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Violência contra a mulher por parceiro íntimo: (in)visibilidade do problema

Resumos

Objetiva-se identificar os motivos que desencadeiam a violência contra mulher e descrever os atos perpetrados pelo parceiro íntimo. Pesquisa documental, qualitativa, realizada numa Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres. Analisaram-se 902 ocorrências registradas entre agosto/2009 e dezembro/2011, cujas vítimas tinham, no mínimo, dezoito anos. Colheram-se os dados das ocorrências, transcrevendo-se literalmente, os relatos das vítimas e tratando-os através da análise de conteúdo. Apreenderam como desencadeadores de violência: supremacia masculina como geradora de sofrimento e submissão; problemas decorrentes do uso de drogas; problemas relacionados aos(às) filhos(as); e problemas com divisão de bens. A gravidade foi dimensionada pelas consequências à vítima e família. A equipe de enfermagem, como integrante da rede de apoio, precisa compreender esse fenômeno como problema de saúde e empenhar-se para romper os obstáculos que impedem o efetivo e eficaz atendimento, auxiliando no fortalecimento da autonomia feminina e incluindo os homens nas ações de combate e prevenção à violência contra a mulher.

Violência doméstica; Violência contra a mulher; Gênero e saúde; Enfermagem; Saúde pública


The objective is to identify the reasons behind violence against women and describe the acts perpetrated by an intimate partner. Documentary study, qualitative conducted at the Special Police Service to Women. We analyzed 902 occurrences between August/2009 and December/2011, whose victims had at least eighteen years old. We collected the data of occurrences, transcribing literally, stories of the victims and treating it them through the content analysis. It was observed as triggers of violence: male supremacy as a generator of suffering and submission; problems arising from drug use, problems related to children and division of assets. The severity was scaled for the consequences to the victim and their family. The nursing staff as part of the support network , need to understand this phenomenon as a health problem and strive to break through the barriers that impede effective and efficient service , assisting in the strengthening of women's autonomy and including men in combat actions and prevention of violence against women.

Domestic violence; Violence against women; Gender and health; Nursing; Public health


El objetivo del estudio fue identificar las razones que llevan a la violencia contra la mujer y describir los actos perpetrados por su pareja. Investigación documental, cualitativa realizada en el Servicio de Policía Especializada en Atención a Mujeres. Se analizaron 902 informes registrados entre Agosto/2009 y Diciembre/2011, cuyas víctimas tenían al menos dieciocho años. Se recolectaron los datos de las ocurrencias, describiendo literalmente, las historias de las víctimas y su tratamiento fue a través del análisis de contenido. Fue identificados como factores desencadenantes de la violencia: la supremacía masculina como generadora de sufrimiento y sumisión, los problemas derivados del uso de drogas, los problemas relacionados con los niños y la división de los bienes. La gravedad fue escalada por las consecuencias a la víctima y su familia. El personal de enfermería como parte de la red de apoyo, debe entender este fenómeno como un problema de salud y esforzarse por romper las barreras que impidan el servicio eficaz y eficiente, auxiliando en el fortalecimiento de la autonomía de las mujeres, incluyendo a los hombres en acciones de combate y prevención de la violencia contra las mujeres.

Violencia doméstica; Violencia contra la mujer; Género y salud; Enfermería; Salud pública


INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher tem sido abordada como um problema de saúde pública tanto pelo impacto negativo que provoca na qualidade de vida das vítimas quanto pelas implicações nos diferentes cenários, incluindo o jurídico, o econômico, o social e o de saúde. Apesar disso, embora se reconheça sua dimensão multidisciplinar, estudiosos destacam a invisibilidade social desse fenômeno, muitas vezes atribuída ao silêncio de vítimas e aos impasses comunicacionais entre vítima e profissionais.1Schraiber L, Oliveira AF, Hanada H, Figueiredo W, Couto M, Kiss L, et al. Violência vivida: a dor que não tem nome. Comunic Saúde Educ. 2003 Fev; 7(12):41-54.

A identificação dos aspectos epidemiológicos e das formas de violência praticadas contra a mulher permitiu constatar que o principal perpetuador dos atos violentos é o próprio parceiro íntimo.2Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, organizadores. World report on violence and health. Geneva (SW): World Health Organization; 2002. - 3Duvvury N, Grown C, Jennifer Redner. Estimating the costs and impacts of intimate partner violence in developing countries: a methodological resource guide. Washington: International Center for Research on Women; 2009 [acesso 2012 Abr 29]. Available at: http://www.icrw.org/files/publications/Estimating-the-Costs-and-Impacts-of-Intimate-Partner-Violence-in-Developing-Countries-A-Methodological-Resource-Guide.pdf
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Esse cenário, cercado de iniquidades, é fruto de questões histórico-culturais, advindas da organização da sociedade, responsável por justificar o domínio da mulher pelo homem.4Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Realidade. 1995 Jul-Dez; 20(2):71-99. Nesse sentido, de forma "natural", percebe-se que a cultura, veiculada pela família, legitimou as relações de poder, de gênero e de sexualidade, tornando o âmbito doméstico um terreno fértil para a prática da violência.5Meyer DE. Corpo, violência e educação: uma abordagem de gênero. In: Junqueira RD, organizador. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília (DF): MEC; 2009. p. 213-34.

Compreende-se violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto na esfera pública como na esfera privada.6Brasil. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher "Convenção de Belém do Pará". Adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, no Vigésimo Quarto Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Belém (PA); 1994 Foi no início da década de 1980, em decorrência de campanhas e protestos feministas, que esse fenômeno ganhou visibilidade. Inúmeras foram as reivindicações por políticas públicas de segurança e justiça, por meio das quais as mulheres se rebelavam contra a impunidade dos assassinatos praticados, geralmente, por companheiros ou ex-companheiros sob alegação de legítima defesa da honra.7Pasinato W, Santos CMD. Mapeamento das Delegacias da Mulher no Brasil. São Paulo (SP): Universidade de Campinas; 2008. Tal movimento repercutiu nacional e internacionalmente, desencadeando grandes avanços no que se refere à prevenção e ao combate dessa modalidade de violência.

A Lei n. 11.360/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, é a legislação brasileira que visa coibir e prevenir a violência doméstica e familiar.8Brasil. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Dispõe sobre mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (DF): Câmara dos deputados, Coordenação de Publicações; 2007. Apesar desse amparo legal, o número de mulheres vitimadas ainda é elevado. Registros demonstram que 70% dos incidentes acontecem dentro de casa, sendo o agressor o próprio marido ou companheiro; mais de 40% das violências resultam em lesões corporais em consequência de socos, tapas, chutes, queimaduras e espancamentos.9Narvaz MG, Koller SH. Mulheres vítimas de violência doméstica: compreendendo subjetividades assujeitadas. PSICO. 2006 Jan-Abr; 37(1):7-13. No entanto, a magnitude do problema é bem maior, pois o silêncio de muitas vítimas faz com que inúmeros casos não sejam denunciados, mascarando os dados epidemiológicos.

Além disso, raros são os profissionais que notificam a violência1010 Carvalho C, Destro JR, Faust SB, Coelho EBS, Boing AF. Dinâmica da violência entre casais a partir da ótica da mulher agredida no bairro Trindade, Florianópolis/SC. Cogitare Enfer. 2010 Out-Dez; 15(4):603-8. consumada ou presumida, apesar de ocuparem posição estratégica tanto para sua detecção,1010 Carvalho C, Destro JR, Faust SB, Coelho EBS, Boing AF. Dinâmica da violência entre casais a partir da ótica da mulher agredida no bairro Trindade, Florianópolis/SC. Cogitare Enfer. 2010 Out-Dez; 15(4):603-8. - 1111 Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. A violência de gênero e o processo saúde-doença das mulheres. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Jul-Set; 13(3):625-31. quanto para a prestação de assistência e encaminhamento das vítimas aos serviços especializados. Cabe enfatizar que a notificação da violência é obrigatória aos profissionais de saúde, em especial aos profissionais de enfermagem por sua atuação direta com as vítimas, sob pena de punição prevista em seus códigos de ética. A invisibilidade do problema aos profissionais da saúde é denomina de "conspiração do silêncio" em estudo internacional.1212 Yee A. Reforms urged to tackle violence against women in India. Lancet [online]. 2013 [acesso 2012 Abr 29]; 381(19876):1445-6. Available at: http://www.lancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736%2813%2960912-5/fulltext
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Não obstante, existem muitas barreiras que desqualificam a atenção necessária às mulheres em situação de violência, seja pelo despreparo,1212 Yee A. Reforms urged to tackle violence against women in India. Lancet [online]. 2013 [acesso 2012 Abr 29]; 381(19876):1445-6. Available at: http://www.lancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736%2813%2960912-5/fulltext
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falta de tempo, medo, pré-julgamentos relacionados aos estereótipos culturais ou por acreditarem que esse não é um problema de saúde, o que dificulta sua abordagem.1111 Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. A violência de gênero e o processo saúde-doença das mulheres. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Jul-Set; 13(3):625-31. Sabe-se, ainda, que, frente à complexidade do fenômeno, é necessária a atenção de uma equipe multidisciplinar, capacitada, coesa e sensível ao problema. Dificilmente ações e disciplinas isoladas terão sucesso no enfrentamento da violência contra a mulher.1313 Schraiber LB, Oliveira AFPL, Couto MT. Violência e saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher. Cad Saúde Pública. 2009; 25(sup2): 205-16.

Na enfermagem, a prática tem mostrado que se faz necessário discutir os modos de cuidar das vítimas, "para buscar aprofundar conhecimentos que reflitam o exercício de enfermagem - sobre o que fazer? Como fazer? e por que fazer? - de modo que esse atendimento se faça de forma singular e específica".14:156 É preciso recriar a linguagem pautada na doença e encarar problemas sociais como fenômenos que interferem na saúde, potencializando, desta forma, novas maneiras de cuidar.

Acredita-se que o contato com os relatos das vítimas, no auge do seu desabafo, contribui para a compreensão da gravidade do fenômeno e empenho dos profissionais de enfermagem, para que sejam rompidos os obstáculos, que impedem o efetivo e eficaz atendimento às mulheres em situação de violência. No conjunto de ações às vítimas, cabe aos enfermeiros, coresponsáveis pelo cuidado, o acolhimento, a escuta sensível que dê credibilidade à queixa, a orientação acerca dos seus direitos, para que sejam capazes de tomar decisões de forma cônscia.

Diante disso, e visando melhorias na qualidade de vida dessa população, bem como buscando contribuir com a equipe de enfermagem na identificação e no reconhecimento dos agravos ocasionados pela violência contra a mulher, o presente estudo teve como objetivos: identificar os motivos que levam à prática da violência e descrever os atos de violência perpetrados, por parceiro íntimo, às mulheres que efetuaram denúncias na Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres (DEAM), no município do Rio Grande-RS.

MÉTODO

Trata-se de um estudo documental, de natureza qualitativa, realizado na DEAM, Rio Grande-RS. Os dados foram coletados em 902 ocorrências policiais, cujas vítimas eram mulheres, com idade igual ou superior a dezoito anos. O recorte temporal adotado estendeu-se de agosto de 2009, quando foi implantada essa DEAM, a dezembro de 2011, e a coleta efetuada entre outubro de 2011 e março de 2012. Antecedendo a essa etapa, realizou-se a capacitação de quatro acadêmicas que participaram da coleta, enfocando-se principalmente a necessidade de confidencialidade dos dados e da manutenção do anonimato dos envolvidos na ocorrência.

Um manual de instruções também foi elaborado, a fim de uniformizar a coleta, garantindo-se, assim, sua homogeneidade. Utilizando um computador portátil, os dados contidos nas ocorrências foram transcritos na íntegra, conforme relatos das vítimas. Tais transcrições foram identificadas pela letra "I", seguida do número da ordem de preenchimento.

Adotou-se a técnica de análise de conteúdo para o tratamento dos dados.15 15 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Edições 70; 2011.Primeiramente, realizou-se a leitura flutuante e preparação do material, seguido da categorização, descrição e interpretação, momento em que foram feitos recortes em unidades de contexto. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde (CEPAS) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), sob parecer n. 137/2011.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Das 902 ocorrências policiais, 676 (75%) referiam-se à violência praticada por parceiro íntimo, o que demonstra, à semelhança de outros estudos, o predomínio da violência conjugal contra as mulheres.2Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, organizadores. World report on violence and health. Geneva (SW): World Health Organization; 2002. - 3Duvvury N, Grown C, Jennifer Redner. Estimating the costs and impacts of intimate partner violence in developing countries: a methodological resource guide. Washington: International Center for Research on Women; 2009 [acesso 2012 Abr 29]. Available at: http://www.icrw.org/files/publications/Estimating-the-Costs-and-Impacts-of-Intimate-Partner-Violence-in-Developing-Countries-A-Methodological-Resource-Guide.pdf
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, 1111 Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. A violência de gênero e o processo saúde-doença das mulheres. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Jul-Set; 13(3):625-31. , 1414 Morais SCRV, Monteiro CFS, Rocha SS. O cuidar em enfermagem à mulher vítima de violência sexual. Texto Contexto Enferm. 2010 Jan-Mar; 19(1):155-60. , 1616 Vieira LB, Padoin SMM, Souza IEO. Perspectivas para o cuidado de enfermagem às mulheres que denunciam a violência vivida. Esc Anna Nery. 2011 Out-Dez; 15(4):678-85. Cabe destacar que esse tipo de violência é extremamente degradante, considerando-se que é praticada por uma pessoa com quem a vítima mantém ou manteve uma relação íntimo-afetiva. Além disso, ocorre, em sua maioria, no âmbito privado, ou seja, o local que deveria ser de acolhimento e conforto torna-se cenário para a prática dos atos violentos.

Para apresentar os motivos desencadeadores dos atos violentos, inicialmente utilizaram-se dados numéricos, visto que "a quantidade se apresenta sempre como uma distinção no interior da qualidade; e a qualidade está sempre presente nas quantidades, sendo a quantidade em si uma qualidade do objeto ou da realidade".17:96 A seguir, cada motivo desencadeador de violência foi ilustrado com a descrição dos atos praticados contra as denunciantes.

Analisando os relatos descritos nas ocorrências, percebeu-se que há diversos motivos desencadeadores da violência, os quais geraram quatro categorias: a supremacia masculina como geradora de sofrimento e submissão (379); problemas decorrentes do uso drogas (85); problemas relacionados aos(às) filhos(as) (50); e problemas com a divisão de bens (32).

A supremacia masculina como geradora de sofrimento e submissão

A naturalização do poder masculino sobre o corpo e as escolhas da mulher, fruto dos estereótipos culturais, tem servido para legitimar a prática da violência doméstica. Assim, reconhecer e aceitar, sem reflexões nem críticas, as atitudes autoritárias do homem, como manifestações violentas de ciúme, desconformidade com a separação e com a denúncia policial,1010 Carvalho C, Destro JR, Faust SB, Coelho EBS, Boing AF. Dinâmica da violência entre casais a partir da ótica da mulher agredida no bairro Trindade, Florianópolis/SC. Cogitare Enfer. 2010 Out-Dez; 15(4):603-8. , 1818 Ribeiro DKL, Duarte JM, Lino KC, Fonseca MRCC. Caracterização das mulheres que sofrem violência doméstica na cidade de São Paulo. Saúde Colet. 2009; 6(35):264-68. constitui estímulo à perpetuação da violência. Neste estudo, tais pretextos também foram evidenciados e exemplificados nos seguintes trechos:

[...] começou a perturbar a vítima desde que ela relatou querer a separação, há um mês. Rasga as roupas da vítima, o material da escola que ela trabalha. Vítima teme pela sua vida e a dos filhos (I 425).

[...] perseguida desde a separação, há um ano. Foi agarrada pelo pescoço de surpresa, tentando lhe estrangular, enquanto esperava o ônibus e foi salva por populares [...](I 393).

o acusado está inconformado com a separação e procura a vítima incisivamente. Manda email e mensagem, procura seus familiares e amigos para convencer que ela volte com ele [...](I 197).

A rotinização da violência é um dos fatores que motiva a mulher a romper o relacionamento com o parceiro.1616 Vieira LB, Padoin SMM, Souza IEO. Perspectivas para o cuidado de enfermagem às mulheres que denunciam a violência vivida. Esc Anna Nery. 2011 Out-Dez; 15(4):678-85. Todavia, como evidenciado, ao não aceitar a separação, ele parte para a violência como tentativa de amedrontar a vítima e fazer com que desista. Frente a essas situações, as mulheres sentem-se desprotegidas, humilhadas e desvalorizadas,18 18 Ribeiro DKL, Duarte JM, Lino KC, Fonseca MRCC. Caracterização das mulheres que sofrem violência doméstica na cidade de São Paulo. Saúde Colet. 2009; 6(35):264-68.o que pode contribuir com a somatização de problemas de saúde. Cabe destacar que essa fragilização causa efeitos negativos na autoestima e autoimagem, acarretando uma maior propensão a aceitar a vitimização,9Narvaz MG, Koller SH. Mulheres vítimas de violência doméstica: compreendendo subjetividades assujeitadas. PSICO. 2006 Jan-Abr; 37(1):7-13. ou ainda, a tentativa de suicídio como forma de escapar dos abusos.1212 Yee A. Reforms urged to tackle violence against women in India. Lancet [online]. 2013 [acesso 2012 Abr 29]; 381(19876):1445-6. Available at: http://www.lancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736%2813%2960912-5/fulltext
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O apoio da família se torna ímpar frente ao acolhimento à vítima, bem como ao suporte no momento de desamparo. No entanto, fruto da cultura que valoriza os padrões sexuais hierárquicos, é comum a própria rede social culpabilizar a mulher pelo fato ocorrido.1919 Santi LN, Nakano MAS, Lettiere A. Percepção de mulheres em situação de violência sobre o suporte e apoio recebido em seu contexto social. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):417-24. Nesse sentido, pode-se dizer que essa desigualdade entre os sexos, pautada na assimetria de poder, influencia no "modo de viver, adoecer e morrer das mulheres". 11:626

Contudo, a exacerbação do domínio masculino não causa impacto negativo somente à vítima. De acordo com o evidenciado, o problema estende-se aos(às) filhos(as), familiares e comunidade,3Duvvury N, Grown C, Jennifer Redner. Estimating the costs and impacts of intimate partner violence in developing countries: a methodological resource guide. Washington: International Center for Research on Women; 2009 [acesso 2012 Abr 29]. Available at: http://www.icrw.org/files/publications/Estimating-the-Costs-and-Impacts-of-Intimate-Partner-Violence-in-Developing-Countries-A-Methodological-Resource-Guide.pdf
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com consequências de ordem econômica, psicológica, comportamental, interpessoal e profissional.

O mesmo ocorre quando a violência é desencadeada pelo ciúme, que constitui um sentimento de posse sobre a mulher.1010 Carvalho C, Destro JR, Faust SB, Coelho EBS, Boing AF. Dinâmica da violência entre casais a partir da ótica da mulher agredida no bairro Trindade, Florianópolis/SC. Cogitare Enfer. 2010 Out-Dez; 15(4):603-8. Com base nesse sentimento, o homem costuma afirmar que se ela não for dele, não será de mais ninguém.

Acusado vive lhe ameaçando, dizendo que irá lhe matar com uma faca. Mostra-se ciumento e possessivo dizendo que se ela não ficar com ele, não ficará com ninguém [...] (I 474).

Quando ia para o trabalho, o marido começou a implicar com sua roupa dizendo que ela estava arrumada para se encontrar com outro. Quando ela voltou para a casa, viu suas roupas rasgadas, calçados destruídos, maquiagens e chapinha quebradas, rasgou a carteira de trabalho (I 525).

Nesses relatos, percebe-se a presença de atitudes patriarcais, que realizam e reatualizam o controle sobre as mulheres. Casos de exacerbação dos sentimentos de posse, de moralismo e nas agressões por ciúme, geralmente tem seu ápice diante do homicídio.2020 Lamoglia CVA, Minayo MCS. Violência conjugal, um problema social e de saúde pública: estudo em uma delegacia do interior do Estado do Rio de Janeiro. Ciên Saúde Coletiva. 2009; 14(2):595-604. É possível confrontar os resultados deste estudo com discursos masculinos, que centralizam as decisões ao exercerem o poder sobre suas parceiras, por meio da escolha das roupas, das amizades e do direito de trabalhar.2020 Lamoglia CVA, Minayo MCS. Violência conjugal, um problema social e de saúde pública: estudo em uma delegacia do interior do Estado do Rio de Janeiro. Ciên Saúde Coletiva. 2009; 14(2):595-604. - 2121 Gomes NP, Diniz NMF. Homens desvelando as formas da violência conjugal. Acta Paul Enferm. 2008; 21(2):262-7.

A violência psicológica, embora invisível, causa medo e insegurança nas vítimas, ocasionando apatia e, assim, tornando-as vulneráveis a outros atos violentos isolados ou associados a outras formas de violência, como a patrimonial,8Brasil. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Dispõe sobre mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (DF): Câmara dos deputados, Coordenação de Publicações; 2007. descrita na destruição dos objetos, instrumentos de trabalho e documentos pessoais da vítima.

O abuso de poder pode ser identificado quando as mulheres são impedidas de desfrutar da própria liberdade de ir e vir. O cárcere privado constitui uma forma de violência psicológica decorrente da dominação masculina.

Manteve presa em casa acorrentada por cinco dias, sem alimentos; só com roupas íntimas para sentir frio. A mãe [da vítima] conseguiu lhe libertar ao receber a ligação da vítima no celular e depois foi ameaçada pelo agressor. Foi severamente espancada [vítima] ficando dez dias sem poder sair da cama pelas lesões (I 469).

Tal relato denuncia a gravidade desse fenômeno, que muitas vezes é silenciado dentro dos lares. A mulher torna-se inerte frente a essas situações, necessitando de ajuda para fugir das amarras dos atos violentos. Outros estudos também evidenciam a severidade do fenômeno ao comprovar que a violência doméstica e a conjugal afetam a sociabilidade da mulher bem como sua produtividade.3Duvvury N, Grown C, Jennifer Redner. Estimating the costs and impacts of intimate partner violence in developing countries: a methodological resource guide. Washington: International Center for Research on Women; 2009 [acesso 2012 Abr 29]. Available at: http://www.icrw.org/files/publications/Estimating-the-Costs-and-Impacts-of-Intimate-Partner-Violence-in-Developing-Countries-A-Methodological-Resource-Guide.pdf
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, 1111 Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. A violência de gênero e o processo saúde-doença das mulheres. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Jul-Set; 13(3):625-31. Nos conflitos conjugais, geralmente, o espancamento, o estrangulamento, os tapas e as bofetadas10 10 Carvalho C, Destro JR, Faust SB, Coelho EBS, Boing AF. Dinâmica da violência entre casais a partir da ótica da mulher agredida no bairro Trindade, Florianópolis/SC. Cogitare Enfer. 2010 Out-Dez; 15(4):603-8. atingem a mulher, gerando sérias consequências no processo de saúde-doença.

Em países desenvolvidos tais como Austrália, Canadá e Estados Unidos, os custos envolvendo a assistência a mulheres, vitimadas pelos parceiros íntimos, são examinados por meio de investimento significativo em serviços de saúde e na justiça criminal.3 Duvvury N, Grown C, Jennifer Redner. Estimating the costs and impacts of intimate partner violence in developing countries: a methodological resource guide. Washington: International Center for Research on Women; 2009 [acesso 2012 Abr 29]. Available at: http://www.icrw.org/files/publications/Estimating-the-Costs-and-Impacts-of-Intimate-Partner-Violence-in-Developing-Countries-A-Methodological-Resource-Guide.pdf
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Desta forma, devido aos traumas imediatos ou pelos agravos secundários, os serviços de saúde surgem como os primeiros locais de acolhimento às vítimas, tendo na figura dos profissionais de enfermagem, os trabalhadores da saúde que mais proximamente vivenciam essas situações.1414 Morais SCRV, Monteiro CFS, Rocha SS. O cuidar em enfermagem à mulher vítima de violência sexual. Texto Contexto Enferm. 2010 Jan-Mar; 19(1):155-60. Todavia, é preciso que todos passem a se preocupar com o fenômeno, procurando identificá-lo e compreendê-lo em profundidade, garantindo, assim, uma assistência diferente do modo hegemônico,11 11 Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. A violência de gênero e o processo saúde-doença das mulheres. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Jul-Set; 13(3):625-31.o qual acaba revitimando a mulher.

O poder do homem novamente é evidenciado, ao forçar a vítima a manter relação sexual independentemente da sua vontade, tratando-a como objeto sexual.

Ele lhe agride quando nega relação sexual [...] ele a puxou dos cabelos e deu dois tapas na cara quando ela disse que não estava bem para manter relação. Ele dizia que tudo é invenção (I 675).

A recusa da relação sexual pode ser entendida como uma possível traição e como um contrapoder, o que desencadeia novas discussões, agressões e a própria violência sexual.2121 Gomes NP, Diniz NMF. Homens desvelando as formas da violência conjugal. Acta Paul Enferm. 2008; 21(2):262-7. Embora se pense que os crimes sexuais são realizados em sua maioria por desconhecidos, há estudos evidenciando a prevalência do estupro conjugal.1111 Guedes RN, Silva ATMC, Fonseca RMGS. A violência de gênero e o processo saúde-doença das mulheres. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009 Jul-Set; 13(3):625-31.

Apesar disso, nem todas as mulheres tomam a iniciativa para romper o ciclo da violência ou mesmo nem reconhecem sua situação de submissão. De acordo com os achados deste e de outros estudos,1818 Ribeiro DKL, Duarte JM, Lino KC, Fonseca MRCC. Caracterização das mulheres que sofrem violência doméstica na cidade de São Paulo. Saúde Colet. 2009; 6(35):264-68. , 2020 Lamoglia CVA, Minayo MCS. Violência conjugal, um problema social e de saúde pública: estudo em uma delegacia do interior do Estado do Rio de Janeiro. Ciên Saúde Coletiva. 2009; 14(2):595-604. quando se encorajam para denunciar o parceiro, correm o risco de serem revitimadas, sob ameaça de morte ou agressão física. Tal atitude, por parte do parceiro, reflete no restabelecimento do ciclo da violência.

Vítima vem sendo ameaçada de morte, fazendo com que ela desista das medidas protetivas. Forçou a porta para entrar na sua residência. Já foi acudida por familiares para não ser agredida (I 403).

Passou a ameaçá-la dizendo: 'já que bater em ti não adianta, por causa da Maria da Penha, eu vou preso igual, então é mais fácil te matar' (I 470).

Fez ameaças de morte, que não tem medo da polícia e nem do juiz, descumprindo medida judicial (I 496).

Os depoimentos também demonstram que, para os agressores, nem a polícia, nem a legislação são capazes de detê-los. O fato de serem contrariados em uma "ordem" também se torna principal motivo, indicado por agressores, como desencadeador de violência.2222 Deeke LP, Boing AF, Oliveira WF, Coelho EBS. A dinâmica da violência doméstica: uma análise a partir dos discursos da mulher agredida e de seu parceiro. Saúde Soc. 2009; 18(2):248-58. Assim, questiona-se a resolutividade das medidas protetivas, bem como das penas atribuídas.

Problemas decorrentes do uso de drogas

Sabe-se que existe uma interação de elementos que atuam sobre o comportamento, diminuindo ou aumentando as chances de uma pessoa tornar-se vítima ou agressor.2Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, organizadores. World report on violence and health. Geneva (SW): World Health Organization; 2002. , 2323 Trigueiro TH, Labronici LM. Chemical dependency as a risk factor for domestic violence against women. Online Braz J Nurs [online]. 2011 [acesso 2012 Abr 29]; 10(2):1-9. Available at: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3266/html
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Nesse sentido, fatores individuais, tal como o uso de drogas, têm sido referidos como capazes de precipitar a violência, de acordo com o mencionado pelas vítimas.

Quando o acusado saiu para beber e voltou bêbado começaram a discutir e ele disse que lhe mataria e desferiu um soco em seu rosto. As ameaças continuaram e ele a trancou no quarto [...](I 578).

Existem evidências de que o uso de drogas, tanto lícitas como ilícitas, na maioria das vezes, está presente no contexto da violência contra a mulher.2Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, organizadores. World report on violence and health. Geneva (SW): World Health Organization; 2002. , 2222 Deeke LP, Boing AF, Oliveira WF, Coelho EBS. A dinâmica da violência doméstica: uma análise a partir dos discursos da mulher agredida e de seu parceiro. Saúde Soc. 2009; 18(2):248-58. - 2323 Trigueiro TH, Labronici LM. Chemical dependency as a risk factor for domestic violence against women. Online Braz J Nurs [online]. 2011 [acesso 2012 Abr 29]; 10(2):1-9. Available at: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3266/html
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Estudos apontam que o álcool enfraquece as inibições do usuário, contribuindo para a manifestação de violência.2Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, organizadores. World report on violence and health. Geneva (SW): World Health Organization; 2002. Acredita-se que esse efeito desinibidor seja responsável por eclodir as agressões. Alguns homens utilizam esse argumento como desculpa para seus comportamentos violentos. Outras vezes, responsabilizam a mulher pela sua atitude violenta ao não aceitar que a parceira interfira nos seus hábitos.2222 Deeke LP, Boing AF, Oliveira WF, Coelho EBS. A dinâmica da violência doméstica: uma análise a partir dos discursos da mulher agredida e de seu parceiro. Saúde Soc. 2009; 18(2):248-58.

Vítima chamou atenção por ele [agressor] estar bebendo, então ele a agrediu com socos e pontapés, arrastou pelos cabelos [...] (I 240).

No que se refere às drogas ilícitas, o uso de crack tem sido apontado como um promotor dos atos violentos.2323 Trigueiro TH, Labronici LM. Chemical dependency as a risk factor for domestic violence against women. Online Braz J Nurs [online]. 2011 [acesso 2012 Abr 29]; 10(2):1-9. Available at: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3266/html
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Essa droga tem implicações tanto individuais quanto legais e sociais,2Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, organizadores. World report on violence and health. Geneva (SW): World Health Organization; 2002. associada à necessidade de sustentar a dependência química.

Em decorrência do uso de crack lhe agride fisicamente, o acusado costuma lhe trancar em casa com os filhos e vende os pertences (I 192).

Acusado obriga vítima a lhe dar dinheiro e furta objetos da casa dela para vender e comprar drogas [...] (I 671).

Para manter o consumo de drogas, é comum a venda de pertences, como forma de financiar o vício. Desse modo, frente ao comportamento violento do agressor e, por conseguinte, insegurança e medo por parte da vítima2323 Trigueiro TH, Labronici LM. Chemical dependency as a risk factor for domestic violence against women. Online Braz J Nurs [online]. 2011 [acesso 2012 Abr 29]; 10(2):1-9. Available at: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3266/html
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instala-se uma barreira na comunicação entre ambos. Nesse sentido, as mulheres que vivem com homens usuários de drogas, lícitas ou ilícitas, apresentam maior risco de vitimização.

Problemas relacionados aos(às) filhos(as)

Dentre os vários motivos desencadeadores da violência, aparecem, com maior frequência a guarda e visitação dos(as) filhos(as), os problemas relacionados ao pagamento de pensão e ainda, a atitude materna de protegê-los(as) da agressão efetuada pelo pai.

Acusado foi entregar o filho para a vítima e quando ela reclamou do horário, levou um soco (I 345).

Agressor foi à casa da vítima buscar a filha e ela não deixou, e assim lhe esmurrou na face deixando desmaiada (I 355).

Ele [acusado] lhe persegue, invadiu o pátio e lhe ameaçou de morte querendo que retire o processo de pensão. Diz que comprará um revolver e matará a vítima [...](I 582).

A prescrição dos papéis familiares, ao longo do tempo, foi responsável por ditar valores patriarcais, segundo uma divisão rígida e tradicional de afazeres.9Narvaz MG, Koller SH. Mulheres vítimas de violência doméstica: compreendendo subjetividades assujeitadas. PSICO. 2006 Jan-Abr; 37(1):7-13. Ao homem coube a função de provedor e chefe da família; à mulher cuidar do lar, dos(as) filhos(as) e educá-los(as). Nesse sentido, legitimou-se à mãe a responsabilidade pela guarda das crianças diante da separação conjugal.8Brasil. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Dispõe sobre mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (DF): Câmara dos deputados, Coordenação de Publicações; 2007.

Observa-se, no entanto, que diante da supremacia masculina, que responde com a prática da violência, é difícil para a mulher exercer sua autonomia, quando se trata de posicionamentos divergentes, principalmente quando envolve os(as) filhos(as) expostos e vitimados, indiretamente, pelos conflitos conjugais, com repercussão para vida toda. Questiona-se: como fica o estado psicológico de uma criança que vê o pai agredindo a mãe brutalmente? Cabe destacar que presenciar a violência pode perpetuar comportamentos violentos, gerar situações de desajuste para crianças e adolescentes, além de prejudicar sua educação e formação.3Duvvury N, Grown C, Jennifer Redner. Estimating the costs and impacts of intimate partner violence in developing countries: a methodological resource guide. Washington: International Center for Research on Women; 2009 [acesso 2012 Abr 29]. Available at: http://www.icrw.org/files/publications/Estimating-the-Costs-and-Impacts-of-Intimate-Partner-Violence-in-Developing-Countries-A-Methodological-Resource-Guide.pdf
http://www.icrw.org/files/publications/E...
, 9Narvaz MG, Koller SH. Mulheres vítimas de violência doméstica: compreendendo subjetividades assujeitadas. PSICO. 2006 Jan-Abr; 37(1):7-13.

Para evitar esses transtornos, a mulher que sofre violência doméstica e representa contra o agressor, tem entre as medidas protetivas tem a restrição ou suspensão das visitas aos(às) filhos(as) menores, além da prestação de alimentos provisionais.8Brasil. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Dispõe sobre mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (DF): Câmara dos deputados, Coordenação de Publicações; 2007. Ainda, a legitimação do seu papel de cuidadora reforça a atenção e proteção dispensada às crianças, exemplificado no relato abaixo:

[...[ xingou a vitima, quebrou objetos dentro da casa, ia bater no filho e acabou batendo na vítima porque ela se intrometeu (I 373)

É por causa dos(as) filhos(as) que muitas mulheres tomam a iniciativa de romper com o ciclo da violência, denunciando o agressor. Além disso, diante de tanto sofrimento, há aquelas que saem de casa, visando uma vida feliz e em paz, junto com seus(suas) filhos(as).1616 Vieira LB, Padoin SMM, Souza IEO. Perspectivas para o cuidado de enfermagem às mulheres que denunciam a violência vivida. Esc Anna Nery. 2011 Out-Dez; 15(4):678-85. , 2020 Lamoglia CVA, Minayo MCS. Violência conjugal, um problema social e de saúde pública: estudo em uma delegacia do interior do Estado do Rio de Janeiro. Ciên Saúde Coletiva. 2009; 14(2):595-604.

Problemas com a divisão de bens

Os problemas relacionados à divisão de bens fazem parte deste contexto e também são desencadeadores de violência contra a mulher.

Ao conversar sobre a divisão do imóvel, começam a discutir, pois estão separados e morando no mesmo imóvel. Ele lhe ofendeu e deu um soco no seu rosto e disse que se tiver que sair da casa colocaria fogo no imóvel (I 575).

Ele diz que não sairá de casa, que ela deve procurar outro lugar, embora o imóvel seja dos dois. Ele a puxou dos cabelos e a colocou para fora de casa chutou-a e deu socos restando escoriação no braço, pescoço e pernas (I 656).

Observa-se que o poder do homem reverte-se em diversas formas de violência. Especificamente, nesses casos, a tentativa de afastar a mulher dos lugares e espaços, que consideram seus domínios, é executada por meio de agressão física e ameaças. Acreditando na sua superioridade, pensa que tem o direito de exercer o controle dos bens do casal, ameaçando-a de expulsão da casa.1Schraiber L, Oliveira AF, Hanada H, Figueiredo W, Couto M, Kiss L, et al. Violência vivida: a dor que não tem nome. Comunic Saúde Educ. 2003 Fev; 7(12):41-54.

Autoras apregoam que as vítimas de violência, isoladas da rede de parentesco e da comunidade, estão mais expostas ao controle do agressor.9Narvaz MG, Koller SH. Mulheres vítimas de violência doméstica: compreendendo subjetividades assujeitadas. PSICO. 2006 Jan-Abr; 37(1):7-13. Cabe destacar que as mulheres que convivem com os parceiros e são violentadas têm respaldo pela Lei Maria da Penha, que obriga o agressor a sair do lar e manter distância da vítima e de sua família.8Brasil. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Dispõe sobre mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (DF): Câmara dos deputados, Coordenação de Publicações; 2007. Para tanto, é impar a capacitação dos operadores da lei, no âmbito jurídico e policial, a fim de romper os pré-julgamentos,1919 Santi LN, Nakano MAS, Lettiere A. Percepção de mulheres em situação de violência sobre o suporte e apoio recebido em seu contexto social. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):417-24. acolher as vítimas de forma mais humanizada e orientá-las acerca de seus direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apresentados neste estudo demonstram que, independentemente dos motivos que desencadeiam a violência contra a mulher e da categorização desses, a maioria é fruto do sentimento de posse e de dominação masculina. Além disso, notou-se que a gravidade desse fenômeno não está centrada somente na frequência com que ocorrem, mas também na repercussão às vítimas e suas famílias.

As diferentes formas de violência ferem os direitos humanos e ratificam a necessidade de uma rede de suporte coesa, com abordagem multidisciplinar e com profissionais capacitados para identificar a situação de violência, orientar e intervir efetivamente no processo de saúde-doença das mulheres. Para isso, primeiramente, é preciso romper as barreiras culturais e os pré-julgamentos frente ao acolhimento e assistência às vítimas.

Diante da simultaneidade da violência, cabe à equipe de enfermagem o reconhecimento dos agravos ocasionados, compreendendo a violência além do aspecto biológico, incluindo a atenção humanizada, voltada às dimensões psicológica, social e espiritual da mulher. Compreender a dinâmica da violência contra a mulher contribui com uma prática de enfermagem reflexiva, efetiva e em consonância com as necessidades da vítima e de sua família.

Somado a isso, ações preventivas e educativas de valorização da mulher e da família, bem como de incentivo ao diálogo na resolução dos conflitos e promoção de vínculo familiar são medidas ímpares no enfrentamento desse fenômeno. No entanto, o problema da violência perpetrada por parceiro íntimo continuará irresoluto se o foco das intervenções se mantiver exclusivamente sobre as mulheres. Assim, salienta-se a necessidade de incluir os homens nas ações de combate e prevenção à violência contra a mulher.

Este estudo apresentou os motivos que levaram à prática da violência, descrevendo atos perpetrados por parceiro íntimo. Espera-se, com isso, auxiliar a equipe de saúde e, em especial, os profissionais de enfermagem, na identificação de mulheres vulneráveis, além de instigar a intervenção da sociedade, de outros profissionais e de governantes acerca da implementação de políticas públicas eficazes e necessárias ao real enfrentamento e combate da violência contra a mulher.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2013
  • Aceito
    17 Mar 2013
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