Acessibilidade / Reportar erro

Abuso sexual intrafamiliar, as Varas da Família e os meandros da perícia social em Serviço Social

Intrafamilial sexual abuse, Family Matters Courts and the intricacies of forensics in Social Work

Resumo:

A intervenção de assistentes sociais em situações de abuso sexual intrafamiliar carece de sistematização, contemplando as mediações históricas fundamentais que perfazem as particularidades dessa atuação. A presente análise faz aproximações à interlocução do Direito e do Serviço Social, na especificidade das exigências das Varas da Família e dos desafios postos à perícia social em Serviço Social na complexidade da violência sexual, sexualidade e família. Os achados da análise empreendida apontam que é pela apreensão da sociabilidade familiar que podem emergir aspectos da violência e suas manifestações.

Palavras-chave:
Abuso sexual intrafamiliar; Perícia em Serviço Social; Sexualidade

Abstract:

The intervention made by social workers in situations of intrafamilial sexual abuse lacks a systematization that takes into account the fundamental historic mediations that characterize the particularities of such circunstances. This analysis establishes links between the Law and Social Work, in the specificities required by Family Matter Courts and the challenges presented to Forensics in Social Work within the complexity of sexual violence, sexuality and family. Findings from the analysis show that aspects of violence and its manifestations can surface when we apprehend family sociability,

Keywords:
Intrafamilial sexual abuse; Forensics in Social Work; Sexuality

Introdução

É contemporânea a perspectiva de que as violações dos direitos de crianças e adolescentes se colocam como perpetração de violência contra a noção de infância e juventude, como fonte potencial de esperança e reparação futura de cada sociedade. Vale notar que é recente na história deste país o reconhecimento dos direitos humanos de crianças e adolescentes e é ainda mais corrente o reconhecimento do direito humano de sua dignidade sexual.

O abuso sexual intrafamiliar é um fenômeno multicausal que se coloca no cotidiano das famílias, é ordinário e não extraordinário, como faz crer o imaginário social.

No imaginário social, é universal a repulsa à prática sexual entre adultos e crianças, sendo potencializada quando realizada por parentes próximos. Na construção das falácias em torno da violência sexual contra crianças e adolescentes, aquele que perpetra a violência é sempre o “outro”, o de “fora”, o “estranho perigoso” facilmente reconhecido por suas características étnico-raciais, de classe e de expressão da identidade de gênero e/ou orientação sexual.

Todo o arcabouço de convenções, leis, estatutos, políticas públicas de enfrentamento e prevenção e os dados produzidos a partir das denúncias que envolvem o abuso sexual intrafamiliar favorecem novas formas de sociabilidade, viabilizadas por campanhas na mídia e pela circulação de informações que desvelam o real perfil identitário do abusador como aquele próximo e de confiança da criança e da família. Não raro, como revelam as estatísticas, pai, avó, tio, desestabilizando lares e o espaço sagrado e idealizado da família.1 1 Dados do Balanço disque 100: comparativo entre 2018 e 2019.

É na interlocução entre o Direito de Família e o Serviço Social, na especifidade das perícias sociais realizadas nas Varas da Família, que vão sendo forjadas novas formas de compreensão das relações que envolvem a conjugalidade, a parentalidade e a família, ora de maneira idealizada e romantizada, difundida como categorias perfeitas e universais pela ideologia burguesa; ora apropriadas em sua concretude, articulando a singularidade da relação familiar à universalidade da sociabilidade capitalista, reconhecendo a parentalidade e a conjugalidade no entrelaçamento da objetividade da vida e na performação da subjetividade, em resumo saturadas em formas sociais que tanto contribuem para o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes quanto se tornam um lócus privilegiado de perpetração de violência, com destaque para o abuso sexual intrafamiliar.

Os/as assistentes sociais como peritos/as realizam o estudo social e o objetivam em laudo e parecer social em casos que envolvam denúncias de abuso sexual intrafamiliar nas Varas da Família. Ainda que essa seja uma demanda sempre revestida por outra no Direito de Família, por exemplo, a guarda, o regime de convivência, a tutela, a curatela e a denúncia de violência sexual, pode figurar logo nas petições iniciais ou no decorrer da tramitação do processo.

A presente proposição visa chamar a atenção e problematizar o caráter socialmente fabricado das categorias - pai, mãe, casamento, família -, das regras -melhores condições do exercício da guarda, regime de visitas (e não de covivência)2 2 Em consonância com a campanha de conscientização para que o termo “regime de visitas” seja substituído por “regime de convivência”, o qual tem por objetivo promover a construção de relação mais forte e afetiva, e reafirmar a importância da maternidade e da paternidade responsáveis, promovida pela Comissão Especial de Direito de Família e das Sucessões, da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo - OAB-SP. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8472/Campanha+pretende+alterar+%22regime+de+visitas%22+para+%22regime+de+conviv%C3%AAncia%22+. Acesso em: 18 abr. 2022. -, dos critérios de análise da realidade social dos sujeitos do estudo social, dos padrões de sensibilidade que forjam a sociabilidade dos/das assistentes sociais e das estratégias de intervenção frequentemente tensionadas pelas requisições conservadoras postas pelo Direito ao Serviço Social.

É na relação dialética entre as vivências familiares singulares e a universalidade da sociedade capitalista e suas estruturas de produção de desigualdades, com ênfase na classe, na raça-etnia e no gênero, que a construção social da categoria abuso sexual intrafamiliar pode ser compreendida como a sociabilidade do enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, num longo processo de seu reconhecimento como “sujeitos de direitos”, de sua dignidade sexual e de sua condição de ser peculiar em situação de desenvolvimento.

Este artigo apresenta alguns achados da pesquisa que teve como objetivo analisar a particularidade da perícia social em Serviço Social em casos de abuso sexual intrafamiliar, na especificidade das Varas da Família e Sucessões do Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP.

1. A interlocução do Direito e do Serviço Social: desvelando as contradições no movimento da perícia social em Serviço Social

O presente artigo está demarcado no âmbito da interlocução do Direito e do Serviço Social - área sociojurídica -, especificamente na estrutura jurídica erigida no Tribunal de Justiça de São Paulo, nas Varas da Família e Sucessões, nas quais os/as assistentes sociais são peritos/as, desenvolvendo o trabalho de “Perícia Social em Serviço Social”,3 3 Em consonância com Franco et al. (2021), privilegiaremos a demarcação da Perícia Social em Serviço Social, destacando sua especificidade como área do conhecimento. No entanto, para tornar a redação mais fluida, poderemos utilizar somente “Perícia Social” que deve ser subtendida como Perícia Social em Serviço Social. com vista a apresentar subsídios, elementos da realidade social vivenciada pelos sujeitos envolvidos no litígio, para a tomada de decisão do magistrado.

Nesse espaço de atuação, altamente hierarquizado, disciplinador, ritualizado, de leis e normas, de ordem e tradição, operadores/as do Direito, psicólogos/as, assistentes sociais e outros/as profissionais configuram a arena de conhecimentos que podem tanto atuar no sentido de negatividade da lógica institucional quanto da sua reprodução.

Tal lógica, quando reproduzida, é incapaz de perceber os “limites de nossa compreensão cultural, da constituição e das relações de parentesco, enquanto normas sociais que restringem as condutas sexuais e afetivas”, e, sobretudo, de refletir sobre as transformações sociais entre parentesco, parentalidade, família e gênero (Butler, 2003BUTLER, J. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 219-260, 2003.).

O Direito cumpre sua função social de reprodução da ordem capitalista, em seu aspecto abstrato - manipulatório -, atuando no sentido de reificar as “estruturas familiares”, determinando sua influência sobre os membros da família. Nas Varas da Família e Sucessões, a fetichização do Direito se potencializa ao lidar com conflitos sociais oriundos da própria estrutura da sociedade, por intermédio de categorias jurídicas - guarda, regulamentação de visitas, busca pela melhor figura parental para exercício da guarda etc. -, como expressões da individualidade e da factualidade. Empobrecido de mediações, não alcança os relacionamentos que se transformam, continuamente, com a separação conjugal e com o litígio. Opera sob condições histórico-materiais concretas, nas quais as objetivações do ser social são subvertidas na expressão da propriedade privada e, por isso, reforça a lógica do “ganha-perde” tão presente nas Varas da Família (Lukács, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2013. v. II.).

Assim, reitera as reivindicações da conjugalidade postuladas pelos sujeitos nos autos, também como reprodução da sociabilidade do capital, no binômio conjugal, ou seja, reivindicações de caráter individualista. Escapa de suas reais possibilidades de intervenção o desvelamento das demandas da parentalidade, que se constituem em reciprocidade e complementaridade. São aspectos relacionais da conjugalidade desfeita versus parentalidade, em sua nova configuração pós-divórcio, que atuam dialeticamente no processo social de reorganização da família, a partir da realidade social que se transformou.

Nas Varas da Família e Sucessões, o Código CivilBRASIL. Presidência da República. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Presidência da República, 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm . Acesso em: 26 mar. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
e o Código de Processo CivilBRASIL. Presidência da República. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm . Acesso em: 26 mar. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
são garantidores da aplicação da lei em detrimento da vontade das partes envolvidas no conflito. Ao Estado cabe fazer valer o respeito à ordem jurídica, a devida tramitação do processo, a disponibilização de todos os meios legais para a defesa dos interesses, assegurando o contraditório. Logo, deve ser garantido, às partes, o direito de produzirem todas as provas que se fizerem necessárias, para comprovação “da verdade de cada um”.

Dentre as inúmeras possibilidades para a produção de provas, a prova técnica pericial - Social e Psicológica - se coloca para magistrados/as como a mais completa e menos passível de “contaminação” pelos/as advogados/as, com caráter de autoridade e hierarquia menos demarcado, favorecendo uma melhor apreensão da realidade narrada pelos sujeitos.

Para os/as operadores/as do Direito, os/as assistentes sociais são fiscalizadores/as da verdade e controladores/as dos comportamentos. Ainda que os/as operadores/as do Direito não se configurem num bloco monolítico (há em seu interior dissensões), eles/elas preservam a unidade, no que se refere à apreensão do significado social do trabalho dos/das assistentes sociais vinculado ao controle simbólico e ao sufocamento de subjetividades da classe trabalhadora, descolado, portanto, da estrutura social capitalista e da raiz da questão social e suas múltiplas expressões.

O desconhecimento do significado social do Serviço Social por esses/essas profissionais ou o seu interesse em se manter aferrados/as a uma representação do/da assistente social fixada no agir pragmático, no tratamento à questão social fragmentado, casuístico e paliativo, e ao traço de subalternidade relacionado à sua composição majoritariamente feminina, demarcam o território do sociojurídico, hierarquicamente condicionado aos ditames do Direito (Guerra, 2009GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2009.).

Isso compreende a subalternização do estatuto profissional e científico dos/das assistentes sociais, afeta a sociabilidade e a ação profissional, não raro claras investidas no sentido de “colonizar o trabalho profissional”, ao estabelecer critérios de resultados atinentes ao Direito em detrimento do Serviço Social; este é um dos grandes desafios postos aos/às assistentes sociais do sociojurídico.

A redução do número de profissionais que, mesmo antes, já não era suficiente, atrelada ao período em que o mundo e o Brasil foram atropelados pela pandemia da covid-19, contingenciou uma imensa demanda de processos nos setores técnicos que estão à espera da realização dos estudos social e psicológico, sobrecarregando, em demasia, a capacidade produtiva e qualitativa dos setores.

Diante desse grave cenário e do grande número de processos que demandam perícias, além da insuficiência de profissionais para responderem a tal demanda, o Estado, incorporando a lógica da hegemonia neoliberal, tem ampliado “os processos de subcontratação de serviços de assistentes sociais (pejotização e uberização) [...]”, precarizando as condições de trabalho e, consequentemente, rebatendo na qualidade dos serviços prestados à população usuária (Raichelis, 2018RAICHELIS, R. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, R.; VICENTE, D; ALBUQUERQUE, V. (org.). A nova formologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. p. 25-65., p. 51).

Nesse movimento, o TJSP, como instituição jurídico-estatal, mantém um banco de peritos/as que poderão ser contratados/as e pagos/as pelas partes interessadas ou pela Fazenda Pública.

Tal aspecto se refere ao enfraquecimento dos direitos trabalhistas. A contratação de peritos/as, sem vínculo formal de trabalho, é uma estratégia que favorece a terceirização e a precarização das condições de trabalho. Trata-se, ainda, de estratégia que visa mascarar a necessidade da realização de concursos públicos para a contratação de novos/as profissionais, tendo em vista a defasagem deles (Behring; Boschetti, 2006BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, Biblioteca Básica de Serviço Social, 2006.; Raichelis, 2018RAICHELIS, R. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, R.; VICENTE, D; ALBUQUERQUE, V. (org.). A nova formologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. p. 25-65.).

O/A perito/a pago/a deve ser a regra a quem pode pagar! Isso dá margens ao surgimento de um novo nicho de mercado: o mercado das perícias.

O mercado das perícias impulsiona a venda de um saber específico, num processo contínuo que resulta na comercialização do serviço diretamente pelo/a profissional mediado pelo Judiciário, potencializando os processos de estranhamento e alienação já inerentes.

A perícia, o laudo, não pode ser um produto, pois é resultado de um processo que expressa instrumentalidade da profissão, seus fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos, como elemento na garantia e na efetivação de direitos, da escrutinação da questão social e de suas múltiplas expressões, ou seja, uma perícia e um laudo que transbordem o Serviço Social, e que, no horizonte, possam colaborar para a produção do conhecimento científico na especificidade em que se colocam.

A tensão é clara: as exigências do Direito e a necessidade dos/as trabalhadores/as formam as condições sociais necessárias para a criação de um “mercado de laudos”, estritamente vinculados aos ritos processuais, sufocando o compromisso ético-político profissional, a produção acadêmica sobre a temática.

Destacamos ainda que tal movimento - contratação de peritos/as, mercado de perícias - reflete as profundas transformações no mundo do trabalho, impulsionadas pelo uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e potencializadas pela pandemia da covid-19. Se já vivenciávamos um processo ideopolítico conservador, de retrocesso ante os direitos historicamente conquistados, com a mercadorização do Estado, o que se tem com a pandemia é a aceleração de processos que envolvem mais controle do trabalho pela padronização de rotinas, de metas, protocolos e atividades, que podem interferir diretamente na relativa autonomia técnico-política do/da profissional (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; Raichelis, 2018RAICHELIS, R. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, R.; VICENTE, D; ALBUQUERQUE, V. (org.). A nova formologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. p. 25-65.).

A contratação para o exercício de atividades pontuais e fragmentadas é uma realidade da prestação dos serviços públicos, e não é um privilégio do sociojurídico. O Tribunal de Justiça é parte de um amplo processo de contratação de serviços, através de normas e padrões previamente estabelecidos e subordinados aos ditames empresariais pelo amplo recurso da utilização das TICs. Trata-se de novos espaços abocanhados pelo capitalismo pandêmico que avança na mercadorização dos serviços públicos, podendo transformá-los em espaços de valorização do capital e rentabilidade (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; Raichelis, 2018RAICHELIS, R. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, R.; VICENTE, D; ALBUQUERQUE, V. (org.). A nova formologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. p. 25-65.).

2. Abuso sexual intrafamiliar e a perícia social em Serviço Social

A perícia social em Serviço Social, nas Varas da Família e Sucessões, é uma expertise do/da assistente social. Exige do/da profissional a articulação de mediações num movimento de negar a mera factualidade, através de aproximações sucessivas à realidade, situando os fatos singulares: divórcios, disputa de guarda, disputa de poder, coisificação das relações, abstrações universalizantes em torno das figuras parentais e da prole, e a fixação do que é esperado socialmente de cada um, de forma estereotipada à universalidade da sociedade capitalista.

Desvela formas de opressão historicamente marcadas pelo patriarcado, pela trans-homofobia, pelo racismo, pela superexploração do trabalho, pela inferiorização da mulher e da criança, pelo desemprego estrutural, pelas desigualdades econômicas, sociais e políticas relacionadas à função social do Direito como poder emanado do Estado e subordinado à economia. Então, são particularizados na intervenção do/da assistente social, que dispõe de uma ética contrária, e não raro, inconciliável a dos/das advogados/as, uma especificidade do saber que se opõe ao viés controlador e fiscalizatório da vida das famílias; que detém o poder de expressar em laudos e pareceres que a vida das famílias está atravessada pelas múltiplas expressões da questão social e, então, fazer o caminho de volta, relacionando-as ao sofrimento humano singular.

O/a perito/a em Serviço Social é aquele/a capaz de tornar juridicamente compreensível a realidade social vivenciada por aqueles/as que levam ao sistema judiciário suas demandas.

O conhecimento e a análise da realidade social serão objeto de intervenção do/da assistente social, por isso a investigação não versa sobre sujeitos, e sim sobre certa situação social a ser analisada:

Se sua lógica de constituição e se os seus objetos de intervenção se vinculam a uma determinada realidade histórico-social, seu substrato material é a realidade social, é a cotidianidade de determinados segmentos da população; seus objetos são definidos pelas condições de vida desses segmentos, sua funcionalidade encontra-se na manipulação de variáveis que possibilitem a alteração - ainda que temporária - do contexto social; por tudo isso, tem que se referenciar pela e na realidade social (Guerra, 1997GUERRA, Y. Ontologia social, formação profissional e política. Caderno do Núcleo de Estudos e Aprofundamento Marxista, São Paulo, n. 1, p. 14-88, 1997., p. 47, grifos nossos).

O trabalho profissional não está desassociado da dimensão política. Diante da diversidade das demandas, dos sujeitos, dos conflitos, somos instados a assumir posições e tornar inteligíveis para os/as operadores/as do Direito relações marcadas pela violência de gênero, etnia-raça, estrutural, sexual, entre tantas outras. A teleologia no processo de trabalho em que estamos inseridos/as deve se dar no sentido de utilizar nosso saber profissional de tal forma que afirme direitos, beneficie os sujeitos/grupos com os quais firmamos compromisso ético-político.

É na objetivação de nosso trabalho - laudos e pareceres - que produzimos documentos que possibilitem, aos juízes e aos demais operadores do Direito, formar convicções favoráveis aos sujeitos/grupos que tiveram seus direitos violados. A nossa formação profissional deve nos capacitar para, cientificamente, reconstruir o “real”, reconstruindo, teoricamente, seus esquemas e instrumentos, saturando suas determinações e nexos constitutivos, apreendê-los num movimento de refazer contra o que já foi feito e visto.

Por fim, em relação à perícia social em Serviço Social consideramos que, para além da dimensão do fazer profissional, tradicional e socialmente reconhecida, tem assumido e se desenvolvido como pesquisa, produção de conhecimento, firmando o centro das discussões no sociojurídico. Isso revela o caráter privilegiado da articulação entre teoria e prática que suscita reflexões, que possibilita mediações que brotam do cotidiano profissional desafiador, mas também estimulante no diálogo com outras disciplinas em suas aproximações e distanciamentos.

No que se refere ao abuso sexual intrafamiliar, sua complexidade demanda o envolvimento de diversos atores: “A família e diferentes profissionais que costumam interagir com a criança, de professores, médicos, assistentes sociais, psicólogos, advogados, promotores de justiça, magistrados” (Azambuja, 2013AZAMBUJA, M. A. A interdisciplinaridade na violência sexual. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n.115, p. 487-507, jul./set. 2013., p. 488), articulando práticas e saberes para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Os direitos consolidados, no século XX, dão novos contornos à vivência das mulheres, de crianças e adolescentes na sociedade, elevando-os, ainda que formalmente, ao status de sujeitos, de modo que as construções em torno das violências cometidas contra esses grupos são reconfiguradas ao redor da violência cometida contra o indivíduo e não mais circunscritas contra a honra da família, a moral e os costumes, possibilitando evidenciar o sofrimento causado à pessoa contra a qual é perpetrada a violência e, no caso de crianças e adolescentes, os prejuízos daí decorrentes para seu pleno desenvolvimento.4 4 Lembramos que a sexualidade foi reconhecida como atributo da pessoa humana e como expressão de sua dignidade, rompendo a antiga e patriarcal concepção de crimes contra os costumes. Passou-se a cuidar da proteção da sexualidade no âmbito da dignidade sexual, recentemente na história de nosso país, pela Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009.

Em relação aos direitos de crianças e adolescentes, pontuamos os limites do poder do pai, mas sobretudo, a partir da consolidação da Constituição Federal de 1988BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 26 mar. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
e do Estatuto da Criança e do AdolescenteBRASIL. Presidência da República. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Acesso em: 7 nov. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, a divisão de poder e a responsabilidade entre a família, a sociedade e o Estado, estabelecendo limitações ao poder absoluto, até então, das famílias sobre as crianças.

Este é um elemento de suma importância, pois denota o reconhecimento social de que a família é o lócus privilegiado de desenvolvimento da sociabilidade desses grupos, mas também lócus privilegiado de perpetração da violência. E auxilia na descontrução de mitos, como o do amor materno, instintual e natural, inerente a todas as mulheres; o mito da família protetora, o que socialmente circunscreve as questões em torno da criança e do adolescente como “problemas” dos pais, logo uma questão parental e não social.

Definimos como abuso sexual intrafamiliar o contato sexual entre adulto e a/o criança/adolescente, para satisfação do desejo sexual do adulto. Tal contato pode envolver atos “físico-genitais” de estimulação/manipulação das zonas erógenas (no senso comum, “carícias sexuais”), intercurso sexual completo ou não, contato oral-genital, uso sexual do ânus, envolvimento de criança/adolescente em jogos sexuais, exposição à pornografia; exposição verbal, que se refere a discussões abertas sobre atos sexuais, destinadas a despertar o interesse da criança, mensagens de texto ou telefonemas de conteúdo sexual, exposição intencional, e não natural, de criança/adolescente ao corpo nu de um adulto ou de partes dele, “espionagem” da nudez total ou parcial de uma criança por um adulto, geralmente a partir de um posto secreto de observação (Azevedo; Guerra, 2015AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2015.; Faleiros, 2003FALEIROS, V. P. Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde , Campinas, v. 2, n. 1, p. 65-82, 2003. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441 . Acesso em: 26 mar. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

Neste sentido, o abuso sexual intrafamiliar ocorre entre um adulto que exerça a função parental ou esteja numa posição de responsável pela criança e, ainda, que tenha ligação de parentesco, seja por consanguinidade, seja por afinidade. Abrangemos pessoas que possam prestar serviços para o grupo familiar e/ou para a criança, as quais têm acesso ao ambiente familiar e gozam da confiança dos membros familiares.

Trata-se, portanto, do estabelecimento de uma relação de poder, a partir do lugar simbólico da confiança, não raro da admiração, da prestação de cuidados, ou seja, coloca-se nos vínculos socioafetivos que são reforçados pelo contato cotidiano e pela participação ativa no processo de desenvolvimento da/do criança/adolescente na satisfação de necessidades objetivas e subjetivas (Azevedo; Guerra, 2015AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2015.; Faleiros, 2003FALEIROS, V. P. Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde , Campinas, v. 2, n. 1, p. 65-82, 2003. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441 . Acesso em: 26 mar. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

A relação de poder é estabelecida entre pessoas próximas à/ao criança/adolescente, há laço parental, de parentesco, de afinidade, o contato estabelecido é próximo e objetiva a busca por prazer e satisfação sexual pelo uso do corpo da/do criança/adolescente, abusando da sua condição de fragilidade, incapacidade e subordinação ao adulto, num jogo que envolve sedução e ameaça (Azevedo; Guerra, 2015AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2015.; Faleiros, 2003FALEIROS, V. P. Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde , Campinas, v. 2, n. 1, p. 65-82, 2003. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441 . Acesso em: 26 mar. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

A perversidade da violência sexual intrafamiliar coloca-se no fato de se dar no espaço privado da família, envolvendo pessoas “acima de qualquer suspeita”, ou seja, que atendem às funcionalidades da sociedade. É difícil de ser capturada, pois se constitui na sociabilidade familiar, é envolta pela cultura do segredo, é transmitida de forma intergeracional, sendo naturalizada como relação social (Azevedo; Guerra, 2015AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2015.; Faleiros, 2003FALEIROS, V. P. Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde , Campinas, v. 2, n. 1, p. 65-82, 2003. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441 . Acesso em: 26 mar. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
; Schmickler, 2001SCHMICKLER, C. M. A revelação do indizível: um estudo sobre o protagonista do abuso sexual incestuoso contra crianças e adolescentes. 2001. 334 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.).

A criança não consegue compreender o jogo sexual em que está inserida, comumente o entende como uma “brincadeira” (termo frequentemente repetido pelas crianças) e sente prazer ao ter acariciadas suas zonas erógenas, o que gera culpa e passa a falsa mensagem de cooperação no abuso; o prazer é real/concreto, ainda que alienado.

O abuso sexual intrafamiliar pode se dar na exposição ao conteúdo sexual/erótico pelos adultos a crianças e/ou adolescentes, colocando-os numa posição de “testemunhas” da vida sexual (Hirigoyen, 2011HIRIGOYEN, M. F. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Tradução: Maria Helena Kuhner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.). Citamos como exemplo, com base na experiência das perícias realizadas, situações em que as mães solicitavam às filhas que as fotografassem em poses sensuais (vestimentas, ambientes, gestos corporais), para que pudessem enviar via whatsapp para seus parceiros sexuais; e de pais que fazem ensaios fotográficos envolvendo nudez feminina, os quais compartilharam com suas filhas.

São atitudes que induzem à cumplicidade doentia, borram as fronteiras entre as gerações, as fronteiras da parentalidade e da conjugalidade, integram as/os crianças/adolescentes como testemunhas da vida sexual dos adultos (Hirigoyen, 2011HIRIGOYEN, M. F. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Tradução: Maria Helena Kuhner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.).

A articulação às Ciências Sociais, ao Direito, à Pedagogia contribui para a ampliação da análise do fenômeno da sexualidade, das violências sexuais e do abuso sexual intrafamiliar da perspectiva da construção social, compreendendo o desenvolvimento da sexualidade também como aprendizado social, o agir sexualmente dotado de sentido e na articulação das atividades mental e corporal, apreendidos através da cultura (Bozon, 2004BOZON, M. Sociologia da sexualidade. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.).

Destacamos, a partir das definições ora apresentadas, que o abuso sexual intrafamiliar, assim como as demais violências contra criança/adolescente, é um fenômeno multicausal, daí a necessidade de ser enfrentado em várias frentes e disciplinas. Refere-se a violações de gênero que se iniciam na infância. As conquistas em torno dos direitos de mulheres, crianças e adolescentes são importantes marcos para as transformações culturais, em relação à proteção da sexualidade desses e de outros grupos.

A leitura moralista em torno da sexualidade de crianças e adolescentes impede o debate e obscurece o movimento dialético que, por um lado, age no sufocamento da sexualidade infantil e juvenil, especialmente das meninas e, consequentemente, de suas subjetividades. E, por outro, sexualiza a infância e a adolescência na utilização de seus corpos para fins mercantilistas, de exploração sexual, naturaliza os casamentos marcados por diferença etária, em que meninas se casam com homens adultos e maduros. A realização dos casamentos infantis é expressão disso e atribui qualificadores ao feminino, como o casamento e a maternidade, estigmatizando as mulheres que fazem escolhas diferentes, escancarando as marcas patriarcais constitutivas de nossa formação social (Plan International, 2019PLAN INTERNATIONAL. Tirando o véu: estudo sobre casamento infantil no Brasil. São Paulo: Plan International, 2019.).

A sociologia das representações da sexualidade pode nos auxiliar no desvelamento das artimanhas que revelam e obscurecem as relações sociais de sexo centradas no primado desejo do homem, marginalizando o desejo e a sexualidade feminina. Tal dinâmica não é própria nem isolada na esfera sexual, ultrapassa-a, socializando as desigualdades de gênero que se manifestam em outras esferas do ser social, para além da sexual (Bozon, 2004BOZON, M. Sociologia da sexualidade. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.).

Nesse sentido, a legislação é importante para a proteção e a interdição social de práticas não aceitas socialmente, no entanto são pouco efetivas quando as estruturas sociais naturalizam as violações dos direitos humanos e sexuais de mulheres, crianças e adolescentes.

As relações sociais de sexo produzem desigualdades entre homens e mulheres percebidas em todo o processo de desenvolvimento - infância, adolescência -, seja em âmbito familiar, seja em âmbito social. E não se trata apenas do endurecimento das leis que criminalizam a exploração sexual ou o abuso sexual intrafamiliar e outros, mas também se devem envolver perspectivas interseccionais, dar atenção aos marcadores sociais de classe, etnia-raça, gênero, acesso às políticas sociais etc., considerando a cultura brasileira.

Abusadores são favorecidos pelas falhas em nosso sistema de apuração e investigação dos fatos, e quando não, seu destino é o sucateado sistema prisional brasileiro. Em alguns anos, o abusador é libertado, sem ter tido qualquer atendimento (psicológico, social, médico) que intervenha para a alteração dos fatores que o levaram a praticar atos considerados crimes.

A repetição do ato criminoso e/ou a prática da perversão sexual, nos termos de Cohen e Gobetti (1998COHEN, C.; GOBETTI, G. J. Abuso sexual intrafamiliar. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 6, n. 24, p. 235-243, 1998.), encontram muitas vezes nova acolhida junto à família na qual foi originada, as esposas e os/as demais filhos/as, por vezes até os que sofreram o abuso recebem novamente em seu lar o abusador, quando não a tendência é procurar por novos relacionamentos em que a organização familiar possibilite a reincidência da prática (Schmickler, 2001SCHMICKLER, C. M. A revelação do indizível: um estudo sobre o protagonista do abuso sexual incestuoso contra crianças e adolescentes. 2001. 334 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.).

O abuso sexual infantil é um problema de saúde pública e, segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 7% a 36% das meninas sofrem abuso sexual na infância ou adolescência; nos meninos, esse percentual varia entre 3% e 29%. O abuso sexual infantil e/ou adolescente é caracterizado por experiências sexuais antes dos 18 anos que envolvam, na relação, poder e idade (OMS, 2002ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS, 2002.).

A literatura corrobora que o abuso sexual infantil não necessariamente vai garantir uma resposta traumática da criança. A resposta da criança está relacionada às respostas familiares, do ambiente e da severidade do abuso, sendo que as respostas oferecidas pela família são fundamentais para a não reparação da situação (Aaron, 2012AARON, M. The pathways of problematic sexual behavior: a literature review of factors affecting adult sexual behavior in survivors of childhood sexual abuse. Sexual Addiction & Compulsivity, Londres, v. 19, n. 3, p. 199-218, 2012.; Devries et al., 2017DEVRIES, K. et al. Who perpetrates violence against children? A systematic analysis of age-specific and sex-specific data. BMJ Pediatrics Open, v. 2, 2017.).

As respostas do ambiente serão importantes para conter as subsequentes traumatizações e oferecer possibilidades de reparação perante o abuso; a severidade do abuso está relacionada à natureza do abuso em si. No que concerne à resposta que a criança recebeu do ambiente sobre o abuso e à relação da criança com o perpetrador, quanto mais próximo o abusador, mais intensos serão os efeitos do trauma, atrelado à frequência, à duração, ao uso da força e à severidade do abuso, de modo que, quanto mais prolongada e frequente a experiência vinculada à ocorrência de penetração, mais severos serão os sintomas apresentados pela criança (Aaron, 2012AARON, M. The pathways of problematic sexual behavior: a literature review of factors affecting adult sexual behavior in survivors of childhood sexual abuse. Sexual Addiction & Compulsivity, Londres, v. 19, n. 3, p. 199-218, 2012.; Devries et al., 2017DEVRIES, K. et al. Who perpetrates violence against children? A systematic analysis of age-specific and sex-specific data. BMJ Pediatrics Open, v. 2, 2017.).

Tudo isso torna primordial o suporte e os cuidados oferecidos à criança pela sociedade para evitar desfechos negativos na vida adulta. O apoio familiar, em especial do adulto responsável, é o mais crucial fator para a criança se recuperar de forma satisfatória. Esse suporte familiar refere-se a acreditar na criança e agir de maneira protetora e estimulante para ela.

Estudos de população evidenciam que diante da exposição à experiência de abuso sexual infantil, 43% de crianças/adolescentes apresentam comportamentos extremos de agressão e sexualizado; e 36% apresentam comportamento de internalização - inibição. As respostas de externalização e internalização estão relacionadas à idade de crianças/adolescentes e ao gênero. Crianças mais novas e meninos tendem a externalizar; adolescentes e meninas tendem a internalizar (Devries et al., 2017DEVRIES, K. et al. Who perpetrates violence against children? A systematic analysis of age-specific and sex-specific data. BMJ Pediatrics Open, v. 2, 2017.).

Pensar nosso trabalho nas perícias sociais em Serviço Social nas Varas da Família, lócus privilegiado da adversidade entre ex-casais, na especificidade dos casos de abuso sexual intrafamiliar, torna imperativo que saibamos situar o domínio do erótico, do sexual, das sensações do corpo, da orientação sexual, da identidade sexual constituintes e constituídos, histórica e socialmente.

É premente que identifiquemos as articulações e os nexos constitutivos das trajetórias sexuais, individuais ou partilhadas por determinados grupos ou pares, para através das mediações desvelar os vínculos relacionais permeados pelo afeto, pela violência, por diferentes redes de sociabilidade, pelas organizações familiares em seus modelos idealizados de amor romântico, do mito do amor materno, dos rebatimentos das crenças religiosas, e entendendo como a censura, ou a validação social, exerce influência sobre cada sujeito (Heilborn, 1999HEILBORN, M. L. Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.).

A particularidade de nosso trabalho pericial situa-se na possibilidade de captura e compreensão da realidade social em que os sujeitos estão inseridos. Aspectos objetivos e subjetivos são inerentes ao desvelamento de determinada realidade. E dessa realidade emergirão as categorias que dão substância à vivência dos sujeitos, permeadas pelas manifestações da violência ou não.

Destrinchamos a categoria violência em seus múltiplos simbolismos, na relação com a organização social que subtrai mulheres, crianças e adolescentes da esfera da autonomia e do real reconhecimento de seu status de sujeitos.

Nossa proposição é de que é preciso compreender os rebatimentos do abuso sexual intrafamiliar na vida das pessoas, no mesmo movimento em que compreendemos que a nossa intervenção é uma das mediações, numa totalidade de atuações e intervenções que aglutinam saberes que podem atuar tanto no sentido de reduzir os impactos da violência quanto potencializá-los.

Considerações finais

Entre os resultados da pesquisa, evidenciou-se que os/as assistentes sociais compreendem a particularidade da perícia social em Serviço Social na apreensão da realidade vivenciada pela família. Na especificidade dos casos que envolvem o abuso sexual intrafamiliar, isso não se altera; é pela apreensão da sociabilidade familiar que podem emergir aspectos estranhados e alienados na forma da violência e suas manifestações.

Diante da complexidade das situações que envolvem o abuso sexual intrafamiliar, torna-se premente que as intervenções sejam de caráter interdisciplinar, intersetorial e articuladas à rede de proteção, enfrentamento e prevenção à violência sexual.

Na especificidade das Varas da Família, o reconhecimento é de que tal Vara é integrante do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, portanto somos parte integrante das instituições e atores que devem atuar, articuladamente, para a prevenção e o enfrentamento das situações de violência. Dialogar, bem como atuar em conjunto com as demais instituições, visando ao fortalecimento da rede de proteção, é fundamental para intervenções alinhadas ao horizonte ético-político profissional.

Por fim, esperamos que a partir desses enunciados sejam motivadas novas reflexões que envolvam novas análises em torno da conjugalidade e da parentalidade, quando atravessadas pelo divórcio e pela intervenção do Estado. Deve-se partir da perspectiva de que, nas Varas da Família, os conflitos não são sanados por determinação judicial. Que possamos elaborar formas socioeducativas e espaços em que esses sujeitos possam refletir sobre a transformação das reivindicações individuais (conjugais) por reciprocidade da coparentalidade. Que nossos estudos, laudos e pareceres afirmem nossa competência teórica e técnica, numa dada direção sociopolítica e, assim, possam atuar na atualização dos referenciais profissionais junto a outras profissões, em especial o Direito e a Psicologia. Sobretudo que possamos, pela conjunção dos saberes e pela atuação interdisciplinar, forjar novas formas de enfrentamento das situações que envolvam o abuso sexual intrafamiliar, tendo como horizonte o cuidado com todos os membros da organização familiar, e na superação do punitivismo do Estado.

Referências

  • AARON, M. The pathways of problematic sexual behavior: a literature review of factors affecting adult sexual behavior in survivors of childhood sexual abuse. Sexual Addiction & Compulsivity, Londres, v. 19, n. 3, p. 199-218, 2012.
  • ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • AZAMBUJA, M. A. A interdisciplinaridade na violência sexual. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n.115, p. 487-507, jul./set. 2013.
  • AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2015.
  • BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, Biblioteca Básica de Serviço Social, 2006.
  • BOZON, M. Sociologia da sexualidade Tradução: Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
  • BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 26 mar. 2021.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
  • BRASIL. Presidência da República. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 7 nov. 2021.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
  • BRASIL. Presidência da República. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Institui o Código Civil. Brasília: Presidência da República, 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm Acesso em: 26 mar. 2021.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm
  • BRASIL. Presidência da República. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm Acesso em: 26 mar. 2021.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm
  • BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Balanço disque 100: comparativo 2018 e 2019. Brasília: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2021.
  • BUTLER, J. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 219-260, 2003.
  • COHEN, C.; GOBETTI, G. J. Abuso sexual intrafamiliar. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 6, n. 24, p. 235-243, 1998.
  • DEVRIES, K. et al Who perpetrates violence against children? A systematic analysis of age-specific and sex-specific data. BMJ Pediatrics Open, v. 2, 2017.
  • FALEIROS, V. P. Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde , Campinas, v. 2, n. 1, p. 65-82, 2003. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441 Acesso em: 26 mar. 2021.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441
  • FRANCO, A. A. de P.; FÁVERO, E. T.; OLIVEIRA, R. C. S. Perícia em Serviço Social Campinas: Papel Social, 2021.
  • GUERRA, Y. Ontologia social, formação profissional e política. Caderno do Núcleo de Estudos e Aprofundamento Marxista, São Paulo, n. 1, p. 14-88, 1997.
  • GUERRA, Y. A instrumentalidade do Serviço Social 7. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
  • HEILBORN, M. L. Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • HIRIGOYEN, M. F. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Tradução: Maria Helena Kuhner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
  • INSTITUTO PROMUNDO. Relatório anual 2015 2015. Disponível em: Disponível em: https://promundo.org.br/wp-content/uploads/2016/08/Promundo-Relatorio-Anual-2015-Final.pdf Acesso em: 16 nov. 2016.
    » https://promundo.org.br/wp-content/uploads/2016/08/Promundo-Relatorio-Anual-2015-Final.pdf
  • LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social São Paulo: Boitempo, 2013. v. II.
  • ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório mundial sobre violência e saúde Genebra: OMS, 2002.
  • PLAN INTERNATIONAL. Tirando o véu: estudo sobre casamento infantil no Brasil. São Paulo: Plan International, 2019.
  • RAICHELIS, R. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, R.; VICENTE, D; ALBUQUERQUE, V. (org.). A nova formologia do trabalho no Serviço Social São Paulo: Cortez, 2018. p. 25-65.
  • SCHMICKLER, C. M. A revelação do indizível: um estudo sobre o protagonista do abuso sexual incestuoso contra crianças e adolescentes. 2001. 334 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.
  • 1
    Dados do Balanço disque 100BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Balanço disque 100: comparativo 2018 e 2019. Brasília: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2021.: comparativo entre 2018 e 2019.
  • 2
    Em consonância com a campanha de conscientização para que o termo “regime de visitas” seja substituído por “regime de convivência”, o qual tem por objetivo promover a construção de relação mais forte e afetiva, e reafirmar a importância da maternidade e da paternidade responsáveis, promovida pela Comissão Especial de Direito de Família e das Sucessões, da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo - OAB-SP. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8472/Campanha+pretende+alterar+%22regime+de+visitas%22+para+%22regime+de+conviv%C3%AAncia%22+. Acesso em: 18 abr. 2022.
  • 3
    Em consonância com Franco et al. (2021)FRANCO, A. A. de P.; FÁVERO, E. T.; OLIVEIRA, R. C. S. Perícia em Serviço Social. Campinas: Papel Social, 2021., privilegiaremos a demarcação da Perícia Social em Serviço Social, destacando sua especificidade como área do conhecimento. No entanto, para tornar a redação mais fluida, poderemos utilizar somente “Perícia Social” que deve ser subtendida como Perícia Social em Serviço Social.
  • 4
    Lembramos que a sexualidade foi reconhecida como atributo da pessoa humana e como expressão de sua dignidade, rompendo a antiga e patriarcal concepção de crimes contra os costumes. Passou-se a cuidar da proteção da sexualidade no âmbito da dignidade sexual, recentemente na história de nosso país, pela Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
Cortez Editora Ltda Rua Monte Alegre, 1074, 05014-001 - São Paulo - SP, Tel: (55 11) 3864-0111 , Fax: (55 11) 3864-4290 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: servicosocial@cortezeditora.com.br