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Prática de trabalhadora(e)s de saúde na atenção às mulheres em situação de violência de gênero

Resumos

Objetiva descrever a prática de trabalhadora(e)s de saúde da Estratégia de Saúde da Família às mulheres em situação de violência de gênero. Pesquisa de abordagem qualitativa, realizada com 25 trabalhadora(e)s de saúde de três unidades da Estratégia de Saúde da Família de um município baiano. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, e analisados com base na técnica de análise do discurso. Dos resultados emergiram duas categorias empíricas: expressão da violência contra a mulher decorrente de questões de gênero, evidenciando violência física e psicológica ocasionada pelo cônjuge e estratégias de enfrentamento mediante a violência de gênero, demonstrando que as ações não contemplam as questões de gênero e o encaminhamento/referência aos serviços assistenciais não recebem a contrarreferência. Ressaltamos a necessidade de qualificação das equipes da Estratégia de Saúde da Família para atuação nas situações de violência de gênero, e fomento pela gestão pública para a estruturação da rede de serviços assistenciais.

Violência contra a mulher; Saúde da família; Gênero e saúde; Enfermagem


The aim of the present study was to describe the practice of Family Health Strategy workers when dealing with women in gender violence situations. It is a qualitative study, conducted with 25 healthcare workers from three Family Health Strategy units in a municipality of the state of Bahia, Brazil. Data were collected through a semi-structured interview and analyzed based on the discourse analysis method. The results yielded two empirical categories: expression of violence against women due to gender issues, with display of physical and psychological violence by a spouse, and strategies to face up gender violence. The second category displayed that the unit's actions that do not contemplate gender issues and that referrals to assistance services do not receive counter-referrals. We emphasize the need for Family Health Strategy staff to receive qualification for acting in gender violence situations, and for public management to promote a network structure for assistance services.

Violence against women; Family health; Gender and health; Nursing


Objetiva describir la práctica de trabajadores de salud de la Estrategia de Salud de la Familia a mujeres en situación de violencia de género. Investigación cualitativa realizada con 25 trabajadores de salud de tres unidades de Estrategia de Salud de la Familia de una ciudad bahiana. Los datos fueron recolectados, analizados basándose en la técnica de análisis del discurso. De los resultados emergieron dos categorías empíricas: expresión de la violencia contra la mujer por cuestiones de género, evidenciando violencia física y psicológica ocasionada por el cónyuge y estrategias de enfrentamiento mediante la violencia de género, demostrando que las acciones no contemplan cuestiones de género y la referencia a los servicios asistenciales no reciben contrarreferencia. Resaltamos la necesidad de calificación de los equipos de Estrategia de Salud de la Familia para actuación en situaciones de violencia de género y promoción por la gestión pública de la estructuración de la red de servicios asistenciales.

Violencia contra la mujer; Salud de la familia; Género y salud; Enfermería


INTRODUÇÃO

No cenário mundial, desde 2002, a Organização Mundial da Saúde destacou que, apesar de a violência não ser considerada, em si, como um tema da área de saúde, configura-se como grave problema de saúde pública por diversas razões: ocasionamento de lesões, traumas físicos e emocionais, e até mortes. A violência é definida como o uso de força física ou de poder, ameaça ou na prática contra si mesma, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, resultando ou podendo resultar em sofrimento, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação, ou até a morte.1Organização Mundial de Saúde. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra (CH): OMS; 2002.

O setor saúde classifica e categoriza a violência a partir de suas manifestações empíricas como aquela dirigida da pessoa contra si mesma, denominada violência autoinfligida; violência interpessoal, que contempla a violência intrafamiliar e a violência comunitária, além da violência coletiva, que tem uma dimensão mais abrangente ao atingir grande parcela da população.2Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz; 2010.

Enfatizando a violência intrafamiliar, essa pode ocorrer com diferentes graus de severidade, por meio da agressão física, abuso sexual, abuso psicológico, negligência, abandono, maus-tratos, entre outras manifestações. Pode ter como autores(as) pessoas com laços familiares, conjugais ou de parentesco, ou com vínculo afetivo em condições de relação de poder, seja física, etária, social, psíquica, hierárquica e/ou de gênero.3Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Brasília (DF): MS; 2002. - 4Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Temático prevenção de violência e cultura de paz. Brasília (DF): OPAS; 2008.

Nesse contexto, a violência doméstica e familiar contra a mulher consiste em toda ação ou omissão que ocasione a morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher, podendo ocorrer no âmbito da unidade doméstica, ou seja, no espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos, que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; e em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a mulher em situação de violência, independentemente de coabitação.5Brasil. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 8 Mai 2006. Seção 1.

Na segunda metade do século XX, em fins da década de 1960, com a realização de estudos sobre as relações familiares, o papel tradicional da mulher na família e a condição feminina na sociedade, a violência doméstica começou a ganhar visibilidade como um problema social e de saúde, tornando-se uma categoria política de reivindicação feminista, abrangendo as questões de gênero, de idade, classe social, raça/etnia, religião e escolaridade. As mulheres começaram a questionar os papéis que lhes eram socialmente atribuídos, na sua maioria desqualificados, opressivos, sem status e responsáveis pelo seu enclausuramento no âmbito doméstico. Essa organização política passou a exigir a igualdade de direitos entre homens e mulheres, consolidando-se a partir dos anos 1970, por meio dos Movimentos de Mulheres.6Gomes NP, Diniz NMF, Araújo AJS, Coelho TMF. Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta Paul Enferm. 2007 Out-Dez; 20(4):504-8.

Apesar destas iniciativas, ainda nos deparamos com um aumento significativo de mulheres em situação de violência, em decorrência de relacionamentos afetivos com companheiros agressivos, fortemente influenciados pelas questões culturais que permeiam as relações de gênero, ao definir os papéis sociais para homens e mulheres, constituindo-se como fatores que desencadeiam relações de desigualdade entre a mulher e o homem.

Nessa perspectiva, "a desigualdade de gênero constitui uma das grandes contradições da sociedade, que se mantém ao longo da história da civilização e tem colocado as mulheres em um lugar social de subordinação. Essa desigualdade tem, como uma de suas extremas formas de manifestação, a violência contra as mulheres, que é resultado de uma assimetria de poder, que se traduz em relações de força e dominação. De modo geral, a violência de gênero tem se constituído em um fenômeno social que influencia sobremaneira o modo de viver, adoecer e morrer das mulheres".7:626

As questões construídas culturalmente pela sociedade se constituem substrato da violência de gênero e determinam os papéis sociais que os atores devem assumir, de ser homem e de ser mulher, o de quem agride e o de quem sofre a agressão, fenômenos que passaram a ser observados como atitudes naturais nas relações sociais.8Vieira LB, Padoin SMM, Souza IEO, Paula CC, Terra MG. Típico da ação das mulheres que denunciam o vivido da violência: contribuições para a enfermagem. Rev Enferm UERJ. 2011 Jul-Set; 19(3):410-4.

Pesquisa realizada em 27 municípios brasileiros, referente ao período de 1º de agosto de 2006 a 31 de julho de 2007, mostrou que a mulher foi quem mais sofreu violência doméstica e sexual, da infância até a terceira idade e as mulheres adultas, com a idade de 20 a 59 anos totalizaram um percentual de 79,9% das agressões, geralmente cometida por um único indivíduo, do sexo masculino.4Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Temático prevenção de violência e cultura de paz. Brasília (DF): OPAS; 2008.

A violência contra a mulher adoece não só as mulheres, como também toda a família, resultando em sérias implicações no processo de desenvolvimento psicossocial e no aumento da demanda nos serviços sociais e de saúde, o que requer a intervenção a partir da intersetorialidade.9Gomes NP, Bomfim ANA, Diniz NMF, Souza SS, Couto TM. Percepção dos profissionais da rede de serviços sobre o enfrentamento da violência contra a mulher. Rev Enferm UERJ. 2012 Abr-Jun; 20(2):173-8.

As implicações que a violência acarreta para a saúde-doença das mulheres requer o preparo da(o)s trabalhadora(e)s de saúde para atuarem de forma sensível e eficaz com as mulheres que buscam os seus cuidados. Por conseguinte, o enfrentamento da violência não deve ser centralizado no tratamento de suas consequências, mas na sua prevenção primária. No contexto atual, o modelo de atenção, tendo como centro a família, coloca a(o)s trabalhadora(e)s de saúde em posições estratégicas, que permitem o desenvolvimento de mecanismos que possibilitam a conscientização e o empoderamento das mulheres, para desconstruir a desigualdade estabelecida e reconstruir relações equitativas de gênero.7Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. A violência de gênero e o processo saúde-doença das mulheres. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Jul-Set; 13(3):625-31.

Atuando no contexto das unidades da Estratégia de Saúde da Família (ESF), durante a supervisão do Estágio Curricular Supervisionado I (ECS I), do curso de graduação em Enfermagem, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), foram observadas inúmeras situações de vulnerabilidade e de violência contra a mulher nas famílias cadastradas, na área de abrangência das referidas unidades onde o estágio é realizado. Identificamos, ainda, a dificuldade encontrada pela(o)s trabalhadora(e)s de saúde em lidar com as situações de violência intrafamiliar, pela falta de conhecimento técnico específico para aquelas situações, bem como outras dificuldades encontradas na articulação intersetorial, condições exigidas para implementar as estratégias de intervenção.

Convém evidenciarmos, ainda, que as demandas apresentadas pelas mulheres em situação de violência aos serviços de saúde requeriam uma atuação da(o)s trabalhadora(e)s de saúde que vislumbrasse a complexidade deste fenômeno, na perspectiva do cuidado integral, o que suscitou o interesse pela temática e a necessidade de maior propagação da prática desta(e)s trabalhadora(e)s no enfrentamento da violência contra a mulher, com destaque para o enfoque de gênero.

Entendemos que a equipe da ESF necessita de qualificação para atuar nas situações de violência, buscando inserir em sua prática as discussões de gênero, no sentido de propiciar o empoderamento da mulher no enfrentamento da violência. Para tanto, deve agregar os serviços assistenciais das áreas de saúde, social, jurídica, policial, além de envolver os diversos equipamentos sociais, como as associações de moradores, os grupos religiosos, os grupos de mulheres, entre outros, em razão da complexidade que permeia o contexto dos atos violentos.

Considerando que gênero é um elemento integrante das relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; que se e constitui primeiramente a maneira de significar as relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres, construídas social e culturalmente de maneira desigual,1010 Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. 2ª ed. Recife (PE): SOS Corpo; 1995.buscamos embasar este estudo utilizando esta categoria analítica, uma vez que possibilita a compreensão dos elementos que impulsionam e perpetuam essa desigualdade, a partir de uma concepção mais crítica da realidade.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é descrever a prática de trabalhadora(e)s de saúde da ESF às mulheres em situação de violência de gênero.

Este estudo poderá contribuir para promover mudanças nas práticas da(o)s trabalhadora(e)s de saúde ao se depararem com a violência de gênero no cotidiano dos serviços de saúde. Tais mudanças poderão ocorrer no sentido de buscar um novo olhar e um novo agir, para o atendimento das necessidades inerentes ao contexto de cada mulher em situação de violência, a partir da escuta sensível, e com o intuito de empoderá-las para o enfrentamento da violência com autonomia, segurança e exercício da cidadania, superando as desigualdades de gênero estabelecidas socialmente, além de poder intervir com de uma ação articulada e intersetorial.

MÉTODOS

Pesquisa de abordagem qualitativa, realizada em três Unidades de Saúde da Família (USF), uma delas com equipe dupla, totalizando quatro equipes da ESF do município de Jequié, localizado no interior do estado da Bahia.

Participaram da pesquisa vinte e cinco trabalhadora(e)s de saúde das referidas USF, dentre a(o)s quais: quatro enfermeiras, três técnicas de enfermagem e 18 Agentes Comunitárias(o)s de Saúde (ACS). Toda(o)s a(o)s trabalhadora(e)s de saúde foram convidada(o)s, no entanto, vale ressaltarmos que a(o)s médicos não demonstraram interesse em participar da pesquisa.

A(o)s participantes foram selecionada(o)s com base nos seguintes critérios de inclusão: 1) trabalhadora(e)s de saúde atuantes nas USF, onde são realizados os estágios do componente curricular ECS I, da UESB; 2) trabalhadora(e)s de saúde que tinham conhecimento de fatos e/ou identificaram mulheres em situação de violência, na área de abrangência da USF.

Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, no período de outubro de 2009 a junho de 2010, com a utilização de um gravador. Para tanto, nos baseamos em duas questões disparadoras: quais tipos de violência contra a mulher são identificados na área de abrangência da USF? Quais as ações desenvolvidas após identificação das situações de violência contra a mulher?

Com o intuito de assegurar os preceitos éticos, após análise e aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética da UESB, sob o protocolo n. 055/2009, solicitamos aos/às participantes a leitura prévia do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, procedemos aos esclarecimentos pertinentes e, em seguida, o mesmo foi assinado pela(o)s participantes.

Para a análise dos dados, utilizamos o método da análise do discurso, que estuda a visão de mundo dos sujeitos inscritos nos discursos; visão determinada socialmente, o que permite compreender o processo de produção em que o discurso ocorreu e refletir de forma geral sobre as condições em que ele se deu.1111. Fiorin JL. Linguagem e ideologia. 6ª ed. São Paulo (SP): Ática; 2003.

Essa técnica nos possibilitou analisar com profundidade cada expressão específica demonstrada, o contexto em que foi criado, observar os motivos de satisfação, insatisfação ou opiniões subentendidas por meio da observação das várias formas de comunicação expressas pelos sujeitos.

Neste processo de análise dos dados, buscamos identificar, no texto, o seu nível mais abstrato. Primeiro, o texto foi analisado visando encontrar os elementos concretos e abstratos. Em seguida, os dados foram agrupados segundo os elementos significativos. Posteriormente, foi feita a depreensão dos temas centrais. Os temas que emergiram originaram duas categorias empíricas: 1) expressão da violência contra a mulher decorrente de questões de gênero; 2) estratégias de enfrentamento mediante a violência de gênero.

A análise fundamentou-se em autora(e)s que versam sobre a violência contra a mulher, buscando uma contextualização com a categoria analítica de gênero.

A identificação da(o)s participantes no texto foi feita por meio de um número, de acordo com a ordem crescente das entrevistas realizadas, seguida da categoria profissional, ou seja, entrevista n. 1 leia-se (E1, ACS) e, assim sucessivamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os participantes encontravam-se na faixa etária entre 25 e 59 anos, e desses, apenas dois eram do sexo masculino. Os dados quanto à escolaridade evidenciaram que cinco possuíam ensino superior completo e 20possuíam ensino médio completo. No que se refere ao período de atuação na USF, esse variava de 1 a 13 anos. Em relação à religião, 13 participantes eram católicos, 11 evangélicos e um espírita.

Dos dados empíricos dos discursos da(o)s informantes, emergiram as categorias explicitadas a seguir.

Categoria 1 - Expressão da violência contra a mulher decorrente de questões de gênero

Os discursos inerentes a essa categoria retrataram a mulher como vulnerável à violência física e psicológica no ambiente familiar, geralmente ocasionada pelo cônjuge, em decorrência de ciúmes e uso de álcool e outras drogas, demonstrando o domínio do homem em relação à mulher e provocando o isolamento do convívio social.

Violência física [...]. Na minha área de abrangência, mesmo, eu soube de um caso [...] que o marido [...], já era de costume sempre está batendo nela, está espancando, e esses dias ele chegou até a cortar o cabelo dela que era muito grande, por ciúme cortou a metade do cabelo [...] (E2, ACS).

[...] violências relacionadas, [...] a marido e mulher, [...] outro caso que foi um casal, que ela ficou toda marcada, [...] só que ela não quis vir aqui na unidade de saúde (E12, ACS).

A(o)s participantes demonstraram, em seus discursos, que a violência contra a mulher, geralmente, é ocasionada pelo homem numa posição de dominação, com o intuito de agredir e macular a imagem da mulher. Nessa perspectiva, verificamos duas situações em que a mulher foi agredida fisicamente, na primeira em virtude de ciúmes e, na segunda, ficou visível que a mulher optou em não dar visibilidade aos atos violentos do companheiro.

Em vista disso, "as implicações da violência conjugal na saúde da mulher ganham magnitude à medida que, através de pesquisas, os atos de agressão começam a sair da invisibilidade. A dificuldade de visualização dos agravos à saúde da mulher passa por fatores, como o fato de a violência acontecer em âmbito privado, e por constituir-se em medo e vergonha, o que impede à mulher torná-la pública".12:28

Podemos inferir, ainda, a partir desses discursos, a influência da ideologia machista na atitude do companheiro, que se sente no direito de espancar a companheira, o que denota uma questão de gênero permeada pela posição de superioridade do homem em relação à mulher, situação vista como muito natural na sociedade, o que facilita a aceitação da violência no contexto privado da família.

Nesse contexto, o gênero como um elemento inerente às relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, configura-se como uma forma primária de significação das relações de poder1010 Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. 2ª ed. Recife (PE): SOS Corpo; 1995. muito evidentes em situações de violência contra a mulher.

Por sua vez, a crença sobre as identidades de gênero arraigada na sociedade em geral, reflete a assimetria de poder entre o casal e naturaliza o domínio do homem sobre a esposa e o papel social que esta assume de casar, cuidar da casa e dos filhos. Essa construção desigual de gênero favorece o estabelecimento da violência na relação conjugal e possibilita a compreensão em algumas situações da permanência da mulher nesta relação.1313 Gomes NP, Diniz NMF, Camargo CL, Silva MP. Homens e mulheres em vivência de violência conjugal: características socioeconômicas. Rev Gaúcha Enferm. 2012 Jun; 33(2):109-16.

As mulheres muitas vezes vivem relações de ambiguidade sobre o que sentem pelo cônjuge e acreditam que a codependência pode ser uma possibilidade de interpretação a ser melhor investigada, principalmente nos casos em que coexistem expressões de amor e ódio entre o casal.1414 Pazo CG, Aguiar AC. Sentidos da violência conjugal: análise do banco de dados de um serviço telefônico anônimo. Physis. 2012 Jan-Abr; 22(1):253-73.

Os discursos, a seguir, explicitam a ocorrência da violência física e psicológica contra a mulher, praticada pelo cônjuge, em decorrência de ciúmes e abuso de poder controlador. As situações demonstraram que a mulher permite ser controlada pelo companheiro, sendo isolada do convívio social, de maneira que os atos violentos passam a ser limitados ao âmbito familiar.

Recentemente, na minha área tem uma família, [...] ela faz até acompanhamento aqui na unidade, e o portão era todo, assim, aberto, aí quando foi agora ela fechou o portão todo ou foi ele, [...]perguntei: 'Por que tu fechou esse portão?' [...] ela me respondeu [...] 'meu marido quis fechar' [...] (E9, ACS).

[...] fui na casa e ele tava agredindo a avó [sogra] e a esposa. A esposa tinha uns quinze dias que tinha ganhado neném [...] e me recebeu como se nada tivesse acontecendo, [...]abriu a porta e a esposa aproveitou para sair, mas naquele momento, ela tinha sido agredida, com o menino no colo, a avó também tinha sido agredida[...] (E25, ACS).

Nesses discursos, inicialmente, por meio da(o) informante, evidenciamos a identificação da violência psicológica contra a mulher, culminando no seu isolamento social. Em geral, a violência psicológica é empregada com a ideia de intimidar a mulher e forçá-la a conviver num ciclo de violência, de ameaças, reafirmando a hegemonia masculina nessa relação.

Observamos no discurso do(a) entrevistado(a) 25, que além da violência contra a companheira, o agressor violenta a sogra, coadunando com a Lei Maria da Penha ao definir que basta a convivência entre pessoas, independente dos laços consanguíneos e de coabitação, para que se configure a violência doméstica e familiar contra a mulher.5Brasil. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 8 Mai 2006. Seção 1. A nosso ver, a partir do momento em que existe convivência entre pessoas no âmbito doméstico, já se inicia um processo de envolvimento familiar, agregando valores parentais de proximidade, vínculo e afeto.

Outro aspecto a ser considerado, se refere ao fato de que a violência conjugal não pode ser vista, limitada ao binômio homem-agressor e/ou mulher-vítima, mas, principalmente, como um problema originado na construção da identidade de homens cujo relacionamento familiar foi marcado pela ausência de diálogo e presença de agressões físicas, o que pode caracterizar futuras relações afetivas violentas.1515 Gomes NP, Freire NM. Vivência de violência familiar: homens que violentam suas companheiras. Rev Bras Enferm. 2005 Mar-Abr; 58(2):176-9. Acreditamos, ainda, que configurar a mulher como vítima reafirma uma posição de inferioridade e passividade da mulher nas relações sociais, o que anula a sua autonomia e o direito de posicionar-se como cidadã.

Outra problemática, observada nos discursos analisados, refere-se ao uso de álcool e outras drogas, condições particulares individuais, familiares e coletivas, que tornam os grupos familiares acompanhados pela(o)s trabalhadora(e)s da ESF mais vulneráveis à ocorrência da violência.

Tem, também, outra parte da área que a maioria da violência é por conta do uso de drogas, contra a mulher (E5, ACS).

[...] os maridos que bebem, [...] o ambiente que vivem [...] traz muitas doenças psicológicas, porque vivem oprimidas, [a esposa] ela tem que aguentar aquelas coisas que o marido fala e se calar para não ser agredida fisicamente [...] (E13, ACS).

É importante ressaltarmos, que a problemática decorrente do uso de álcool e outras drogas gera desestruturação familiar e impulsiona os atos agressivos nas relações de gênero, propiciando a opressão da mulher.

A violência entre casais, muitas vezes, é desencadeada pelo homem ao não aceitar que a companheira interfira em seus hábitos e comportamentos em relação ao uso do álcool, sendo que, nesses casos, o parceiro pode atribuir à mulher a culpa pela ocorrência das agressões.1616 Deeke LP, Boing AF, Oliveira WF, Coelho EBS. A dinâmica da violência doméstica: uma análise a partir dos discursos da mulher agredida e de seu parceiro. Saude Soc. 2009 Abr-Jun; 18(2):248-58.

A partir do discurso da(o) trabalhador(a) 13, destacamos ainda que, apesar dos casos de violência serem mais facilmente identificados quando apresentam lesões aparentes, este(a) trabalhador(a) consegue identificar as queixas de ordem psicológica e social, que geralmente não têm tanta visibilidade e dependem da sensibilidade da(o)s trabalhadora(e)s envolvida(o)s no contexto para a definição da violência psicológica contra a mulher.

Categoria 2 - Estratégias de enfrentamento mediante a violência de gênero

Nessa categoria, identificamos nos discursos que a(o)s entrevistada(o)s ao se depararem com situações de violência contra a mulher recorrem aos demais membros da equipe da ESF para a elaboração de estratégias de enfrentamento do problema.

É levado, geralmente, para as reuniões que acontecem às sextas-feiras à tarde com toda equipe, principalmente a nossa coordenadora, ela fica informada do caso, onde ela busca ajuda nos órgãos que são responsáveis por cada situação [...] depois ela dá [...] um retorno de todo o trabalho que foi realizado (E1, ACS).

[...] a gente comunica a coordenadora [...]. Infelizmente, são muitos casos de família que nem sempre são resolvidos [...] nem sempre pode resolver porque foge até da nossa alçada [...], muitos casos de agressão, de violência contra a mulher, [...] não tem um apoio [serviços de outros setores que assistem a mulher em situação de violência], [...]uma eficácia [...] (E25, ACS).

A partir dos discursos, foi verificado que o(a)s trabalhadora(e)s da ESF buscam discutir os casos de violência e traçar as estratégias em equipe. Contudo, em algumas situações, essa(e)s trabalhadora(e)s se sentem sem condições de resolutividade, tendo em vista que as soluções não dependem apenas das ações da equipe, e não encontram o apoio necessário dos serviços de outros setores que assistem as mulheres em situação de violência, o que parece demonstrar uma fragilidade na articulação intersetorial no enfrentamento da violência de gênero.

Nesse contexto, percebemos que é de suma importância que, ao identificarem as situações de violência contra a mulher, a(o)s trabalhadora(e)s das equipes da ESF não atuem sozinhos, mas envolvam a equipe, considerando os desdobramentos inerentes ao contexto da violência. Ademais, cada situação denota uma atitude diferente, pois devem ser analisados todos os aspectos, inclusive os emocionais, socioeconômicos, culturais, religiosos, entre outros, evitando julgamentos ou tomadas de decisão sem a vontade ou consentimento da mulher em situação de violência. Para tanto, a(o)s trabalhadora(e)s das equipes da ESF devem evidenciar as questões de gênero, considerando, ainda, os direitos humanos e a cidadania.

Entretanto, não foi observada, nos discursos da(o)s trabalhadora(e)s, a ideia de que o enfrentamento da violência de gênero deva envolver a participação da mulher, com o propósito de motivar uma atitude proativa e o exercício da cidadania, porém parece se limitar à discussão de ações pela equipe.

No contexto da atenção primária à saúde, devemos primar pelo cuidado integral. Primeiramente, porque se trata de acolher a violência como problema em toda a sua complexidade, pensando na promoção, prevenção e cuidado dos casos, desde o tratamento de suas consequências à abordagem do problema de maneira interdisciplinar, com multiprofissionalidade e intersetorialidade da atenção. Segundo, porque se trata de uma decisão assistencial em que a mulher deve ser considerada como centro da tomada das decisões para a atenção e participar dessas decisões referentes ao seu cuidado.1717 D'Oliveira AFPL, Schraiber LB, Hanada H, Durand J. Atenção integral à saúde de mulheres em situação de violência de gênero: uma alternativa para a atenção primária em saúde. Ciênc Saúde Colet. 2009 [acesso 2013 Mai 10]. 14(4): [online] Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000400011&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

A Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde define o acolhimento como uma das diretrizes de maior relevância e, no contexto da atenção à saúde, requer que os seus profissionais atendam a todas as pessoas que procurem os serviços de saúde, ouvindo seus pedidos, assumindo uma postura acolhedora e respondendo às suas necessidades de saúde. Ou seja, consiste em prestar um atendimento com resolutividade e responsabilização, orientando, quando for o caso, a pessoa e a família em relação a outros serviços de saúde, para a continuidade da assistência e estabelecendo articulações com esses serviços, no intuito de garantir a eficácia desses encaminhamentos.1818 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. Brasília (DF): MS; 2010.

Os discursos explicitaram a integração da equipe como aspecto favorável ao desenvolvimento de estratégias de intervenção para solucionar os casos de violência.

[...] a equipe um sempre ajuda o outro, independente de ser enfermeiro, auxiliar ou até mesmo os próprios agentes comunitários [...] (E3, ACS).

[...] a integração da equipe, [...] as agentes chegam passa o problema, a coordenadora tenta resolver, [...] a pessoa que vem ela não sai sem uma solução [...] (E4, Técnica(o) de enfermagem).

[...] o apoio que a gente encontra aqui na equipe, quando a gente se depara com uma situação como essa, que a gente comunica em reunião, [...] cada um dá uma opinião [...] (E7, ACS).

Como foi externado nos discursos da(o)s informantes, se a equipe envolvida fornece apoio necessário aos seus membros, realmente o enfrentamento da situação pode tornar-se mais facilitado e resolutivo.

Por conseguinte, este enfrentamento deve ser coletivo e não isolado, com a finalidade de alcançar uma abrangência maior na área adscrita, evitando atuar apenas nos casos pontuais de maneira focalizada e, assim, apresentar impacto sobre a realidade apresentada.

Os discursos apontaram, ainda, que a(o)s trabalhadora(e)s da ESF identificam, aconselham e encaminham as mulheres em situação de violência aos serviços de assistência que atuam na prevenção e combate da violência.

Identificação, aconselhamento e encaminhamento ao órgão competente [...] (E8, Enfermeira(o)).

Converso e incentivo a procurar ajuda como a delegacia da mulher [...] (E11, Técnica(o) de enfermagem).

Encaminhamento para [...] assistente social e apoio na unidade de saúde da família (E14, Enfermeira(o)).

Nos discursos aparece a prática do encaminhamento, a exemplo da Delegacia da Mulher e Assistência Social. Ressaltamos a necessidade desse encaminhamento, mas deve ser priorizada, inicialmente, a escuta e o diálogo, de maneira que a mulher tenha a possibilidade de expressar todas as implicações inerentes ao contexto da violência e que a decisão de procurar outro órgão, para assistência, seja consciente e embasada por informações socializadas pela equipe da ESF, para que a mulher em situação de violência possa perceber as nuances das questões de gênero que influenciam os atos violentos e a necessidade do exercício de sua cidadania.

A nosso ver, esse encaminhamento deve ser viabilizado após serem esgotadas todas as possibilidades de atuação da equipe, para impedir que ocorram circunstâncias em que a(o)s trabalhadora(e)s de saúde delegam as ações para outros serviços, apenas pela necessidade de livrar-se da problemática.

Estudo1919 Santi LN, Nakano MAS, Lettiere A. Percepção de mulheres em situação de violência sobre o suporte e apoio recebido em seu contexto social. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):417-24. constatou que a conduta dos profissionais de saúde, na prática clínica, é de não acolhimento às necessidades das mulheres em situação de violência, com ações restritas a encaminhamentos, e nem sempre resulta em resposta adequada às demandas das mulheres. Neste estudo, os discursos revelaram, ainda, uma prática em que não se percebe a orientação das mulheres no sentido de motivar a construção da igualdade de gênero e da sua autonomia, confirmando uma prática muito tecnicista, orientada por protocolos, que desvaloriza no caso da violência de gênero, o papel profissional na construção da consciência crítica das mulheres para o enfrentamento da situação.

Nessa direção, evidenciamos a necessidade da(o)s trabalhadora(e)s, que assistem as mulheres em situação de violência, darem mais visibilidade às questões de gênero, além de propiciarem mudanças nas suas práticas para o atendimento às demandas inerentes ao contexto de vida de cada mulher, contemplando a dimensão humana e social, bem como o seu empoderamento, para decidirem qual atitude se coaduna com as experiências únicas e singulares, que impulsionam o exercício de cidadania.

As atitudes inadequadas dos profissionais que atendem as mulheres em situação de violência, podem reproduzir os preconceitos e as posturas sexistas que permeiam as relações sociais entre os sexos. Além disso, podem perpetuar as desigualdades entre homens e mulheres, o que reforça a experiência emocional de vulnerabilidade nas mulheres agredidas, criando um círculo vicioso entre violência interpessoal e violência institucional, impedindo que os serviços cumpram a sua vocação de interromper a cadeia de produção de violência.2020 Villela WV, Vianna LAC, Lima LFP, Sala DCP, Vieira TF, Vieira ML, et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde Soc. 2011 Jan-Mar; 20(1):113-23.

Em relação à enfermagem, que tem como objeto de trabalho o cuidado, é preciso redimensioná-lo, configurando uma prática profissional que busque a integralidade, a partir de reflexões sobre a realidade em contexto e que insira a mulher como sujeito proativo na construção deste cuidado.

Outro fator relevante pontuado nos discursos da(o)s trabalhadora(e)s da ESF se refere à dificuldade de acesso, bem como à falta de apoio e resolutividade dos órgãos da rede de serviços que lidam com a prevenção e o combate da violência de gênero.

[...] o acesso aos demais órgãos que podem nos ajudar na reestruturação dessa família se torna assim um pouco mais distante de cada um de nós [...] (E1, ACS).

[...] a omissão e a falta de retorno [...], fazemos o trabalho e depois de tudo pronto nós não temos o retorno, isso aí que é a dificuldade e é até desanimador (E3, ACS).

[...] onde a gente tem que procurar a gente não acha apoio, que seria, no caso, a secretaria de saúde, o assistente social, e a gente não acha apoio (E9, ACS).

Observamos que a(o)s participantes destacaram em seus discursos, principalmente, a falta de retorno dos órgãos assistenciais, em relação aos desdobramentos para a solução dos casos, o que dificulta um atendimento integrado e articulado, necessário ao desfecho favorável para contemplar, de maneira satisfatória, as especificidades de cada situação.

Nesse direcionamento, a contrarreferência na rede de atenção à violência de gênero deve ocorrer permitindo que a mulher seja reencaminhada para outro serviço assistencial, a exemplo da Delegacia da Mulher, Assistência Social e serviços jurídicos, de maneira a atender suas necessidades, acompanhada do preenchimento de formulários padronizados, que permitam o diálogo permanente entre a(o)s profissionais que assistem à mulher em situação de violência, através de descrição detalhada da assistência prestada, das orientações e sugestões que devem ser seguidas posteriormente.

A Lei Maria da Penha, em seu artigo 9º, evidencia que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá ser prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas, além de contemplar as políticas públicas de proteção e, emergencialmente, quando for o caso.5Brasil. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 8 Mai 2006. Seção 1.

No que se refere à assistência, cabe destacarmos que se faz necessária a integração de ações entre profissionais de vários setores assistenciais. A violência demanda ações de saúde para tratar e prevenir agravos físicos, emocionais e de saúde sexual e reprodutiva; orientação e assistência jurídica para as situações de separação, disputa de guarda dos filhos, orientações em relação aos direitos sobre bens e para situações que se configuram crime; assistência policial para denunciar os crimes, registro de queixas, proteção em situações de vulnerabilidade, retirada do agressor da casa; abrigo nas situações de risco de morte para a mulher e/ou seus filhos; assistência social para orientações sobre benefícios que auxiliem a melhoria na condição de vida e/ou que contribuam para o enfrentamento da violência e psicossocial, para a elaboração da situação familiar violenta e a construção de novos projetos de vida e de padrão de relação afetiva.2121 Hanada H, D'oliveira AFPL, Schraiber LB. Os psicólogos na rede de assistência a mulheres em situação de violência. Rev Estud Fem. 2010 Jan-Abr; 18(1):33-60.

Dessa maneira, o setor saúde não deverá atuar por si só em relação à violência de gênero e, sim, buscar estabelecer um trabalho em rede, além de estabelecer parceria com os equipamentos sociais da área de abrangência da ESF, como organizações não governamentais, associações de moradores, igrejas, entre outros, para que juntos possam enfrentar o fenômeno da violência, posto que este apresenta causas estruturais inerentes aos aspectos socioeconômicos, culturais, políticos e de saúde.

A assistência qualificada requer um olhar da(o) profissional de saúde para as subjetividades da mulher, o que permite espaço de escuta sem julgamentos. Para tanto, a(o)s profissionais necessitam desenvolver a sensibilidade para a identificação da violência como agravo à saúde e atuarem de maneira articulada, visto que o fenômeno extrapola o setor saúde, levando à necessidade da articulação em rede.9Gomes NP, Bomfim ANA, Diniz NMF, Souza SS, Couto TM. Percepção dos profissionais da rede de serviços sobre o enfrentamento da violência contra a mulher. Rev Enferm UERJ. 2012 Abr-Jun; 20(2):173-8.

Nessa perspectiva, as(os) trabalhadora(e)s de saúde, entre essa(e)s a(o) enfermeira(o), e os demais órgãos e instituições da rede de atenção que lidam com a violência, devem estar preparada(o)s para orientar e dar suporte às mulheres em situação de violência, acolhendo-as e subsidiando-as na tomada de decisão após agressão, além de implementarem ações de prevenção e empoderamento da mulher, para atuarem como protagonistas na construção da sua história.

CONCLUSÃO

A pesquisa possibilitou compreender uma face mais abrangente da violência no que tange às questões de gênero, e que apresentam grande influência nas relações estabelecidas entre homens e mulheres em nossa sociedade. Constatamos, a partir dos resultados encontrados, que a(o)s trabalhadora(e)s de saúde se deparam no contexto da ESF com situações de violência contra a mulher evidenciada pela agressão física e psicológica inerentes às relações de gênero.

Em relação às estratégias de intervenção implementadas pela(o)s trabalhador(e)s da ESF nas situações de violência contra a mulher, ressaltamos a participação da equipe de saúde através de orientação, aconselhamento e encaminhamento aos órgãos de assistência, seguindo uma normatização que dificulta uma abordagem das questões de gênero na assistência às mulheres em situação de violência.

O fato de as mulheres serem atendidas em USF, na qual atuam trabalhadora(e)s de diversas categorias profissionais, essa(e)s trabalhadora(e)s devem estar atentos às situações de violência vivenciadas pelas mulheres nos vários contextos de assistência à saúde. Devem buscar a rede de apoio, para redirecionarem as suas ações, a fim de promover o cuidado integral das mulheres nos serviços de saúde, dando voz às mesmas, suscitando o seu empoderamento, além de levá-las a perceber a importância de as decisões decorrerem delas próprias, a partir de uma consciência crítica sobre as questões de gênero.

Feitas essas considerações, destacamos, também, que é necessário proporcionar à mulher em situação de violência que decide denunciar, todas as condições de proteção e assistência previstas na legislação, o que exige da gestão pública a reestruturação dos serviços da rede de atenção, para garantir que ela possa ter acesso e ser acolhida pelos diversos serviços nas áreas de saúde, educação, assistência social e jurídica por profissionais qualificados e sensíveis à problemática da violência de gênero, capazes de implementar as ações necessárias para atender às demandas da mulher, além de impulsioná-la ao exercício da cidadania, devendo evitar atitudes prescritivas ou que reproduzam a naturalização da violência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2013
  • Aceito
    29 Nov 2013
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