais a ver com a ausência do debate na formação do que pelo debate em si. Conforme as pesquisas demonstram (Horst; Mioto, 2017HORST, C. H. M.; MIOTO, R. C. T. Serviço social e o trabalho com famílias: renovação e conservadorismo? Revista Em Pauta, Rio de Janeiro, n. 40, 2017.), a ausência do debate sobre família na formação (somado a outros diversos fatores, como a lógica do cotidiano profissional; o peso das políticas sociais centralizadas nas famílias) tem levado: a) à reprodução do moralismo e do conservadorismo a partir da adoção de referências pessoais e idealizadas; b) ao recurso de outras perspectivas, como a psicanálise e às mais diversas formas de terapia familiar3 3 Vale destacar que essa abordagem, no âmbito do exercício profissional, é vetada, conforme determina a Resolução n. 569, de 25 de março de 2010, do CFESS. - ao diálogo direto com a orientação sistêmica.

As experiências individuais em família são diversas, apesar da aparência comum, apresentam dinamicidades próprias e não podem ser acionadas como referência para o trabalho profissional, com vistas à moralização das famílias atendidas. Já que entra no circuito do trabalho profissional, a comparação da família atendida com minha experiência pessoal ou com famílias próximas. E destoando daquilo que se toma como normal e estruturada, as famílias atendidas vão sendo classificadas, por meio de comparação, entre boas ou más, estruturadas ou desestruturadas.

Com base nas reflexões de Barroco (CFESS, 2016CFESS. O que é preconceito? Brasília. (Série Assistente Social no Combate ao Preconceito, caderno 1). 2016.), compreendemos essa tendência como própria da vida cotidiana, do senso comum. A expressão de uma de suas características é o subjetivismo, em que “[...] os sentimentos e opiniões de indivíduos e grupos são reproduzidos como se fossem universais e valessem para todos os tempos e situações” (CFESS, 2016CFESS. O que é preconceito? Brasília. (Série Assistente Social no Combate ao Preconceito, caderno 1). 2016., p. 9).

Como observamos, as características do senso comum são inerentes à dinâmica da vida cotidiana. Ou seja, a heterogeneidade, a imediaticidade, a empiria e a ultrageneralização da vida cotidiana alimentam o conhecimento do senso comum, baseado em relações de causa e efeito, em juízos imediatos que generalizam opiniões, sentimentos e visões de mundo particulares, tratando-as como universais e verdadeiras, e, ao mesmo tempo, desconectando as situações da história. Portanto, o problema do preconceito não reside na existência de juízos provisórios, pois eles são inevitáveis na dinâmica da vida cotidiana e porque todo contato com a realidade põe em movimento nossa experiência de vida, incluindo conhecimentos e julgamentos de valor. O problema está na permanência e rigidez dos juízos provisórios e na negação das mediações que podem confirmá-los ou não (CFESS, 2016CFESS. O que é preconceito? Brasília. (Série Assistente Social no Combate ao Preconceito, caderno 1). 2016., p. 10).

Frente a essas “tendências”, apostamos no entendimento da família na perspectiva da totalidade. Ancorada nos fundamentos da profissão na contemporaneidade, que possibilita analisá-la sob o prisma da totalidade, contradição e mediação. Buscando romper com análises que projetam sua origem como algo natural ou divino, por intermédio de uma leitura da realidade sustentada numa ontologia religiosa (Lukács, 2012LÚKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.).

Por esse motivo, o ponto de partida no trabalho profissional precisa captar “[...] as mediações necessárias para avançar na desnaturalização e eternização da família, apontando principalmente, fincada no projeto profissional crítico, suas contradições e a necessidade de sua superação” (Horst, 2018HORST, C. H. M. Família, marxismo e Serviço Social: desvendando o invólucro místico. 2018. 217 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018., p. 187), a partir de uma crítica ontológica.

3. Construindo o trabalho com famílias mediado pelo Projeto Ético-político

Conforme compreendemos, são as três dimensões do exercício profissional - teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa - que devem ser recuperadas e adensadas com aproximações ao debate sobre famílias, visando contribuir com o trânsito necessário entre projeção e materialização de um trabalho crítico com famílias.

Antes de avançarmos nas reflexões é preciso, rapidamente, destacar uma questão. São inúmeras as dificuldades no dia a dia profissional para realizar um trabalho profissional mediado pelo PEP. Concordamos com Iamamoto (2015IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 9. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2015.), quando a autora destaca que o dilema do trabalho profissional está condensado na inter-relação entre projeto profissional e estatuto assalariado. O que significa afirmar, por um lado, que somos profissionais com autonomia relativa para conduzir nossas ações; por outro, ao reconhecermos que somos assalariados, tal condição subordina o fazer profissional aos ditames da alienação, impondo condicionantes à autonomia e à integral implementação do PEP.

Recuperado tal pressuposto para pensarmos a possibilidade de realizarmos o trabalho com famílias, passemos então ao destaque da dimensão teórico-metodológica entendida como uma das dimensões essenciais para a realização de um trabalho mediado pelo PEP.

3.1 A dimensão teórico-metodológica no trabalho com famílias

O método materialista histórico dialético bem como a teoria social marxiana solidificam os fundamentos do Serviço Social na contemporaneidade. Portanto, consiste na matriz teórico-metodológica hegemônica explicativa da profissão, da sociedade e da relação entre ambas. Ao reconhecermos nossos fundamentos na contemporaneidade, compreendemos que a guinada histórica se constitui pela incorporação da categoria trabalho e da “questão social” como centrais para nossos fundamentos.

Os pressupostos da profissão destacam a categoria profissional inserida no processo das relações sociais mediada por classes contraditórias, além disso, centraliza o objeto de estudo que é a “questão social”, determinante para a existência da profissão. E, nesse sentido, como as expressões da “questão social” afetam as famílias que atendemos cotidianamente. Possibilitando a construção desde a formação profissional do entendimento que a família não é um sujeito privilegiado de trabalho, muito menos o objeto de trabalho das/os assistentes sociais.

Assim, tais pressupostos remetem ao conjunto de conhecimentos articulados que se transformam em Núcleos de Fundamentação para a formação e o trabalho profissional, o que permite que assistentes sociais desenvolvam suas atribuições profissionais com competência teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa4 4 Reconhecendo o limite deste artigo, recuperamos rapidamente os três núcleos das diretrizes curriculares da ABEPSS, entendido como unidade articulada dos fundamentos da profissão e estratégica metodológica para leitura das demandas do dia a dia de trabalho. Os três núcleos de fundamentação orientam e devem sustentar as três dimensões do trabalho (teórico-metodológico; ético-política e técnico-operativa), contudo, didaticamente neste estudo, apresentaremos os três núcleos de fundamentação e suas contribuições para entender as famílias, diretamente vinculados à dimensão teórico-metodológica. , consolidando uma leitura de mundo crítica.

O primeiro núcleo é responsável pela colocação do trabalho como categoria fundante do ser social na totalidade histórica, além de analisar as determinações fundamentais da vida social. Nesse sentido, compreendemos que, a partir desse núcleo, é possível aprofundar os fundamentos ontológicos do ser social e traçar o desenvolvimento da humanidade a partir de elementos centrais, de modo que contribua para explicar os fundamentos críticos da origem e do desenvolvimento da família. Desse modo, parte-se das bases marxistas para compreender a gênese do desenvolvimento de homens e mulheres em sociedade, para se chegar à família. Um complexo social.

Ou seja, o pressuposto é que a família foi construída por homens e mulheres ao longo da história da humanidade, o que possibilita romper com expectativas idealizadas, como a sacralização, com a concepção da família como base da sociedade. Portanto, a partir da categoria trabalho, podemos captar as mediações que contribuem para a explicação dos fundamentos da família e de sua particularidade no capitalismo - monogâmica patriarcal burguesa, uma vez que o trabalho determinou ao longo da história as relações sociais entre os indivíduos. Ou seja, o modelo hegemônico de família que se estruturou a sociedade ocidental é uma construção humana que se desenvolveu por determinações biológicas, naturais e por interesses políticos e econômicos.

Em sequência, o núcleo de formação sócio-histórico da sociedade brasileira remete a compreensão sobre conteúdos históricos da socie­dade, como a análise da conjuntura econômica, social, cultural e política, evidenciando a organização do Estado no capitalismo dependente. Ao partirmos dos aspectos que fundamentam a sociedade brasileira como nação, formada a partir dos processos de colonização e marcada pela escravidão dos povos africanos, pelo extermínio dos indígenas e pela economia baseada na prioridade das atividades básicas ao mercado externo, podemos identificar as determinações estruturais da construção sociocultural calcada no racismo, no patriarcado e na superexploração da força de trabalho.

Nessa direção, esse núcleo possibilita recuperar as reflexões acerca da formação da família no país, bem como evidenciar o caráter familista das relações sociais. Ou seja, uma sociedade que historicamente não garantiu proteção pública estatal à sua população e que construiu uma cultura familista, que somente deve acessar direitos (quando acessar), a partir do momento que a família “falhar”.

O terceiro núcleo do trabalho profissional apresenta um conjunto de elementos que envolve e compreende determinações do Serviço Social como especialização do trabalho, com base nos núcleos anteriores. Permite captar a totalidade histórica da profissão e seu significado social, e as dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativo. Ao recuperarmos a compreensão de profissão, seu objeto, objetivos e compromissos ético-políticos, além de qualificarmos ainda mais a compreensão de fundamentos, estamos depreendendo que damos mais um passo no fortalecimento do trabalho com famílias na perspectiva do PEP, na contramão de outras perspectivas e até mesmo do discurso de que nossos fundamentos não nos preparam para o trabalho com famílias.

Portanto, é a partir dos fundamentos da profissão, que podemos demarcar a questão da gênese, origem e do surgimento da família como um complexo social; de seu desenvolvimento ao longo da história e das particulares formações sócio-históricas. Desvendando a relação que as políticas sociais brasileiras construíram com as famílias, diante da negação histórica de acesso à proteção social. E possibilitando, por último, retomarmos às formas como trabalhamos com famílias ao longo da história, elaborando a crítica qualificada para reafirmar o objeto e o objetivo do trabalho profissional, bem como a construção de respostas alternativas ao conservadorismo.

3.2 A dimensão ético-política no trabalho com famílias

A tendência de direcionar o trabalho com famílias na sua instrumentalidade funcional, reiterando o movimento hegemônico da sociedade com base numa produção bibliográfica de cunho estrutural-funcionalista e também nas ambiguidades contidas na orientação das próprias políticas setoriais em relação à família, persiste. Assim, a reiteração de um processo interventivo na lógica do disciplinamento, da responsabilização e da culpabilização das famílias flui como um continuum naturalizado e necessário, embalado pela ideia do protagonismo e autonomia das famílias.

Diante do exposto, torna-se imprescindível compreender a família por sua contraditoriedade e particularidade no capitalismo, e apostar na construção de novos valores éticos, centrados efetivamente na liberdade e na justiça social - parâmetros que sustentam nosso código de ética - e no trabalho cotidiano com as famílias. Ou seja, construir respostas concretas que vão para além das determinações da política social, das cartilhas e indicações governamentais.

Nosso entendimento compreende o trabalho com famílias como um lócus privilegiado de reflexão e provocações, a partir da realidade concreta dos sujeitos atendidos por nós, que pode contribuir nos processos de desmistificação da sociabilidade do capital. Nessa perspectiva, as ações profissionais devem ser pensadas na sua teleologia, incorporando os princípios éticos, articulados entre si, para direcionar e materializar ações no trabalho.

O código de ética é um instrumento educativo e orientador do comportamento ético-profissional do assistente social: representa a autoconsciência ético-política da categoria profissional em dado momento histórico. Assim, é mais do que um conjunto de normas, deveres e proibições; é parte da ética profissional: ação prática mediada por valores que visa interferir na realidade, na direção da sua realização objetiva, produzindo um resultado concreto (Barroco; Terra, 2012BARROCO, M. L. S.; TERRA, S. H. Código de ética do/a assistente social comentado. CFESS. São Paulo: Cortez, 2012., p. 35).

Princípios como a defesa intransigente dos direitos humanos, ampliação e consolidação da cidadania, aprofundamento da democracia, o posicionamento em favor da equidade e da justiça, o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, entre outros, exigem de nós novas posturas no trabalho. Cabe-nos formular estratégias visando contribuir para a desalienação, construindo junto aos indivíduos e suas famílias atendidas por nós uma cultura humanista, democrática5 5 Conforme chamaram atenção Paiva e Sales (2012, p. 228): “No âmbito da relação que se estabelece entre o assistente social e o usuário, ser democrático significa romper com as práticas tradicionais de controle, tutela e subalternização. E, mais, contribuir para o alargamento dos canais de participação dos usuários nas decisões institucionais, entre outras coisas, por meio da ampla socialização de informações sobre os direitos e serviços”. .

Nessa direção, é preciso que repensemos urgentemente o que estamos emitindo como opinião técnica - oral ou escrita - em nossos documentos profissionais. Sendo assim, algumas sugestões ético-políticas para avançarmos no trabalho mediado pelo PEP e que objetive a viabilização do acesso a direitos e à construção de consciências críticas implica o rompimento com pressupostos e suas terminologias conservadoras.

A começar pelo conceito de família desestruturada , que se ancora no conservadorismo moral e na leitura da realidade com base na religião e/ou no positivismo. Afinal, considera-se que existe o correto e o errado; o bom e o ruim; a estruturada e a desestruturada, buscando como objetivo do trabalho ajustar os desajustados, como se as expressões da “questão social” vivenciadas pelas famílias surgissem do modelo de família e não da sociedade, reproduzindo o mito da família desestruturada (Goldani, 1993GOLDANI, A. M. As famílias no Brasil contemporâneo e o mito da desestruturação. Cadernos Pagu, [S. l.], n. 1, p. 68-110, 1993. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1681.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
; Horst, 2018HORST, C. H. M. Família, marxismo e Serviço Social: desvendando o invólucro místico. 2018. 217 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.).

A utilização sem parâmetros éticos-morais do conceito de negligên­cia de acordo com Berberian (2015BERBERIAN, T. P. Serviço Social e avaliações de negligência: debates no campo da ética profissional. Serviço Social & Sociedade [online]. 2015, n. 121.): Quais são os critérios para definir que alguém é negligente? Eles são objetivos ou decorrem apenas de uma avaliação moral? A avaliação moral está pautada nos princípios do Código de Ética? É preciso atender as famílias não voltadas para análise do seu perfil moral, e sim pelas condições reais que interferiram para determinada situação. Nas demandas de “situações de negligência” a intervenção do/a assistente social deve ser direcionada para a identificação de possíveis violações de direitos, por isso o termo mais indicado no lugar de negligência é desproteção.

O uso indiscriminado do conceito de cuidado, ficando a cargo das profissionais definirem o que é cuidado, o que vem acarretando em penalizações às famílias atendidas. Afinal, as pesquisas demonstram que cada profissional concebe o que é cuidado a partir de parâmetros pessoais e fazem afirmações “se cuidam bem ou não” a partir de valores moralistas e pessoais (Menandro; Uliana, 2015MENANDRO, L. M. T.; ULIANA, R. S. S. “Eu cuido muito bem dos meus filhos!” Mães usuárias de drogas do CAPS AD III de Vitória e a perda (ou ameaça da perda) da guarda de seus filhos. Monografia. Departamento de Serviço Social, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.).

A utilização perversa dos termos autonomia e emancipação como se fosse possível, na órbita do capitalismo, que as famílias sejam emancipadas e exerçam autonomia integral sobre suas escolhas e condições materiais de vida. Ao mesmo tempo, a utilização para designar as famílias que atendemos como famílias em riscos e/ou situações de vulnerabili­dades, quando se trata em suma maioria de famílias das diversas frações da classe trabalhadora, atravessadas pelas diversas expressões da “questão social”, pelas determinações de raça, gênero e território, por isso em situações de pobreza, desigualdades, exploração, opressão e violação de direitos humanos (Silveira Junior, 2016SILVEIRA JUNIOR, A. A. A assistência social e as ideologias do social-liberalismo: tendências político-pedagógicas para a formação dos trabalhadores do SUAS. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.; Martins, 2015MARTINS, A. C. Risco Social: Terminologia adequada para a proteção social e garantia de direitos? In: Revista Em Pauta - Rio de Janeiro, 1o semestre de 2012.).

Vale destacar a ideia pela busca do fortalecimento de vínculos, estabelecidos pelas políticas como se fosse um princípio ético da profissão, que, sem a sua criticidade, nos leva ao pensamento de que o vínculo afetivo, emocional e familiar pode resolver os problemas dos sujeitos. Ou seja: a ideia conservadora de que o fortalecimento de vínculos leva à resolução das expressões da “questão social” vivenciadas pelo sujeito e/ou família, isentando a política social de responder por tais questões.

E por fim, a ideia de resiliência e empoderamento , que são termos neoconservadores recentemente incorporados pelas políticas sociais e por assistentes sociais, inclusive como o objetivo do trabalho junto às famílias (Carvalho, 2019CARVALHO, I. A. Para a Crítica do Empoderamento: a ideologia do indivíduo mônada social. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.).

Para finalizarmos as indicações ancoradas na dimensão teórico-metodológica e agora pensadas na perspectiva ético-política, é preciso que a condução de nossas ações enfrente a reprodução de tais perspectivas sintetizadas a seguir, como possibilidade de construirmos a dimensão técnico-operativa na direção do PEP.

PERSPECTIVA CARACTERÍSTICAS A perspectiva de endogeneização das famílias O trabalho se volta para o binômio indivíduo-família, ou seja, para o ambiente doméstico, desloca-se a família das relações sociais, econômicas e políticas e as expressões da “questão social” são tratadas como problemas pessoais. A perspectiva de submissão das famílias Está ancorada nas relações de poder, opressão e subalternidade estabelecidas com a população desde os tempos da colônia. A perspectiva de moralização das famílias Ações moralizadoras junto as famílias com o objetivo de eliminar os “desajustes sociais” e transformar as demandas por acesso a direitos em “patologias sociais”. Busca-se estruturar os desestruturados, ou seja, psicologização das expressões da “questão social”. A perspectiva de discriminação das famílias A discriminação pode acontecer por diversas razões: preconceito de classe, cultural, religioso, sexual, racial, étnico e territorial, o que resulta no trabalho preconceituoso. A perspectiva de responsabilização das famílias Ancorado na perspectiva do neoliberalismo, parte-se da premissa de que as famílias e os sujeitos são responsáveis individualmente por si. Além disso, não precisam de proteção social pública e estatal, se falham são responsabilizados. A perspectiva de culpabilização das famílias Diante da ausência de leitura da totalidade, o foco se dá no que as famílias fizeram ou não, cumpriram ou não, se responsabilizaram ou não. Sem questionar a ausência de proteção social, reatualizando as ideias de fracasso, falhas e negligências. A perspectiva de penalização das famílias O trabalho preconiza um horizonte punitivo para as famílias, mediado por ameaças constantes, inclusive no que tange ao acesso e permanência nos serviços, impondo às famílias, todas as exigências para que cumpram condicionalidades independente da oferta pública e estatal de condições para esse cumprimento. Fonte: (Duarte, 2017; 2018; Horst, 2018)

Não poderíamos avançar sem antes demarcar que nossos fundamentos confrontam abertamente a perspectiva do familismo. Sem enfrentarmos o familismo como estratégia hegemônica da sociedade e sua expressão nas políticas sociais e serviços, é impossível materializar ações comprometidas com as famílias.

O familismo como um mecanismo de dominação ideológica se reproduz como estratégia para responsabilizar os indivíduos e suas famílias pelo caos instalado pela sociabilidade burguesa. Nesse sentido, a) mascaram os determinantes e fundamentos do sistema do capital e suas crises; b) desloca as questões, que somente coletivamente poderão ser resolvidas, para o âmbito “particular”; c) centraliza as famílias como naturalmente responsáveis pelos seus membros e, no interior destas, constroem o apassivamento dos sujeitos, a produção de consensos, já que se trata de um problema da “minha família” e não da sociabilidade burguesa (Horst; Mioto, 2021HORST, C. H. M.; MIOTO, R. C. T. Crise, Neoconservadorismo e Ideologia da Família. In: Beatriz Augusto de Paiva; Simone Sobral Sampaio (org.). Serviço Social, Questão Social e Direitos Humanos. 1. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2021., p. 37).

Na proposta familista parte-se do pressuposto de que a família é a principal provedora e responsável pelo bem-estar e proteção social de seus membros. Fora disso, a proteção social é de responsabilidade da esfera mercantil, ou seja, quem pode pagar acessa proteção social. Além de reforçar papéis tradicionais de homens e mulheres, na contramão da realidade brasileira (constituída hegemonicamente por famílias monoparentais femininas).

No âmbito do cotidiano, sabemos que essa projeção familista se materializa na responsabilização, sobrecarga e culpabilização de mulheres (mães, vizinhas, avós), que desenvolvem o trabalho do cuidado não reconhecido (Mioto, 2015MIOTO, R. C. T. et al. (org.) Familismo, Direitos e Cidadania: contradições da política social. São Paulo: Cortez Editora, 2015.). E que não podem falhar, com risco de perder a guarda de suas crianças, reponder a processo na justiça e ser moralizadas pelas diversas equipes profissionais.

3.3 A dimensão técnico-operativa no trabalho com famílias

Começaremos destacando perguntas centrais que podem servir de guias - a partir dos fundamentos apresentados até o momento - para a condução de qualquer ação, instrumento e técnica, no exercício profissional. Se ancorados em nossos fundamentos, tais questões possibilitam o planejamento do exercício profissional voltado para a viabilização do acesso a direitos. O que é família? Quem são as famílias que eu atendo? Como elas vivem? Quais direitos sociais essa família já acessou/acessa?

Discutir a concepção de família na equipe ou entre as/os assistentes sociais é necessário, pois, pesquisas demonstram que todo exercício profissional é guiado pela concepção de família. Sendo importante termos consciência de nossa concepção.

Ao questionarmos quem são as famílias, realizamos um amplo levantamento e sistematizamos nossa prática, possibilitando a aproximação com a realidade. Qual é a história da família? Qual é o pertencimento racial, de gênero? Qual é a renda e a relação com o mundo do trabalho? Qual é a orientação sexual e a identidade de gênero dos membros? O indivíduo que atendo viveu ou vive em algum grupo familiar? O que envolveu o processo de socialização dos sujeitos?

Ao perguntarmos como elas vivem, é necessário saber sua região, cidade, seu bairro, sua infraestrutura econômica, possibilitando a construção de reflexões sobre território, sobre as condições reais de garantir proteção a seus membros, sobre direitos acessados ou não. Levando-nos à última pergunta: “Quais as políticas públicas e/ou sociais que essa família acessa/acessaram?”. É impossível iniciar qualquer atendimento e acompanhamento com famílias questionando sua capacidade [ou afirmando sua incapacidade], sem perguntar: “Quem protege essa família?”. Afinal, para assegurar proteção a seus membros, as famílias precisam antes contar com um amplo e universal sistema de proteção social.

Destacadas tais questões, retomamos algumas sugestões já elaboradas por Mioto (2010MIOTO, R. C. T. Família, trabalho com famílias e serviço social. Serviço Social em Revista, Londrina, v. 12, n. 2, p. 163-176, jan./jun. 2010.; 2015MIOTO, R. C. T. et al. (org.) Familismo, Direitos e Cidadania: contradições da política social. São Paulo: Cortez Editora, 2015.), para a condução do exercício profissional com famílias a partir da articulação de diferentes níveis de ações profissionais, que se estruturam em três grandes processos: processos políticos-organizativos, processos de gestão e planejamento e processos sócio-assistenciais (Mioto; Lima, 2009MIOTO, R. C. T.; DE LIMA, T. C. S. A dimensão técnico-operativa do Serviço Social em foco: sistematização de um processo investigativo. Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 8, n. 1, p. 22-48, 13 ago. 2009.; Mioto, 2010MIOTO, R. C. T. Família, trabalho com famílias e serviço social. Serviço Social em Revista, Londrina, v. 12, n. 2, p. 163-176, jan./jun. 2010.; 2015MIOTO, R. C. T. et al. (org.) Familismo, Direitos e Cidadania: contradições da política social. São Paulo: Cortez Editora, 2015.).

Os processos político-organizativos no trabalho com famílias implicam ações que privilegiem e incrementem a discussão da relação família e proteção social na esfera pública, visando ao rompimento com a ideologia vigente da família como responsável pela proteção social, na busca de garantia e ampliação dos direitos sociais. Ações que considerem não só as necessidades imediatas, mas prospectam, a médio e a longo prazo, a construção de novos padrões de sociabilidade entre os sujeitos. As ações nesse âmbito têm caráter coletivo e, entre elas, destacam-se as de assessoria e mobilização junto às famílias, aos conselhos de direitos e aos movimentos sociais organizados. Trata-se da tarefa de contribuir na coletivização de demandas “individuais”.

Ações que podem ser organizadas por assistentes sociais com vistas a dinamizar e instrumentalizar a participação dos sujeitos, respeitando o potencial político e o tempo dos sujeitos envolvidos, mas visando à articulação com as forças sociais presentes na cidade, nos bairros e nos territórios, como movimentos sociais feministas, antirracistas, líderes comunitários e movimentos diversos como potencializadores na compreensão de que o privado é político, cujas ações socioeducativas podem contribuir em direção do alargamento da consciência crítica, da defesa da universalização e da ampliação dos direitos.

Os processos de planejamento e gestão vinculam o conjunto de ações profissionais desenvolvidas com enfoque no planejamento institucional como instrumento de gestão de políticas e serviços. Buscam o deslocamento do foco do atendimento dos objetivos institucionais para o atendimento das necessidades das famílias. Por esse motivo, é fundamental a interferência no sentido de construir práticas efetivas intersetoriais ou gerir as relações interinstitucionais na busca de aliviar a carga de trabalho exigida pelos serviços às famílias. Ou seja, contribui para reverter o processo de responsabilização da família pelo cuidado, prática tão naturalizada nas instituições.

Tal frente é importante para a organização e a articulação de serviços, aspecto fundamental para atender as necessidades das famílias e garantir eficazmente uma estrutura de cuidado e proteção. Isso só se torna possível quando a organização dos serviços é estruturada de forma a permitir e facilitar o acesso das famílias. E pode incorporar ações que redefinem desde os horários de funcionamento dos serviços até os níveis de exigências direcionados às famílias. A avaliação dessas exigências é fundamental para que o serviço, conforme destaca Mioto, não se transforme também em mais uma fonte de estresse para as famílias. “Essas ações são ligadas: (a) à gestão das diversas políticas sociais das instituições e dos serviços, e (b) à gestão e ao planejamento de serviços sociais em instituições, programas e empresas” (Mioto; Lima, 2009MIOTO, R. C. T.; DE LIMA, T. C. S. A dimensão técnico-operativa do Serviço Social em foco: sistematização de um processo investigativo. Textos & Contextos (Porto Alegre), v. 8, n. 1, p. 22-48, 13 ago. 2009., p. 41).

Finalmente, os processos sócio-assistenciais correspondem às ações profissionais desenvolvidas diretamente com as famílias. Os atendimentos devem buscar a compreensão dos indivíduos e suas famílias não como objetos terapêuticos, mas na busca por viabilizar o acesso a direitos. Assim, busca-se responder às suas demandas/necessidades numa perspectiva de construção de consciência crítica. As ações podem ser realizadas com base em uma série de técnicas e instrumentos, como entrevistas, visitas domiciliares, plantões, trabalho com grupos, reuniões etc. E todo atendimento, conforme prevê o código de ética, inicia-se esclarecendo aos/às usuários/as os objetivos, a amplitude, e os limites do nosso trabalho.

Compreendemos que são os fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos que possibilitam escolhas conscientes e coerentes com nosso PEP no trabalho com famílias. Ou seja, que conduzam os instrumentais técnicos em qualquer frente de ação que estejamos realizando, sejam elas processos políticos-organizativos, processos de gestão e planejamento e processos sócio-assistenciais, de atendimento direto, de maneira propositiva e na busca pela viabilização do acesso aos direitos.

4. Considerações finais

O PEP exige, cada vez mais, assistentes sociais com formação continuada, crítica e propositiva. Dessa forma, torna-se necessário aprofundar os estudos de cariz marxista e desenvolver investigações que demonstrem como se implicam os processos de regulação da vida familiar e os processos de articulação e delegação de responsabilidades às famílias, objetivando construir intervenções que se contraponham ou resistam à lógica dominante e à tendência familista, reafirmada cotidianamente via naturalização.

É importante entender as demandas colocadas pelos indivíduos e suas famílias como expressões da luta de classes, buscando romper com a visão “a-histórica do indivíduo abstraído, artificialmente, da produção material, das relações de classe, enfim, da sociedade” (Iamamoto, 2014IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 41. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2014., p. 82).

É na perspectiva desse exercício profissional que nos tornamos capazes de compreender a instituição família e suas demandas apresentadas nos diversos serviços sociais numa perspectiva de totalidade. A partir do entendimento das contradições da instituição família determinadas pelo capitalismo, que nega o enquadramento de modelos e comportamentos considerados desestruturados, no caso do positivismo, ou que tendem à aposta no caráter de uma subjetividade desvinculada das determinações objetivas da sociabilidade, apostando nas mudanças de comportamentos dos sujeitos como forma de resolver as expressões da “questão social” apontadas como problemas intrafamiliares e interpessoais.

Apostar na transitoriedade das relações sociais é desnaturalizar as relações familiares da classe trabalhadora. Disso, resulta um trabalho que, ao realizar uma leitura crítica da realidade, em seu sentido marxiano, junto aos sujeitos e suas famílias, implica uma acertada colocação dos problemas vivenciados por elas em seus devidos lugares e origens. Para além da aclamada garantia de direitos, nosso trabalho estará contribuindo muito se formos capazes de instigar o necessário entendimento da luta coletiva. Afinal, como indicou Marx em “Sobre o suicídio” (2006MARX, K. Sobre o Suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006.), é necessária uma crítica social inspirada na compreensão de que o privado é político!

Referências

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  • 1
    Compreendemos como desvalor toda forma de agir que obscurece ou aliene os indivíduos. E que, portanto, impede a realização de ações éticas que criem liberdade e impeça as violências, o desrespeito, as injustiças e todas as formas de opressões e explorações (Barroco, 2010BARROCO, M. L. S. Ética: Fundamentos Sócio-Históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.).
  • 2
    São eles: Núcleos de Fundamentos Teórico-Metodológicos da Vida Social; Núcleo de Fundamentos da Formação Sócio-Histórica da Sociedade Brasileira; Núcleo de Fundamentos do Trabalho Profissional. Compreendemos que os fundamentos da profissão - expressos a partir da unidade dos três núcleos - possibilitam a compreensão da família, por meio de fundamentos críticos, condizentes com o Projeto Ético-Político, conforme demonstramos em Horst (2020HORST, C. H. M. As Diretrizes Curriculares da ABEPSS e a Temática Família. Revista Temporalis, Brasília. v. 20, p. 144-164, 2020.).
  • 3
    Vale destacar que essa abordagem, no âmbito do exercício profissional, é vetada, conforme determina a Resolução n. 569, de 25 de março de 2010, do CFESS.
  • 4
    Reconhecendo o limite deste artigo, recuperamos rapidamente os três núcleos das diretrizes curriculares da ABEPSS, entendido como unidade articulada dos fundamentos da profissão e estratégica metodológica para leitura das demandas do dia a dia de trabalho. Os três núcleos de fundamentação orientam e devem sustentar as três dimensões do trabalho (teórico-metodológico; ético-política e técnico-operativa), contudo, didaticamente neste estudo, apresentaremos os três núcleos de fundamentação e suas contribuições para entender as famílias, diretamente vinculados à dimensão teórico-metodológica.
  • 5
    Conforme chamaram atenção Paiva e Sales (2012PAIVA, B. A.; SALES, M. A. A nova ética profissional: práxis e princípios. In: BONETTI, D. A. et al. Serviço Social e Ética: convite a uma nova práxis. 13. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2012., p. 228): “No âmbito da relação que se estabelece entre o assistente social e o usuário, ser democrático significa romper com as práticas tradicionais de controle, tutela e subalternização. E, mais, contribuir para o alargamento dos canais de participação dos usuários nas decisões institucionais, entre outras coisas, por meio da ampla socialização de informações sobre os direitos e serviços”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2023
  • Aceito
    13 Jul 2023
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