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Ultraconservadorismo e a “captura” da subjetividade profissional das assistentes sociais no Brasil* * Este artigo é parte das reflexões realizadas no âmbito da minha tese de doutoramento em Serviço Social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob o título Crise do capital, conservadorismo e “captura” da subjetividade profissional: implicações na cultura crítica do Serviço Social, na qual buscamos apreender o movimento das determinações que envolvem o avanço atual do conservadorismo e da “captura” da subjetividade profissional no âmbito do Serviço Social contemporâneo em detrimento do trabalho profissional de acordo com a cultura crítica da profissão.

Ultraconservatism and the “capture” of professional subjectivity of social assistants in Brazil

Resumo:

Este trabalho é fruto da tese de doutoramento em Serviço Social, na busca de apreender o avanço do conservadorismo no Brasil e suas inflexões na “captura” da subjetividade profissional das assistentes sociais. A amostra da pesquisa se constituiu a partir de dados coletados nos anais do XVI CBAS, os quais apontam para o avanço do conservadorismo na sociedade brasileira, e o quanto ele aprofunda fissuras na legitimidade, interpretação, incorporação e materialidade do projeto ético-político.

Palavras-chave:
Serviço Social; Conservadorismo; “Captura” da subjetividade profissional

Abstract:

This work is the result of a doctoral thesis in Social Work, in the quest to understand the advance of conservatism in Brazil and its inflections in the “capture” of the professional subjectivity of Social Workers. The research sample was made up of data collected in the annals of the XVI CBAS, which point to the advancement of conservatism in Brazilian society, and how it deepens fissures in the legitimacy, interpretation, incorporation and materiality of the ethical-political project.

Keywords:
Social Work; Conservatism; “Capture” of professional subjectivity

1. Introdução

O Serviço Social brasileiro, com muitos embates e mudanças, aprofundou seu caminho na direção de uma perspectiva crítica, com valores e princípios que nos desafiam a decifrar a história, a acumular forças políticas e competências profissionais para sua viabilização.

Contudo, é sabido que o Serviço Social sempre esteve embebido na cultura conservadora, mesmo que a partir de meados dos anos 1970/1980 tenha construído uma cultura crítica profissional, que sedimenta hoje o projeto ético-político hegemônico. Entretanto, a ameaça que o conservadorismo atual põe, bem como a ofensiva que carrega, não é a mesma que enfrentou o projeto ético-político nos anos de 1990. Naquele período, o conservadorismo que colide com esse projeto e as conquistas do Serviço Social brasileiro referem-se ao pós-modernismo e ao neoliberalismo, mas com respeito às ações democráticas, à diversidade e à participação.

Dessa forma, abordo aqui um dos tópicos trabalhados em minha tese de Doutorado em Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que é o avanço do conservadorismo no Brasil e suas inflexões na “captura” da subjetividade profissional das assistentes sociais.

Como percurso metodológico, a pesquisa se estabeleceu a partir do método materialista histórico-dialético, exatamente por esse representar o caminho teórico que aponta a dinâmica do real na efervescência de uma dada realidade, em que pese a perspectiva totalizadora.

Nesta pesquisa, priorizamos a análise e a interpretação de dados bibliográficos. Para a coleta e a produção dos dados, nos apropriamos dos subsídios teóricos relacionados a essa temática a partir dos artigos publicados nos anais do XVI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) do ano de 2019. Assim, identificamos as seguintes categorias: precarização do trabalho ;trabalho profissional ;projeto ético-político ;crise do capital , nos títulos dos artigos nos eixos: Trabalho, Questão Social e Serviço Social; Serviço Social, Fundamentos, Formação e Trabalho Profissional; Política Social e Serviço Social. Ainda, durante a identificação dos trabalhos, evidenciamos a relevância de três artigos para nossas análises, tendo em vista o seu título, e o que pudemos confirmar com a leitura prévia do resumo e da introdução. Assim, acrescentamos esses três em nossas análises, os quais se vinculam aos seguintes eixos: Ética, Direitos Humanos e Serviço Social; Movimentos Sociais e Serviço Social; Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Geração e Sexualidade.

Diante dos nossos recortes, chegamos ao seguinte total de trabalhos analisados: oito artigos que trazem a discussão acerca da crise do capital; nove trabalhos que versam sobre a precarização do trabalho; cinco artigos que têm no seu âmago a discussão do projeto ético-político profissional; 13 artigos que apontam análises acerca do trabalho profissional, totalizando 35 artigos analisados.

Para apresentar nossos argumentos, organizamos este trabalho em alguns tópicos para melhor apreensão pelos/as leitores/as: no primeiro momento, apresentamos sucintamente a discussão sobre o avanço do conservadorismo na atualidade; a seguir, discutimos os desdobramentos desse conservadorismo na “captura” da subjetividade profissional das assistentes sociais; e, por fim, apresentamos nossas considerações finais.

2. O avanço do conservadorismo no Brasil

Em uma breve análise sobre o conservadorismo a partir da teoria social de Marx, podemos afirmar que ele não deve ser entendido como um apego a tradições, valores ou pensamentos: o conservador não é aquele que se apega a determinada ideia, gosto, tradição ou valor. O conservadorismo é em si um fenômeno próprio da sociedade burguesa moderna, não corresponde em si ao apego à determinada coisa, ou à ideia de querer conservar determinado gosto, opinião ou tradição.

O conservadorismo convive ao longo da sua existência com várias formas significativas de se expressar: reacionarista; restauração ao passado; irracionalista; racionalista, abstrato-formal e instrumental, próprias das concepções teórico-políticas do funcionalismo, do estruturalismo, do pós-modernismo. Ele vive múltiplas faces, a depender da posição da luta de classes, para assim cumprir uma função político-ideológica própria, que seja compatível com determinado momento econômico; assim, não pode ser considerado um fenômeno homogêneo, pelo contrário, assenta-se em sua complexidade.

Entre 1980 e 2010, a onda conservadora e reacionária que tomou conta praticamente de todo o mundo difere-se na realidade brasileira e, em particular, na profissão, pois aqui se coloca no limiar o amadurecimento acerca das suas dimensões, do seu lugar na divisão sociotécnica do trabalho, e consolidação da cultura crítica profissional.

Noutro ponto, contudo, o conservadorismo que se acirra a partir de 2010 no Brasil é expressão da crise do capital do ano de 2008, a qual se torna mais evidente somente a partir daquele ano. Ele, então, vai de encontro ao projeto ético-político, mostrando-se diferente, intolerante, antidemocrático e antiteórico. Veja que existem por aí teses que refutam veementemente o projeto profissional, teses abertamente opositoras ao projeto ético-político, situação que não era possível no conservadorismo dos anos 1990.

Ao pensarmos, então, em conservadorismo profissional, é necessário relacioná-lo com a atual situação econômica, política, social e ideológica da classe trabalhadora em geral. [...] Estamos em meio à barbárie social, com inúmeros ataques aos direitos trabalhistas, sociais, políticos e humanos. Todos esses elementos levam ao inegável aumento do conservadorismo, por meio da exacerbação do individualismo, da falta de solidariedade, e dos (des)valores. A ausência de perspectiva de vida, sobretudo para a juventude - principal atingida pelo desemprego - relaciona-se com um aumento brutal da violência e da cultura do medo (Bezerra et al., 2019BEZERRA, M. C. E. et al. Crise do capital, barbárie e Serviço Social: desafios ético-políticos da profissão. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...], Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível emDisponível em:http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao . Acesso em: 25 nov. 2021.
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, p. 11).

Essas situações são expressões da onda conservadora que o mundo e o Brasil têm vivido: um avanço do conservadorismo em sua versão mais bárbara. Esse conservadorismo defende o não movimento, a paralisia que serve aos interesses econômicos dos que detêm a riqueza produzida no nosso país, uma riqueza que se dá à revelia do respeito às vidas humanas, à revelia das vidas ceifadas pela miséria. Uma paralisia nociva, porque ela se conjuga como uma sociabilidade carregada de valores opostos à humanidade: os desvalores (Heller, 2004HELLER, A. O cotidiano e a história. 7. ed. Tradução: Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2004.), em que:

A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial (Marx, 2011MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas: Nélio Schneider. Prólogo: Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011. (Coleção Marx-Engels)., p. 25-26).

Ainda se vive uma onda que expressa o movimento de revitalização do conservadorismo na sociedade burguesa, no histórico da sua constituição, como uma das bases de manutenção da ordem capitalista, especificadamente desde os anos de 1848 até os tempos atuais. Diante de um pesadelo que parece comprimir toda e qualquer perspectiva progressista e emancipatória, de um cenário que tem à frente alguém que veste as roupas do passado para atacar os direitos de uma forma ímpar e trazer uma série de ações que concorrem para a exacerbação da barbárie, um governo que evoca as marcas de um passado mais sangrento recente que tem o Brasil, a ditadura civil-militar, fazendo apologia a esse modo de comandar o país, ao crime, à tortura, ao menosprezo pelas vidas humanas ceifadas pelo preconceito, pela criminalização da pobreza, a exemplo de pobres, quilombolas, pretos, indígenas, ribeirinhas, favelados, entre outros.

Nesse sentido, é importante compreender que sob a ideia de continuação da “ordem e do progresso” econômico e social brasileiro, emergem com intensidade e visibilidade diferenciada, perante o cenário brasileiro, as forças reacionárias outrora “silenciosas” da direita e extrema-direita, privilegiando-se do papel de “salvadoras da pátria”, pela “má” administração das forças políticas da esquerda que governaram o país1 1 Essa lógica de fato expressa “um dos pilares unificadores do discurso antipetista, realizado pela oposição de direita e extrema-direita, ancora-se no argumento de que o Partido dos Trabalhadores representaria uma suposta decadência moral, de caráter ‘comunista’, que levaria o país à falência econômica e à ‘desordem’ moral e política” (Souza, 2016, p. 126). E “o Partido dos Trabalhadores, que nunca assumiu o ideal da revolução comunista, havia deposto quase a totalidade de seus ideais progressistas no momento em que definiu a estratégia da conciliação de classes, mediante a ampla concessão aos interesses das classes dominantes brasileiras, agarrando-se e reduzindo seu horizonte aos programas de transferência de renda como bastiões do desenvolvimento econômico com ‘justiça social’. Concessões tão extensivas e intensivas que seria possível estabelecer a imagem segunda a qual o Partido dos Trabalhadores cumpriu a função de ‘gestor do capital por procuração’ [...], já, por outro lado, tenhamos também críticas, sempre assertivas, das ‘esquerdas que não abriram mão da estratégia revolucionária de superação da ordem do capital, ou até mesmo dos setores progressistas que não mergulharam no fisiologismo petista’” (Souza, 2016, p. 133 e 275). (formada fundamentalmente pelo Partido dos Trabalhadores - PT - e pelo Partido Comunista do Brasil - PCdoB) e dos “inimigos do desenvolvimento” que governaram os países nas últimas décadas.

O discurso conservador que ganha adesão crescente defende a falsa ideia de que, ao combater, eliminar, restringir, encarcerar, criminalizar, reprimir e cercear direitos aos supostos “inimigos da sociedade” restariam automaticamente destravados os rumos da prosperidade e desenvolvimento para a população que adere ao projeto conservador de desenvolvimento. O conservadorismo e a extrema-direita não conhecem a tolerância e não reconhecem outra forma de enfrentamento dos problemas a não ser a coerção mediante violência, em suas variadas formas (Souza, 2016SOUZA, J. Tendências ideológicas do conservadorismo. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016., p. 223).

Esse conservadorismo é de novo tipo, com novas expressões, sob o qual ainda sabemos muito pouco, sendo recente, e, sobretudo, nos desafia a entender e estudar mais sobre a relação entre o Serviço Social e esse conservadorismo, que parece ter convergências com o conservadorismo clássico e moderno. O que nos parece de tão novo nesta nova forma do conservadorismo é sua conotação reacionária, tendo em vista que nem todo conservadorismo é reacionário. Veja aquele que convive com formas democráticas e aqueles que, em tempos de acirramento da crise, buscam a saída pela violência, pela coação e pela coerção; mostram-se como ofensiva aos direitos e, com certeza, aos avanços do Serviço Social brasileiro, tendo se tornado “subsídio político/ideológico, sobretudo a partir das pautas morais e é utilizado como forma de garantir a coesão social” (Moreira, 2019MOREIRA, A. S. A. Crise do capital e avanço do conservadorismo como estratégia ideopolítica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao . Acesso em: 25 nov. 2021.
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, p. 4).

[...] o conservadorismo avança a nível mundial como estratégia político-ideológica de conservação da estrutura de classes. A extrema-direita tem dado suporte a esse processo e fomenta o avanço das pautas moralistas que ferem não somente as conquistas da classe trabalhadora no campo dos direitos, mas também a própria vida de populações historicamente estigmatizadas como imigrantes, negros/as, mulheres e LGBT’s (Moreira, 2019MOREIRA, A. S. A. Crise do capital e avanço do conservadorismo como estratégia ideopolítica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao . Acesso em: 25 nov. 2021.
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, p. 2).

A ofensiva desse conservadorismo é um componente ligado à cultura política da sociedade capitalista recente. Então, o conservadorismo assume novos determinantes, não mais apenas no sentido tradicionalista, nostálgico do passado, com viés católico, ele é sobrepujado pela religiosidade de raiz evangélico-protestante, mais afinado com o espírito do capitalismo, da fraternidade e da prosperidade. O governo de extrema-direita de Bolsonaro se mostrou moderno, usou redes sociais, autoritário, violento, racista, LGBTfóbico, machista, xenófobo e ultraneoliberal, com traços neofascistas, estimulou a organização da militância conservadora inspirada no modelo norte-americano de ação política desencadeada por Donald Trump (presidente dos Estados Unidos entre janeiro de 2017 a janeiro de 2021), recusou-se a debates racionais em face da defesa do armamento da população, da descriminalização do aborto, reprimiu a discussão de gênero e da diversidade sexual nas escolas e, até mesmo, o marxismo cultural2 2 Sabemos que o marxismo cultural já é uma deturpação dos escritos de Marx, mas o apontamos aqui como forma de demonstrar que os contornos ideopolíticos conservadores vêm se apoiando em qualquer crítica ao nome marxismo, comunismo, socialismo, esquerda, mesmo sem entender o que de fato essas categorias são na realidade concreta. nas universidades.

Um conservadorismo ultrarreacionário, que trouxe marcas e características próprias, flertando com ideias fascistas, nazistas, que se assumiu conservador, e deu visibilidade social e política a isso. Esse conservadorismo germina no Brasil desde o golpe contra Dilma Rousseff, e se consolida e se legitima na sociedade com a eleição de Jair Bolsonaro. Tem como base material a força política da “nova direita”, e se expõe orgulhosamente como conservador, destilando seu ódio contra pobres, negros, LGBT’s, mulheres, quilombolas, indígenas, ou seja, contra a diversidade humana, em prol da defesa da família tradicional, a defesa da tradição e do livre mercado.

A marca dessa expressão do conservadorismo, denominada de ultraconservadorismo, parece mesclar elementos de um conservadorismo clássico, com algumas premissas difundidas por Burke (1982BURKE, E. Reflexões sobre a revolução em França. Brasília: Editora UnB, 1982.) com elementos próprios da realidade recente, já que a depender da dinâmica da luta de classes, o conservadorismo pode ter uma feição reformista ou uma versão reacionária. O Brasil viveu, então, no seu governo recente, a feição reacionária, remetendo-nos à concepção de conservadorismo defendida por Burke (1982BURKE, E. Reflexões sobre a revolução em França. Brasília: Editora UnB, 1982.).

No trato dos dados coletados, é possível, desse modo, identificar algumas expressões próprias desse ultraconservadorismo na sociedade brasileira, mas que penetra a cultura profissional de forma bastante incisiva. Podemos, assim, inferir que esse “novo” conservadorismo é, portanto, fundamentalmente religioso, com traço marcadamente neopentecostal empresarial; também vem centrado numa concepção tradicional de família; alimenta o irracionalismo frente à racionalidade; flerta com o neofascismo e o autoritarismo, com verdadeira apologia à violência; conjuga-se ao ultraneoliberalismo para atacar as políticas sociais. Resumidamente, ele é um conservadorismo de caráter reacionário que aprofunda a barbárie social.

Esse conservadorismo cumpre uma função muito específica: a compatibilidade com as políticas ultraneoliberais, que busca naturalizar a barbárie, sendo fundamental para que a reprodução ampliada do capital se dê derruindo todos os obstáculos ao avanço da lógica de valorização do valor, atacando os direitos e assumindo sua face mais bárbara.

Também se mostra sincrético ao mesclar elementos do conservadorismo burkeano a elementos de uma ideologia moderna, de apelo ao empreendedorismo, de empoderamento e de meritocracia neoliberal. Ele se utiliza das redes sociais, com formas altamente tecnológicas modernas para se entronizar na sociedade, além de se sustentar em estruturas religiosas que funcionam como verdadeiras empresas, disseminando um fundamentalismo religioso que, através da teologia da prosperidade, aloca a ideia da fé para a conquista de bens materiais, como ganho e satisfação da vontade de Deus.

Sendo assim, esse conservantismo sustenta-se em sua objetivação de primeira ordem, na reestruturação produtiva do capital, em suas diversas estratégias, tais como: neoliberalização econômica; financeirização da economia - donde se cria uma riqueza que não tem a produção como base de sustentação -; expansão e acumulação de capitais; reforço das contrarreformas operadas no âmbito do Estado - com a sustentação de um Estado sem restrições aos ditames do mercado, configurando-se como mero gestor da crise, capaz de coagir o conjunto das classes subalternas.

É nesse contexto que se coloca um projeto conservador que disputa e aquiesce a subjetividade das profissionais assistentes sociais, implicando as condições mais concretas do seu cotidiano, seja no âmbito da vida social, seja na particularidade da vida profissional, reforçando uma lógica de decadência moral e ética das mais variadas dimensões da vida social. O conservadorismo, então,

[...] uma vez mais é utilizado como instrumento do capitalismo e de seu projeto de destruição via exploração. Assim, figuras como Jair Bolsonaro são peças fundamentais para o convencimento e a adesão social às mudanças necessárias à apropriação capitalista. Essa via do moralismo, em detrimento da perspectiva de direitos, empreendida como forma de conformação, não pode ser pensada fora das determinações sócio-históricas do país pela qual ela se realiza. Apontamos isso para dizer que, a insurgência, com maior incisão dos aspectos morais, não se desconecta com as formas pelas quais se constituiu historicamente a sociabilidade brasileira (Moreira, 2019MOREIRA, A. S. A. Crise do capital e avanço do conservadorismo como estratégia ideopolítica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao . Acesso em: 25 nov. 2021.
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, p. 10).

O trabalho profissional das assistentes sociais não está imune às nuances do conservadorismo atual, como nunca estiveram. Hoje, essas questões chegam com bastante intensidade às assistentes sociais, com implicações concretas na realização do seu trabalho, tendo em vista o atendimento aos interesses da instituição que, em última instância, está atrelado aos interesses do capital em crise, fomentos para a “captura” da subjetividade das assistentes sociais, como abordaremos no próximo tópico.

3. A “captura” da subjetividade profissional das assistentes sociais como ofensiva ao projeto ético-político do Serviço Social

Vale salientar que, ao utilizarmos a categoria analítica “captura” da subjetividade entre aspas, é no sentido de apontar o seu componente problemático no movimento de “captura”, como o termo, primariamente, pressupõe. Assim, estamos lidando com uma concepção que envolve tanto as resistências quanto as lutas individuais e/ou coletivas da classe trabalhadora, aqui, em específico das assistentes sociais, já que entendemos que essa é uma realidade que envolve o ser social, em sua totalidade objetiva e subjetiva, por parte das múltiplas determinações do capital.

Enfim, o processo de “captura” da subjetividade do trabalho vivo é um processo intrinsecamente contraditório e densamente complexo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e de manipulação não apenas no local de trabalho, por meio da administração pelo olhar, mas nas instâncias sociorreprodutivas, com a pletora de valores-fetiche e emulação pelo medo que mobiliza as instâncias da pré-consciência/inconsciência do psiquismo humano (Alves, 2011ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 114, grifo do autor).

As profissões são recrutadas pelo mercado de trabalho que as requisitam, passam a ocupar lugares específicos na divisão sociotécnica do trabalho, bem como na divisão sexual e étnico-racial. O/a trabalhador/a está diante de um novo e precário mundo do trabalho, com a explosão do desemprego estrutural em escala global e aumento da taxa de informalidade. Essa nova forma de trabalho assalariado atinge tanto a materialidade quanto as formas de subjetivação do trabalho na consciência dos/as trabalhadores/as, e tem impactos profundos na dinâmica das relações singular, política e na afirmação de identidades coletivas.

A alienação, em suas determinações objetivas, abrange também a subjetividade humana, com forte carga afetivo-emocional, de modo a atingir os indivíduos em suas dimensões psicológicas. Nesse sentido, segundo Iasi (1999IASI, M. L. Processo de consciência. São Paulo: CPV, 1999., p. 24), “a ideologia agirá sobre esta base e se servirá de duas características fundamentais para exercer uma dominação que, agindo de fora para dentro, encontra nos indivíduos um suporte para que estabeleça-se (sic) subjetivamente”. Assim, as relações sociais em que as assistentes sociais estão inseridas reforçam e comprovam aparentemente a validade das formulações socioprofissionais destituídas da cultura crítica, a qual tende a reproduzir a realidade alienada, conjugada aos interesses institucionais.

Na sociabilidade do capital, a alienação assume proporções estratosféricas, visto que ela não se resume ao processo de estranhamento da produção material, mas sim de toda a dimensão humana, seja subjetiva, seja objetiva. A produção da riqueza humana (material e espiritual), que deveria ser apropriada coletivamente pelos indivíduos em sua dimensão singular, é apropriada de forma privada, predominantemente, por aqueles que detêm os meios de produção. Aqui, o próprio resultado das ações humanas passa a adquirir certo poder sobre o sujeito, e a aparência da realidade se apresenta ocultando as mediações, as contradições.

Nesse contexto, o que se nota é a intensificação da precarização do trabalho profissional, expressa mais diretamente no rebaixamento salarial; na degradação de toda e qualquer forma de garantia legal em torno dos direitos do trabalho; na ampliação da jornada diante de condições deletérias de trabalho, dentre outras mediações que contribuem para a “captura” da subjetividade das assistentes sociais.

O processo de precarização do trabalho no capitalismo global atinge a “objetividade” e a “subjetividade” da classe dos trabalhadores assalariados. O eixo central dos dispositivos organizacionais (e institucionais) das inovações organizacionais do novo complexo de reestruturação produtiva é a “captura” da subjetividade do trabalho pela lógica do capital. É a constituição de um novo nexo psicofísico capaz de moldar e direcionar ação e pensamento de operários e empregados em conformidade com a racionalização da produção. [...] Na nova produção do capital, o que se busca “capturar” não é apenas o “fazer” e o “saber” dos trabalhadores, mas a sua disposição intelectual-afetiva, constituída para cooperar com a lógica da valorização. O trabalhador é encorajado a pensar “pró-ativamente” e a encontrar soluções antes que os problemas aconteçam (o que tende a incentivar, no plano sindical, por exemplo, estratégias neocorporativistas de cariz propositivo) (Alves, 2011ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 111).

Isso ocorre porque o trabalho aliena-se do próprio homem e parece operar-se em si mesmo. É como se o trabalho ganhasse vida própria; contudo, esse processo é determinado pelo conjunto das relações sociais que se estruturam, hoje, por meio da informalização do trabalho e da mercantilização dos seres sociais. Com isso, o trabalho passa a controlar os sentimentos humanos e o sujeito só se insere nesse processo para garantir a sua finalidade (a do trabalho capitalista), que nessa sociabilidade é a garantia da exploração da força de trabalho, na perspectiva de cada vez mais valorizar o capital.

As formas de fetichizações e reificações vêm se multiplicando no mundo do trabalho e aumentando suas implicações na vida dos sujeitos fora do campo do trabalho, ou seja, na esfera da reprodução social, a qual também está enormemente medida e estruturada pelo capital. Dito de outra maneira, essas determinações da sociabilidade do capital têm impactado diretamente tanto o campo objetivo quanto subjetivo da vida do trabalhador.

Os serviços e as instituições organizados pelo Estado também são impactados por essa lógica, e como espaço privilegiado de atuação profissional de assistentes sociais são incorporados pelos processos de privatização e mercantilização, como nicho de hipervalorização do capital em tempos ultraneoliberais. Por isso, a organização do trabalho no campo desses serviços também está acometida pelo espírito da gestão toyotista e flexível, não se distanciando de como tem se dado o trabalho na esfera da produção capitalista. É próprio dessa nova direção dada ao Estado o aguçamento do:

[...] seu papel político para atender prioritariamente aos interesses do capital em detrimento do atendimento às necessidades humanas, [incidindo] cada vez menos na perspectiva dos direitos e mais na lógica do mercado com sua ânsia de eficácia e produtividade (Santos, 2010SANTOS, S. M. de M. dos. O CFESS na defesa das condições de trabalho e do projeto ético-político profissional. Serviço Social & Sociedade , São Paulo: Cortez, n. 104, p. 695-714, out./dez. 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/nPRx8MCdCyH4sHY8zbm9gQp/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 14 out. 2021.
https://www.scielo.br/j/sssoc/a/nPRx8MCd...
, p. 701).

Essas incidências adquirem uma complexidade própria no âmbito do trabalho das assistentes sociais, visto que trazem graves e sombrias determinações no conteúdo do trabalho profissional, através, por exemplo, da padronização de rotinas diretas, de protocolos e de atividades que podem subtrair a relativa autonomia técnica e política da profissional. Essa lógica do espírito toyotista e flexível, mais consensual, envolvente, participativa e mais manipulatória,

[...] tem-se disseminado não apenas na produção do capital, mas nas instâncias sociorreprodutivas que estão envolvidas diretamente na construção do novo modo de subjetivação estranhada. Ao lado das inovações técnico-organizacionais do complexo de reestruturação produtiva, desenvolvem-se inovações sociometabólicas. [...] Por isso, a “captura” da subjetividade do trabalho pela lógica do capital tende a ocorrer no campo da reprodução social, com valores-fetiche e disposições sociometabólicas que sedimentam os consentimentos espúrios (Alves, 2011ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 121).

Em síntese, essas tendências são resultantes do conjunto de estratégias capitalistas que sempre buscam novos espaços de valorização do valor. Avançam na mercantilização de serviços, dentre eles, os sociais e os serviços da esfera da reprodução social, invadindo todos os poros dos possíveis valores de uso, transformando esses processos em mercadorias.

À vista disso, as práticas profissionais vinculadas aos serviços públicos vêm se transformando em matéria-prima para a expansão do capital, sobretudo porque as profissões, dentre elas, a do Serviço Social, estão sendo subsumidas aos imperativos do capital, passando pelo processo de rotinização e padronização para posterior mercantilização dos seus respectivos conhecimentos, habilidades e competências profissionais.

Esses elementos adentram a realidade profissional das assistentes sociais, na qual a “captura” da subjetividade dessas sujeitas vem se colocando como uma ofensiva à cultura profissional crítica que, na história da profissão, pelo menos desde os anos 1970/1980, é engrenagem de um projeto profissional com vinculação orgânica com os movimentos populares e sociais no campo da esquerda, orientada por diretrizes anticapitalistas, libertárias e humanamente emancipadas.

Assim, um obstáculo real ao exercício profissional consoante ao projeto ético-político do Serviço Social é a crise do capital,3 3 Essa crise pode ser explicada pela “disfuncionalidade da lógica do capital fictício para a acumulação do capital total; ou seja, as raízes da atual crise do capitalismo são encontradas nas contradições próprias do capitalismo, aprofundadas pela sua dinâmica de acumulação na contemporaneidade” (Carcanholo, 2018, p. 28). Conferir também Mészáros (2010). com suas manifestações ultraconservadoras e ultraneoliberais, que precarizam o trabalho profissional e “capturam” a subjetividade das assistentes sociais, com expressões deletérias no campo do trabalho e da vida da profissional. Dentre os obstáculos identificados no material analisado na pesquisa, destacamos:

[...] fragilidade nas condições éticas e técnicas do exercício profissional [...]; exigência de profissionais cada vez mais polivalentes [...]; aumento de cobrança para maior domínio dos processos técnico-operativos em detrimento da dimensão formativa, investigativa, teórico-metodológica e ético-política, tendenciando a levar a atividade profissional a mera burocratização; ampliação da direcionalidade/controle/domínio do processo de trabalho dos profissionais por parte de suas chefias imediatas e equipes multiprofissionais; restauração de práticas neoconservadoras, diante da não possibilidade de enfrentar as correlações de forças políticas e os crescentes autoritarismos institucionais das instâncias hierárquicas; intensificação do trabalho frente aos cortes orçamentários [...]; possibilidade, diante de todas essas limitações, de restauração de práticas de assistencialização da pobreza [...]; ampliação da virtualização do trabalho pós-término das jornadas de trabalho [...]; precarização que não está ancorada apenas nas condições estruturais, ético-técnica do trabalho, mas, além disso, se vinculam aos desgastes psíquicos, emocionais, relacionais e situacionais das condições de atendimento (Fernandes; Oliveira, 2019FERNANDES, L. da N.; OLIVEIRA, C. A. H. da S. A precarização em movimento: expressões dos seus avanços no trabalho dos/as assistentes sociais nos IFET’s. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTE SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao . Acesso em: 25 nov. 2021.
http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/a...
, p. 9-10, grifo das autoras).

[...] desregulamentação profissional e, consequentemente, no perfil construído pela categoria [...]. Diante da precarização dos processos de trabalho, as antigas e novas tensões e demandas do mercado e das instituições estão presentes no exercício profissional, refletidos principalmente nas condições éticas e técnicas do trabalho profissional (Souza; Dias, 2019SOUZA, R. C.; DIAS, J. N. A precarização dos processos de trabalho e os desafios de materialização do Código de Ética do Serviço Social: um estudo a partir da comissão de orientação e fiscalização do Conselho Regional de Serviço Social - 1ª Região. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao . Acesso em: 25 nov. 2021.
http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/a...
, p. 10).

[...] inserção numa instituição gerida por uma empresa privada, o que limita suas ações. Entende-se isso devido à fragilidade do vínculo a que estão expostas as profissionais. Vale destacar que as Assistentes Sociais ali inseridas correm risco de ficar desempregadas, por terem uma vinculação contratual informal (Silva et al., 2019SILVA, S. S. et al. Transformações no mundo do trabalho e os impactos no Serviço Social: precarização das condições de trabalho das(os) assistentes sociais no Hospital Regional de Santo Antônio de Jesus, BA. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao . Acesso em: 25 nov. 2021.
http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/a...
, p. 8).

O processo de intensificação e de precarização do trabalho de forma geral, e na particularidade do serviço público, espaço sócio-ocupacional em que as assistentes sociais estão inseridas majoritariamente, carrega em si novos desafios que reavivam práticas profissionais no campo mais conservador da profissão, como ações de tutela, coerção e convencimento.

Quando esses traços se mesclam aos ditames do ideário gerencial, com o abandono da razão e/ou forjados numa racionalidade abstrato-formal e/ou instrumental, a tendência profissional é a de utilização de técnicas e instrumentos profissionais que mobilizem o campo da subjetividade e a passivação do/a trabalhador/a e de si próprio/a, como conceber que “na prática a teoria é outra”; assumir as diretrizes da instituição e das políticas sociais como respostas profissionais, sem a interlocução com os fundamentos do projeto ético-político profissional; é a reprodução de tendências conservadoras da dimensão ético-política. Convergem, portanto, num caminho perene à “captura” da subjetividade profissional e dos usuários.

A profissão está cercada de uma brutal retomada da tecnificação, cuja tendência é extrair a dimensão político-pedagógico-formativa, seja no âmbito do exercício dos direitos, no acesso a bens, seja na incorporação de novas necessidades das classes trabalhadoras e subalternas à proteção social pública, elementos que rotinizam e reduzem o trabalho profissional à mera execução de tarefas.

O Serviço Social sofre, portanto, uma dupla determinação: a confluência da mercantilização do serviço público; e as novas demandas do trabalho, ocasionadas pela pandemia, o que tende a levar à regressão no âmbito da profissão por meio da ampliação da dimensão anti-intelectual e de uma racionalidade instrumental, traduzida no ensino do saber fazer, associada à revalorização da empiria e do pragmatismo, e à aversão da dimensão e da maturação intelectual da profissão.

O maior desafio apontado diante desse contexto é que a tecnificação galga outro patamar objetivo no âmbito da profissão, por força dos mecanismos de padronização e das tecnologias de informação e comunicação, de tal modo que o saber, o conhecimento e a experiência profissional são apropriados pelo capital, criando uma perversa forma de alienação do saber profissional, com forte tendência de alienação também da relativa autonomia profissional.

4. Considerações finais

Pode ser uma afirmação bastante polêmica, mas aqui foi possível observar que estamos diante de um tempo adverso à manutenção, quiçá ao avanço do projeto ético-político do Serviço Social, tendo em vista os elementos objetivos e subjetivos em que se dá o trabalho profissional, com forte tendência à “captura” da subjetividade profissional, por meio de um conjunto de elementos que caminham em uma única direção: repor as taxas de lucratividade do capital, nem que para isso a barbárie humana seja a saída.

Ademais, o aprofundamento da precarização do trabalho implicou formas específicas de “captura” da subjetividade profissional, as quais se expressam no trabalho das assistentes sociais de diferentes maneiras, dentre elas: dificuldades no entendimento da relação teoria e prática; esgarçamento da cultura crítica em prol da subsunção real das demandas profissionais às demandas institucionais; ampliação das tendências conservadoras sobre a concepção ético-política da profissão.

Temos, portanto, um ambiente de tensão na disputa pela direção social das respostas profissionais, que refletem o agravamento da questão social; as dificuldades subjetivas de elaboração da crítica sócio-histórica às relações sociais capitalistas; e as implicações do conservadorismo e da crise do capital na organização e no reconhecimento dos direitos da classe trabalhadora. Mas, se identificamos que a subjetividade profissional não é uma redoma indiferente ao tempo de decadência material e ideológica, não é também algo uniforme. No confronto entre projetos profissionais, convivem subjetividades “capturadas” pela lógica e pelo éthos dominante, e subjetividades que participam e fortalecem processos de resistência. A tendência regressiva em curso coloca desafios cotidianos ao projeto ético-político do Serviço Social brasileiro em sintonia com a defesa dos interesses econômicos, políticos e culturais da classe trabalhadora.

Então, estou convencido de que os esforços que temos pela frente devem ser coletivos, no âmbito mais geral da classe trabalhadora, não somente no campo da profissão em si, pois o nosso projeto ético-político se vincula à cultura crítica dos valores da classe trabalhadora, o que nos legitima a lutar pela ampliação de condições dignas de vida e de trabalho nos espaços coletivos e/ou individuais em que nos inserimos. Ou seja, a mudança dessa realidade depende mais dos esforços coletivos empreendidos no campo mais geral da sociedade que no campo particular da categoria profissional, mas sem deixar de considerar a participação da categoria nesses esforços.

Referências

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  • MÉSZÁROS, I. A atualidade da ofensiva socialista: uma alternativa radical ao sistema. São Paulo: Boitempo, 2010.
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  • SILVA, S. S. et al Transformações no mundo do trabalho e os impactos no Serviço Social: precarização das condições de trabalho das(os) assistentes sociais no Hospital Regional de Santo Antônio de Jesus, BA. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao Acesso em: 25 nov. 2021.
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  • SOUZA, J. Tendências ideológicas do conservadorismo 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.
  • SOUZA, R. C.; DIAS, J. N. A precarização dos processos de trabalho e os desafios de materialização do Código de Ética do Serviço Social: um estudo a partir da comissão de orientação e fiscalização do Conselho Regional de Serviço Social - 1ª Região. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 16., 2019, Brasília. Anais [...]. Brasília: ABEPSS; CFESS; ENESSO; CRESS, 30 out. a 3 nov. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao Acesso em: 25 nov. 2021.
    » http://www.cbas.com.br/portal/conteudo/apresentacao
  • *
    Este artigo é parte das reflexões realizadas no âmbito da minha tese de doutoramento em Serviço Social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob o título Crise do capital, conservadorismo e “captura” da subjetividade profissional: implicações na cultura crítica do Serviço Social, na qual buscamos apreender o movimento das determinações que envolvem o avanço atual do conservadorismo e da “captura” da subjetividade profissional no âmbito do Serviço Social contemporâneo em detrimento do trabalho profissional de acordo com a cultura crítica da profissão.
  • 1
    Essa lógica de fato expressa “um dos pilares unificadores do discurso antipetista, realizado pela oposição de direita e extrema-direita, ancora-se no argumento de que o Partido dos Trabalhadores representaria uma suposta decadência moral, de caráter ‘comunista’, que levaria o país à falência econômica e à ‘desordem’ moral e política” (Souza, 2016SOUZA, J. Tendências ideológicas do conservadorismo. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016., p. 126). E “o Partido dos Trabalhadores, que nunca assumiu o ideal da revolução comunista, havia deposto quase a totalidade de seus ideais progressistas no momento em que definiu a estratégia da conciliação de classes, mediante a ampla concessão aos interesses das classes dominantes brasileiras, agarrando-se e reduzindo seu horizonte aos programas de transferência de renda como bastiões do desenvolvimento econômico com ‘justiça social’. Concessões tão extensivas e intensivas que seria possível estabelecer a imagem segunda a qual o Partido dos Trabalhadores cumpriu a função de ‘gestor do capital por procuração’ [...], já, por outro lado, tenhamos também críticas, sempre assertivas, das ‘esquerdas que não abriram mão da estratégia revolucionária de superação da ordem do capital, ou até mesmo dos setores progressistas que não mergulharam no fisiologismo petista’” (Souza, 2016SOUZA, J. Tendências ideológicas do conservadorismo. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016., p. 133 e 275).
  • 2
    Sabemos que o marxismo cultural já é uma deturpação dos escritos de Marx, mas o apontamos aqui como forma de demonstrar que os contornos ideopolíticos conservadores vêm se apoiando em qualquer crítica ao nome marxismo, comunismo, socialismo, esquerda, mesmo sem entender o que de fato essas categorias são na realidade concreta.
  • 3
    Essa crise pode ser explicada pela “disfuncionalidade da lógica do capital fictício para a acumulação do capital total; ou seja, as raízes da atual crise do capitalismo são encontradas nas contradições próprias do capitalismo, aprofundadas pela sua dinâmica de acumulação na contemporaneidade” (Carcanholo, 2018CARCANHOLO, M. D. A Crise do Capitalismo Dependente Brasileiro. In: MACÁRIO, E. et al. (org.). Dimensões da Crise Brasileira: dependência, trabalho e fundo público. Fortaleza: EdUECE; Bauru: Canal 6, 2018., p. 28). Conferir também Mészáros (2010MÉSZÁROS, I. A atualidade da ofensiva socialista: uma alternativa radical ao sistema. São Paulo: Boitempo, 2010.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2024
  • Aceito
    15 Mar 2024
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