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A filosofia como historicidade: a ideologia no estudo filosófico dos Cadernos do cárcere

Philosophy as historicity: ideology in the philosophical study of Prison notebooks

Resumos

O artigo busca apreender a categoria da ideologia nas notas dedicadas ao estudo da filosofia dos Cadernos do cárcere de Antônio Gramsci. Por meio de uma pesquisa bibliográfica dessa obra, são explicitados os fundamentos teórico-metodológicos e as articulações categoriais inerentes à questão da ideologia em Gramsci. A exposição apresenta a relação necessária entre ideologia e práxis histórica, a concepção de bloco histórico como totalidade social e as condições necessárias e suficientes à superação das relações sociais dominantes.

Ideologia; Práxis social; Bloco histórico; Filosofia da práxis


The article seeks to apprehend the category of the ideology in the notes dedicated to the study of philosophy in Antônio Gramsci's Prison notebooks. The theoretical and methodological fundamentals and the category articulations of the issue of ideology in Gramsci are explained through bibliography research related to that work. The explanation presents the necessary relationship between ideology and historical praxis, the conception of historical block as social totality and the necessary and sufficient conditions to overcome the dominant social relationships.

Ideology; Social praxis; Historical block; Philosophy of praxis


ARTIGOS

A filosofia como historicidade: a ideologia no estudo filosófico dos Cadernos do cárcere

Philosophy as historicity: ideology in the philosophical study of Prison notebooks

Adilson Aquino Silveira Júnior

Assistente social, mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorando em Serviço Social pela UFPE, Recife/PE, Brasil. E-mail: j_r1987@hotmail.com

RESUMO

O artigo busca apreender a categoria da ideologia nas notas dedicadas ao estudo da filosofia dos Cadernos do cárcere de Antônio Gramsci. Por meio de uma pesquisa bibliográfica dessa obra, são explicitados os fundamentos teórico-metodológicos e as articulações categoriais inerentes à questão da ideologia em Gramsci. A exposição apresenta a relação necessária entre ideologia e práxis histórica, a concepção de bloco histórico como totalidade social e as condições necessárias e suficientes à superação das relações sociais dominantes.

Palavras-chaves: Ideologia. Práxis social. Bloco histórico. Filosofia da práxis.

ABSTRACT

The article seeks to apprehend the category of the ideology in the notes dedicated to the study of philosophy in Antônio Gramsci's Prison notebooks. The theoretical and methodological fundamentals and the category articulations of the issue of ideology in Gramsci are explained through bibliography research related to that work. The explanation presents the necessary relationship between ideology and historical praxis, the conception of historical block as social totality and the necessary and sufficient conditions to overcome the dominant social relationships.

Keywords: Ideology. Social praxis. Historical block. Philosophy of praxis.

1. Introdução

Entre as investigações e apontamentos mais estritamente voltados ao problema da filosofia, Antônio Gramsci desenvolve nos Cadernos do cárcere um conjunto de notas e passagens nas quais, direta ou indiretamente, contribui para tornar inteligível a categoria da ideologia. A elaboração que se desdobra, matizada pela concepção de mundo inerente à "filosofia da práxis", apreende e explicita fundamentos teórico-metodológicos e históricos imprescindíveis ao desvelamento das relações de hegemonia entre as classes. Por meio de uma síntese aproximativa daquelas formulações que laboram a questão da ideologia nos escritos carcerários, pretendemos contribuir para aprofundar teoricamente, no âmbito da pesquisa sócio-histórica, a apropriação do fecundo arsenal crítico e categorial do comunista sardo. O estudo demandou que enveredássemos por aqueles Cadernos nos quais explicitamente o tema da filosofia foi levado a cabo: principalmente, no Caderno 10 (1932-35), A filosofia de Benedetto Croce, e no Caderno 11 (1932-33), Introdução ao estudo da filosofia.1 1 . Ambos publicados na edição brasileira atual: Gramsci (2011a). Além disso, cotejamos os "cadernos miscelânea", nos quais se encontram as notas de primeira redação posteriormente reformuladas e reescritas naqueles "cadernos especiais".2 2 . Os "cadernos miscelânea" dedicados ao estudo da filosofia são, fundamentalmente: o Caderno 4 (1930-1932), Apontamentos de filosofia/miscelânea/O canto décimo nono do inferno; o Caderno 7 (1930-31), Apontamentos de filosofia II e miscelâneas; e o Caderno 8 (1931-32) , Miscelânea e apontamentos de Filosofia II. Como não contamos com uma edição integral dos "cadernos miscelânea" em português, recorremos à versão mexicana, traduzida da edição crítica de Valentino Gerratana. Foram examinados os seguintes volumes: Gramsci (1999b) e Gramsci (1984). Sobre a distinção entre os cadernos miscelânea e especiais, além dos demais recursos atualmente utilizados para referenciar as notas carcerárias, ver Introdução de Gerratana em Gramsci (1999a).

É evidente que os materiais bibliográficos e os objetivos a partir dos quais pesquisamos impõem alguns limites à proposição de resultados definitivos à análise da ideologia em Gramsci. Porquanto, pretendemos nos debruçar estritamente sobre as notas em torno do estudo da filosofia, o tratamento mais aprofundado e sistemático de um tema tão abrangente e polêmico — no quadro mesmo dos comentadores de Gramsci, que dirá no âmbito da tradição marxista — não pôde ser levado a cabo. Nossa contribuição consiste tão somente numa aproximação teórica à ideologia no extrato dos Cadernos selecionados — cujo conteúdo possui também um caráter inacabado, provisório e fragmentado3 3 . Numa nota de advertência, no início do Caderno 11, Gramsci postula explicitamente o caráter aproximativo e inconcluso de suas anotações, afirmando que podem conter, inclusive, inexatidões e tratamentos desatualizados. —, subsidiando a apropriação dos fundamentos filosóficos, articulações categoriais e remissões históricas intrínsecas.

É conhecido que as notas dedicadas ao estudo da filosofia foram, mormente, elaboradas através da crítica ao pensamento idealista do filósofo italiano Benedetto Croce (e também de Giovanni Gentile) e ao livro, de 1921, A teoria do materialismo histórico: manual popular de sociologia marxista (chamado nos Cadernos de "Ensaio Popular") de Nikolai Ivanovich Bukharin, então dirigente do Partido Comunista russo e da Internacional Comunista. O desenvolvimento desse programa de pesquisa filosófica ocorreu, assim, embora não exclusivamente, através dos seus "Anti-Croce" e "Anti-Bukharin": o combate ao revisionismo idealista, de uma parte, e ao materialismo mecanicista, de outra.4 4 . Detalhes sobre essa elaboração são fornecidos por Bianchi (2008). Também Buci-Glucksmann (1980) aborda o estudo filosófico de Gramsci nos Cadernos. Essa empreitada é seguida em sintonia fina com as concepções e fundamentos da própria obra marxiana, mobilizados original e criativamente para análise concreta das condições históricas da luta das classes subalternas na entrada do século XX.

2. Ideologia e práxis social

Iniciemos pela determinação da função da ideologia na reprodução social. Numa nota do Caderno 7 (1930-31), antes mesmo da reformulação dos textos miscelânea nos "cadernos especiais", a questão da ideologia é tratada por meio de uma evidente remissão à obra de Marx. O trecho que segue realiza a distinção entre as "ideologias orgânicas" e as "ideologias arbitrárias". O § 19 do referido Caderno destaca, inicialmente, o elemento de erro nas concepções que abordam a ideologia enquanto "'pura' aparência, inútil, estúpida", hipostasiada do movimento histórico:

Um elemento de erro na consideração sobre o valor das ideologias, ao que me parece, deve-se ao fato (fato que, ademais, não é casual) de que se dê o nome ideologia tanto à superestrutura necessária de uma determinada estrutura, como às elucubrações arbitrárias de determinados indivíduos. O sentido pejorativo da palavra tornou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a análise teórica do conceito de ideologia. O processo deste erro pode ser facilmente reconstituído: 1) identifica-se a ideologia como sendo distinta da estrutura e afirma-se que não são as ideologias que modificam a estrutura, mas sim vice-versa; 2) afirma-se que uma determinada solução política é "ideológica", isto é, insuficiente para modificar a estrutura, enquanto crê poder modificá-la se afirma que ela é inútil, estúpida etc.; 3) passa-se a afirmar que toda ideologia é "pura" aparência, inútil, estúpida etc. (Gramsci, 2011a, p. 237)

Duas abordagens comumente fornecidas à questão são apresentadas: uma expressa como acertada, enquanto outra constitui a fonte de erro na consideração do "valor das ideologias". Na primeira, é enfatizada a vinculação orgânica entre determinadas ideologias, enquanto superestrutura necessária, e a estrutura social, evidenciando a relação de unidade existente entre ambas. As ideologias e a estrutura social expressam duas dimensões concretas, com suas particularidade e legalidades específicas, constituidoras do devir histórico. O processo de erro descrito — cujo resultado é uma concepção generalizadora da ideologia como "'pura' aparência, inútil, estúpida" — inicia precisamente com a orientação metodológica que consiste na cisão entre as ideologias e a estrutura social dada. Sabemos que a concepção da ideologia como "superestrutura necessária de uma determinada estrutura" consiste numa referência às formulações de Marx no Prefácio à Crítica da economia política, de 1859. Todavia, antes de nos determos na formulação presente nesse manuscrito seminal, concentremo-nos na relação de necessária unidade entre ideologias e estrutura social. No fragmento seguinte, ainda do § 19, vejamos como Gramsci (2011a) determina a função social específica das "ideologias orgânicas":

É necessário, por conseguinte, distinguir entre as ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalísticas, "voluntaristas". Enquanto são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é validade "psicológica": elas "organizam" as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam etc. Enquanto são "arbitrárias", não criam mais do que "movimentos" individuais, polêmicas etc. (p. 238)

Utilizando-nos da distinção aludida num trecho incompleto dos manuscritos d'A ideologia alemã,5 5 . Referimo-nos à seguinte passagem: "Até agora consideramos principalmente apenas um aspecto da atividade humana, o trabalho dos homens sobre a natureza. O outro aspecto, o trabalho dos homens sobre os homens [...]" (Marx e Engels, 2007, p. 39). vemos que as "ideologias orgânicas" — em contraste com o "aspecto da atividade humana" voltado ao "trabalho dos homens sobre a natureza" — localizam-se na esfera da "atividade humana" referente ao "trabalho dos homens sobre os homens" (Marx e Engels, 2007, p. 39). Ou seja, constituem parte das atividades humanas que tem por objeto os modos de pensar e agir dos homens em sociedade, intervindo, portanto, na qualidade das relações que estes estabelecem entre si e com a natureza. As "ideologias orgânicas" possuem um papel organizativo e diretivo da atividade humana, conformando uma consciência social necessária a determinado modo de agir no mundo, vinculada a interesses socioeconômicos situados, condicionados pela estrutura social. Assumem uma orientação prático-social situada, com efeitos concretos no desenvolvimento histórico, compondo as formas de consciência através das quais os homens tornam inteligível sua posição no mundo, se movimentam, lutam.

Logo, as "ideologias orgânicas" não são conformadas no vazio, embora estejam distantes de ser tratadas, igualmente, como um subproduto ou epifenômeno de fatores econômicos. Em todo caso, nem derivam do "ventre da ideia que se põe a si mesma" (Marx, 2011, p. 217), tampouco são "'autodeterminações' do conceito que se desenvolve na história" (Marx e Engels, 2007, p. 49). Elas se elevam sobre uma estrutura social situada: "[...] a filosofia não se desenvolve a partir de outra filosofia,6 6 . Cabe-nos assinalar que a distinção assumida por Gramsci entre filosofia e ideologia é estritamente quantitativa, de grau, e não qualitativa ou orgânica. Enquanto a primeira expressa a "a concepção de mundo que representa a vida intelectual e moral (catarse de uma determinada vida prática) de todo um grupo social", a segunda consiste em "toda concepção particular de grupos internos da classe que se propõem ajudar a resolver problemas imediatos e restritos" (Gramsci, 2011a, p. 302). E acrescenta: "Aliás, as ideologias serão a 'verdadeira' filosofia, já que elas serão as 'vulgarizações' filosóficas que levam as massas à ação concreta, a transformação da realidade. Isto é, elas serão o aspecto de massa de toda concepção filosófica" (Gramsci, 2011a, p. 312). mas é uma contínua solução de problemas colocados pelo desenvolvimento histórico" (Gramsci, 2011a, p. 343). Emergem e se afirmam no quadro dos intercâmbios dialéticos estabelecidos entre a estrutura socioeconômica e a consciência social necessária que dirige a prática dos indivíduos, vinculando suas decisões alternativas cotidianas à reprodução ou à superação das relações sociais em causa.

As ideologias constituem as formas de consciência inerentes à atividade dos próprios indivíduos sociais, destinadas a responder às necessidades e problemas colocados pela produção social. Nessa perspectiva, a afirmação da historicidade e da caducidade das ideologias parte do fato de que as mesmas são "expressões da estrutura e se modificam com a modificação desta" (Gramsci, 2011a, p. 131). O autor dos Cadernos reivindica a práxis social como momento predominante da dialética entre teoria e prática, o que não significa a impostação de uma hierarquia de valor entre as categorias constitutivas do ser social. Para a determinação das "ideologias orgânicas", cita, quase com as mesmas palavras, um conhecido trecho do "Prefácio" de 1859. Vamos ao texto do Marx (2008a, p. 46):

Quando se considera tais transformações [das superestruturas, provocadas pela base econômica] convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção [...] e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas, sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim.

É relevante constatar que tal citação é também recorrentemente utilizada por Georg Lukács, em sua Ontologia do ser social,7 7 . Tais referências podem ser identificadas em Lukács (2010, 2012). No artigo de Vaisman (2010) encontramos uma síntese sobre a concepção lukasciana. e, mais tarde, em diversos textos de István Mészáros,8 8 . Esse autor trata reiteradamente da questão da ideologia, nesses termos, em: Mészáros (2011, 2008, 2004). para o tratamento da questão da ideologia em Marx. Ambos assumindo uma posição bastante aproximada daquela apresentada por Gramsci.9 9 . Coutinho (2011) afirma essa convergência entre Gramsci e Lukács, no que concerne ao entendimento da questão da ideologia em Marx. E Oldrini (1999) informa uma aproximação entre os dois comunistas também na busca pela superação das polarizações idealistas e mecanicistas na tradição marxista, através de um tertium datur fundado na perspectiva teórico-metodológica de Marx e de Lênin. Outras importantes menções do mesmo manuscrito marxiano de 1859 são retomadas por nosso autor para aprofundar as reflexões relativas ao estudo da filosofia. Assumindo os termos do "fundador da filosofia da práxis", o comunista sardo recusa as abordagens que desconsideram o valor histórico das ideologias, ou que as releguem a uma posição estrita de "falsa consciência". O que está em questão é a função prático-social de determinadas formas de consciência, não obstante caracterizem falsas ou verdadeiras elaborações, do ponto de vista histórico-concreto. Tal função se relaciona a conscientização dos conflitos colocados pela produção social, orientando a práxis humana existente. Uma nota daquele Caderno 7, intitulada "Validade das ideologias", sinaliza precisamente nessa direção:

Recordar a frequente afirmação de Marx sobre a "solidez das crenças populares" como elemento necessário de uma determinada situação. Ele diz mais ou menos isto: "quando esta maneira de conceber tiver a força das crenças populares" etc. Outra afirmação de Marx é a de que uma persuasão popular tem, com frequência, a mesma energia de uma forma material, ou algo semelhante, e que é muito significativa. A análise concreta destas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de "bloco histórico", no qual, precisamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as formas materiais. (Gramsci, 2011a, p. 238)

Aqui Gramsci recorda uma passagem da Crítica da filosofia do direito de Hegel — Introdução, na qual Marx sinaliza, ainda no início dos anos 1840, que "a teoria também se torna força material quando se apodera das massas" (2010, p. 151). De uma parte, essa remissão — que se repetirá em diversos outros momentos — é empregada para corroborar o poder das ideologias no próprio devir histórico, sendo desenvolvida ainda para o tratamento das relações de hegemonia e da própria ação estatal em sentido "integral", "orgânico" (Gramsci, 2007). De outra parte, é abordada como indicação fornecida por Marx para evocar a necessidade da formação de uma consciência classista unitária, crítica, autônoma e de massas como momento necessário do processo revolucionário mesmo.

De fato, ainda em A ideologia alem㠗 manuscrito cujo conteúdo Gramsci não chegou a conhecer — Marx e Engels assumem que os "elementos materiais de uma subversão total" são, sobretudo, o desenvolvimento posto pelas "forças produtivas" e a "formação de uma massa revolucionária que revolucione não apenas as condições particulares da sociedade até então existente, como também a própria 'produção da vida' que ainda vigora — a 'atividade total' na qual a sociedade se baseia [...]". Se tais condições são inexistentes, não importa "se a ideia dessa subversão total já foi proclamada uma centena de vezes" (2007, p. 43). Em suma, é incontornável a criação em massa de uma consciência comunista,10 10 . Tal requisição aparece de modo explícito também em várias passagens d' A sagrada família (Marx e Engels, 2003), à qual Gramsci teve acesso e pôde utilizar nos seus estudos. enquanto consciência da necessidade de uma revolução radical, por parte da classe trabalhadora. Com efeito, Mészáros (2009) afirma que desde seus primeiros escritos, até os Grundrisse e O capital, Marx insistiu "[...] na necessidade da formação de uma consciência de massa socialista, como exigência sine qua non para envolver a grande maioria dos indivíduos em seu empreendimento coletivo de autoemancipação" (p. 1041). Essa unidade dialética entre forças produtivas e consciência social é apreendida por Gramsci por meio da reformulação do conceito de "bloco histórico".

3. O bloco histórico como totalidade social

No estudo da filosofia, Gramsci incorpora aquela noção do teórico francês do sindicalismo Georges Sorel (1874-1922),11 11 . Uma exposição sobre a concepção original de Sorel é apresentada por Bianchi (2008). Analistas como Portelli (1977) chegam a considerar que os principais aspectos do pensamento político presente nos Cadernos articulam-se em torno do conceito de bloco histórico. reelaborando-a buscando reproduzir a unidade ontológica entre a estrutura social e as ideologias. Tal perspectiva encontra-se nos fundamentos mesmos da concepção de mundo inerente à obra de Marx: "Para a filosofia da práxis o ser não pode ser separado do pensar, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se faz se esta separação, cai-se numa de muitas formas de religião ou na abstração sem sentido" (Gramsci, 2011a, p. 175). Na reformulação gramsciana da noção de "bloco histórico" está inerente a natureza categorial da práxis social em sua unidade.12 12 . Em Gramsci, a práxis social encontra-se fundada na atividade produtiva: "Se este é o ponto de partida da ciência econômica e se assim foi fixado o conceito fundamental de economia, qualquer investigação ulterior não poderá senão aprofundar teoricamente o conceito de 'trabalho'", o qual deverá "[...] ser fixado naquela atividade humana que, em qualquer forma social, é igualmente necessária" (2011a, p. 334). Essa vinculação foi inspirada, fundamentalmente, na interpretação das Teses sobre Feuerbach (Marx e Engels, 2007).

A afirmação das Teses sobre Feuerbach, de que "o educador deve ser educado", não coloca uma relação necessária de reação ativa do homem sobre a estrutura, afirmando a unidade do processo real? O conceito de "bloco histórico", construído por Sorel, apreende plenamente essa unidade defendida pela filosofia da práxis. (Gramsci, 2011a, p. 370)

Nosso autor não está propondo uma inversão mecânica das perspectivas economicistas, caracterizadas pela determinação unilateral da estrutura social sobre as superestruturas.13 13 . O estudo de Martins (2008) apresenta a vinculação orgânica entre a perspectiva teórico-metodológica marxiana e aquela apresentada por Gramsci nos Cadernos. Em seu livro clássico, Buci-Glucksmann (1980) chama a atenção também para a importância de Lênin na refundação da filosofia marxista realizada por Gramsci. Distancia-se, consequentemente, da abordagem voluntarista, segundo a qual os homens atuam livres das cadeias socioeconômicas da estrutura dominante. A ênfase está na unidade dialética, presente na atividade humana, entre ser e consciência, entre objetividade e subjetividade: "O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa" (Gramsci, 2011a, p. 406). Tais implicações metodológicas são derivadas das relações objetivas que constituem a práxis social na história. Por isso mesmo, abordando o complexo das superestruturas em sua interação com o conjunto das relações sociais, Gramsci assevera que o "raciocínio se baseia sobre a necessária reciprocidade entre estrutura e superestrutura (reciprocidade que é precisamente o processo dialético real)" (2011a, p. 251). A concepção da reciprocidade dialética inerente ao processo histórico-concreto segue as fecundas indicações contidas no referido trecho do "Prefácio" de 1859:

O conceito do valor concreto (histórico) das superestruturas na filosofia da práxis deve ser aprofundado, aproximando-o do conceito soreliano de "bloco histórico". Se os homens adquirem consciência de sua posição social e de seus objetivos no terreno das superestruturas, isto significa que entre estrutura e superestrutura existe um nexo necessário e vital. (Gramsci, 2011a, p. 389)

As relações de determinação recíproca entre aqueles complexos da atividade humana são enfatizadas como procedimento fecundo e original da perspectiva marxiana,14 14 . Também Lukács (2012) identifica que o cerne estruturador do pensamento econômico de Marx se funda na concepção de determinação recíproca das categorias que compõem o complexo do ser social, no qual "o econômico e o extra-econômico convertem-se continuamente um no outro" (p. 310). cujo cerne deve ser evidenciado na luta ideológica contra as tendências idealistas e deterministas mecânicas. Na crítica à vulgata crociana do "materialismo histórico", Gramsci informa que: "não é verdade que a filosofia da práxis 'destaque' a estrutura das superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento das mesmas como intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco" (2011a, p. 369). No Caderno 11, a concepção de "monismo", que apregoa a unidade da realidade como um todo,15 15 . Kosik (1976) também apreende e explicita essa perspectiva de unidade presente na concepção dialética de Marx recorrendo a categoria da práxis. é retraduzida nesses termos:

[...] nem materialista nem idealista, mas identidade dos contrários no ato histórico concreto, isto é, atividade humana (história-espírito) em concreto, indissoluvelmente ligada a uma certa "matéria" organizada (historicizada), à natureza transformada pelo homem. Filosofia do ato (práxis, desenvolvimento), mas não do ato "puro", e sim precisamente do ato "impuro", real no sentido mais profano e mundano da palavra. (Gramsci, 2011a, p. 209)

A unidade referida pela filosofia da práxis não se encontra, com isso, esterilizada das contradições que dinamizam o desenvolvimento histórico: ela mesma é uma teoria das contradições. Essa nova concepção do mundo apreende, no campo das superestruturas, a própria práxis humana socialmente determinada, a atividade humana como síntese de objetividade e subjetividade, conformada pelo mundo socioeconômico e as lutas ideológicas forjadas pelos interesses antagonistas dos sujeitos classistas. A apreensão de interesses contraditórios irreconciliáveis, presentes na estrutura social burguesa — diferente das tendências idealistas, que buscavam uma reconciliação no plano do espírito, ou das tendências mecanicistas, que restringem as transformações históricas ao plano reificador dos "instrumentos técnicos de produção" — orienta a superação dos antagonismos para a totalidade das relações que consubstanciam a própria atividade humana na civilização do capital. A perspectiva de radicalidade e concreticidade assumida é expressa nos seguintes termos: "A filosofia da práxis é o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história. Nesta linha é que deve ser buscado o filão da nova concepção do mundo" (Gramsci, 2011a, p. 155).

Segundo Gramsci, o problema que se coloca é o da filosofia como historicidade: a implicação prático-social das formas ideológicas sobre o curso do movimento histórico. Ele considera que o interesse pelo campo das superestruturas, na filosofia da práxis, se coloca precisamente por seus efeitos objetivos sobre a atividade humana inerente à própria reprodução social:

Através do conceito mais amplo de historicidade da filosofia, isto é, de que uma filosofia é "histórica", enquanto se difunde, enquanto se torna uma concepção de uma massa social (com uma ética adequada), compreende-se que a filosofia da práxis, não obstante a "surpresa" e o "escândalo" de Croce, estude "nos filósofos precisamente (!) o que não é filosófico: as tendências práticas e os efeitos sociais e de classe que eles representam. [...]" (Gramsci, 2011a, p. 342)

A importância do estudo da filosofia não está hipotecada, portanto, a qualquer pretensão de sumariar uma história hipostasiada do pensamento da humanidade. A filosofia (ou filosofias) interessa na medida em que é "história", na medida em que faz parte da "história geral do mundo", das relações sociais em que vivem os homens, na medida em que possui implicações práticas nas transformações sociais concretas. A própria história da filosofia é entendida como a história das tentativas e iniciativas ideológicas de determinadas classes para modificar, corrigir e aperfeiçoar as concepções de mundo existentes, bem como alterar as normas de condutas que lhes são relativas e adequadas, voltadas para "mudar a atividade prática em seu conjunto" (Gramsci, 2011a, p. 325). Em síntese, as ideologias importam porquanto assumem a condição de mediação da reprodução social, dirigindo as vontades humanas, por meio da formação de determinada consciência social, para resultar em efeitos práticos específicos na sociedade, correspondente a problemas e interesses socioeconômicos concretos.

Essa força objetiva das ideologias é igualmente evidenciada na crítica ao Ensaio popular de Nikolai Bukharin, quando Gramsci se detém sobre a concepção de "matéria", inerente à filosofia da práxis. Afirma que a mesma é impossível de ser entendida, seja no significado que resulta das ciências naturais (as propriedades físicas, químicas, mecânicas etc.), seja através das diversas metafísicas materialistas. Para aquela, a "matéria" não é relevante como tal, mas como social e historicamente organizada pela produção, entendida essencialmente como categoria histórica: uma relação humana. O estudo mesmo dos instrumentos de produção interessa — longe de ser estritamente pelas propriedades físico-químico-mecânicas dos seus componentes naturais —, porquanto estes constituem um momento das formas materiais de produção, objeto de determinadas forças sociais: enquanto expressam uma relação social e correspondem a um período histórico situado. Do mesmo modo, na medida em que constituem objeto de forças sociais específicas e organizam a prática social dos homens, orientando o metabolismo social, as formas de consciência possuem uma força material. Esse é o valor histórico a partir do qual uma ideologia assume relevância para a filosofia da práxis:

É possível dizer que o valor histórico de uma filosofia pode ser "calculado" a partir da eficácia "prática" que ela conquistou (e "prática" deve ser entendida em sentido amplo). Se é verdade que toda filosofia é expressão de uma sociedade, ela deveria reagir sobre a sociedade, determinar certos efeitos, positivos ou negativos: a medida em que ela reage é justamente a medida de sua importância histórica, de não ser ela "elucubração" individual, mas sim "fato histórico". (Gramsci, 2011a, p. 249)

A terminologia mesma utilizada por Marx e o recurso metafórico na exposição de sua concepção de mundo apenas podem ser entendidos quando inseridos no horizonte político e cultural da época. A incorporação de termos como "anatomia", "estrutura" e "superestrutura" constituem, segundo Gramsci, simples metáforas extraídas dos debates em torno das ciências naturais e da classificação das espécies animais, que se tornou "científica" precisamente quando partiu dos elementos anatômicos e não mais das características secundárias e acidentais. O conteúdo racional e progressista do pensamento burguês, elaborado na luta contra as antigas classes dominantes, é assumido pela nova concepção de mundo, expressa na filosofia da práxis, mas cum grano salis. Tais expressões não podem obliterar a apreensão das relações de determinação recíproca e o próprio movimento derivado das contradições que caracteriza a esfera do ser social, qualitativamente diversa daquela fundada no mundo estritamente orgânico ou inorgânico. Isso por um lado. De outra parte, a metáfora se justifica, do ponto de vista das relações de hegemonia, também pela sua "popularidade", ou seja:

[...] pelo fato de oferecer, mesmo a um público não refinado intelectualmente, um esquema de fácil compreensão (não se leva quase nunca em devida conta o seguinte fato: que a filosofia da práxis, propondo-se reformar intelectual e moralmente estratos culturais atrasados, recorre a metáforas por vezes "grosseiras e violentas" em seu caráter popular). O estudo da origem linguístico-cultural de uma metáfora empregada para indicar um conceito ou relação recentemente descobertos pode ajudar a compreender melhor o próprio conceito, na medida em que esse é relacionado ao mundo cultural, historicamente determinado, do qual surgiu, bem como é útil para determinar o limite da própria metáfora, isto é, para impedir que ela se materialize e mecanicize. (Gramsci, 2011a, p. 191)

As metáforas da "anatomia", da "estrutura" ou da "superestrutura" consistiam, logo, num estímulo para aprofundar as investigações metodológicas e filosóficas, sem, com isso, limitar a abrangência e a complexidade das relações analisadas. Utilizando tais noções, a unidade da atividade humana sensível é reafirmada: os aspectos "superestruturais" fazem "bloco" com a "estrutura anatômica", e com todas as funções "fisiológicas", pois "não se pode pensar num indivíduo 'despelado' como sendo o verdadeiro 'indivíduo', mas tampouco o indivíduo 'desossado' e sem esqueleto" (Gramsci, 2011a, p. 309).

A filosofia da práxis, impregnada pela "terrenalidade absoluta do pensamento", não pode se furtar, portanto, às contradições estruturais das formações classistas. Estas se expressam na elaboração de formas de consciência social particularista, porquanto buscam organizar e dirigir a prática social dos homens de acordo com seus interesses mutuamente excludentes, postos pelos antagonismos da produção social. Numa polêmica passagem do Caderno 11, sobre a "objetividade do conhecimento", Gramsci informa a emergência das "ideologias parciais", "não universal-concretas", vinculadas ao desenvolvimento das classes sociais e suas lutas:

[...] mas este processo de unificação histórica [unificação de todo o gênero humano em um sistema cultural unitário] ocorre com o desaparecimento das contradições internas que dilaceram a sociedade humana, contradições que são as condições da formação dos grupos e do nascimento das ideologias não universal-concretas, mas que envelhecem imediatamente, por causa da origem prática de sua substância. (2011a, p. 134)

A caducidade das "ideologias parciais" é considerada do ponto de vista do desenvolvimento histórico global e da dialética real. Em face de uma sociedade de abundância potencial, viabilizadora das condições de emancipação e liberdade humanas, de uma civilização radicalmente nova, aquelas ideologias — cujos conteúdos atualizam as formas de expropriação e dominação de classe — reiteram e expressam as contradições profundas de um metabolismo social anacrônico. Ademais, segundo Marx, aquelas contradições internas dilacerantes do ser social localizam-se mesmo na "pré-história da sociedade humana". Enquanto persistir estes antagonismos que "nascem das condições de existência sociais dos indivíduos" (Marx, 2008a, p. 46), as formas de consciência social correspondem sempre aos interesses práticos de determinadas classes.16 16 . Tal postulação abrange, inclusive, "as realidades das relações humanas de conhecimento" (Gramsci, 2011a, p. 315), desautorizando aquelas interpretações dos Cadernos que afirmam tendências subjetivistas de Gramsci no tratamento das teorias do conhecimento. Esse é o caso de Coutinho (2011, 1999), cuja posição foi criticada por Martins (2008) e Bianchi (2008). Todavia, a "contradição viva" (Marx, 2011) do capital reproduz a si mesma e, portanto, o "lado negativo de sua antítese" (Marx e Engels, 2003). O proletariado — na medida em que personifica o ser das forças do trabalho social e sofre as "cadeias universais" da civilização burguesa — pode romper o horizonte das ideologias parciais e assumir o movimento histórico que leva a formação das ideologias universal-concretas. Tal remissão nos é útil na medida em que oferece indicações para determinarmos a differentia specifica dos processos hegemônicos vinculados as classes subalternas.

De acordo com o autor dos Cadernos, a própria filosofia da práxis se inscreve, com efeito, na superestrutura, consiste numa ideologia: um terreno no qual "determinados grupos sociais tomam consciência do próprio ser social, da própria força, das próprias tarefas, do próprio devir" (Gramsci, 2011a, p. 388). Nas notas carcerárias, o problema acerca do caráter de massas dessa ideologia é colocado nos seguintes termos: "A filosofia da práxis sustenta que os homens adquirem consciência de sua posição social no terreno das ideologias; ela excluiu o povo, por acaso, deste modo de tomar consciência de si?" (Idem, p. 217). Da concepção do homem como um "bloco histórico" de elementos subjetivos e objetivos resulta que "todos os homens são filósofos", enquanto "atuam praticamente, e nesta sua ação prática (nas linhas diretoras de sua conduta) está contida implicitamente uma concepção de mundo, uma filosofia" (Idem, p. 325). Na filosofia da práxis, a luta de "hegemonias" políticas está orientada para "tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento necessário da subversão da práxis" (Idem, p. 387). A indicação informa a particularidade do movimento histórico inerente a essa nova concepção do mundo, a qual se vincula organicamente ao próprio processo revolucionário:

[...] as outras ideologias são criações inorgânicas porque contraditórias, porque voltadas para a conciliação de interesses opostos e contraditórios; a sua "historicidade" será breve, já que a contradição aflora após cada evento do qual foram instrumento. A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, ou, melhor, ele é a própria teoria de tais contradições; não é um instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte do governo [...]. (Gramsci, 2011a, p. 388)

O caráter problemático das ideologias que se opõem á filosofia da práxis manifesta-se na sua parcialidade. Aquelas buscam resolver as contradições histórico-concretas por vias conciliatórias, mas sem subverter a própria prática social dilacerada pelos antagonismos classistas em sua totalidade. Destarte, as ideologias parciais conciliatórias rapidamente tornam-se "caducas", porquanto as contradições deslocadas insistem em se expressar no terreno da prática social, lançando uma nova ameaça à unidade ideológica pretendida. De outro lado, a filosofia da práxis não se apresenta enquanto instrumento de domínio e, portanto, de reprodução da expropriação fundada na propriedade privada. Ela é expressão dos interesses de classe dos dominados em sua luta pela unificação do gênero humano. Para Gramsci, tal movimento histórico apenas pode ser alcançado pela mediação de uma consciência de massa crítica, autônoma e unitária dos subalternos. Aqui, a dialética real da práxis social pretende superar qualquer unilateralidade fixada estritamente em aspectos estritos da atividade humana:

Se se coloca o problema de identificar teoria e prática, coloca-se neste sentido: no de construir, com base numa determinada prática, uma teoria que, coincidindo e identificando-se com os elementos decisivos da própria prática, acelere o processo histórico em ato, tornando a prática mais homogênea, coerente, eficiente em todos os seus elementos, isto é, elevando-a à máxima potência; ou então, dada certa posição teórica, no de organizar o elemento prático indispensável para que esta teoria seja colocada em ação. (Gramsci, 2011a, p. 260)

Partindo do valor histórico das superestruturas, da sua relação de determinação recíproca com a estrutura social, fundada no estatuto ontológico da própria práxis humana como "bloco histórico", dois principais problemas são colocados pelo comunista sardo para entendermos um "movimento histórico": 1º) De que forma as classes subalternas podem alcançar uma consciência crítica e autônoma, que as torne um "grupo social homogêneo", isto é, um "bloco sociocultural" necessário à subversão da práxis?; 2º) Como conservar a unidade ideológica em todo esse bloco social que está cimentado e unificado por aquela determinada ideologia que se transforma em um movimento cultural? Tais problemas suscitam, de uma parte, a determinação das "condições materiais necessárias e suficientes" à "subversão da práxis" e, de outra parte, as mediações sociais imprescindíveis à formação desse "movimento histórico". Nesse conjunto de condições materiais e mediações sociais concretas, a questão dos intelectuais é abordada, assim como o papel das "organizações culturais" (aparelhos de hegemonia), dos partidos e do Estado.

4. As condições necessárias e suficientes

Detenhamo-nos naquilo que Gramsci afirma como "condições materiais necessárias e suficientes" para a "subversão da práxis". Mais uma vez, a referência aqui é um trecho do "Prefácio de 1859" de Marx. Tal trecho é retomado no § 22 do Caderno 11 como recurso teórico-metodológico para desenvolver uma solução coerente ao seguinte problema: como nasce o movimento histórico com base na estrutura? A partir da questão, nosso autor postula:

As duas proposições do prefácio à Crítica da economia política — 1) A humanidade só se coloca sempre tarefas que pode resolver; a própria tarefa só surge quando as condições materiais da sua resolução já existem ou, pelo menos, já estão em vias de existir; 2) Uma formação social não desaparece antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas que ela ainda comporta; e novas e superiores relações de produção não tomam o seu lugar antes que as condições materiais de existência destas novas relações já tenham sido geradas no próprio seio da velha sociedade — estas proposições deveriam ter sido analisadas em toda sua importância e consequências.17 17 . Na Miséria da filosofia (1847), outro texto de Marx a que Gramsci recorre diversas vezes nas suas notas, uma passagem muito semelhante à do Prefácio foi formulada. Ver Marx (1989, p. 159). (p. 140)

A preocupação é, precisamente, evitar as abordagens mecanicistas, de um lado, e as tendências voluntaristas, de outro. Nosso autor está interessado em determinar as condições de uma mudança societal abrangente, que podem levar ao desaparecimento de uma formação sócio-histórica anacronizada e ao surgimento de uma nova. Duas requisições vinculadas organicamente são colocadas para o nascimento de um "movimento histórico" dessa dimensão: de uma parte, torna-se necessário o desdobramento de uma crise profunda da antiga sociedade, que desenvolveu as forças produtivas e não pode conter mais tais avanços no interior dos seus próprios limites metabólicos; de outra parte, aquele desenvolvimento deve ter gerado as forças concretas para negação e superação do "velho", implicando, além dos aspectos objetivos, a constituição de um sujeito político massivo que articule como projeto a necessidade de uma nova sociedade. Essa ruptura de largo alcance encontra-se fundada nas "condições materiais necessárias" ao surgimento do "novo" e à saturação de todas as forças produtivas as quais o "velho" pode recorrer para não ser superado.18 18 . Seguimos aqui algumas linhas de interpretação fornecidas por Bianchi (2006) e Braga (2002, 1996).

As "condições materiais necessárias e suficientes" informam, portanto, uma unidade dialética altamente dinâmica. Na crítica ao economicismo do Ensaio popular, Gramsci lembra que expressões como essa — e outras, como "modo de produção da vida material", "condições econômicas da produção", "grau de desenvolvimento das forças materiais de produção" —, recorrentemente utilizadas por Marx, afirmam certamente "ser o desenvolvimento econômico determinado por condições materiais, mas que jamais reduzem essas condições à mera 'metamorfose do instrumento técnico'" (Gramsci, 2011a, p. 158). O foco do debate não está em uma causa última da vida econômica arbitrariamente (e formalmente) desatacada, mas no conjunto das relações sociais constituidoras da práxis humana em determinado momento histórico. A filosofia da práxis mesma é definida como "ciência da dialética ou gnosiologia, na qual os conceitos gerais de história, de política, de economia, se relacionam numa unidade orgânica" (2011a, p. 166).19 19 . Esses balizamentos teórico-metodológicos contradizem aquelas análises dos Cadernos que encerram suas formulações em dualismos e esquematismos formais, como nos parece ser o caso do conhecido texto de Anderson (2002). É evidente que o movimento histórico funda-se num conjunto de premissas socioeconômicas, condizentes com o nível de aperfeiçoamento, quantidade e qualidade dos meios de produção e subsistência concretos que atendem às necessidades humanas situadas. Entretanto, essa não é, definitivamente, a única determinação que fornece a direção do movimento histórico, pois as necessidades sociais em causa ultrapassam aquelas premissas. Segundo nosso autor:

Existe necessidade quando existe uma premissa efetiva e ativa, cujo conhecimento nos homens se tenha tornado operante, ao colocar fins concretos à consciência coletiva e ao construir um complexo de convicções e de crenças que atua poderosamente como as "crenças populares". Na premissa devem estar contidas, já desenvolvidas, as condições materiais necessárias e suficientes para a realização do impulso da vontade coletiva; mas é evidente que desta premissa "material", quantitativamente calculável, não pode ser destacado um certo nível cultural, isto é, um conjunto de atos intelectuais, e destes (como seu produto e consequência), um certo complexo de paixões e de sentimentos imperiosos, isto é, que tenham força de induzir à ação "a todo custo". (Gramsci, 2011a, p. 197)

Nas condições para o nascimento da nova sociedade, o que se coloca como necessidade (e não como exclusividade) é a própria atividade política como momento incontornável da revolução social. É imperativo o "dever-ser" para a construção da "vontade coletiva" e o nascimento de um movimento histórico "com base na estrutura". Segundo Gramsci, "existindo as condições, a solução dos objetivos torna-se 'dever', a 'vontade' torna-se livre" (2011a, p. 235). A solução dos problemas colocados pela sociedade pode ser apresentada como "vontade coletiva" se efetivamente as "condições materiais libertam" os homens para a escolha entre posições sociais alternativas. A "vontade torna-se livre" porque os projetos políticos assumidos como "dever-ser" estão fundados nas forças sociais concretamente existentes. Para assumir esse poder material necessário à criação do movimento histórico, a filosofia da práxis, como uma nova maneira de conceber o mundo e o homem, não pode ser reservada aos grandes intelectuais; deve, ao contrário, "se tornar popular, de massa, com caráter concretamente mundial, modificando (ainda que através de combinações híbridas) o pensamento popular, a mumificada cultura popular" (Gramsci, 2011a, p. 264). A própria atividade do filósofo "individual" pode ser concebida apenas em função dessa unidade social que assume uma forma material, como função de direção política que organiza a atividade prática das classes, ou seja, como função de intelectual orgânico (Gramsci, 2011b).

Recebido em 5/9/2013

Aprovado em 2/6/2014

  • ANDERSON, P. As antinomias de Gramsci. In: ______. Afinidades seletivas Tradução Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2002.
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  • 1
    . Ambos publicados na edição brasileira atual: Gramsci (2011a).
  • 2
    . Os "cadernos miscelânea" dedicados ao estudo da filosofia são, fundamentalmente: o
    Caderno 4 (1930-1932),
    Apontamentos de filosofia/miscelânea/O canto décimo nono do inferno; o
    Caderno 7 (1930-31),
    Apontamentos de filosofia II e miscelâneas; e o
    Caderno 8 (1931-32)
    , Miscelânea e apontamentos de Filosofia II. Como não contamos com uma edição integral dos "cadernos miscelânea" em português, recorremos à versão mexicana, traduzida da edição crítica de Valentino Gerratana. Foram examinados os seguintes volumes: Gramsci (1999b) e Gramsci (1984). Sobre a distinção entre os cadernos miscelânea e especiais, além dos demais recursos atualmente utilizados para referenciar as notas carcerárias, ver Introdução de Gerratana em Gramsci (1999a).
  • 3
    . Numa nota de advertência, no início do
    Caderno 11, Gramsci postula explicitamente o caráter aproximativo e inconcluso de suas anotações, afirmando que podem conter, inclusive, inexatidões e tratamentos desatualizados.
  • 4
    . Detalhes sobre essa elaboração são fornecidos por Bianchi (2008). Também Buci-Glucksmann (1980) aborda o estudo filosófico de Gramsci nos
    Cadernos.
  • 5
    . Referimo-nos à seguinte passagem: "Até agora consideramos principalmente apenas um aspecto da atividade humana, o
    trabalho dos homens
    sobre a natureza. O outro aspecto, o
    trabalho dos homens sobre os
    homens [...]" (Marx e Engels, 2007, p. 39).
  • 6
    . Cabe-nos assinalar que a distinção assumida por Gramsci entre filosofia e ideologia é estritamente quantitativa, de grau, e não qualitativa ou orgânica. Enquanto a primeira expressa a "a concepção de mundo que representa a vida intelectual e moral (catarse de uma determinada vida prática) de todo um grupo social", a segunda consiste em "toda concepção particular de grupos internos da classe que se propõem ajudar a resolver problemas imediatos e restritos" (Gramsci, 2011a, p. 302). E acrescenta: "Aliás, as ideologias serão a 'verdadeira' filosofia, já que elas serão as 'vulgarizações' filosóficas que levam as massas à ação concreta, a transformação da realidade. Isto é, elas serão o aspecto de massa de toda concepção filosófica" (Gramsci, 2011a, p. 312).
  • 7
    . Tais referências podem ser identificadas em Lukács (2010, 2012). No artigo de Vaisman (2010) encontramos uma síntese sobre a concepção lukasciana.
  • 8
    . Esse autor trata reiteradamente da questão da ideologia, nesses termos, em: Mészáros (2011, 2008, 2004).
  • 9
    . Coutinho (2011) afirma essa convergência entre Gramsci e Lukács, no que concerne ao entendimento da questão da ideologia em Marx. E Oldrini (1999) informa uma aproximação entre os dois comunistas também na busca pela superação das polarizações idealistas e mecanicistas na tradição marxista, através de um
    tertium datur fundado na perspectiva teórico-metodológica de Marx e de Lênin.
  • 10
    . Tal requisição aparece de modo explícito também em várias passagens d'
    A sagrada família (Marx e Engels, 2003), à qual Gramsci teve acesso e pôde utilizar nos seus estudos.
  • 11
    . Uma exposição sobre a concepção original de Sorel é apresentada por Bianchi (2008). Analistas como Portelli (1977) chegam a considerar que os principais aspectos do pensamento político presente nos
    Cadernos articulam-se em torno do conceito de bloco histórico.
  • 12
    . Em Gramsci, a práxis social encontra-se fundada na atividade produtiva: "Se este é o ponto de partida da ciência econômica e se assim foi fixado o conceito fundamental de economia, qualquer investigação ulterior não poderá senão aprofundar teoricamente o conceito de 'trabalho'", o qual deverá "[...] ser fixado naquela atividade humana que, em qualquer forma social, é igualmente necessária" (2011a, p. 334).
  • 13
    . O estudo de Martins (2008) apresenta a vinculação orgânica entre a perspectiva teórico-metodológica marxiana e aquela apresentada por Gramsci nos
    Cadernos. Em seu livro clássico, Buci-Glucksmann (1980) chama a atenção também para a importância de Lênin na
    refundação da filosofia marxista realizada por Gramsci.
  • 14
    . Também Lukács (2012) identifica que o cerne estruturador do pensamento econômico de Marx se funda na concepção de determinação recíproca das categorias que compõem o complexo do ser social, no qual "o econômico e o extra-econômico convertem-se continuamente um no outro" (p. 310).
  • 15
    . Kosik (1976) também apreende e explicita essa perspectiva de unidade presente na concepção dialética de Marx recorrendo a categoria da
    práxis.
  • 16
    . Tal postulação abrange, inclusive, "as realidades das relações humanas de conhecimento" (Gramsci, 2011a, p. 315), desautorizando aquelas interpretações dos
    Cadernos que afirmam tendências subjetivistas de Gramsci no tratamento das teorias do conhecimento. Esse é o caso de Coutinho (2011, 1999), cuja posição foi criticada por Martins (2008) e Bianchi (2008).
  • 17
    . Na
    Miséria da filosofia (1847), outro texto de Marx a que Gramsci recorre diversas vezes nas suas notas, uma passagem muito semelhante à do
    Prefácio foi formulada. Ver Marx (1989, p. 159).
  • 18
    . Seguimos aqui algumas linhas de interpretação fornecidas por Bianchi (2006) e Braga (2002, 1996).
  • 19
    . Esses balizamentos teórico-metodológicos contradizem aquelas análises dos
    Cadernos que encerram suas formulações em dualismos e esquematismos formais, como nos parece ser o caso do conhecido texto de Anderson (2002).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      05 Set 2013
    • Aceito
      02 Jun 2014
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