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Expansão para quem? Institutos Federais e acesso à educação em perspectiva

Educational expansion for whom? Federal Institutes and educational access in perspective

Resumo:

Este artigo realiza uma análise histórico-crítica de elementos da expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) e dos Institutos Federais (IFs), desenrolada durante as duas primeiras décadas dos anos 2000. Busca, ainda, a partir de análises quantitativas, demonstrar os efeitos de tal processo na ampliação do acesso à educação pública federal, bem como nas reconfigurações do perfil socioeconômico e étnico-racial de estudantes. Conclui-se que um dos legados da expansão dos IFs foi a ampliação do acesso à educação para estudantes da classe trabalhadora, especialmente aqueles autodeclarados como pardos, embora o apoio à permanência de estudantes ainda permaneça como um desafio para tais instituições.

Palavras-chave:
Educação; Institutos Federais; Estudantes

Abstract:

This paper analyzes in a critical-historic way elements of the expansion of the Federal Network of Professional, Scientific and Federal Institutes of Education, which took place in the 2000’s first two decades. It targets to demonstrate the effects of this process in amplifying federal public education as well as the impacts through socioeconomic and ethnic-racial student’s features. It also seeks to demonstrate, through quantitative analyses, the effects of such process in expanding access to public education, as well as in reconfiguring the socioeconomic and ethnic-racial profile of students. It concludes that one of the legacies of the expansion of Federal Institutes of Education has been the expansion of access to education for working-class students, especially those who self-identify as “mixed-race”, although supporting student permanence remains as a challenge for such institutions.

Keywords:
Education; Federal Institutes of Education; Students

Introdução

Jovens oriundos da classe trabalhadora, nas duas últimas décadas, passaram a acessar de maneira inédita, na história de suas famílias, níveis mais especializados de educação escolarizada. Assim, novos sujeitos passam a ocupar os espaços das instituições de ensino e a vivenciar políticas, programas e currículos no âmbito educacional.

No âmbito federal de ensino, a expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) e dos Institutos Federais (IFs), iniciada em 2003 e encerrada em 2014, ao menos do ponto de vista do planejamento do Ministério da Educação, juntamente ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), foi responsável por ampliar o acesso de segmentos da classe trabalhadora à educação pública federal.

A ampliação do acesso à educação pública federal é também um produto das mudanças ocorridas nas políticas e nos programas de acesso e permanência dos estudantes nessas instituições. A criação do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), há cerca de 12 anos, e a implementação da Lei de Reserva de Vagas, n. 12.711/2012, a conhecida “Lei de Cotas”, que completou uma década de existência em 2022, vão imprimir uma nova realidade social e também étnico-racial para as instituições federais de ensino.

Durante o Governo Bolsonaro, houve desinvestimento orçamentário e contingenciamento de recursos dessas instituições do início ao fim do mandato presidencial. Marcas perversas que interferiram no pagamento de bolsas e auxílios estudantis, na manutenção predial e de infraestrutura dessas instituições de ensino em tempos da pandemia do novo coronavírus. Sem planos de expansão para as universidades e institutos federais, também sem apresentar iniciativas de correção dos salários de professores e técnicos dessas instituições, o Governo Bolsonaro saiu de cena deixando tais instituições à deriva.

O início do terceiro mandato de Lula da Silva sinaliza a possibili­dade de enfrentamento do irracionalismo e do anti-intelectualismo, frente ao fortalecimento do caráter social e da importância socioeconômica e sociocultural das universidades e institutos federais nos territórios em que se instalam. Vinculado a essa perspectiva, o presente artigo - fruto de uma tese de doutorado,1 1 Referimo-nos à tese de doutorado #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes (Daros, 2019). que realizou uma pesquisa de cunho nacional sobre a expansão dos Institutos Federais (IFs) e os seus significados para os estudantes filhos da classe trabalhadora - tem por objetivo trazer à tona alguns dos resultados da pesquisa realizada com as devidas revisões temporais.

O propósito do artigo, é, pois, o de realizar uma análise de elementos presentes na expansão dos IFs, conduzida pelos governos petistas, identificando seus efeitos no processo de ampliação do acesso à educação profissional e tecnológica, apontando, assim, reconfigurações quanto ao público de estudantes que têm acessado às instituições federais de ensino, especialmente, no âmbito de suas características socioeconômicas e étnico-raciais.

Para isso, serão elucidados dados quantitativos coletados em fontes primárias e secundárias do Ministério da Educação, apresentados em séries históricas, bem como dados e análises já sistematizados pela tese de doutorado mencionada. Importa ressaltar que tais sistematizações se configuram como uma das contribuições inéditas da pesquisa doutoral realizada. Neste artigo, a fim de intentar dados de amplitude longitudinal, algumas séries históricas apresentadas foram ampliadas até o ano de 2021. Entendendo que o atual cenário sociopolítico permite maior proximidade e diálogo entre IFs e governo federal, buscamos ainda colaborar para o debate sobre projetos futuros de horizonte democrático para essas instituições.

1. Situando a expansão dos Institutos Federais e da Educação Profissional e Tecnológica

Parte-se da premissa de que processos de expansão educacional estão permeados de determinações político-econômicas que acabam por conduzir o formato e as dinâmicas de instituições de ensino, programas, políticas e projetos educacionais. Dessa maneira, entende-se que a expansão dos IFs e da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) constitui em si um projeto educacional com intencionalidades, desenhos e finalidades, sendo, pois, atravessado de elementos históricos, políticos e econômicos. Para isso, apresenta-se, neste subitem, alguns dos elementos centrais para compreender tal projeto no país.

Os IFs, instituições pluricurriculares e multicampi, compõem a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT)2 2 Além dos IFs, compõem a Rede Federal de EPCT: a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); CEFET-RJ e CEFET-MG; as Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais; e o Colégio Pedro II. e têm a finalidade de desenvolver a EPT em todos os seus níveis (educação básica e superior). Idealizados na gestão do então Ministro da Educação Fernando Haddad, e criados em 2008, os IFs resultaram de duas dinâmicas: a primeira relacionada à transformação de Escolas Técnicas Federais, Escolas Agrotécnicas Federais e dos Centros Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (CEFETs) em IFs; a segunda, referente à criação de novos campi e institutos nos estados brasileiros, onde ainda não havia a presença de instituições federais de ensino no âmbito da educação profissional. O processo de criação e expansão dos IFs é resultante e tem por diretriz a expansão da Rede Federal EPCT, iniciada em 2005, no Governo Lula da Silva e planificada até o ano de 2014.

Em 2002, existiam 140 instituições federais que ofertavam Educação Profissional no país (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação. Expansão da educação superior e profissional e tecnológica. Mais formação e oportunidades para os brasileiros. Brasília, 2013. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/expansao/images/APRESENTACAO_EXPANSAO_EDUCACAO_SUPERIOR14.pdf . Acesso em: 19 maio 2023.
http://portal.mec.gov.br/expansao/images...
). Em 2021, foi possível identificar 653 unidades em funcionamento, pertencentes à Rede Federal EPCT. Dessas, 602 unidades são estruturas de IFs (PNP, 2021PNP. Plataforma Nilo Peçanha. 1.5. Classificação racial e renda familiar dos estudantes. Anos: 2018, 2019, 2020 e 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.plataformanilopecanha.org/ . Acesso em: jan. 2023.
https://www.plataformanilopecanha.org/...
). A expansão da Rede Federal EPCT é também a maior expansão da educação profissional já realizada pelo governo federal na história brasileira. Os objetivos dessa espetacular expansão foram:

Expandir, interiorizar e consolidar a rede de Institutos Federais e Universidades Federais, democratizando e ampliando o acesso de vagas na Educação, Profissional e Tecnológica e Superior; promover a formação de profissionais qualificados, fomentando o desenvolvimento regional e estimulando a permanência de profissionais qualificados no interior do Brasil; potencializar a função social e o engajamento dos Institutos e Universidades como expressão das políticas do Governo Federal na superação da miséria e na redução das iniquidades sociais e territoriais (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação. Expansão da educação superior e profissional e tecnológica. Mais formação e oportunidades para os brasileiros. Brasília, 2013. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/expansao/images/APRESENTACAO_EXPANSAO_EDUCACAO_SUPERIOR14.pdf . Acesso em: 19 maio 2023.
http://portal.mec.gov.br/expansao/images...
, n.p.).

Parte-se do argumento de que a natureza da expansão da EPT e dos IFs e sua configuração, como política pública, relacionam-se ao imbricamento e às tessituras existentes entre a noção de “sociedade do conhecimento” e o período neodesenvolvimentista brasileiro.

A noção de “sociedade do conhecimento” é utilizada por alguns educadores (Frigotto, 2013FRIGOTTO, G. Novos fetiches mercantis da pseudoteoria do capital humano no contexto do capitalismo tardio. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.sinproeste.org.br/wp-content/uploads/2013/04/O-rejuvenecimento-da-teoria-do-capital-humano-no-contexto-do-capitalismo-tardio.pdf . Acesso em: 1º ago. 2015.
http://www.sinproeste.org.br/wp-content/...
; Neves; Pronko, 2008NEVES, L. M. W.; PRONKO, M. A. O mercado do conhecimento e o conhecimento para o mercado. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008.) para caracterizar a perspectiva societária contida nas políticas educacionais nas últimas décadas, tornando-se nítida no debate educacional perante as transformações no mundo do trabalho nas últimas décadas. O uso de tal noção pode ser entendido, em suma, como a assunção do conhecimento e, consequentemente, da ciência e da tecnologia, como elementos autônomos, independentes das relações sociais, e hipoteticamente capazes de superar desigualdades sociais e de reduzir o abismo tecnológico e econômico existente entre nações hegemônicas e nações de inserção capitalista subalterna.

Pela via do ocultamento do fundamento das relações sociais históricas fundantes da sociabilidade capitalista, que envolvem a exploração e expropriação da classe trabalhadora pela classe detentora dos meios de produção, a questão nevrálgica posta à sociedade do conhecimento pode ser sintetizada em: quanto mais acesso ao conhecimento e à informática, mais qualificados os trabalhadores e, portanto, mais frutíferas as chances de desenvolvimento socioeconômico e redução de desigualdades sociais.3 3 Tal vislumbre remete à valorização de aspectos da Teoria do Capital Humano. Ver Frigotto (2013).

Com base nessa perspectiva, a oferta de cursos dos IFs teve por direção a qualificação de profissionais a partir de uma multiplicidade de modalidades formativas, na aposta de que tais profissionais seriam fundamentais ao desenvolvimento socioeconômico regional, especialmente dos municípios mais interioranos. Tal particularidade, contudo, a nosso juízo, se alia ao cenário político-econômico pelo qual o Brasil passava.

Tal cenário, compreendido entre 2003 a 2014, despertou o debate sobre o modelo econômico que o Brasil estaria vivendo: um novo desenvolvimento ou neodesenvolvimentismo? O período é essencialmente caracterizado pela recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo, pela visível melhoria na distribuição pessoal de renda, pela ampliação de consumo sustentada pelo endividamento das famílias e, por fim, pela aparente resiliência do Brasil diante da crise econômica mundial (Alves, 2018ALVES, G. A. Crise do neodesenvolvimentismo e as perspectivas do trabalho: o Brasil no século XXI. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região, Campinas, n. 53, p. 195-216, jul./dez. 2018.; Katz, 2016KATZ, C. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2016.; Sampaio Jr., 2012SAMPAIO JÚNIOR, P. A. Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, edição especial, n. 112, p. 672-688, 2012.).

Distante do rompimento com o neoliberalismo (Alves, 2018ALVES, G. A. Crise do neodesenvolvimentismo e as perspectivas do trabalho: o Brasil no século XXI. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região, Campinas, n. 53, p. 195-216, jul./dez. 2018.), tal período, no âmbito das políticas públicas, significou, ao menos no âmbito do planejamento das políticas públicas, a perspectiva do fomento ao crescimento econômico aliado à inclusão social por meio da reorientação social e econômica dos territórios (Brasil, 2007BRASIL. Plano Plurianual 2008-2011. Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2007.).

Assim, ressonante com aspectos das tentativas recentes de um possível “neodesenvolvimentismo” brasileiro e do paradigma da “sociedade do conhecimento”, que tem sido presente no âmbito educacional, a expansão dos IFs e da EPT teve como traço constituinte e finalidade o direcionamento de sua oferta educacional à formação de trabalhadores qualificados a atuarem nos diversos setores da economia, de maneira a promover o desenvolvimento local, regional e nacional, contribuindo para a redução de desigualdades sociais (Brasil, 2008BRASIL. Lei n. 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências.. Brasília, 2008. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11892.htm . Acesso em: 15 fev. 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Sem a intenção de esgotar o conjunto de características que particularizou esse processo, elegemos algumas delas a seguir:

a) Expansão territorial rumo ao interior brasileiro

A expansão da Rede Federal de EPCT trouxe diretrizes bem demarcadas no que tange ao desenvolvimento socioeconômico regional dos territórios. Foram escolhidos municípios que sediariam os novos campi dos IFs, organizados em fases da expansão, que tinham alguns critérios como: ausência de instituições federais de ensino na região, localidades distantes dos grandes centros de formação do país, áreas de periferia das regiões metropolitanas, construção dos novos campi e cursos de acordo com os arranjos produtivos locais das regiões, dentre outros (MEC/SETEC apudTCU, 2012TCU. Tribunal de Contas da União. Relatório de auditoria. Brasília: Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, jun. 2012. Disponível em: Disponível em: http://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?inline=1&fileId=8A8182A14D92792C014D92847E5F3E97 . Acesso em: ago. 2017.
http://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/fi...
). Tais escolhas técnicas e políticas contribuíram para que os IFs se fizessem presentes em todo o território nacional, até mesmo em localidades onde não havia instituições federais.

A instalação de novos campi dos IFs nos estados e municípios contou com diversas parcerias, especialmente com a esfera municipal. Prédios, terrenos e outras estruturas municipais foram doados e/ou emprestados ao governo federal para que os novos campi pudessem ser instalados. Todavia, tais estruturas, muitas vezes, não estavam bem-acabadas a ponto de atender às necessidades das comunidades dos campi dos IFs. Tal processo deve ser reconhecido do ponto de vista do aceleramento da abertura de novos campi, porém, prédios e terrenos, afastados dos serviços da cidade, sem equipamentos necessários para a vida estudantil, como restaurantes estudantis e espaços para descanso, também acabaram por impactar a permanência dos estudantes nos IFs. Esse cenário foi analisado por Daros (2019DAROS, M. A. #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes. 2019. 400 f. Tese. (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.) como a tríade do campus precário, que contempla três características: o isolamento do campus em relação aos serviços da cidade; a ausência de estruturas, como restaurantes e moradias estudantis; a inexistência de espaços de lazer, descanso e convívio estudantil, ou seja, o campus onde o descanso é sem lugar.

b) Múltipla oferta educacional

Tendo por diretriz o planejamento da oferta educacional com vista ao fortalecimento dos arranjos produtivos, sociais, culturais e locais, os IFs passaram a diversificar a oferta de seus cursos e modalidades, ofertando, assim: ensino médio integrado ao técnico, técnico subsequente ao ensino médio, técnico concomitante ao ensino médio, educação de jovens e adultos, educação superior (tecnólogos, bacharelados e licenciaturas) e pós-graduação lato sensu e stricto sensu, e formação inicial e continuada de trabalhadores (FIC) ou qualificação profissional. No que tange aos cursos de qualificação profissional, vale ressaltar o esforço governamental e aporte financeiro em programas como o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (PRONATEC), Programa Mulheres Mil e Rede Certific, que se caracterizam por cursos e/ou programas aligeirados de perspectiva focalista destinados à (re)inserção de trabalhadores no mundo produtivo.

c) Políticas de acesso e permanência

Na esteira da ampliação do acesso à educação pública federal na segunda década dos anos 2000, estratégias e políticas de acesso e permanência estudantil foram criadas. Ainda que tais políticas e estratégias respondessem também às reivindicações históricas dos movimentos negros, estudantil e de setores educacionais, é no bojo da expansão da EPT e dos IFs que elas são inauguradas nos institutos e universidades federais. Dentre elas, destacamos o PNAES, criado em 2010 pelo Decreto n. 7234BRASIL. Decreto n. 7.234, de 19 de julho de 2010. Dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES. Brasília, 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7234.htm . Acesso em: jul. 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
, e a Lei n. 12.711/2012.

Embora já existissem iniciativas de assistência aos estudantes nas universidades desde a década de 1930, é apenas com o PNAES que dez áreas4 4 Moradia estudantil; alimentação; transporte; atenção à saúde; inclusão digital; cultura; esporte; creche; apoio pedagógico; e acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação. de assistência estudantil são articuladas em um programa nacional.

Conforme Daros (2019DAROS, M. A. #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes. 2019. 400 f. Tese. (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.), ao longo da última década, o PNAES assumiu ao menos dois formatos predominantes de gestão. O primeiro, denominado aqui como “misto”, combina a oferta de serviços, estruturas e auxílios financeiros aos estudantes, como, por exemplo: moradias estudantis, restaurantes universitários e acesso aos serviços de saúde, muitas vezes, via hospitais universitários, com a complementação de auxílios financeiros, repassados diretamente aos estudantes. O segundo formato de gestão, entendido como “bolsificador”, mais predominante nos IFs, especialmente nos campi inaugurados durante o processo de expansão, centraliza as ações de assistência estudantil via repasse de auxílios financeiros aos estudantes. Alinhado à forte tendência de transferência de renda predominante nas políticas sociais brasileiras nas duas primeiras décadas dos anos 2000, em geral, apresenta mais riscos à permanência dos estudantes do que o primeiro formato.

No âmbito das políticas de acesso à educação, a Lei n. 12.711/2012 - que reserva vagas para estudantes oriundos de escola pública, com renda familiar per capita até 1,5 salário mínimo (SM), pretos, pardos, indígenas e estudantes com deficiência (inclusão em 2016) - foi um marco histórico nas instituições federais de educação brasileiras, fruto da luta de movimentos sociais comprometidos com a luta antirracista e com a defesa da educação de sentido democrático. Nos IFs, a reserva de vagas foi aplicada a todas as modalidades de ensino, ou seja, incluiu também estudantes da educação básica. A Lei completou uma década em 2022, e ainda há estudos em curso que buscam avaliar os impactos dessa lei nas universidades e institutos federais. Heringer e Carreira (2022HERINGER, R.; CARREIRA, D. Introdução. In: HERINGER, R.; CARREIRA, D. (org.). 10 anos da Lei de Cotas: conquistas e perspectivas. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação da UFRJ, Ação Educativa, 2022.), entendendo que a Lei de Cotas é uma conquista da população negra e indígena no Brasil, ressaltam a importância de que tais conquistas sejam celebradas, continuadas, expandidas e fortalecidas nas próximas décadas.

Considerados os diversos aspectos apresentados neste subtópico importa, pois, identificar, no cenário de expansão da Rede Federal EPCT e dos IFs, quais foram as transformações ocorridas que impactaram os jovens oriundos da classe trabalhadora.

2. Expansão para quem? Quem são os estudantes da Rede Federal EPCT?

Em um país marcado por relações sociais desiguais que impactam diretamente no acesso de direitos sociais, como à educação, é crucial avaliar e acompanhar os efeitos de políticas públicas que tenham por horizonte tornar mais acessível o ingresso em instituições de ensino. Assim, um indicador importante para tal análise é identificar quem são os estudantes que têm ingressado nas instituições de ensino. Nesse sentido, dados sobre a renda familiar per capita de estudantes matriculados nos Ifs5 5 Estudantes matriculados nos IFs representaram historicamente quase a totalidade de estudantes matriculados na Rede Federal EPCT, representando, em 2021, 93,67% das matrículas. (PNP, 2021). têm sido coletados pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) do MEC desde 2009, primeiro ano de funcionamento dessas instituições. Tal coleta tem sido aprimorada nos últimos anos, e um marco importante desse processo foi a criação da Plataforma Nilo Peçanha (PNP), em 2018, que consolida diversos dados de gestão das instituições da Rede Federal EPCT.

Todavia, antes da existência da PNP, os dados referentes à renda familiar per capita dos estudantes de cada instituição da Rede Federal de EPCT eram anualmente publicados em relatórios da SETEC de título Relatório Anual de Análise dos Indicadores de Gestão das Instituições Federais de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. A Tabela 1 foi construída6 6 Foram extraídos os dados informados por cada instituição em relação às faixas de renda familiar per capita dos estudantes que declararam sua renda em cada ano. Desta forma, com base nos dados extraídos dos relatórios, a média percentual anual dos estudantes por cada faixa de renda per capita foi calculada a partir da soma dos percentuais informados por cada instituição e divididos pelo número de instituições que informaram tais dados em cada ano analisado (Daros, 2019). com base na sistematização de tais dados durante o período de 2009 a 2017. Já a Tabela 2, em que são sistematizados os dados de 2018-2021, foi construída com base em dados publicados pela PNP. O leitor perceberá que houve uma pequena mudança na metodologia de coleta de dados em relação às faixas de renda per capita mais altas, por esse motivo, para tratar os dados com fidedignidade, mantivemos as duas tabelas de maneira distinta.

Tabela 1.
Distribuição percentual de estudantes matriculados na Rede Federal EPCT por faixas de salário mínimo (SM) per capita (2009-2017)
Tabela 2.
Distribuição percentual de estudantes matriculados na Rede Federal EPCT por faixas de salário mínimo (SM) per capita (2018-2021)

Nos três primeiros anos de existência dos IFs, quando somado o percentual de estudantes matriculados pertencentes às faixas que contemplam de 0 a 1,5 SM, tem-se: 63,4% (2009), 58,4% (2010) e 65,6% (2011), o que já revela, a priori, que o grupo majoritário de estudantes matriculados eram oriundos de famílias de baixo rendimento per capita, com destaque a percentuais significativos para aqueles que possuíam entre 0 a 0,5 SM no triênio analisado.

Ainda no ano de 2012, quando somadas as três faixas de renda per capita, temos 69,1% dos estudantes matriculados com renda familiar per capita de até 1,5 SM. Importante ressaltar que o ano de 2012 marca a implementação da Lei n. 12.711/2012, assim, as universidades e institutos federais passaram gradualmente a destinar 50% de suas vagas aos estudantes oriundos de escolas públicas, pretos, pardos, indígenas e com renda familiar per capita de até 1,5 SM.

Nos anos posteriores a 2012, é possível notar, ainda que identificadas pequenas variações, que o percentual de estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 SM se manteve constante acima de 70% do total de matriculados: 70,3%, (2013); 71,4% (2014); 76% (2015); 76,2 % (2016) e 74,6% (2017). A somatória dos dados apresentados na Tabela 2 também corrobora para essa análise, com exceção do ano de 2020, que apresentou queda no percentual de estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 SM: 75,3% (2018); 74,1% (2019); 67,8% (2020) e 71,1 % (2021).

Nota-se, pois, que após a implementação da Lei n. 12.711/2012, os estudantes matriculados na Rede Federal EPCT, com renda familiar per capita de até 1,5 SM, têm representado cerca de – do total de matriculados nas instituições. Vale destacar também que estudantes com tal característica per capita também se constituem como público prioritário do PNAES, o que, consequentemente, demandaria maior investimento orçamentário para o programa. Todavia, estudos realizados por Prada e Surdine (2018PRADA, T.; SURDINE, M. C. A assistência estudantil nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Ser Social, v. 20, n. 43, p. 268-289, 2018.) revelam que, desde 2015, o orçamento destinado ao PNAES tem sido subfinanciado, tendência que foi contínua durante o Governo Bolsonaro. Eis o paradoxo: à medida que se amplia o acesso a segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora, limita-se o aporte orçamentário às ações de assistência estudantil.

Ao observarmos a evolução das características de renda dos estudantes matriculados nos IFs no período de 2009 a 2021, é possível constatar: a) o percentual de estudantes matriculados com renda familiar per capita de até 0,5 salário mínimo aumentou significativamente durante o período entre 2013 a 2016, atingindo a maior marca em 2016; b) o número de estudantes matriculados com renda familiar per capita entre 0,5 a 1 salário mínimo aumentou em relação ao ano de 2009, atingindo seu ápice no ano de 2013 e mantendo um percentual quase constante nos anos de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019, porém, sofreu leve queda nos anos de 2020 e 2021; c) o percentual de estudantes com renda familiar per capita entre 1 a 1,5 salário mínimo permaneceu sem mudanças significativas durante o período analisado; d) já o percentual de estudantes matriculados com renda familiar per capita entre 2,5 e 3,0 salários mínimos caiu significativamente em relação ao anos de 2009 e 2010 e manteve pequenas oscilações até 2017; e) o percentual de estudantes matriculados com renda familiar superior a 3 salários mínimos per capita diminuiu, especialmente, em relação ao ano de 2011 e manteve-se praticamente constante entre o período de 2012 a 2017; f) a análise das faixas de renda per capita mais elevadas (2,5 a 3,5 SM e mais de 3,5 SM) revela que, nos anos de 2020 e 2021, houve um acréscimo dos estudantes matriculados com este perfil, especialmente quando observada a evolução do percentual de estudantes que possuíam mais de 3,5 SM, que atinge seu ápice em 2020 (9,5%). Tal dado é contrastante com o menor percentual de estudantes (22,9%) com renda familiar de até 0,5 SM, também registrado no ano de 2020, primeiro ano da pandemia do novo coronavírus, figurando a marca de menor percentual de estudantes matriculados nessa faixa de renda per capita desde 2010. Assim, é possível afirmar que durante os anos de 2020-2021, houve uma ampliação do percentual de estudantes com maior renda familiar per capita e uma redução da presença de estudantes que possuíam até 0,5 SM per capita, ou seja, estudantes pertencentes aos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. Tal fenômeno ainda precisa ser mais bem investigado por pesquisas que se debrucem sobre os efeitos da pandemia do novo coronavírus, e suas repercussões no mundo do trabalho e no campo educacional.

Em um país de capitalismo periférico e estruturalmente racista (Ortegal, 2018ORTEGAL, L. Relações raciais no Brasil: colonialidade, dependência e diáspora. Serviço Social & Sociedade, n.133, 413-431, set./dez., 2018.), tão importante quanto identificar o perfil econômico e socioeconômico dos estudantes que têm acessado a Rede Federal de EPCT, é analisar as características étnico-raciais dos estudantes matriculados. Tais dados, importantíssimos para diversos estudos e para os movimentos sociais, passaram a ser coletados pela SETEC em 2017, sendo apresentados na PNP. A partir da sistematização do período de 2017 a 2021, apresentamos o Gráfico 1.

Gráfico 1.
Total de matrículas e autodeclaração étnico-racial na Rede Federal EPCT (2017-2021)

Ao observarmos o Gráfico 1, identificamos o crescimento do total de estudantes matriculados na Rede Federal EPCT ao longo do período de 2017-2021. Importante destacar que, no ato da matrícula, na maioria das instituições, é possível que os estudantes não declarem a sua cor/raça e renda familiar per capita. Por esse motivo, é sempre importante contrastar os dados relativos à autodeclaração étnico-racial dos estudantes matriculados com o percentual de estudantes que têm ou não declarado sua cor/raça. Ao analisar o período de 2017 a 2021, o percentual de estudantes que autodeclararam sua cor/raça se configurou da seguinte maneira: 2017 (58,50%), 2018 (63,71%), 2019 (72,83%), 2020 (81,76%) e 2021 (75,54%). Tais dados, que necessitam ser acompanhados nos anos seguintes, permitem afirmar preliminarmente que há uma tendência de que cada vez mais estudantes autodeclararam sua cor/raça, seja para fazerem uso do direito à reserva de vagas (Lei n. 12.711/2012), seja, ainda, como uma das possíveis repercussões ao necessário avanço ao debate à questão racial, que implica compreender como a raça se imbrica nas relações sociais brasileiras (Ortegal, 2018ORTEGAL, L. Relações raciais no Brasil: colonialidade, dependência e diáspora. Serviço Social & Sociedade, n.133, 413-431, set./dez., 2018.). O próprio sistema de reserva de vagas, tendo por mecanismos as bancas de heteroidentificação, compostas, em geral, por membros da comunidade interna das universidades e institutos federais, que analisam a autodeclaração étnico-racial de candidatos em processos seletivos, corrobora para o reconhecimento sobre como determinados grupos étnico-raciais têm sua humanidade e direitos negados pela branquitude (Eurico, 2022EURICO, M. Nota técnica sobre o trabalho de assistentes sociais e a coleta do quesito raça/cor/etnia. Brasília: Conselho Federal de Serviço Social, 2022. Disponível em: Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/nota-tecnica-raca-cor-2022-nov.pdf . Acesso em: 4 dez. 2022.
http://www.cfess.org.br/arquivos/nota-te...
).

Gráfico 2.
Autodeclaração étnico-racial dos estudantes matriculados na Rede Federal EPCT (2017-2021)

Considerando o universo de estudantes matriculados que autodeclararam sua cor/raça, no período analisado, temos uma ampliação gradual do percentual de estudantes que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas (PPI) nos anos de 2017 a 2019, e depois, uma estagnação quando observado o biênio 2020-2021. Importante destacar que, em 2020, pela primeira vez na série analisada, o número de estudantes autodeclarados brancos representou 43,83% dos estudantes que autodeclaram sua cor/raça, ultrapassando levemente o percentual de estudantes autodeclarados pardos (43,03%), predominante nos demais anos. Como a coleta realizada pela PNP compreende o total de matrículas ativas em determinado ano de todos os cursos da Rede Federal EPCT, incluindo, por exemplo, cursos de qualificação profissional, que muitas vezes possuem carga horária abaixo de 200 horas e têm suas matrículas efetivadas ao longo dos semestres, é possível lançar a hipótese de que, no primeiro ano de pandemia, além do menor registro percentual de estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 SM, conforme analisado na Tabela 2, identificamos um processo de “embranquecimento” dos estudantes em curso, se considerado o salto dado pelo número de estudantes autodeclarados brancos no ano de 2019 para 2020. Em 2021, novamente, a maioria dos estudantes matriculados na Rede Federal de EPCT passa a ser proporcionalmente de estudantes pardos, ainda que não haja queda significativa do total de alunos autodeclarados brancos.

Quando observados os estudantes autodeclarados pretos, se notada a série histórica de 2017 a 2021, o número de estudantes autodeclarados pretos mais do que dobra e atinge seu ápice no ano de 2020, com 136.091 estudantes matriculados, representando 11,04% dos estudantes que autodeclararam sua cor/raça naquele ano. Por outro lado, quando observados os estudantes autodeclarados indígenas, nota-se um aumento significativo de estudantes entre os anos 2017 e 2018, porém, o número de estudantes autodeclarados indígenas permanece quase constante nos demais anos, o que levanta hipóteses sobre os impactos que a Lei n. 12.711/2012 têm para os povos indígenas em relação aos demais grupos étnico-raciais incluídos nas reservas de vagas da lei (pardos e pretos). Em algumas universidades federais, como, por exemplo, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), há o vestibular dos povos indígenas, caracterizando-se como uma outra estratégia de ação afirmativa, que visa suplementar vagas existentes nos processos seletivos aos povos indígenas (concomitantemente às vagas já reservadas pela Lei n. 12.711/2012). Na análise de Silva (2022SILVA, P. V. B. Avaliação das políticas de ação afirmativa no ensino superior no Brasil: resultados e desafios futuros. Estudo de caso da UFPR. In: HERINGER, R.; CARREIRA, D. (org.). 10 anos da Lei de Cotas: conquistas e perspectivas. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação da UFRJ, Ação Educativa, 2022. p. 355-386.), com base no acompanhamento do ingresso de estudantes indígenas na UFPR, durante o período de 2004-2020, ainda que com ações afirmativas específicas, a participação de indígenas no ingresso à universidade é proporcionalmente baixa e não tem apresentado crescimento significativo, o que reforça a perspectiva de que o acesso dos povos indígenas aos institutos e às universidades federais merece maior investigação por futuras pesquisas.

Por fim, o número de estudantes autodeclarados amarelos apresentou oscilação moderada, atingindo o seu ápice em 2020, quando apresentou, representando 1,60% do total de estudantes que autodeclaram sua renda, maior percentual proporcional também registrado na série histórica analisada.

Para além das características étnico-raciais e socioeconômicas, é importante pontuar que a maioria dos estudantes da Rede Federal EPCT é majoritariamente composta por jovens entre 15 e 29 anos, conforme PNP (2018, 2019, 2020, 2021 e 2022)PNP. Plataforma Nilo Peçanha. 1.5. Classificação racial e renda familiar dos estudantes. Anos: 2018, 2019, 2020 e 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.plataformanilopecanha.org/ . Acesso em: jan. 2023.
https://www.plataformanilopecanha.org/...
. Em síntese, como já ressaltado nos estudos de Daros (2019DAROS, M. A. #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes. 2019. 400 f. Tese. (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.), se buscássemos por um perfil generalista dos estudantes dos IFs, maiores seriam as chances de nos depararmos com o seguinte perfil: um(a) jovem entre 15 e 29 anos, pardo e com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio.

À guisa de conclusão: para onde deve caminhar a ampliação do acesso à educação da Rede Federal EPCT e dos IFs?

A expansão da Rede Federal EPCT e dos IFs teve suas diretrizes balizadas pelo paradigma da sociedade do conhecimento e pelo cenário sociopolítico conhecido como neodesenvolvimentismo. Assim, a expansão se desenrolou pela perspectiva de maior investimento educacional aliado ao desenvolvimento socioeconômico dos territórios. Dinâmica que, a nosso juízo, ainda que não enfrente as relações que fundam o capital e, consequentemente, as desigualdades sociais, pode trazer benefícios (limitados e temporários) ao desenvolvimento socioterritorial. Todavia, os efeitos da expansão educacional dos IFs e sua relação com os territórios onde se instalam os campi permanecem ainda como campo fértil para investigação crítica no âmbito das políticas públicas. Neste artigo, buscou-se evidenciar a ampliação do acesso à educação à classe trabalhadora como um dos legados da expansão dos IFs e da EPT, sendo os estudantes autodeclarados pardos o grupo étnico-racial que mais tem acessado a EPT. Como elucidado, a expansão físico-territorial dos IFs, embora tenha ampliado o acesso à educação, não significou, contudo, o fortalecimento de serviços e estruturas de atendimento aos estudantes na proporção necessária.

Tal conclusão é, pois, um farol que ilumina a importância da compreensão da indissociabilidade de políticas e estratégias de ampliação do acesso e de permanência dos estudantes em processos de expansão educacional que tenham sentido democrático. Tal defesa tem sido historicamente reivindicada por educadores, movimento estudantil e movimentos sociais pela educação, em geral. A perspectiva cada vez mais difundida é a da compreensão do binômio acesso-permanência como uma unidade (Daros, 2019DAROS, M. A. #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes. 2019. 400 f. Tese. (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.). Ou seja, as políticas e estratégias de ampliação do acesso à educação não devem ser apartadas daquelas voltadas ao apoio à permanência estudantil.

Nesse sentido, considerando a permanência estudantil, também tem sido cada vez mais presente, no debate sobre essa temática, o reconhecimento das dimensões que a constituem. Entende-se que tais dimensões, embora apresentem aspectos diversos, estão estritamente correlacionadas, sendo, pois, inseparáveis. Assim, a dimensão material da permanência congrega as condições materiais para permanecer, como, por exemplo, poder chegar até o campus/escola, alimentar-se adequadamente, adquirir materiais didáticos, acessar a internet, residir em moradia adequada, ter acessibilidade, acesso aos serviços de saúde e creche, dentre outras. A dimensão simbólica da permanência, por sua vez, reúne as condições culturais, os modos de ser, pensar e agir, o pertencimento étnico-racial, social, de gênero e a valorização da diversidade, que compõem o processo educacional.

Para alguns autores (Santos, 2009SANTOS, D. B. R. Para além das cotas: a permanência de estudantes negros no ensino superior como política de ação afirmativa. 2009. 214 f. Tese. (Doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.; Silva; Santos; Reis, 2021SILVA, N. N.; SANTOS, A. P.; REIS, J. M. Assistência estudantil e ações afirmativas: um estudo das condições materiais e simbólicas. Educação & Sociedade, Campinas, n. 42, p. 13-42, 2021.), é primordial a atenção às questões da permanência simbólica, justamente nos contextos em que os estudantes são os primeiros das famílias a acessarem o ensino superior, no qual podem ocorrer situações de estranhamento por acessarem um universo que era distante de sua realidade social. As autoras canadenses Henry e Tator (2006HENRY, F.; TATOR, C. The colour of democracy. Racism in Canadian society. Toronto: Thomson.Nelson, 2006.), embora não utilizem o termo permanência simbólica, atentaram para a existência de um hidden curriculum (currículo oculto), em que estão presentes os valores dos educadores, suas presunções e expectativas não questionadas, e o ambiente físico e social da escola e da universidade. Para as autoras, tão importante quanto o currículo formal, que reúne conteúdos, processos de instrução e materiais, é o currículo oculto para o processo educacional.

Assim, na oportunidade histórica que se abre com a retomada do diálogo do governo federal com universidades e institutos federais, torna-se tarefa primordial lutar pelo fortalecimento de programas como o PNAES, como também por currículos, valores ético-políticos, pesquisa e produção do conhecimento que permitam aos/às estudantes pretos/as, pardos/as, indígenas, mulheres, estudantes LGBTQIA+, trabalhadores e filhos de estudantes com deficiência terem a possibilidade de permanecerem e se tornarem sujeitos de suas próprias instituições educacionais, reconstruindo currículos, salas de aula e bibliotecas com suas cores, símbolos e saberes.

Referências

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    » http://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?inline=1&fileId=8A8182A14D92792C014D92847E5F3E97
  • 1
    Referimo-nos à tese de doutorado #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes (Daros, 2019DAROS, M. A. #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes. 2019. 400 f. Tese. (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.).
  • 2
    Além dos IFs, compõem a Rede Federal de EPCT: a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); CEFET-RJ e CEFET-MG; as Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais; e o Colégio Pedro II.
  • 3
    Tal vislumbre remete à valorização de aspectos da Teoria do Capital Humano. Ver Frigotto (2013FRIGOTTO, G. Novos fetiches mercantis da pseudoteoria do capital humano no contexto do capitalismo tardio. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.sinproeste.org.br/wp-content/uploads/2013/04/O-rejuvenecimento-da-teoria-do-capital-humano-no-contexto-do-capitalismo-tardio.pdf . Acesso em: 1º ago. 2015.
    http://www.sinproeste.org.br/wp-content/...
    ).
  • 4
    Moradia estudantil; alimentação; transporte; atenção à saúde; inclusão digital; cultura; esporte; creche; apoio pedagógico; e acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação.
  • 5
    Estudantes matriculados nos IFs representaram historicamente quase a totalidade de estudantes matriculados na Rede Federal EPCT, representando, em 2021, 93,67% das matrículas. (PNP, 2021PNP. Plataforma Nilo Peçanha. 1.5. Classificação racial e renda familiar dos estudantes. Anos: 2018, 2019, 2020 e 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.plataformanilopecanha.org/ . Acesso em: jan. 2023.
    https://www.plataformanilopecanha.org/...
    ).
  • 6
    Foram extraídos os dados informados por cada instituição em relação às faixas de renda familiar per capita dos estudantes que declararam sua renda em cada ano. Desta forma, com base nos dados extraídos dos relatórios, a média percentual anual dos estudantes por cada faixa de renda per capita foi calculada a partir da soma dos percentuais informados por cada instituição e divididos pelo número de instituições que informaram tais dados em cada ano analisado (Daros, 2019DAROS, M. A. #falaestudante! Um estudo sobre o legado da expansão dos Institutos Federais aos seus estudantes. 2019. 400 f. Tese. (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2023
  • Aceito
    28 Ago 2023
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