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Exequibilidade da atenção integral em genética clínica no sistema único de saúde: ampliando o debate

Resumos

Este artigo tem por objetivo tornar proeminentes as discussões acerca da Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica e refletir sobre sua pendente regulamentação, quando descobertas genômicas transformam o modelo de atenção à saúde. Nove dentre dez causas de morbimortalidade mundiais apresentam predisposição genética/genômica. Essa Política, fundamentada no planejamento estratégico, propõe a estruturação de uma rede de serviços de referência e centros especializados em genética, com capacidade para responder às necessidades da população. Sua regulamentação pressupõe capacitação e qualificação dos profissionais de saúde para oferecer atenção integral, otimizar o acesso, identificar e diagnosticar precocemente indivíduos com risco aumentado para agravos com predisposição genética. Na atenção básica à saúde, o cuidado em pauta não deve ser interpretado enquanto especialidade, mas como especializado. Esse modelo apresenta perspectivas inovadoras em consonância com os princípios e diretrizes modeladores do Sistema Único de Saúde.

Genética; Genômica; Saúde pública; Política de saúde


This article aims to highlight the discussions on the National Policy for Comprehensive Care in Clinical Genetics and reflect on its pending regulation when genomic discoveries change the model of health care. Nine of the ten causes of morbidity and mortality worldwide presents genetic/genomic predisposition. Based on strategic planning, this Policy proposes the organization of a network of referral services and specialized centers in genetics, with capacity to meet the needs of the population. Its regulation requires training and qualification of the health care professionals to provide comprehensive care, to optimize access, to identify and diagnose individuals with increased risk for injuries with genetic predisposition early. In primary health care, the care in question should not be interpreted as a specialty, but as specialized. This model presents innovative perspectives, in line with the principles and guidelines of the Unified Health System.

Genetics; Genomics; Public health; Health policy


Este estudio objetivó tornar prominentes discusiones acerca de la Política Nacional de Cuidado Integral en Genética Clínica y reflexionar sobre su regulación pendiente cuando descubrimientos genómicos transforman el modelo de atención a salud. Nueve entre diez causas de morbilidad y mortalidad en todo mundo presentan predisposición genética/genómica. La Política, fundamentada en la planificación estratégica, propone ofrecimiento de asesoramiento genético, mediante estructuración de una red de servicios de referencia y centros especializados, para satisfacer las necesidades de la población. Su regulación requiere capacitación y cualificación de profesionales de salud para ofrecer el cuidado integral, optimizar el acceso, identificar y diagnosticar precozmente individuos con mayor riesgo de enfermedades con predisposición genética. En la atención primaria de salud, el cuidado en cuestión no debe ser interpretado como una especialidad, pero sí como especializado. Este modelo presenta perspectivas innovadoras en consonancia con principios y directrices de los modeladores del Sistema Único de Salud.

Genética; Genómica; Salud pública; Política de salud


INTRODUÇÃO

No cenário mundial, os sistemas de saúde vêm enfrentando consideráveis mudanças frente aos rápidos avanços da genômica.11. Syurina EV, Brankovic I, Probst-Hensch N, Brand A. Genome based health literacy: a new challenge for public health genomics. Public Health Genomics. 2011 Jan; 14(4-5):201-10. Com o mapeamento e o sequenciamento do genoma humano, ampliaram-se as tecnologias de pesquisa, as quais estão sendo utilizadas para identificar fatores genéticos e genômicos, assim como para determinar sua influência na saúde das populações.22. Lea DH, Skirton H, Read CY, Willams JK. Implications for educating the next generation of nurses on genetics and genomics in the 21st century. J Nurs Scholarsh. 2011 Mar; 43(1):3-12. Informações e tecnologias advindas do Projeto Genoma Humano (PGH) apresentam potencial para: a) melhorar a identificação precoce de indivíduos e famílias com ou sob risco de apresentarem uma condição genética; b) estabelecer intervenções para redução de risco, visando à prevenção de agravos; c) ampliar o rastreamento genético de indivíduos e famílias; d) subsidiar o prognóstico e a tomada de decisão informada de sujeitos com ou sob risco para doenças genéticas; e) desenvolver o cuidado individualizado e personalizado e f) fazer uso da farmacogenômica, mediante a seleção e utilização de fármacos com base na variação genética individual e na metabolização dos mesmos. 11. Syurina EV, Brankovic I, Probst-Hensch N, Brand A. Genome based health literacy: a new challenge for public health genomics. Public Health Genomics. 2011 Jan; 14(4-5):201-10. , 33. Calzone KA, Cashion A, Feetham S, Jenkins J, Prows CA, Williams JK, et al. Nurses transforming health care using genetics and genomics. Nurs Outlook. 2010 Jan; 58(1):26-35.

Os profissionais de saúde, atuantes no âmbito da saúde pública, necessitam iniciar o processo de tradução desses avanços para o cerne dos sistemas de saúde, de maneira responsável e resolutiva, com vistas a ampliar o cuidado em saúde e modificar o foco da atenção curativa para estratégias preventivas.1 1. Syurina EV, Brankovic I, Probst-Hensch N, Brand A. Genome based health literacy: a new challenge for public health genomics. Public Health Genomics. 2011 Jan; 14(4-5):201-10. É o momento de repensar as estratégias de prevenção e tratamento atualmente utilizadas pelos sistemas de saúde, não se restringindo aos profissionais, mas ampliando o debate para o público em geral, para os formuladores de políticas públicas e outras partes interessadas envolvidas nesse cenário.11. Syurina EV, Brankovic I, Probst-Hensch N, Brand A. Genome based health literacy: a new challenge for public health genomics. Public Health Genomics. 2011 Jan; 14(4-5):201-10. Frente aos avanços elucidados pelo PGH e o aumento da proporção de óbitos atribuíveis aos defeitos congênitos,44. Ministério da Saúde. DATASUS [página na internet]. Informações de Saúde. Óbitos infantis - Brasil: malformações congênitas deformidades e anomalias cromossômicas [acesso 2011 Jul. 21]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/inf10uf.def
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atualmente a segunda causa de mortalidade infantil no Brasil,55. Horovitz DDG, Cardoso MHC A, Lierena Jr. JC, Mattos RA. Atenção aos defeitos congênitos no Brasil: características do atendimento e propostas para formulação de políticas públicas em genética clínica. Cad Saúde Pública. 2006 Dez; 22(12):2599-609. iniciaram-se discussões para implantação da genética clínica no Sistema Único de Saúde (SUS). 66. Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM) [página na internet]. Pela atenção à saúde em genética. 2008. [acesso 2011 jul.3]. Disponível em: http://www.sbgm.org.br/artigos/Artigo_JT_Gen%C3%A9tica_no_SUS_17ago08.pdf
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Em resposta a essas discussões, o Ministério da Saúde propôs a Portaria GM/MS n. 81/2009, que institui a Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica (PNAIGC).77. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 81, de 20 de janeiro de 2009. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): MS, 2009. A portaria ratifica a necessidade de estruturar, no SUS, uma rede de serviços regionalizada e hierarquizada que permita a atenção integral em genética clínica e a melhoria do acesso a esse atendimento.77. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 81, de 20 de janeiro de 2009. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): MS, 2009. Entretanto, a falta de regulamentação da PNAIGC e, por conseguinte, da efetivação dos seus pressupostos, torna ineficaz o largo espectro de ações propostas por essa política, os quais ainda se encontram no plano da idealização.

Esse artigo tem o objetivo de tornar proeminentes as discussões sobre a PNAICG, com o escopo de refletir acerca da pendente regulamentação dessa política.

POLÍTICAS DE SAÚDE NA CONFORMAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: REVITALIZANDO O DEBATE

No Brasil, as questões econômicas, sociais e ambientais são regulamentadas por políticas públicas.88. Lucchese PTR, Aguiar DS, Wargas T, Dias-de-Lima L, Magalhães R, Monerat GL. Informação para tomadores de decisão em saúde pública: políticas públicas em saúde. São Paulo (SP): BIREME/OPAS/OMS; 2002. Uma política pública pode ser entendida como um dispositivo que revela o dever do Estado em garantir, no âmbito da saúde, a resolutividade dos serviços, o acesso oportuno à assistência e a prática do cuidado. Essas têm, no bojo de sua criação, a razão de ampliar a capacidade do sistema em acolher as necessidades de saúde e, ao mesmo tempo, reorganizar as práticas, de maneira que possam ser mais resolutivas e integrais.99. Righi LB, Pasche DF, Akermam M. Saúde e desenvolvimento: interconexões, re-orientação dos serviços de saúde e desenvolvimento regional [página na internet]. Ijuí (RS) - Santo André (SP); 2006. [acesso 2011 jul. 17]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/avaliacao_saude_desenvolvimento.pdf
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Na sociedade brasileira, as políticas de saúde têm raízes no início do século passado, em decorrência de uma proposta estatutária.1010. Cohn A. O estudo das políticas de saúde: implicações e fatos. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de saúde coletiva. Rio de Janeiro (RJ): Ed. Fiocruz; 2006. p.231-58. - 1111. Machado CV, Baptista TWF, Nogueira CO. Políticas de saúde no Brasil nos anos 2000: a agenda federal de prioridades. Cad Saúde Pública [online]. 2011 [acesso 2011 Jul 21]; 27(3):521-32. Disponível em http://www.scielosp.org/pdf/csp/v27n3/12.pdf
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Em 1988, a Constituição Federal reconheceu a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado, inserida em uma concepção ampla de seguridade social, a ser garantida mediante políticas econômicas e sociais abrangentes, pela instituição do SUS.1111. Machado CV, Baptista TWF, Nogueira CO. Políticas de saúde no Brasil nos anos 2000: a agenda federal de prioridades. Cad Saúde Pública [online]. 2011 [acesso 2011 Jul 21]; 27(3):521-32. Disponível em http://www.scielosp.org/pdf/csp/v27n3/12.pdf
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- 1212. Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. Lancet. 2011 Maio; 6(11)54-8. A Constituição assegura que as políticas de saúde sejam orientadas pelos princípios e diretrizes do SUS,1313. Ministério da Saúde (BR), Sistema Único de Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Coleção progestores: para entender a gestão do SUS. Brasília (DF): CONASS; 2011. p.165-180. contrapondo-se à tradição histórica de como têm sido estabelecidas. Tais políticas têm apresentado uma configuração altamente centralizada e verticalizada, com concentração do poder ao nível central de governo, frente à definição de prioridades e da execução dos serviços de saúde pelos estados e municípios. As políticas de saúde quer na sua formulação, quer na sua implantação e execução, se configuram como processos complexos e jogos de interesses múltiplos à guisa das reais necessidades de saúde da população. 1010. Cohn A. O estudo das políticas de saúde: implicações e fatos. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de saúde coletiva. Rio de Janeiro (RJ): Ed. Fiocruz; 2006. p.231-58. O caráter pluralístico do processo de gestão das políticas públicas traz consigo o papel do Estado a fim de fortalecer sua dimensão articuladora e catalisadora na exequibilidade desse processo.1414. Cavalcanti BS, Peci A. Além da reforma do aparelho do Estado: para uma nova política de gestão pública. In: Cavalcanti BS, Ruediger MA, Sobreira R. Desenvolvimento e construção nacional: políticas públicas. Rio de Janeiro (RJ): Editora FGV; 2003. p.33-56.

DESORDENS GENÉTICAS E GENÔMICAS COMO PROBLEMAS DE SAÚDE PÚBLICA

A genética é a ciência voltada para a atenção às alterações cromossômicas, doenças gênicas e síndromes raras, que podem ser herdadas e afetam de 3-5% da população no mundo.1515. Feetham SL, Williams JK. Genetics in nursing. Geneva (CH): International Council of Nurses; 2004. Já o termo genômica, utilizado pela primeira vez por McKusick e Ruddle, compreende o estudo de todos os genes do genoma humano, suas interações entre si, com o meio ambiente, sob a influência de fatores culturais e psicossociais.1616. Mckusick VA, Ruddle FH. Toward a complete map of the human genome. Genomics. 1987 Nov; 1(2):103-6. - 1717. International Society of Nurses in Genetics (ISONG). Genetics genomics nursing: scope & standarts of practice. Silver Spring (US): American Nurses Association; 2007. De acordo com essas definições e com pressupostos dos diretores dos National Institutes of Health e do National Human Genome Research Institute, nove dentre as dez primeiras causas de morbimortalidade mundiais podem ser consideradas doenças genéticas e genômicas, por apresentarem tais predisposições.1818. Guttmacher AE, Collins FS. Genomic medicine: a primer. N Engl J Med. 2002 Mar; 34(19):1512-20. Assim, está sendo proposto um novo modelo de cuidado embasado em genômica, que abrange o diagnóstico, a prevenção e a terapêutica com base na constituição genética individual.1919. Jenkins J, Bednash G, Malone B. Bridging the gap between genomics discoveries and clinical care: nurse faculty are key. J Nurs Scholarsh. 2011 Mar; 43(1):1-2. Pode-se considerar que o cuidado baseado em genômica está em consonância com a integralidade na assistência à saúde por compreender a dimensão biopsicossocial e espiritual do ser humano. A integralidade, um dos princípios do SUS, orienta as linhas de cuidado, por meio das quais podem ocorrer a promoção, prevenção e reabilitação da saúde, frente à complexidade e às especificidades do continuum saúde/doença, das diferentes abordagens do processo de cuidar e das distintas dimensões da pessoa a ser cuidada.2020. Silva KL, Sena RR. Integralidade do cuidado na saúde: indicações a partir da formação do enfermeiro. Rev Esc Enferm USP [online]. 2008 Mar [acesso 2011 Jul 17]; 42(1):48-56. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v42n1/07.pdf
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No território nacional, ações para organização do atendimento inicial, diagnóstico, exames complementares, serviços de referência e contrarreferência, estratégias de tratamento e a longitudinalidade do cuidado precisam ser estimuladas de forma a atender sujeitos portadores de doenças com predisposição genética ou em risco para manifestá-las.55. Horovitz DDG, Cardoso MHC A, Lierena Jr. JC, Mattos RA. Atenção aos defeitos congênitos no Brasil: características do atendimento e propostas para formulação de políticas públicas em genética clínica. Cad Saúde Pública. 2006 Dez; 22(12):2599-609. É necessário organizar a atenção e capacitar os profissionais para oferecer acolhimento e escuta às necessidades de saúde dessas pessoas.2121. Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro (RJ): Ims, Abrasco; 2001. p.113-26. Todavia, pequena importância tem sido dada às suas necessidades de saúde, pois são observadas falta de políticas públicas e uma resposta governamental insuficiente diante da escassez dos serviços de genética no país.55. Horovitz DDG, Cardoso MHC A, Lierena Jr. JC, Mattos RA. Atenção aos defeitos congênitos no Brasil: características do atendimento e propostas para formulação de políticas públicas em genética clínica. Cad Saúde Pública. 2006 Dez; 22(12):2599-609. Na busca por responder a essas demandas, o Ministério da Saúde propôs a portaria que instituiu a PNAIGC.77. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 81, de 20 de janeiro de 2009. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): MS, 2009.

POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À GENÉTICA CLÍNICA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: POSSIBILIDADES E DESAFIOS

A recente política instituída ressalta que as enfermidades com predisposição genética têm maior prevalência nos países em desenvolvimento, possivelmente refletindo a falta de medidas preventivas e terapêuticas adequadas.7 7. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 81, de 20 de janeiro de 2009. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): MS, 2009. É fundamental ser mencionado o papel da prevenção, por meio de campanhas educativas, da sensibilização do público e dos profissionais de saúde em relação a essa questão, considerada um problema de saúde pública.55. Horovitz DDG, Cardoso MHC A, Lierena Jr. JC, Mattos RA. Atenção aos defeitos congênitos no Brasil: características do atendimento e propostas para formulação de políticas públicas em genética clínica. Cad Saúde Pública. 2006 Dez; 22(12):2599-609.

Para exequibilidade da Política, a portaria pressupõe ações nos níveis de atenção básica e especializada.7 7. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 81, de 20 de janeiro de 2009. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): MS, 2009. Na atenção básica podem ser realizados procedimentos de baixa complexidade como a identificação, referência e o acompanhamento de indivíduos e famílias com agravos relacionados a desordens genéticas. A atenção especializada abrange os centros de referência em genética clínica e as unidades especializadas, com acompanhamento multiprofissional e interdisciplinar, na realização de procedimentos de média complexidade para os casos que forem encaminhados pela atenção básica.77. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 81, de 20 de janeiro de 2009. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): MS, 2009.

Tendo em vista a operacionalização da política, alguns aspectos merecem destaque e tornam-se necessários. Ressalta-se a necessidade de estabelecer critérios mínimos para o credenciamento e a habilitação dos serviços de genética clínica, assim como para a oferta de auxílio aos gestores na regulação, fiscalização, controle e avaliação do cuidado prestado aos usuários.77. Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 81, de 20 de janeiro de 2009. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): MS, 2009. No âmbito da assistência, é essencial a qualificação dos profissionais envolvidos com a implantação e com a implementação da PNAIGC, por meio da educação permanente em saúde, em conformidade com os princípios da integralidade. Na área de pesquisa, destaca-se a importância de fomentar, coordenar e executar projetos estratégicos, que visem o estudo de custo-efetividade, eficácia e qualidade dos serviços de genética. No manejo de base de dados, ressalta-se a promoção do intercâmbio com outros subsistemas de informações setoriais, com objetivo de aperfeiçoar a produção de dados e a democratização de informações.2222. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Nota Técnica sobre a Política de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília (DF): CONASS; 2008. p.1-7.

REGULAMENTAÇÃO DA PNAIGC: UMA NECESSIDADE PREMENTE

O Brasil vive sob a égide da Constituição de 1988, que representa um marco histórico em termos de reconhecimento de direitos sociais. Em seu artigo de n. 196, é previsto a "saúde como sendo direito de todos e dever do Estado". Decorridos mais de vinte anos desde sua promulgação, é inegável a expansão do acesso a esses direitos.2323. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado; 1988. Título VIII. Da Ordem Social. Capítulo II. Seção II. Da Saúde. Art. 196. Todavia, a evolução do cenário da saúde pública brasileira ainda apresenta desafios a serem superados. Em primeiro lugar, aponta-se a dificuldade de aplicar normas gerais, exequíveis e equânimes, a um país tão imenso e desigual. Em segundo lugar, a existência de conteúdos de caráter técnico-processual tratados, geralmente, com detalhamento excessivo, burocrático e complexo.1313. Ministério da Saúde (BR), Sistema Único de Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Coleção progestores: para entender a gestão do SUS. Brasília (DF): CONASS; 2011. p.165-180.

Apesar das tentativas do SUS em minimizar a desigualdade, melhorar o acesso e a integralidade de atenção dos serviços de saúde, mantém-se, desde a sua criação, um imponente entrave à saúde da população, ou seja: a regulamentação das políticas públicas e seus financiamentos. Isso significa que mesmo a constituição federativa tendo rompido com o padrão excludente do acesso às ações e aos serviços de saúde, há aspectos que podem inviabilizar a regulamentação dessas políticas como, por exemplo, os interesses de setores organizados que coadunam com uma perspectiva de Estado com pouca capacidade regulatória.

O direito universal à saúde está bem estabelecido, mas entre declarações de propósitos e a realidade há abismos quase intransponíveis. O acesso e o consumo de serviços proporcionados aos indivíduos com doenças genéticas, ou sob risco de apresentarem patologias geneticamente determinadas, têm se mostrado aquém do esperado, exemplo claro da divergência entre a proposição constitucional e a realidade dos serviços brasileiros de genética .

A insuficiência de uma resposta governamental efetiva, frente à problemática dos defeitos congênitos no Brasil, apresenta-se como um desafio nos dias de hoje.2424. Novoa MC, Fróes-Burnham T. Desafios para a universalização da genética clínica: o caso brasileiro. Rev Panam Salud Publica. 2011 Nov; 29(1):61-8. É premente ressaltar ainda que a ausência de acesso e consumo de serviços de genética clínica tem levado muitos usuários a se utilizarem do processo de judicialização, tendo por base as prerrogativas do Estado de direito garantido constitucionalmente. Essa situação reflete, de um lado, a visão paternalista que a sociedade tem do Estado e, de outro, a falta de regras para regular a assistência em genética no país.2424. Novoa MC, Fróes-Burnham T. Desafios para a universalização da genética clínica: o caso brasileiro. Rev Panam Salud Publica. 2011 Nov; 29(1):61-8.

A inserção da "mentalidade genética" na atenção primária à saúde deve ser entendida como uma das ações mais eficazes para a implantação de uma rede efetiva e integral em genética clínica,5 5. Horovitz DDG, Cardoso MHC A, Lierena Jr. JC, Mattos RA. Atenção aos defeitos congênitos no Brasil: características do atendimento e propostas para formulação de políticas públicas em genética clínica. Cad Saúde Pública. 2006 Dez; 22(12):2599-609. corroborando com a afirmação de que a integralidade é o princípio do SUS que norteia a constituição das redes de cuidado.2121. Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro (RJ): Ims, Abrasco; 2001. p.113-26.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como objetivo proporcionar uma reflexão sobre questões que incidem sob a regulamentação da PNAIGC e, por conseguinte, do cuidado integral, do acesso e do consumo de serviços de genética clínica no Brasil. Com a regulamentação da PNAIGC implantar-se-á um novo modelo de atenção às necessidades de saúde de famílias brasileiras portadoras ou em risco para desenvolver doenças geneticamente determinadas. Esse modelo apresenta perspectivas inovadoras, sobretudo capazes de responder aos princípios e diretrizes modeladores do SUS, em especial ao princípio da integralidade.

A consolidação dos avanços previstos com a regulamentação dessa Política não envolve, necessariamente, a instalação dos serviços de referência, com centros e laboratórios altamente especializados, mas o aproveitamento da rede já existente, fundamentada no planejamento estratégico. Breves medidas técnico-operacionais podem garantir, ainda que de modo incipiente a princípio, porém com efeito significativo a médio e longo prazo, a atenção em genética clínica, com impacto orçamentário positivo.

Na atenção primária, os profissionais de saúde podem utilizar uma ferramenta genômica de baixo custo e alta eficácia, a coleta e o registro da história familiar de, pelo menos, três gerações, de forma a elucidar riscos genéticos e genômicos. Isso possibilita o reconhecimento de padrões de herança genética, contempla o princípio da longitudinalidade do cuidado e pode contribuir para o sistema de referência e contrarreferência em genética e genômica. Cumpre ressaltar que, no nível da atenção básica à saúde, o cuidado em pauta não deve ser interpretado enquanto especialidade, mas como especializado.

Conclui-se que a regulamentação da PNAIGC precisa priorizar a identificação e o diagnóstico precoce de indivíduos com risco aumentado para agravos genéticos, bem como a melhoria da sua qualidade de vida em todo o país, favorecendo o cuidado em saúde baseado em genômica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2013
  • Aceito
    05 Nov 2013
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