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Ética, Direitos Humanos e Diversidade

Ethics, Human Rights and Diversity

A temática da edição 146.2 da revista Serviço Social & Sociedade celebra os 30 anos do Código de Ética do/a Assistente Social no Brasil. Neste editorial, com o objetivo de dialogar, principalmente com as novas gerações de profissionais e discentes de Serviço Social, ressaltaremos as conquistas que o Código de Ética profissional, aprovado em 13 de março de 1993 (CEp-1993), possibilitou à formação e ao trabalho profissional e o caminho teórico-político que se consolida na profissão a partir de então, para a inserção dos direitos humanos e da diversidade humana.

Fruto de compromissos político-profissionais com o aprimoramento da democratização da sociedade brasileira e com a ruptura com o conservadorismo histórico, que marca a gênese da profissão, o CEp-1993 mantem com o Código de Ética profissional anterior, aprovado em 1986 (CEp-1986), uma relação de superação, contendo assim, movimentos de afirmação e de negação, posto que reafirma o posicionamento crítico em relação à sociedade capitalista e ao Serviço Social tradicional e seu arcabouço teórico-ético-político, mas nega a diluição da ética na política e supera, desse modo, a ausência de mediações entre o compromisso político com a classe trabalhadora e as particularidades da profissão, com sua inserção na divisão social e técnica do trabalho.

Podemos afirmar que o CEp-1993 é expressão do salto dado pelo Serviço Social, não só em relação ao fortalecimento de uma autoimagem referenciada na organização política das pautas progressistas, mas, também, no reconhecimento do sentido ontológico do debate da ética e dos direitos humanos, em articulação com as lutas dos movimentos sociais na defesa da liberdade e da diversidade humana. Para o entendimento de por que são tão importantes esses 30 anos do Código de Ética vigente, destacamos aspectos da conjuntura/estrutura que evidenciam a força da necessidade histórica de uma profissão como o Serviço Social ter um projeto profissional crítico, construído nas interações ídeo-políticas com o campo das esquerdas.

Tão atual como visceral é a frase de Marx na abertura de “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” de 1852, referindo-se ao exemplo francês do golpe de Estado, dado por Luís Bonaparte, e o processo da luta de classe como motor da história. Marx destaca que “todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes (...) a primeira como tragédia e a segunda como farsa” (Marx, 2011MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 3). Com as devidas reticências históricas, ao longo das últimas décadas, no Brasil, a tragédia e a farsa se alternam na consolidação e no aprofundamento do capitalismo no país, expressando o quão deletério o sistema capitalista pode se constituir na sua periferia. Particularmente, a conjuntura - que se abre nos marcos dos anos de 2013 e 2014 num processo que tem em 2016 um golpe e, em 2018, sua culminação com a eleição de Jair Bolsonaro, representante da extrema-direita entrecruzada pela vivência de uma pandemia mundial por SARS covid-19, que, no caso brasileiro, escancarou o fosso profundo da desigualdade social e suas profundas interações com o racismo e o patriarcado - é produto de uma crise que já estava em processamento.

Esses processos recentes exponenciaram nas vivências singulares e coletivas uma ferida aberta que ainda não tinha cicatrizado. As marcas da barbárie da ditadura civil-empresarial-militar, das práticas de tortura e do cerceamento da liberdade dos idos de 1964 pareciam assombrar o presente, porque, no Brasil, o passado é sempre reposto, não se assume entre nós, a autocracia e o arbítrio como “uma roupa que não nos serve mais”, pois nunca tivemos, por parte do Estado, um processo de anistia que fizesse, simultaneamente, o reconhecimento de nossos mortos e a punição dos responsáveis. Seguimos com a memória interditada, abrindo fios para que os retrocessos, a qualquer momento, possam chegar e chegaram.

Trata-se da forma particular de aprofundamento do capitalismo, no país, sempre pelo alto, sem a participação dos setores populares (Fernandes, 1976FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.), movimentando-se associado a práticas diretas e indiretas de extermínio da população, em especial, da população preta e indígena. Aqui, entre nós, o capitalismo tem sua face mais recrudescida com profunda desigualdade social, concentração de renda, aprofundamento de disparidades regionais e, neste caldo - fundado em relações sociais de classe, raça e sexualidade - as violações cotidianas da diversidade humana também ganham uma dimensão dilacerante na carne dos LGBTI+, das mulheres, dos povos originários, dos pretos e pretas. Uma saga antidiversidade com características misóginas, capacitistas, LGBTI fóbicas e criminalizadora da pobreza, dos movimentos de resistência e dos indivíduos mais pauperizados.

Para se manter na condição de classe dominante, a burguesia brasileira movimenta-se apenas pelos seus mesquinhos interesses de classe. O que vemos em 1945, 1964 e 2016 são expressões particulares de um traço da formação social, cuja construção da classe burguesa, referenciada em seu caráter antipopular, aprofunda um ódio estruturante contra os segmentos populares, articulando, na sociabilidade, um complexo processo de barbarização cotidiana da vida social, com farta reprodução dos desvalores, moralismos, preconceitos, tendo, inclusive, nestes, um importante meio de consolidação de uma forma de pensar acerca da sociedade, da política e das relações sociais.

Nas últimas décadas, especialmente, mediante o uso ideológico, de caráter reacionário e regressivo, do desenvolvimento massivo de tecnologias que modificaram o alcance dos meios de comunicações, levaram essas determinações, cada vez mais fundo, na construção dos espaços privados dos indivíduos sociais, formatando a anticultura, de um saber irrefletido que, baseado no irracionalismo, seduz e impõe suas pautas, de tal forma até parecer que a vida acontece nas redes sociais, nas trocas de opiniões ancoradas na negação da ciência, no preconceito e desvalorização da educação, da cultura e no profundo desrespeito por intelectuais, professores/as, artistas e por qualquer pensamento divergente na dinâmica societária.

2018-2022 veio nessa contramão dos avanços democráticos insuficientemente conquistados no país. Mas é importante enfatizar que houve resistência, com participação efetiva das forças de esquerda, expressas em diferentes ambientes, tais como movimentos feministas, indígenas, antirracistas e outros movimentos sociais, partidos políticos, intelectuais, artistas, conselhos de algumas profissões, entre outros coletivos que protagonizaram experiências de resistência, de crítica pública e de luta em defesa da democracia, contra a ameaça de práticas fascistas que rondaram os quatro cantos do país e, de modo especial, o governo federal.

Em contrário, e, no contraponto às leituras superficiais e parciais do nosso tempo, em que

(...) o cortejo movia-se na noite, mas o que viram como a luz da aurora era a luz de fogos no céu. E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo (Brecht, 2006BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006., p. 217).

Torna-se, então, central o debate e a disputa em torno do campo dos valores, da ética e dos direitos humanos, pois não está dada, na nossa sociabilidade, a manutenção das mínimas conquistas civilizatórias que angariamos nos anos de 1980, pois, como bem expressa Santos (2016SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Módulo 3: Ética e Direitos Humanos. In: Ética em Movimento: curso de Capacitação para Agentes Multiplicadores/as. 5. ed. Brasília: CFESS, 2016., p. 13):

as conquistas civilizatórias mostram que é fundamental instituir práticas de resistência apesar de a humanidade estar submetida (...) a intensa disseminação ideológica do ethos burguês, em detrimento do pleno atendimento das necessidades humanas.

É, dessa forma, que o campo de movimentação dos valores e desvalores, que expressam projetos societários em disputas, atravessam as lutas e os sonhos da classe trabalhadora no Brasil, na busca de uma vida mais plena e mais expressiva da diversidade. E que, conjunturas como essa que vivemos, durante o governo Bolsonaro, amplificam o sentido e a fortaleza do que é celebrar os avanços profissionais, bem como a importância histórica que assumem os fundamentos ontológicos que passam a nortear a apropriação da ética e dos direitos humanos no debate do Serviço Social. E, obviamente, a busca pelo seu enraizamento e direcionamento na formação e no trabalho profissional.

Ao mesmo tempo, se celebrar os avanços da nossa categoria é uma forma de resistência, e também um revisitar da história, para que não esqueçamos que o tanto que construímos em posicionamento crítico, face à brutalidade do capitalismo na vida cotidiana, não eliminou, de nossos quadros, o histórico conservadorismo, que, sempre atualizado na sociedade brasileira, também encontra novas formas de se manifestar no Serviço Social, visto que “a ruptura não significa que o conservadorismo (e, com ele, o reacionarismo) foi superado no interior da categoria profissional (...) o conservadorismo nos meios profissionais tem raízes profundas e se engana quem o supuser residual” (Netto, 1996NETTO, José Paulo. Transformações societárias e Serviço Social: notas para uma análise prospectiva da profissão. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 50, São Paulo: Cortez, 1996., p. 111-112).

O debate em torno da concepção ontológica da Ética e sua posterior apropriação e decodificação profissional realizada na elaboração do Código de Ética de 1993 são conquistas dos avanços realizados no Serviço Social entre o final dos anos 1980 e durante os anos de 1990. Fruto da “processualidade da intenção de ruptura” (Sousa e Sousa, 2012SOUSA, Adrianyce A. Silva; SOUSA, Daniela Neves. Do Congresso da Virada ao projeto ético-político: a maturação da intenção de ruptura. In: Revista Praia vermelha, v. 21, n. 2, jan./jul 2012. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ.), quando se espraiam, na categoria de assistentes sociais, novos ventos de construção de uma nova cultura profissional, mais crítica e sintonizada com os setores progressistas da sociedade brasileira. Esse processo ganha significação, expressividade e profundidade à medida que os sujeitos profissionais conseguem estabelecer o entendimento da profissão que não se funda em si mesma, nem se explica por e a partir de si. A ruptura com o tradicionalismo no Serviço Social levou à revisão da concepção de profissão para posteriormente se configurar como o motor dinamizador de uma reflexão sobre sua diretriz valorativa (Sousa, 2016SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro. Curitiba: Prismas, 2016.).

É por meio da abertura para pensar possibilidades e limites postos nas relações sociais que se amplifica o entendimento profissional e tem-se o caminho teórico-político estratégico para que a diversidade social possa ser primeiramente identificada e depois visibilizada no interior do corpo profissional. Esse movimento, associado aos avanços e aprofundamentos teórico-organizativos da tendência da intenção de ruptura, possibilitam “uma tomada de posição política e uma recusa da neutralidade que não pode prescindir, antes exige, uma fundamentação filosófica para os parâmetros e valores da ação profissional” (Sousa, 2016SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro. Curitiba: Prismas, 2016., p. 274). Assim, “por meio da explicitação político-ideológica da ação profissional é possível avaliar, e neste momento trata-se de uma avaliação crítica, as implicações ético-políticas da ação profissional” (Sousa, 2016SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro. Curitiba: Prismas, 2016., p. 274). O giro aqui operado é perfeitamente sinalizado por Barroco, pois se trata de superar a “subordinação imediata da ética à política, da ética à ideologia” (Barroco, 2001BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 2001., p. 170), tais como essas subordinações se apresentaram, especialmente, no Código de Ética Profissional de 1986.

O código de 1986 é emblemático e articulado por uma tensão central, pois, se do ponto de vista da ética os avanços conquistados no seio profissional, pela relação com o pensamento marxista e pelas movimentações da sociedade nas lutas pela democracia e abertura do regime militar, estarão presentes em sua tecitura, consubstanciando diretamente o sentido do compromisso político com as classes subalternas, do ponto de vista da sua capilaridade na construção dos sujeitos profissionais, aqueles avanços só chegam a se constituir como “orientadores de um novo ethos que expressa a moralidade do projeto de ruptura” (Barroco, 2001BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 2001., p. 170). Ainda seriam necessários aprofundamentos por parte da categoria, à luz da própria dinâmica social e da apropriação do marxismo, para que aquela tensão fosse dissipada na construção de uma nova diretriz profissional.

Nesses termos, além da tomada de posição política em face da neutralidade, verifica-se, também, na sequência do Código de 1986, o aprofundamento dos estudos, em âmbito profissional, com recursos à filosofia, desdobrando-se na produção intelectual e política da área voltada à reflexão sobre o método crítico-dialético, bem como de conceitos e categorias ausentes nos momentos iniciais de diálogos da profissão com o marxismo, tais como: alienação, cotidiano, cultura, práxis, contradição e mediação.

De acordo com Barroco,

em termos da produção ética balizada em estudos de cunho filosófico, verificam-se as reflexões de: M. H. de A. Lima (1994); V. L. Forti (1992) e das integrantes da comissão Nacional de Reformulação do Código de Ética de 1993, Paiva e Sales, cuja produção encontra-se em Bonetti et alii (org., 1995), bem como a Dissertação de Mestrado de Sales, intitulada “Marxismo, Ética e Socialismo”, orientada por Carlos Nelson Coutinho e defendida em 1993 (Barroco, 2001BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 2001., p. 181).

Esses estudos, segundo Sousa (2016SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro. Curitiba: Prismas, 2016.), além de fornecerem subsídios para a discussão ética, reforçaram o resgate da herança filosófica de Marx e, com isso, o recurso ao pensamento lukacsiano1 1 Sousa destaca que existem outras produções, de influência lukacsiana no Serviço Social, e que, historicamente, são anteriores aos debates que se colocam em movimento em relação à dimensão ética e sua apropriação na profissão. A autora demonstra como entre nós o debate lukacsiano se fez sentir e influenciar mais diretamente no debate da ética, a partir da perspectiva ontológica, do que sua influência, no que se refere ao debate do trabalho. Em suas palavras, “o Lukács ‘filósofo’ rebateu mais amplamente que o Lukács ‘ontólogo do trabalho’” (SOUSA, 2016, p. 279). Com base em sua pesquisa, a autora conclui que “é o recurso ontológico ao pensamento marxiano, com a interlocução lukacsiana, que permite a decodificação - para o meio profissional - dos princípios e valores. Sínteses até então conseguidas e aquilo que a profissão (…) começou a encampar como projeto profissional” (Sousa, 2016, p. 280). passou a ganhar relevância no âmbito profissional. Nesse sentido, o Código de 1986 demarca uma importante ruptura política com o tradicionalismo profissional, mas apresenta, já na primeira metade da década seguinte, certo anacronismo em face dos debates que fermentavam no Serviço Social brasileiro, em razão da conjuntura social das mobilizações que movimentaram a sociedade, frente à assustadora onda de desmandos com os recursos e verbas públicas pelo uso de meios ilícitos que levam, pelo mote de reivindicação da ética na política, ao impeachment do presidente Collor de Melo em 1992.

Lembremos aqui que Collor, em 1990, havia tomado posse como o primeiro presidente eleito pelo voto, desde a ditadura civil-militar, instaurada por golpe em 1964. Nos anos seguintes, diversas denúncias de corrupção envolvendo o presidente da república, Collor de Mello, vieram à tona. De modo que o país esteve às voltas com as enormes mobilizações lideradas pelo Movimento Estudantil contrárias ao governo, que, aliado aos interesses políticos de diversas frações de classe, desembocou no impeachment de Collor.

Para que 30 anos depois possamos entender o significado teórico-político do Código de Ética vigente é importante resgatar que, entre 1991 e 1993, aconteceram diversos debates no Brasil sobre a reformulação do código de ética de Assistentes Sociais. Esse tipo de mobilização foi inédito, sendo resultado de uma condução democrática das entidades da categoria, notadamente do Conjunto CFESS-CRESS2 2 A Lei n. 8.662, publicada em 7 de junho de 1993, atual lei de regulamentação da profissão, alterou o nome de Conselhos Federal e Regionais dos Assistentes Sociais para Conselhos Federal e Regionais de Serviço Social. O atual Código de Ética de Assistentes Sociais foi aprovado em 13 de março de 1993. Portanto, durante todo o processo de revisão e publicação do código, o nome correto era o Conjunto CFAS-CRAS. No entanto, para facilitar a leitura, optamos por padronizar para Conjunto CFESS-CRESS, mesmo quando nos referirmos ao Conjunto antes da mudança de seu nome. , responsável pela normatização ética da profissão3 3 Na apresentação do livro Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis, uma iniciativa apoiada pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), as organizadoras destacam: “O debate ético desencadeou-se o mais amplamente possível, contando com a maciça participação da categoria, expressa nas diversas conferências e comunicações apresentadas, bem como por contribuições de profissionais de áreas afins. Esse processo teve início no I Seminário Nacional de Ética (agosto de 1991), tendo continuado no 7o CBAS (maio de 1992, no II Seminário Nacional de Ética (novembro de 1992), em diversos encontros estaduais, e culminando com a aprovação do novo Código de Ética, no XXI Encontro Nacional CFESS/CRESS (fevereiro de 1993). Em março de 1993, entrou em vigor o novo Código (Bonetti et alli, 2012, p. 19). . Tanto o processo como o conteúdo do Código de Ética aprovado em 1993 expressam a maturidade de um projeto profissional vinculado à ruptura com o conservadorismo que marcou as origens da profissão.

Assistentes sociais e estudantes de Serviço Social discutiram ética, portanto, num contexto em que tal tema era debatido no país, ainda que com conteúdo ético-político distinto - uma vez que os fundamentos do nosso código de ética se assentam na crítica radical aos desvalores4 4 Valor são todas as capacidades desenvolvidas pelo ser na sua relação com o trabalho, que o constitui como ser social: a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. Consequentemente, compreende-se como desvalor que direta ou indiretamente aponte para a regressão dessas conquistas humanas (Heller, 1992, p. 4-5). da sociedade de classes - indicavam a materialidade da ética na sociabilidade humana, não sendo uma forma abstrata de pensar. Afinal, quando a mídia clamava por ética na política, indicava que a ética não é um modo apenas de pensar, uma vez que se materializa em ações. No entanto, como a busca pela resposta não era radical, no sentido de ir à raiz dos fenômenos, pouco ou nada contribuiu para entender os fundamentos da problemática.

No entanto, no universo do Serviço Social, as possibilidades de uma reflexão ética radical se ampliaram com a apropriação dos fundamentos filosóficos propiciados pela dimensão ético-política profissional inscrita no Código de Ética de Assistentes Sociais de 19935 5 Esse tipo de discussão, e sua consequente apropriação, foram inéditos na profissão. Netto, no prefácio da obra de Bonetti et alli (2012), escreveu que cabia na palma de uma mão a produção sobre o tema da ética e indica que tal vácuo se devia a duas hipóteses apontadas por Lúcia Barroco, da qual nos parece que o tempo confirmou mais ainda: a ausência, até então, de uma “sólida fundamentação em filosofia” e, a segunda, a “subsunção da especificidade da ética, seja a imperativos de raiz religiosa (no quadro do tradicionalismo profissional), seja a diretrizes de natureza estritamente ideopolítica (na moldura de um abstrato ‘compromisso com a classe trabalhadora’)” (Netto, 2012, p. 10). . Nessa direção, gerações de assistentes sociais - que se sociabilizaram em diferentes momentos do Brasil, como na ditadura civil-militar, que lutaram pela democracia ou que já se sociabilizaram desde a primeira infância com a naturalização do individualismo exacerbado do projeto neoliberal implantando desde os anos 1990 - puderam, e podem, questionar os desvalores da sociabilidade capitalista a partir da dimensão ético-política posta na profissão.

Entretanto, nos parece ser evidente que, a partir dos embalos dos debates para revisão do Código de Ética e das diversas atividades realizados pelos CRESS (e também pelas Universidades) quando da promulgação do Código de Ética de 1993, tem-se a continuidade do debate da ética, para além do contexto de revisão do Código de Ética, em diferentes espaços - a saber: da existência de sessões temáticas dos CBAS desde 1992 e depois nos Encontros Nacionais de Pesquisadores/as em Serviço Social (ENPESS); a criação pelo CFESS do Projeto Ética em Movimento, em 2000; a criação do Grupo Temático da Pesquisa em ética, direitos humanos e Serviço Social da ABEPSS em 2009. Ou seja, o debate da ética se expande, tendo também como expressão a produção intelectual sobre o tema e a consequente incorporação da reflexão crítica sobre os direitos humanos e a diversidade.

Tomando como referência esse acúmulo na profissão que pretendemos destacar algumas implicações dessa concepção ético-política para o trabalho e a formação profissional em Serviço Social. Tais implicações não estão soltas no espaço, tendo inter-relação com a conjuntura, uma vez que a leitura que aqui fazemos da profissão, de acordo com Iamamoto e Carvalho (1991IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. 8. ed. São Paulo: Cortez Editora/ Celats, 1991.), não é endógena. Na esfera da produção do conhecimento, o Serviço Social dispunha há uma década de um arsenal teórico-crítico que sustentava enfrentamentos clássicos para a apreensão da particularidade da profissão na divisão social e técnica do trabalho (Iamamoto e Carvalho, 1991IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. 8. ed. São Paulo: Cortez Editora/ Celats, 1991.). Na organização política da categoria, a ABEPSS e o Conjunto CFESS-CRESS já apresentavam direções progressistas; o movimento sindical encontrava-se em franco debate sobre a continuidade da organização por ramo, tendo acúmulo de uma profícua contribuição para a virada profissional (Ramos, 2005RAMOS, Sâmya Rodrigues. A mediação da organização política na (re)construção do projeto profissional: o protagonismo do Conselho Federal de Serviço Social. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.; Abramides e Cabral, 1995ABRAMIDES, Maria Beatriz C.; CABRAL, Maria do Socorro Reis. O novo sindicalismo e o Serviço Social. São Paulo: Cortez Editora, 1995.). Na formação profissional, houve o acúmulo do Currículo mínimo aprovado em 1982 pelo MEC. Desse acúmulo se clamava para a importância de sua revisão, que foi deflagrada pela ABEPSS em 1993 e concluída em 1996 com a aprovação das Diretrizes Curriculares para o Ensino em Serviço Social.

Nos avanços citados anteriormente, ressaltamos que não pretendemos dar conta de toda a riqueza da contribuição do projeto de ruptura até o debate sobre a revisão do Código de Ética de 1993 - a tentativa foi tão somente ilustrar o patamar existente desse projeto até a deflagração do processo de revisão, para desvelar a particularidade da contribuição do debate da ética nesse arsenal coletivo, hoje denominado de Projeto Ético-político do Serviço Social. Indubitavelmente, a contribuição seminal do processo de revisão do Código de Ética se deu em razão do avanço da apropriação da ética na tradição marxista, a partir da interlocução com as elaborações de Lukács6 6 Como aponta Sousa (2016, p. 280), ainda que a interlocução da profissão com Lukács seja anterior, não há dúvidas de que “no debate da ética, foi inequívoca a recorrência às concepções abrigadas na Ontologia do ser social e em autores que guardavam intensas relações com o pensamento do autor”. . Ao assumir esse diálogo, o Serviço Social brasileiro reafirmou o primado do trabalho como constitutivo do ser social e trouxe, para o centro da sua elaboração ética, o papel dos sujeitos e das suas escolhas, que são determinadas historicamente. Ou, em outros termos, a centralidade da liberdade como valor central.

Dessa forma, o recurso à dimensão ontológica foi fundamental para a compreensão da esfera valorativa na profissão. Isso porque essa perspectiva teórico-metodológica efetiva um movimento incessante de busca da essência dos fenômenos sociais. Podemos dizer que a concepção ética hoje apropriada pelo Serviço Social é legatária de um largo percurso histórico balizado na tentativa racional de entender a realidade e sua dinâmica, e que se inicia na Grécia Antiga e no papel de filósofos como Platão e Aristóteles. Contudo, é somente na constituição da moderna sociedade burguesa que se gestam as condições para que a capacidade humana de conhecer alcance o patamar de uma razão que buscava apreender os fenômenos para além de sua aparência imediata, movimentando o conhecimento para a busca da sua essência.

Coutinho (2010COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.) salienta que o mérito essencial para a virada rumo a essa perspectiva ontológica deve-se a Hegel. Foi esse filósofo alemão quem destrinchou os três núcleos sem os quais não podemos compreender as bases em que se assenta a ontologia do ser social, quais sejam: o Humanismo concreto - como a teoria de que o indivíduo é um produto de sua própria atividade, de sua história coletiva; o Historicismo - como a afirmação do caráter ontologicamente histórico da realidade, com a consequente defesa do progresso e do melhoramento da humanidade; a Razão dialética - que se movimenta por meio de uma racionalidade objetiva que se apresenta sob a forma da unidade dos contrários, e de acordo com o entendimento de que os indivíduos são capazes de apreender essa realidade objetiva.

A perspectiva ontológica do ser social é, pois, nesse sentido, o entendimento concreto e socialmente enraizado da constituição do próprio ser (o ser social) e da sua constituição como gênero humano, a parte da determinação primária, o ato do trabalho. Prevalece a noção de que a sociedade sempre terá uma base natural, visto que, sem a transformação da natureza pelos indivíduos, não há reprodução biológica e, em consequência, não há história humana. O trabalho é o fundamento ontológico da reprodução social, pois a relação humana com a natureza vai se tornando cada vez mais complexa. Nesse processo de complexificação, desenvolvem-se as formas de organizações sociais. E, aqui nesses campos, entram os valores, a linguagem e as ideologias.

Dito de outra forma,

as escolhas e os valores são inerentes as atividades humanas. Sua criação é objetiva e, também, gerada a partir do trabalho. A medida do valor é dada, por sua vez na qualidade e enriquecimento que, em qualquer das esferas e em relação com a situação, a cada momento contribua para o enriquecimento daqueles componentes essenciais do processo de humanização (Heller, 1992HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992., p. 4-5).

A construção do mundo burguês é uma particularidade histórica no desenvolvimento da humanidade. Por ser uma sociedade que se movimenta em torno da propriedade privada dos meios de produção, controla as formas pelas quais se objetiva a reprodução da vida social, de modo que o trabalho se realiza negando suas potencialidades emancipadoras, posto que os indivíduos não mais se reconhecem no seu trabalho como sujeitos.7 7 Marx explicita nitidamente esta compreensão quando analisa que “(...) a atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, e só por isso, ele é um ser genérico. (...). Eis por que a sua atividade é atividade livre. O trabalho estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência” (Marx, 2004, p. 84-85).

Nesse sentido, de uma produção que passa a ser uma produção de objetos estranhos que aparecem aos indivíduos como um poder que os domina, chegamos ao deslocamento dos valores do seu sentido ontológico, pois, não sendo reconhecidos como parte da práxis humana, acabam assumindo a forma fenomênica da sua movimentação, ou seja, os valores, ou melhor, os desvalores são expressão em nossos sentimentos, comportamentos e representações da referência à mercadoria e que são marcadamente individualistas, negadores da liberdade substantiva. É dessa forma que a ética, como dimensão também socialmente determinada, é ao mesmo tempo capacidade de escolha consciente dirigida a uma finalidade e capacidade prática de criar condições para a realização objetiva das escolhas, para que novas escolhas sejam criadas (Barroco, 2010BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 2001.).

A Ética se coloca, então, como uma práxis, supondo, portanto, uma prática concreta e uma reflexão ética crítica.

A reflexão ética possibilita a crítica à moral dominante pelo desvelamento de seus significados sócio-históricos, permite a desmistificação do preconceito, do individualismo e do egoísmo, propiciando a valorização e o exercício da liberdade. Nesse espaço, a moral também pode ser reavaliada em função do seu caráter legal, quando se indaga sobre a validade das normas e deveres, em sua relação com a liberdade, fundamento ético essencial (Barroco, 2010BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 2001., p. 126).

Dessa forma, a compreensão ética é uma conexão enriquecida pelos fundamentos ontológicos, que nos conectam com nossa vida imediata e com dimensões amplas da genericidade humana, em um processo dialético de suspensão, reflexão e retorno. Nas palavras de Cardoso:

No momento em que conseguimos nos reconhecer enquanto seres humano-genéricos realizamos nossa capacidade ética e temos mais possibilidades de vivenciar atitudes éticas que levem em conta o outro. É o momento em que realmente exercemos a liberdade e a alteridade no reconhecimento do eu no outro e do outro em mim (Cardoso, 2013CARDOSO, Priscila Fernanda Gonçalves. Ética e projetos profissionais: os diferentes caminhos do Serviço Social no Brasil. São Paulo: Papel Social, 2013., p. 65).

O caminho que essa concepção de ética coloca para os sujeitos sociais é a necessidade da tomada de posição. E, nesse sentido, é esse horizonte ontológico que baliza os princípios que constituem o projeto profissional da profissão de Serviço Social e que estão sistematizadas no Código de Ética de 1993. De modo que, a partir desses acúmulos, a prospecção tornou-se necessariamente de crítica em face da vida cotidiana, dos moralismos, dos preconceitos e das violações de direitos humanos e da diversidade que a permeiam. É, portanto, esse movimento que possibilita, no âmbito profissional, que a discussão e explicitação dessa forma de entendimento da ética supõe a existência transversal, na formação e exercício profissionais, de eixos valorativos importantes, como é o caso da defesa intransigente dos direitos humanos e do posicionamento em contrário à exploração da força de trabalho e todas as formas de opressão.

Nessa direção, não é uma casualidade que esse projeto de profissão, que traduz a cultura crítica no universo profissional, tenha sido denominado de projeto ético-político, pois a concepção aqui de ética é concreta, se materializa no agir, que carrega, inegavelmente, uma ação, que sempre é política, por isso que deriva de imediato da liberdade um outro importante valor que é o compromisso com a justiça social, a democracia e, consequentemente, contrário a todas as formas de opressão e preconceito (Barroco, 2008BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética: fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez Editora, 2008.). Essa concepção de ética - colocada em diálogo com processos afirmativos avolumados na sociedade brasileira desde a década de 1990 em defesa da diversidade humana, a exemplo do adensamento das requisições dos movimentos LGBTI+, bem como da afirmação da identidade de imensos grupos sociais com a ancestralidade africana e de povos originários no Brasil, aliado à construção, ainda que incipiente, de políticas públicas para essas pessoas - explica o adensamento desses debates no Serviço Social brasileiro, na esteira da promulgação do Código de Ética de 1993 até os dias atuais.

Não há dúvida de que a luta pelo reconhecimento da diversidade humana estava, e está, posta na sociedade, independentemente da concepção ética inscrita no debate do Serviço Social, mas, que teve amplo reconhecimento na profissão em decorrência da hegemonia do Projeto Ético-político do Serviço Social. Podemos, então, afirmar que essa concepção de ética adotada favoreceu a que o Serviço Social incorporasse à sua agenda profissional a questão dos direitos humanos e da diversidade humana em diferentes expressões, em um processo de atenção às lutas e reivindicações, entre outras, no campo racial; feminista; da diversidade sexual, da identidade de gênero e da luta anticapacitista.

Destacamos a contribuição efetiva do CFESS para que o Serviço Social brasileiro explicitasse a defesa dos direitos humanos, provocando a categoria profissional ao entendimento sócio-histórico da constituição das lutas por direitos, suas contradições, conquistas e limites no front da luta de classes (Santos, 2016SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Módulo 3: Ética e Direitos Humanos. In: Ética em Movimento: curso de Capacitação para Agentes Multiplicadores/as. 5. ed. Brasília: CFESS, 2016.). Afinal, durante um bom tempo existiram - e ainda existem - polêmicas na esquerda de considerar que a defesa dos direitos humanos e da diversidade humana ocorre necessariamente em detrimento da apreensão da crítica da economia política e que lutar por direitos é obrigatoriamente reforçar o ideário liberal-burguês (Santos, 2019SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Luta de classes e a questão da diversidade humana: debate atual e perspectivas político-teóricas. In: Trabalho necessário, v. 17, n. 32. Niterói, UFF, 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/28303/16434 . Acesso em: 10 maio 2023.
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).

Na impossibilidade de trazer todos os exemplos, podemos observar a agenda do Conjunto CFESS-CRESS que, a partir de então desenvolveu diferentes ações de combate ao preconceito, como, por exemplo, campanhas contrárias ao racismo; defesa da legalização do aborto; reflexão crítica sobre o uso de psicoativos; atividades contrárias ao capacitismo, bem como ao etarismo e campanha “o amor fala todas as línguas”, com enfoque na livre orientação sexual, e, posteriormente, as ações favoráveis à livre identidade de gênero. O conjunto dessas e de outras iniciativas similares foram materializadas em diversas resoluções do CFESS, que contribuem para objetivar o Código de Ética, como na realização de eventos e na elaboração de material de formação, de tal forma que se espraia e consolida o entendimento de que os direitos humanos devem ser observados na historicidade da organização política das lutas e de sua direção social e não aprioristicamente defini-los como funcionais à reprodução do capital (Santos, 2016SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Módulo 3: Ética e Direitos Humanos. In: Ética em Movimento: curso de Capacitação para Agentes Multiplicadores/as. 5. ed. Brasília: CFESS, 2016.). Aqui, novamente, as contribuições ontológicas sobre a função social do direito e sua relação com a totalidade social é fundamental para superar leituras simplificadoras da realidade. Assim, a defesa de um projeto societário anticapitalista deve contemplar a inserção da diversidade humana e a crítica ontológica aos limites da emancipação política.

No entanto, se estamos nos referindo que vem sendo expressivo o aumento de requisições de diversos sujeitos coletivos e individuais em defesa do reconhecimento da diversidade humana, faz-se necessário atentar que também cresceu o outro lado da questão, ou seja, há uma publicização de um projeto que se reivindica e se intitula de extremamente conservador, muitas vezes em diálogo com ideais neofascistas, contrários a essa mesma diversidade. Exatamente por isso as disputas sobre o direito à liberdade, à justiça social e à diversidade humana estão em confronto no Brasil da atualidade e impactam na profissão, que conforme tratado anteriormente não se trata de um bloco homogêneo. Ademais, o trabalho profissional de assistentes sociais se materializa em instituições que reproduzem requisições para que esses profissionais atuem no controle da classe trabalhadora com a qual interage. Assim, como indica amplamente a produção intelectual da área, assistentes sociais trabalham sobre interesses antagônicos e só podem fortalecer uma classe em detrimento de outra. É nessa direção que a concepção ético-política inaugurada com o Código de Ética de 1993 contribuiu para dar mais concretude ao compromisso com a classe trabalhadora, pois, ao buscar o entendimento sobre as condições de vida e de trabalho da população usuária, em sua diversidade, e ao lidar com movimentos sociais dessa classe em seus diferentes matizes, tem favorecido ir além da aparência das questões vivenciadas.

São muitos nossos desafios contemporâneos para afirmar a direção social do Projeto Ético-político, e o contexto sócio-histórico se constitui em algo fundamental que determina, por um conjunto de mediações, para mais ou para menos, quais são as possibilidades institucionais. Assim, assume relevância o entendimento de que, mesmo com a vitória eleitoral do campo democrático nas eleições de 2022, isso não significa de forma automática que o conservadorismo, de caráter reacionário expresso, sobretudo, no bolsonarismo, se dissolveu. Ao contrário, as forças de direita seguem na disputa ideológica para intensificar a dominação econômica, política e cultural, com o consentimento de amplos segmentos da classe trabalhadora. Esse reacionarismo que põe em xeque a defesa dos direitos do trabalho, a diversidade e os direitos humanos no contexto de um país de capitalismo periférico e dependente é completamente funcional aos interesses da ordem burguesa, pois busca naturalizar formas históricas de opressão que tornam mais rentável a exploração da força de trabalho. Ademais, historicamente, as classes dominantes articulam exploração, opressão e apropriação da classe trabalhadora, notadamente das mulheres. Isso se reatualiza, de forma ainda mais regressiva e decadente, por meio da perspectiva de disciplinar corpos produtivos na afirmação do patriarcado, do racismo, da violação da livre identidade de gênero; da imposição e defesa ideológica da família tradicional e da propriedade. Está politicamente visível que a burguesia não hesita em retroceder, sem o menor pudor, naquilo que a democracia formal da sociedade burguesa conquistou.

A Revista Serviço Social & Sociedade reconhece a relevância teórica, política e social do Código de Ética do/a Assistente Social e comemora 30 anos de sua aprovação, abrindo esta edição para diversas reflexões que adensam o campo da ética, dos direitos humanos e da diversidade humana, com temáticas e contribuições as mais distintas. O objetivo é suscitar reflexão crítica e posicionamentos éticos e políticos, com direção social, sobre o cotidiano e o papel do Estado e das políticas sociais em momentos históricos determinados e nos questionar, de forma permanente, sobre nosso compromisso efetivo com a classe trabalhadora: “que valores e posicionamentos estratégicos continuaremos a defender, considerando o acúmulo teórico-político no entendimento da ética, dos direitos humanos e da diversidade?”.

Referências

  • ABRAMIDES, Maria Beatriz C.; CABRAL, Maria do Socorro Reis. O novo sindicalismo e o Serviço Social São Paulo: Cortez Editora, 1995.
  • BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética: fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
  • BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 2001.
  • BONETTI, Dilséa Adeodata et alli (org.) Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. 13. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2016.
  • BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956 São Paulo: Editora 34, 2006.
  • CARDOSO, Priscila Fernanda Gonçalves. Ética e projetos profissionais: os diferentes caminhos do Serviço Social no Brasil. São Paulo: Papel Social, 2013.
  • COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
  • FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
  • HELLER, Agnes. O cotidiano e a história Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
  • IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil 8. ed. São Paulo: Cortez Editora/ Celats, 1991.
  • MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos São Paulo: Boitempo, 2004.
  • MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte São Paulo: Boitempo, 2011.
  • NETTO, José Paulo. Transformações societárias e Serviço Social: notas para uma análise prospectiva da profissão. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 50, São Paulo: Cortez, 1996.
  • NETTO, José Paulo. Prefácio. In: BONETTI, Dilséa Adeodata et alli (org.). Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis 13. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2012.
  • RAMOS, Sâmya Rodrigues. A mediação da organização política na (re)construção do projeto profissional: o protagonismo do Conselho Federal de Serviço Social Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.
  • SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Módulo 3: Ética e Direitos Humanos. In: Ética em Movimento: curso de Capacitação para Agentes Multiplicadores/as. 5. ed. Brasília: CFESS, 2016.
  • SANTOS, Silvana Mara de Morais dos. Luta de classes e a questão da diversidade humana: debate atual e perspectivas político-teóricas. In: Trabalho necessário, v. 17, n. 32. Niterói, UFF, 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/28303/16434 Acesso em: 10 maio 2023.
    » https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/28303/16434
  • SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro Curitiba: Prismas, 2016.
  • SOUSA, Adrianyce A. Silva; SOUSA, Daniela Neves. Do Congresso da Virada ao projeto ético-político: a maturação da intenção de ruptura. In: Revista Praia vermelha, v. 21, n. 2, jan./jul 2012. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ.
  • 1
    Sousa destaca que existem outras produções, de influência lukacsiana no Serviço Social, e que, historicamente, são anteriores aos debates que se colocam em movimento em relação à dimensão ética e sua apropriação na profissão. A autora demonstra como entre nós o debate lukacsiano se fez sentir e influenciar mais diretamente no debate da ética, a partir da perspectiva ontológica, do que sua influência, no que se refere ao debate do trabalho. Em suas palavras, “o Lukács ‘filósofo’ rebateu mais amplamente que o Lukács ‘ontólogo do trabalho’” (SOUSA, 2016SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro. Curitiba: Prismas, 2016., p. 279). Com base em sua pesquisa, a autora conclui que “é o recurso ontológico ao pensamento marxiano, com a interlocução lukacsiana, que permite a decodificação - para o meio profissional - dos princípios e valores. Sínteses até então conseguidas e aquilo que a profissão (…) começou a encampar como projeto profissional” (Sousa, 2016SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro. Curitiba: Prismas, 2016., p. 280).
  • 2
    A Lei n. 8.662, publicada em 7 de junho de 1993, atual lei de regulamentação da profissão, alterou o nome de Conselhos Federal e Regionais dos Assistentes Sociais para Conselhos Federal e Regionais de Serviço Social. O atual Código de Ética de Assistentes Sociais foi aprovado em 13 de março de 1993. Portanto, durante todo o processo de revisão e publicação do código, o nome correto era o Conjunto CFAS-CRAS. No entanto, para facilitar a leitura, optamos por padronizar para Conjunto CFESS-CRESS, mesmo quando nos referirmos ao Conjunto antes da mudança de seu nome.
  • 3
    Na apresentação do livro Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis, uma iniciativa apoiada pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), as organizadoras destacam: “O debate ético desencadeou-se o mais amplamente possível, contando com a maciça participação da categoria, expressa nas diversas conferências e comunicações apresentadas, bem como por contribuições de profissionais de áreas afins. Esse processo teve início no I Seminário Nacional de Ética (agosto de 1991), tendo continuado no 7o CBAS (maio de 1992, no II Seminário Nacional de Ética (novembro de 1992), em diversos encontros estaduais, e culminando com a aprovação do novo Código de Ética, no XXI Encontro Nacional CFESS/CRESS (fevereiro de 1993). Em março de 1993, entrou em vigor o novo Código (Bonetti et alli, 2012BONETTI, Dilséa Adeodata et alli (org.) Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. 13. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2016., p. 19).
  • 4
    Valor são todas as capacidades desenvolvidas pelo ser na sua relação com o trabalho, que o constitui como ser social: a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. Consequentemente, compreende-se como desvalor que direta ou indiretamente aponte para a regressão dessas conquistas humanas (Heller, 1992HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992., p. 4-5).
  • 5
    Esse tipo de discussão, e sua consequente apropriação, foram inéditos na profissão. Netto, no prefácio da obra de Bonetti et alli (2012BONETTI, Dilséa Adeodata et alli (org.) Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. 13. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2016.), escreveu que cabia na palma de uma mão a produção sobre o tema da ética e indica que tal vácuo se devia a duas hipóteses apontadas por Lúcia Barroco, da qual nos parece que o tempo confirmou mais ainda: a ausência, até então, de uma “sólida fundamentação em filosofia” e, a segunda, a “subsunção da especificidade da ética, seja a imperativos de raiz religiosa (no quadro do tradicionalismo profissional), seja a diretrizes de natureza estritamente ideopolítica (na moldura de um abstrato ‘compromisso com a classe trabalhadora’)” (Netto, 2012NETTO, José Paulo. Prefácio. In: BONETTI, Dilséa Adeodata et alli (org.). Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. 13. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2012., p. 10).
  • 6
    Como aponta Sousa (2016SOUSA, Adrianyce A. Silva de. Lukács e o Serviço Social brasileiro. Curitiba: Prismas, 2016., p. 280), ainda que a interlocução da profissão com Lukács seja anterior, não há dúvidas de que “no debate da ética, foi inequívoca a recorrência às concepções abrigadas na Ontologia do ser social e em autores que guardavam intensas relações com o pensamento do autor”.
  • 7
    Marx explicita nitidamente esta compreensão quando analisa que “(...) a atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, e só por isso, ele é um ser genérico. (...). Eis por que a sua atividade é atividade livre. O trabalho estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência” (Marx, 2004MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 84-85).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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