ANÁLISE DE NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DE FRITZ SCHÜTZE APLICADA À PESQUISA EM ENFERMAGEM

RESUMO

Objetivo:

relato de experiência com o objetivo de apresentar a aplicação adaptada da análise de narrativas autobiográficas proposta por Fritz Schütze com famílias no pós-desastre natural na pesquisa em enfermagem.

Método:

descreve-se primeiramente o processo de obtenção das narrativas, seguido das adaptações dos passos de aplicação do método.

Resultados:

foram pesquisados seis casos de famílias de uma área rural do sul do Brasil, um ano após o desastre no qual houve mortes e perdas materiais. O primeiro passo foi a análise formal do texto. O segundo, a análise minuciosa de cada segmento de narrativa. O terceiro consistiu na abstração analítica com a reconstrução das histórias das famílias. O quarto passo resgatou os segmentos argumentativos das narrativas e as explicações teóricas desenvolvidas pelos próprios informantes sobre o desastre. O quinto passo resumiu-se na comparação entre os diferentes casos.

Conclusão:

este método oferece subsídios para a entrevista e análise aprofundada das narrativas da saúde e da doença e seu contexto social. O seu potencial de aplicação na pesquisa de enfermagem destaca o desvelar das atitudes e das mudanças de vida frente à crise e ao sofrimento, a partir de vivências de indivíduos em grupos como famílias e comunidade.

DESCRITORES:
Enfermagem; Autobiografia; Narrativas; Famílias; Desastre

ABSTRACT

Objective:

an experience report with families after natural disasters to present the adapted application of autobiographical narrative analysis in nursing research, proposed by Fritz Schütze.

Method:

to describe the process of obtaining narratives followed by the adaptations steps of method application.

Results:

six cases of families from a rural area of southern Brazil were surveyed one year after the disaster which resulted in deaths and material losses. The first step was the formal text analysis. The second, was the accurate analysis of each narrative segment. The third phase consisted of the analytic abstraction with the reconstruction of the families' stories. The fourth step recaptured the discussion segments of narratives and theoretical explanations developed by the informants about the disaster. The fifth step summarized the comparison among different cases.

Conclusion:

the method offers support for interviews and in-depth analysis of health and disease narratives and their social context. Its potential for application to nursing research highlights attitudes and life changes in the face of crisis and suffering, based on experiences of individuals in groups such as families and communities.

DESCRIPTORS:
Nursing; Autobiography; Narratives; Families; Disaster

RESUMEN

Objetivo:

relatar experiencias para presentar la aplicación adaptada del análisis de narrativas autobiográficas propuesta por Fritz Schütze con las familias en el post-desastre natural, en la investigación en enfermería.

Método:

primeramente, se describe el proceso de obtención de las narrativas, seguido por las adaptaciones de los pasos de aplicación del método.

Resultados:

se investigaron seis casos de familias de un área rural del sul del Brasil después de un año del desastre en el que ocurrieron muertes y pérdidas materiales. El primer paso fue el análisis formal del texto. El segundo paso fue el análisis minucioso de cada segmento de la narrativa y el tercero consistió en la abstracción analítica con la reconstrucción de las historias de las familias. El cuarto paso rescató los segmentos argumentativos de las narrativas y las explicaciones teóricas desarrolladas por los propios informantes sobre el desastre. El quinto paso se resumió a la comparación entre los diferentes casos.

Conclusion:

este método ofrece subsidios para la entrevista y el análisis profundo de las narrativas de salud, enfermedad y su contexto social. Su potencial de aplicación en la investigación de la enfermería destaca las actitudes y los cambios de la vida frente a la crisis y al sufrimiento, a partir de las vivencias de los individuos en grupos como familias y comunidad.

DESCRIPTORES:
Enfermería; Autobiografía; Narrativas; Familias; Desastre

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, pesquisadores da área da saúde, especialmente da enfermagem, têm se apoiado nas ciências sociais, notadamente na antropologia e na sociologia, para compreender as experiências dos seus clientes. Isto possibilitou dar maior importância às narrativas e entender que precisam ser analisadas tendo como referência o contexto das pessoas.¹ Analisar tais narrativas permite aos profissionais de saúde construírem seus conhecimentos a respeito de determinados temas e situações pelas quais as pessoas passam. Isto possibilita antecipar alguns cuidados, ter participação ativa, adequada, interferindo ou não onde pode haver algum risco para a saúde.

Assim, os pesquisadores brasileiros na área da saúde têm buscado autores para alavancar os métodos de entrevista e análise das narrativas. Um dos autores que despertou a atenção foi o sociólogo Fritz Schütze, com suas publicações acerca das análises das narrativas. O método do referido autor tem como base o Interacionismo Simbólico, a Fenomenologia Social e a Etnometodologia Social. Sob esta perspectiva, o autor entende que a explicação dos fenômenos sociais não pode prescindir da perspectiva dos indivíduos. Desta forma, Schütze e seu grupo de trabalho contribuíram para a retomada da pesquisa biográfica.

O método está ancorado em dois marcos teóricos: a teoria da narrativa e a teoria biográfica. De acordo com a teoria da narrativa, existem três fases, que são a narrativa, a descrição e a argumentação. A teoria biográfica está sistematizada em categorias analíticas denominadas de processos biográficos estruturados. Ou seja, a análise das narrativas está direcionada para os elementos centrais que moldam as biografias e que são relevantes para a compreensão das posições e papéis ocupados na estrutura social, compreensão dos contextos nos quais as narrativas foram construídas, e os fatores que produzem as mudanças e motivam as ações no curso da vida.²-³

Fritz Schütze coordenou também pesquisas com temas na área da saúde, como exemplo, é possível salientar o projeto sobre o papel pedagógico dos médicos em relação a seus pacientes com doenças crônicas, tais como infarto de miocárdio e câncer de mama.⁴

No Brasil, as etapas da entrevista narrativa tal como idealizada por Fritz Schütze foram explicitadas em língua portuguesa, pela primeira vez, em uma publicação⁵ que instigou pesquisadores brasileiros da sociologia, educação, psicologia e enfermagem a buscarem mais subsídios para utilizarem tal método.

Na área da saúde e da enfermagem, alguns estudos⁶-¹⁰ utilizaram nas suas pesquisas o método proposto por Fritz Schütze. Um estudo analisa as experiências de enfermidade de pacientes com leucemia mieloide crônica, centrando nas dimensões que apontam a chegada da doença como uma ruptura biográfica⁶ com idosos longevos,⁷ com famílias que sofreram perdas um desastre natural,⁸ puérpera de alto risco com seu recém-nascido internado⁹ e sobre a paternidade na adolescência.¹⁰

Diante da possibilidade de contribuir para aperfeiçoar a utilização das narrativas na área da saúde, o objetivo deste artigo é apresentar a aplicação adaptada da análise de narrativas autobiográficas proposta por Fritz Schütze, com famílias no pós-desastre natural.

PROCESSO DE OBTENÇÃO DAS NARRATIVAS

O contexto do estudo em que se procedeu à obtenção de narrativas foi uma localidade rural do Médio Vale do Itajaí-SC, atingida por um desastre natural no ano de 2008, caracterizado por inundação e movimentos de massa. O impacto do evento foi bastante significativo, tendo em vista o número de óbitos (mais de 100 mortos) e de desabrigados que permaneceram por longo tempo em abrigos temporários, necessitando de ajuda para recuperar-se economicamente dos prejuízos sofridos na propriedade, trabalho e ambiente comunitário, além do luto pelas perdas pessoais e familiares. A saúde das famílias foi emocionalmente abalada com a experiência inesperada, repercutindo em situações agudas de doença que se manifestaram predominantemente durante a permanência nos abrigos, afetando em especial as crianças. Sintomas como insônia, depressão e ansiedade foram relatados, justificando o aumento do uso de medicações psicotrópicas por mulheres e adultos, assim como, reflexos de agravamento da condição crônica de doença em idosos (doenças cardiovasculares, por exemplo).

O ciclo vital familiar é o processo de viver do grupo social, em que tarefas e papéis são continuamente experienciados para o seu funcionamento ao longo do tempo. A dinâmica e a estrutura dos arranjos familiares sofrem mudanças que podem ser esperadas ou inesperadas, consistindo em fases de transição ou crise. Na presente pesquisa, pressupôs-se que a vivência da crise por um desastre natural caracterizou uma transição inesperada, em que mudanças imprevistas pelas famílias motivaram modificações ou adaptações em sua rotina, nos rituais de cuidado e na estrutura das relações.

Entendemos que transições normativas do ciclo de vida são também denominadas de eventos maturacionais (esperados), como casamentos, nascimentos, passagem para a vida adulta, sendo frequentemente assinalados com rituais religiosos e étnicos ou seculares. Por outro lado, muitas famílias se deparam com transições do ciclo de vida idiossincráticas (inesperadas) e também denominadas de eventos nodais, que podem incluir o nascimento de um filho deficiente, aborto, migração, acidente, gravidez indesejada ou na adolescência, dentre outros. As transições continuamente imprevistas para a família trazem mudanças que influenciam nas rotinas e nos rituais.¹¹

Neste aspecto, a presente pesquisa teve o seguinte problema: como as famílias atingidas percebiam as suas rotinas e rituais na fase de transição do pós-desastre, considerando as diversas mudanças de vida derivadas de tal evento. A escolha para o uso do método de análise de narrativas esteve alinhada à perspectiva filosófica interpretativista, pressupondo compreender o mundo complexo da experiência das famílias atingidas no desastre socioambiental, levando em conta as mudanças no ciclo vital. Conforme Schütze,¹² os pesquisadores desta linha têm como orientação o paradigma interpretativo, no qual os interesses estão voltados para as interpretações biográficas dos sujeitos envolvidos em seus modelos de análise.

A pesquisa seguiu a abordagem qualitativa e se caracterizou pelo delineamento de estudo de múltiplos casos, em que cada núcleo familiar participante significou um caso em estudo. O estudo de caso é uma investigação empírica que focaliza fenômenos contemporâneos dentro do seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente definidos e o pesquisador tem pouco ou nenhum controle sobre os acontecimentos ou comportamentos estudados.¹³-¹⁴

A obtenção das narrativas se iniciou dois anos após o desastre natural e o trabalho de campo para a coleta dos dados durou nove meses. Participaram da pesquisa seis núcleos familiares, totalizando 12 indivíduos adultos, dez crianças entre zero e 12 anos e três adolescentes. Os critérios de inclusão definiam como participantes núcleos familiares com filhos (crianças e adolescentes), sobreviventes ao desastre de 2008 e residentes no municipio de pertencimento da localidade afetada. Os núcleos familiares foram gradativamente incluídos na pesquisa, à medida que os dados foram sendo colhidos e concomitantemente analisados desde o início da coleta dos dados. Procedeu-se ao fechamento da amostragem e da coleta de dados com o avançar do tempo despendido no trabalho de campo, e a partir da obtenção de narrativas que denotavam a saturação para a análise relacionada à pergunta de pesquisa.

A utilização das orientações de Schütze¹⁵ para a entrevista narrativa autobiográfica contribuiu para a definição da posição da pesquisadora durante a escuta das histórias das famílias. A entrevista, no primeiro encontro, iniciava-se com o convite aos integrantes da família para que contassem como era o dia a dia após o desastre. A pergunta geradora: "como tem sido o dia a dia após o desastre?" resultou em narrativas que, posteriormente, necessitaram de esclarecimentos e de aprofundamento de dados, a partir de perguntas que motivassem a argumentação de aspectos narrados, em outro momento da fase de coleta dos dados. Perceberam-se, nos entrevistados, momentos introspectivos, reflexivos, com o movimento de trazer à tona sua história dramática no pós-desastre. Nestes termos, a sensibilidade do pesquisador em respeitar o momento, valorizar o silêncio enquanto narrativa e, também, recolocar-se no curso da pesquisa resgatando os pressupostos teórico-filosóficos interpretativistas que o norteavam é de grande valia para a fidedignidade das narrativas e a qualidade da coleta de dados.

Desse modo, a principal técnica para a obtenção de narrativas utilizada foi a entrevista narrativa improvisada, adaptada para a pesquisa com famílias, onde se consideraram narrativas construídas pelos integrantes dos núcleos familiares reunidos. Por conseguinte, o momento argumentativo da entrevista narrativa permitiu clarificar e aprofundar aspectos das entrevistas iniciais, bem como, o uso dos instrumentos genograma e ecomapa para a obtenção de dados sobre a estrutura e as relações de rede social das famílias. O uso de tais instrumentos na pesquisa qualitativa com famílias tem sido frequente e abrange, sobretudo, pesquisas que colhem a história da vida familiar.¹⁶ Segundo a técnica da entrevista narrativa autobiográfica de Schütze,⁵ a fase das perguntas possibilita que, diante de toda a vivência narrada pelo(s) entrevistado(s), o pesquisador direcione a entrevista para aprofundamentos e ou esclarecimento de detalhes da história. A observação participante foi usada durante o trabalho de campo, tendo em vista as idas sucessivas à localidade ao longo do período da pesquisa e a participação da pesquisadora em momentos da vida familiar, nos encontros que totalizaram as cinco entrevistas com cada núcleo. Essa observação oportunizou o acompanhamento de acontecimentos do processo de recuperação no pós-desastre (a retomada da construção da casa, tarefas domésticas cotidianas, refeições junto dos participantes, convívio com outros na comunidade, por exemplo); situações que motivaram as narrativas dos participantes.

ADAPTAÇÃO DOS PASSOS PARA A ANÁLISE DAS NARRATIVAS

A seguir serão descritos os passos de aplicação do método de análise de narrativas de Fritz Schütze, adaptado para a pesquisa da área da enfermagem. O método consta de seis passos, sendo o primeiro a análise formal do texto,¹² na qual se fez a seleção e o ordenamento das passagens narrativas que descrevem a sequência dos acontecimentos de cada caso, com base nos indicadores formais do texto, ou seja, os marcadores textuais da finalização de um segmento e da inicialização do seguinte. No caso desta pesquisa, a separação dos segmentos narrativos dos não narrativos no texto bruto oriundo da transcrição de cada entrevista abrangeu os segmentos de todas as entrevistas, inclusive das entrevistas de fase argumentativa em que foram também utilizados instrumentos adaptados à pesquisa com famílias.

No segundo passo, foi feita uma análise minuciosa de cada segmento da narrativa anteriormente selecionado de cada entrevista, atentando-se ao que estava sendo narrado e como cada narrativa estava construída. Tal análise é denominada descrição estrutural do conteúdo,¹²,¹⁷ pois o objetivo é também identificar as diferentes estruturas processuais no curso da vida. Essas estruturas processuais foram sendo indicadas e destacadas ao longo de cada segmento narrativo para posterior elaboração de categorias analíticas que caracterizam os componentes indexados (quem fez, o que, quando, onde, por quê).

O trecho abaixo exemplifica a segunda etapa da análise da narrativa de uma das famílias, a qual foi obtida da mãe, na primeira entrevista¹ .

[...] mudou tudo, né? Primeiro, porque eu perdi parte da minha família (-), então eu tive que reconstruir este outro lado. A gente acaba ficando mais ligado a quem ficou, acaba também se preocupando mais, porque não fui só eu quem passou por isso [...] e na parte financeira também, porque nós somos agricultores e perdemos muito naquela época. [ponto dramático] tivemos de começar lá do zero de novo. Então foi uma mudança muito (-) brusca. Se eu fosse ver um ano e meio atrás (-), não sei se eu me imaginaria nesta situação hoje [situação culminante], e ainda tem o outro lado: acabei me tornando a presidente da associação dos desabrigados daqui, a [nome da associação]. E isto me levou a conhecer um lado, não que eu não conhecesse, porque eu até sempre participei da comunidade, sempre estive envolvida e tal (-), mas assim, muito mais profundamente que eu não conhecia, é o lado político (>). Então eu já estive umas oito ou nove vezes em Brasília, já estive no Rio de Janeiro, já estive em São Paulo participando de Seminário Internacional que fala da assistência humanitária e de desastres [esquema de ação para mudança], então eu acabei conhecendo outro lado e estou aprendendo muito com isto. Só que isto aí também mexe na minha rotina (-), de ter que sair e de ter que ficar quatro ou cinco dias, uma semana fora e alguém ter que ficar com a minha filha (-), então assim, foi (-) é uma mudança muito grande e eu nunca imaginei que eu fosse conseguir passar por essa mudança tão grande, do jeito que eu estou passando [...] (Família 4).

Nesta etapa da análise das narrativas, o pesquisador já tem um conhecimento contextual dos acontecimentos que permeiam a história narrada e, em especial quando em pesquisa de enfemagem com famílias, a compreensão de quem é a família em termos de estrutura (características pessoais dos integrantes, papéis, funções e posição na família) se torna importante para a perspectiva autobiográfica da experiência de vida, refletida de construções pessoais e coletivas (familiares, comunitárias, sociais) dos entrevistados.

Na pesquisa em saúde e enfermagem, geralmente há uma fundamentação teórico-filosófica que a localiza ontologicamente e epistemologicamente para alavancar a discussão dos dados, de forma que, na análise dos dados, o pesquisador faça deduções com base na teoria. Na presente pesquisa, a problemática sobre o cuidado e o viver das famílias esteve respaldada pelos conceitos da Teoria do Desenvolvimento da Família, cujo enfoque se dá sobre as mudanças de vida. Além disso, o Modelo Teórico das Rotinas e Rituais Familiares, que proporcionou uma estrutura teórico-conceitual acerca da compreensão sobre a vida cotidiana familiar em interface com a saúde-doença.

O terceiro passo consistiu na abstração analítica, isto é, o intérprete se distancia dos detalhes da descrição estrutural do conteúdo mostrado nos fragmentos de narrativa para focalizar "as expressões estruturais abstratas de cada período da vida", pondo-as "em relação sistemática umas com as outras",¹⁸:7 reconstruindo a história num todo, desde as estruturas processuais dominantes em cada ciclo de vida até a atualidade. Trajetórias biográficas é o termo designado a uma categoría analítica que se origina quando o protagonista da biografia confronta a experiência de perder suas capacidades de conduzir sua vida intencionalmente devido a circunstâncias externas que o forçam a reagir enquanto processo de sofrimento.³ Feita a descrição estrutural do conteúdo das narrativas de todas as entrevistas de cada família, analisaram-se individualmente os segmentos das histórias contadas sobre a experiência familiar revelados nos marcos vividos em cada família e que delinearam as mudanças ao longo do tempo, nos períodos anterior, durante e após o desastre. Para a reconstrução das histórias e a identificação dos marcos e trajetórias de cada família na linha do tempo, foram levantadas as expressões abstratas referentes às rupturas, mudanças ou adaptações na rotina familiar, como também, mudanças relativas ao ciclo vital (transições, alterações ou adaptações nas tarefas familiares). Para exemplificar a abstração analítica, tem-se a síntese da reconstrução da história de uma das famílias (Figura 1).

Figura 1
Exemplo de síntese da história reconstruída, referente ao caso da família 4

Assim, seguiu-se com a abstração analítica de cada caso, resultando na reconstrução de suas histórias, as quais foram organizadas ao longo da linha do tempo e que refletiram as trajetórias biográficas de cada família. "As pessoas, ao narrarem sua vivência, abrem seu discurso de modo a permitir a apreensão de sua significação por outras pessoas".¹:427 As narrativas relativas a cada caso expressavam as vivências e os significados particulares a cada núcleo familiar, ainda que a experiência de transição pós-desastre fosse coincidente.

O quarto passo resgata os segmentos argumentativos das narrativas e as explicações teóricas desenvolvidas pelos próprios informantes, acerca de sua história de vida e identidade na perspectiva atual, cujo interesse está na importância da produção dessas teorias para o curso da vida. Trata-se da análise do conhecimento que explora os chamados componentes não indexados, ou seja, as formas como tais construções teóricas dos informantes se refletem, os valores, juízos.

As categorias analíticas referentes aos componentes não indexados da análise de narrativas são a autodescrição biográfica ou teorias sobre o "eu"; teorias explicativas; avaliação da trajetória biográfica ou teoria sobre a biografia; explicações ou construções de fundo; projetos biográficos, modelos ou teorias que orientam a ação; descrições abstratas; avaliações gerais e teorias comentadas.¹⁸ Em cada caso das famílias, foram identificados segmentos narrativos que refletiam algumas das categorias de componentes não indexados acima citadas, e que mereceram aprofundamento da análise na etapa subsequente, tendo em vista o objetivo do estudo, que era de compreender as rotinas e os rituais no pós-desastre. O segmento de narrativa ainda da mãe da família (caso 4) é exibido a seguir para exemplificar um componente não indexado, identificado na categoria analítica de construção de fundo:

[construção de fundo] É como eu te disse, até, por um lado, isso me ajuda (-) vejo que a minha dor é também a dor de outras pessoas e também eu vejo que não dá pra ficar quieta (-), mais do que nunca, não dá pra parar, a gente tem que cobrar, seja dos nossos políticos, seja a parte do financeiro que se perdeu, a parte de estrutura, seja a própria parte da saúde mental (-) a gente vê que, depois da tragedia, o número de pessoas que estão em depressão, que estão usando psicotrópico, pelo número de pessoas que reclamam (-) o tempo fecha e o coração da gente dispara, então muda tudo (-) e tudo isso, querendo ou não, passa por uma política: seja a de saúde pública, seja a de investimento [...]. Então, não que eu me sinta na obrigação, mas eu me sinto bem podendo defender uma causa, porque não é uma coisa só minha (-) é uma coisa de mais pessoas, para mais pessoas (-). E porque eu não quero que a minha filha, se eu puder evitar, ou até onde eu puder evitar, que ela passe pelo sofrimento que eu passei. [...] então, se eu puder, de alguma maneira, ajudar que ela, outros e que eu mesma não passe mais por isso, para mim faz bem e me faz acreditar, mais uma vez, que a vida continua, apesar de tudo [...] (Família 4).

As construções de fundo podem ser definidas como "afirmação no modo de proposição geral, em cujo conteúdo a situação histórica mostrada na narração tem um significado".¹⁸:226 Em outras palabras, é o que está por detrás do conteúdo narrado, ou seja, o sentido, o significado atribuído à situação ou experiência julgada pelo portador da biografia.

Situações críticas de vida são experiências que se apresentam como condição para as distorções e incoerências do narrador de sua história ou biógrafo de sua identidade, construída por longo período de tempo. Os autorreferenciais teóricos consistem também nas crenças ou características pessoais dos próprios narradores, muitas vezes, percebidas por eles como pontos fortes, embora devam ser vistas como pontos fracos.¹⁹

O quinto passo alcançado na análise de narrativas de Schütze foi a comparação contrastiva mínima entre os diferentes casos, em busca de semelhanças que intensifiquem as categorias surgidas nas etapas anteriores da análise, considerando o interesse da pesquisa. E numa comparação contrastiva máxima entre os casos, buscaram-se diferenças, a fim de confrontar as categorias opostas e destacar estruturas processuais alternativas para a compreensão da história de vida das famílias atingidas pelo desastre natural. Os resultados da análise comparativa identificados até esta etapa foram estruturados, com base nas unidades de análise relacionadas ao referencial teórico norteador da pesquisa, rotinas e rituais familiares. Por conseguinte, tais resultados foram descritos e discutidos teoricamente.

O método de análise de narrativas autobiográficas propõe um sexto passo para a construção de um modelo teórico. A elaboração do modelo teórico parte da relação sistemática das diferentes categorias de análise confrontadas nas etapas anteriores e do respectivo referencial teórico. Na adaptação da análise, o presente estudo não concluiu a análise das narrativas nesta etapa, tendo descritas as categorias de resultado da análise a partir da interpretação na fase anterior, com as comparações entre os casos.

CONCLUSÃO

Compreende-se que a adaptação do método de análise de narrativas autobiográficas à pesquisa em enfermagem tenha sido contemplada no relato apresentado, com contribuição necessária à divulgação do uso apropriado de metodologias qualitativas nos estudos interpretativos na área da saúde. Na enfermagem, é imprescindível que se busque conhecer o processo de viver das pessoas e famílias que representam as demandas de saúde, conferindo a isto o cerne da prática profissional, o cuidado, essencial à vida humana.

No que tange à construção da Ciência da Enfermagem, assim como às contribuições teórico-científicas e tecnológicas para a área da saúde, os processos investigativos que se dedicam a explorar diferentes técnicas e métodos devem ser consumidos, reproduzidos e que sofram as devidas críticas para que o conhecimento se difunda e se consolide em práticas inovadoras e benéficas à sociedade.

As narrativas como elementos de análise são fortemente defendidas na literatura científica e demandam a utilização de uma estrutura sistemática para a sua apreensão e análise. Com relação à abordagem utilizada na análise de narrativas, é possível apontar como vantagens que, no método, o autor detalha os passos da entrevista e da análise, o que contribui para que o pesquisador tenha mais segurança para seguir os passos tanto na entrevista como na análise de narrativas. A especificidade e tradição da pesquisa em enfermagem com famílias permitiram agregar instrumentos à entrevista narrativa que promovessem argumentação e aprofundamento de narrativas, ainda que originalmente a mescla de técnicas não esteja diretamente indicada pelo autor. No que tange às desvantagens, destaca-se que a linguagem é bastante específica e está fundamentada na longa experiência do autor do método, assim o pesquisador, para utilizar o método, deve conhecer profundamente as suas bases teóricas e ter experiência em pesquisa qualitativa.

Conclui-se que este método oferece subsídios para a entrevista e análise aprofundada de narrativas da saúde e da doença e seu contexto social. O potencial da aplicação do referido método na pesquisa de enfermagem destaca o desvelar das atitudes e das mudanças de vida frente à crise e ao sofrimento, a partir de vivências de indivíduos em grupos como famílias e comunidade, limitando-se à possibilidade de elaboração de modelos teóricos na medida em que o conjunto dos dados analisados apresente suficiência para generalizações acerca da unidade de análise.

Nestes termos, considera-se que o método aqui compartilhado oportuniza uma abertura dialógica com a experiência de vida do outro, sem perder de vista o rigor científico e o comprometimento com a construção de teorias ou modelos conceituais que ampliem o conhecimento das diferentes áreas.

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• 1
  Símbolos utilizados na narrativa: (-) pausa na narração; (>) elevação no tom de voz na narração.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  2017

Histórico

• Recebido
  01 Mar 2016
• Aceito
  03 Fev 2017