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Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a "questão social" e a questão cultural no Brasil

Samba, culture and society: sambistas and workers between the "social issue' and the cultural issue in Brazil

RESENHA

Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a "questão social" e a questão cultural no Brasil* * Braz, Marcelo (Org.). Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a "questão social" e a questão cultural no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

Samba, culture and society: sambistas and workers between the "social issue' and the cultural issue in Brazil

Cézar Maranhão

Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife/PE, Brasil, professor adjunto do Departamento de Política Social da Escola de Serviço Social da UFRJ. Email: cezarmaranhao@uol.com.br

"Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia", a célebre frase do escritor russo León Tolstoi utilizada como epígrafe na apresentação do livro Samba, cultura e sociedade, organizado por Marcelo Braz, sintetiza muito bem o significado e os objetivos críticos dessa oportuna publicação da expressão popular. Fruto de debates acumulados e de uma exitosa experiência acadêmica, desenvolvida por meio de um curso de extensão promovido pela Escola de Serviço Social da UFRJ em 2011, o livro promove um rico encontro entre as elaborações teóricas já consagradas de intelectuais marxistas experientes e uma fecunda e promissora produção acadêmica de jovens intelectuais. Na esteira do pensamento crítico-dialético, a obra antagoniza com as tendências culturalistas, localistas e naturalistas que hegemonizam as atuais análises sobre o tema, ao desenvolver uma busca pelas mediações que permitem analisar a significação social do samba enquanto expressão artística típica dos contraditórios processos que compõem a história da modernização brasileira.

A coletânea reúne artigos que atravessam diversas áreas temáticas, com leituras distintas sobre a questão, mas que se articulam a um eixo estruturador comum: o desafio de estudar o modo pelo qual as contradições da "questão social" brasileira se expressam nas criações artísticas do samba, analisando as condições particulares nas quais se consolidam os traços constitutivos de nossa peculiar formação social e cultural. Para empreender tal desafio a publicação foi organizada em três partes que se vinculam organicamente.

A primeira parte começa com um texto de José Paulo Netto, que, com o seu rigor teórico de costume, recupera historicamente a concepção de "questão social" à luz da teoria social de Marx e do debate da tradição marxista. O artigo, publicado em outra oportunidade e que já é referência no debate do Serviço Social brasileiro, se apresenta aos novos leitores bastante modificado com a introdução de novos e importantes elementos, bem como uma oportuna atualização bibliográfica sobre a temática da "questão social", um dos principais eixos articuladores do livro. Na sequência, encontramos um importante ensaio escrito por Carlos Nelson Coutinho em sua juventude e que oferece os elementos essenciais que direcionam a tônica analítica do livro. No texto, Coutinho analisa pormenorizadamente a problemática da questão cultural brasileira e examina as características específicas da intelectualidade nacional interligando-as ao modo particular de desenvolvimento capitalista em nosso país. Nesse já clássico ensaio, essencial para desvendar as particularidades do caldo cultural tupiniquim, Coutinho mostra como o desenvolvimento do capitalismo monopolista, ao reforçar os traços elitistas e autoritários da "via prussiana" brasileira, robusteceu o papel das tendências culturais "intimistas", estimulando na nossa intelectualidade a reprodução histórica de uma cultura neutralizadora e asséptica que ratifica aquilo que Lukács chamava de "apologia indireta do existente". Finalizando essa primeira etapa, Marcelo Braz, ancorado nas elaborações estéticas de Marx, Engels e de Gyorgy Lukács, articula com argúcia as análises sobre a peculiaridade da criação artístico-cultural e o significado social do samba enquanto manifestação da "questão social" e expressão particular da questão cultural no Brasil.

A partir da análise exposta na primeira etapa encontramos na segunda parte do livro quatro textos que realizam uma abordagem teórico-histórica do samba enquanto expressão sociocultural brasileira, analisando a gênese histórica, o processo formativo e suas diversas transformações ao longo do desenvolvimento particular do capitalismo no Brasil. Ao buscar as raízes para uma análise concreta do fenômeno cultural do samba, Marcelo Braz abre a segunda parte do livro realizando uma recuperação histórica que procura vincular o surgimento dessa práxis artístico-cultural às particularidades da "questão social" brasileira e à categoria de questão cultural. Na sua análise sobre o samba, Braz demonstra, por meio de elementos histórico-concretos, alternativas para a construção de uma identidade nacional-popular e para a resistência cultural ao autoritarismo das elites e ao "intimismo à sombra do poder", cultura intelectual típica da via prussiana brasileira. Em seguida, Augusto Lima traz uma importante contribuição ao livro oferecendo um rico panorama histórico da sociedade brasileira entre o final do século XIX e o início do XX, berço no qual nasceu o ritmo e todas as características que compõem o samba brasileiro. Para complementar, o texto de Victor Neves reúne uma série de questões teóricas e elementos históricos interessantes que mostram o impacto das contradições particulares do capitalismo no Brasil sobre o processo criativo e a vida cotidiana dos sambistas nas periferias urbanas, formando um ótimo roteiro de estudos para os interessados em tratar a temática da música popular brasileira e do samba em particular. Por fim, encerrando a segunda parte, Marcelo Braz apresenta um texto que procura fazer justiça a um dos mais importantes pesquisadores da música popular brasileira: José Ramos Tinhorão. O texto vai além da obra de Tinhorão e recupera criticamente algumas ideias do polêmico autor, procurando resgatá-lo de um exílio a que foi forçosamente submetido pelas tendências "culturalistas" e pós-modernas contemporâneas.

Na última parte da obra são analisados aspectos particulares do universo do samba e da vida cotidiana dos sambistas, seus principais expoentes, cronistas, poetas, compositores e suas obras, contextualizando- os em sua época histórica e mostrando como suas crônicas e composições, suas letras e ritmos, expressam a formação da identidade cultural brasileira na marcha das contradições típicas da "questão social". Desde o belo texto de Luiz Ricardo Leitão sobre o "poeta da Vila" Noel Rosa, passando pelas lúcidas análises de Marcelo Braz sobre os traços de conformismo e resistência presentes nas composições de Wilson Batista e Noel Rosa, até o importante texto de Guilherme Vargues sobre as relações de dois grandes sambistas Paulo da Portela e Antonio Candeia com as escolas de samba do Rio de Janeiro. Para fechar o livro, são apresentados aos leitores dois textos de Eduardo Granja Coutinho, profundo conhecedor das obras de Paulinho da Viola, que no primeiro artigo nos oferece um resgate primoroso da criação desse importante sambista carioca e também um delicioso texto sobre a crônica da "questão social" na "linguagem marginal" do samba de Bezerra da Silva.

O leitor que porventura decidir enfrentar as 246 páginas dessa obra se deparará com uma leitura leve e agradável, que contém muitas vezes um conteúdo poético — típico de intelectuais que apreciam e estão próximos das expressões artísticas do povo —, mas que de maneira alguma abre mão do rigor teórico e da perspectiva crítica na análise da realidade social e cultural do Brasil. Além de se configurar como um livro imprescindível para pesquisadores e especialistas que se interessam por uma análise crítica sobre o ritmo, as crônicas e a poesia do samba, a publicação é de leitura obrigatória para aqueles intelectuais que intentam romper com a cultura elitista e intimista presentes na sociedade brasileira. Dessa forma, a obra, ao realizar uma análise concreta das características histórico-sociais do samba, enquanto expressão artística e cultural das contradições particulares da "questão social" brasileira, oferece também instrumentos teóricos imprescindíveis para melhor pintar nossa aldeia chamada Brasil.

Recebido em 29/5/2014

Aprovado em 16/6/2014

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    Braz, Marcelo (Org.).
    Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a "questão social" e a questão cultural no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014
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