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A passagem pelos espelhos: a construção da identidade profissional da enfermeira

El pasaje por los espejos: la construcción de la identidad profesional de la enfermera

A passage through mirrors: the construction of the nurse's professional identity

Resumos

O objeto trata da construção da identidade profissional da enfermeira, em três momentos, entendidos como passagens pelos espelhos: o período anterior à entrada na universidade; durante a formação acadêmica e o posterior à graduação. O estudo foi realizado na abordagem qualitativa, as estratégias metodológicas para produção de dados foram as Cenas de Produção Estética. A análise foi feita à luz da multireferencialidade e das representações sociais. A passagem através do 1º espelho é a "A morte do sonho adolescente"; do 2º espelho é a "Construção da identidade de resistência", e do 3º espelho é a "A construção da identidade de projeto". Concluímos que a construção da identidade profissional da enfermeira é um processo dinâmico que, atualmente, desloca seu eixo principal para a auto-identificação, intersubjetividade da ação humana, em função do bem-estar social, da liberdade de expressão e da preservação do equilíbrio ecológico.

Enfermagem; Escolha da profissão; Cultura


El estudio trata de la construcción de la identidad profesional de la enfermera, en 3 momentos, entendidos estos como pasajes por los espejos: el período anterior al ingreso en la universidad; durante la formación académica y posterior a la graduación. El estudio de naturaleza cualitativa, las estrategias metodológicas para la producción de los datos fueron las Escenas de Producción Estética. El análisis fue hecho a la luz de la multireferencialidad y de las representaciones sociales. En el Pasaje por el 1º espejo emergió, "La muerte del sueño adolescente", en el 2º espejo la "Construcción de la identidad de resistencia" en el 3º espejo: "La construcción de la identidad de proyecto". Concluimos que la construcción de la identidad profesional de la enfermera es un proceso dinámico en donde, actualmente, desplaza su eje principal para la auto-identificación, la intersubjetividad de la acción humana, en función del bienestar social, de la libertad de expresión y de la preservación del equilibrio ecológico.

Enfermería; Selección de profesión; Cultura


The subject is the construction of the nurse's professional identity, in three moments, understood as passages through a mirror: the periods before the university entrance; during the university studies; and after graduation. A qualitative approach was used and Scenes of Aesthetic Production was used as a methodological strategy for data production. The analysis was based on multi-referentiality and on social representations. The passage through the 1st mirror is "The death of the teenage dream"; the 2nd mirror, "The construction of the resistance identity"; the 3rd mirror, "The construction of the project identity". We came to the conclusion that construction of the professional identity of the nurse is a dynamic process that is in the process of shifting emphasis to identification with the self, the intersubjectivity of the human action, as a function of social well-being, liberty of expression, and the preservation of environmental equilibrium.

Nursing; Career choice; Culture


ARTIGO ORIGINAL

PESQUISA

A passagem pelos espelhos: a construção da identidade profissional da enfermeira

A passage through mirrors: the construction of the nurse's professional identity

El pasaje por los espejos: la construcción de la identidad profesional de la enfermera

Beatriz Guitton Renaud Baptista de Oliveira

Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Titular do Departamento de Fundamentos de Enfermagem e Administração da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói/RJ

Endereço Endereço: Beatriz Guitton Renaud Baptista de Oliveira. Av. Vieira Souto, 144, Ap. 301 22.420-000 - Ipanema, Rio de Janeiro, RJ. E-mail: beatrizguitton@globo.com

RESUMO

O objeto trata da construção da identidade profissional da enfermeira, em três momentos, entendidos como passagens pelos espelhos: o período anterior à entrada na universidade; durante a formação acadêmica e o posterior à graduação. O estudo foi realizado na abordagem qualitativa, as estratégias metodológicas para produção de dados foram as Cenas de Produção Estética. A análise foi feita à luz da multireferencialidade e das representações sociais. A passagem através do 1º espelho é a "A morte do sonho adolescente"; do 2º espelho é a "Construção da identidade de resistência", e do 3º espelho é a "A construção da identidade de projeto". Concluímos que a construção da identidade profissional da enfermeira é um processo dinâmico que, atualmente, desloca seu eixo principal para a auto-identificação, intersubjetividade da ação humana, em função do bem-estar social, da liberdade de expressão e da preservação do equilíbrio ecológico.

Palavras-chave: Enfermagem. Escolha da profissão. Cultura.

ABSTRACT

The subject is the construction of the nurse's professional identity, in three moments, understood as passages through a mirror: the periods before the university entrance; during the university studies; and after graduation. A qualitative approach was used and Scenes of Aesthetic Production was used as a methodological strategy for data production. The analysis was based on multi-referentiality and on social representations. The passage through the 1st mirror is "The death of the teenage dream"; the 2nd mirror, "The construction of the resistance identity"; the 3rd mirror, "The construction of the project identity". We came to the conclusion that construction of the professional identity of the nurse is a dynamic process that is in the process of shifting emphasis to identification with the self, the intersubjectivity of the human action, as a function of social well-being, liberty of expression, and the preservation of environmental equilibrium.

Keywords: Nursing. Career choice. Culture.

RESUMEN

El estudio trata de la construcción de la identidad profesional de la enfermera, en 3 momentos, entendidos estos como pasajes por los espejos: el período anterior al ingreso en la universidad; durante la formación académica y posterior a la graduación. El estudio de naturaleza cualitativa, las estrategias metodológicas para la producción de los datos fueron las Escenas de Producción Estética. El análisis fue hecho a la luz de la multireferencialidad y de las representaciones sociales. En el Pasaje por el 1º espejo emergió, "La muerte del sueño adolescente", en el 2º espejo la "Construcción de la identidad de resistencia" en el 3º espejo: "La construcción de la identidad de proyecto". Concluimos que la construcción de la identidad profesional de la enfermera es un proceso dinámico en donde, actualmente, desplaza su eje principal para la auto-identificación, la intersubjetividad de la acción humana, en función del bienestar social, de la libertad de expresión y de la preservación del equilibrio ecológico.

Palabras clave: Enfermería. Selección de profesión. Cultura.

A PROCURA DE UMA IDENTIDADE

Este estudo é oriundo da tese de doutorado e propicia uma reflexão sobre a construção da identidade profissional da enfermeira, segundo o olhar da subjetividade das profissionais, a partir das dimensões sociais, ideológicas e principalmente culturais. No sentido filosófico a construção da identidade é cultural por considerar o feixe de representações, de símbolos, de imaginário, de atitudes e referências suscetível ao corpo social.

Ao mesmo tempo, encaminha-nos para refletir sobre um tema de magno interesse nos dias atuais, o processo de formação acadêmica e de trabalho em Enfermagem, conforme os requisitos de transformação qualitativa da assistência à saúde, concebida a partir da compreensão do lugar social das enfermeiras e da identidade que elas vão construindo ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional.

Há uma prática habitual da população de designar como enfermeira qualquer pessoa vestida de branco que esteja atendendo nas instituições de saúde, se não for médico... Essa prática certamente apresenta reflexos nas representações, na auto-imagem e na auto(des)valorização das profissionais acerca de seu trabalho e função social.1 Fenômeno similar também ocorre com outros profissionais, tais como professores, assistentes sociais, entre outros.

O tema foi focalizado em três grandes momentos da vida acadêmico-profissional das enfermeiras: a fase anterior à entrada na faculdade, (com ênfase à opção no concurso vestibular); o período da formação; e, finalmente, a inserção no mundo profissional.

Quanto aos aspectos teóricos-metodológicos, foi feita uma metáfora da passagem pelos espelhos, bem como a exploração na designação dos momentos dessa passagem: A Morte do Sonho de Adolescente; Construção da Identidade da Resistência e Construção da Identidade de Projeto.2 A leitura do trabalho e, principalmente essa designação, chama atenção para a característica de identidade da enfermeira-guerrilheira, resistente e lutadora.

A pesquisa parte do pressuposto de que a construção da identidade profissional da enfermeira é um movimento dinâmico, que faz parte de um contexto sociocultural, histórico e econômico, que envolve mudanças estruturais, como processos centrais na forma de agir e pensar de uma sociedade.3

As questões que nortearam o estudo foram: o que é identidade profissional da enfermeira? Como a enfermeira representa a sua identidade profissional em relação aos momentos antes, durante e depois da graduação? Como as enfermeiras constroem, desconstroem e reconstroem sua identidade profissional?

Procurou-se alcançar os seguintes objetivos: analisar a construção da identidade profissional da enfermeira, a partir das suas representações sociais sobre três períodos: o anterior à entrada na universidade, o de formação acadêmica e o posterior à graduação; e discutir os significados dessas representações sociais sobre os processos de construção/desconstrução/re construção da sua identidade profissional.

Trata-se de um estudo sobre tema atual, situado no âmbito das discussões alusivas à teoria social relativa ao processo de construção de novas identidades no mundo moderno. Ao trabalhar com a identidade mantêm-se acesas as interfaces de um objeto que não se constitui sozinho, mas em constante movimento de troca sócio-histórica e cultural.

Nessa linha de pensamento, é pertinente ressaltar que, apesar de a construção de identidade ser um processo progressivo, ela retroage e se confirma (ou reformula) nas interações que as pessoas estabelecem com os respectivos grupos sociais, particularmente nas experiências vividas.4

A palavra construção tem um sentido dinâmico e não estático, por isso, o seu processo envolve idas e vindas num movimento constante. Apesar de sempre estar frisando os três momentos, pensar em construção envolve pensar em desconstrução e reconstrução.3

Nesse movimento interpretativo, o importante é unificar pontos de consenso, afinidades, revelar elementos isolados e particulares, para propor correspondências substanciais, onde quer que seja possível, e assim compreendermos um pouco melhor nossa fisionomia profissional, considerando que as pessoas integram-se em diferentes grupos sociais, assumindo distintas identidades coletivas, relacionando-se mais com determinadas ideologias, crenças, filosofias e políticas do que com outras.

A problemática das enfermeiras apresenta peculiaridades absolutamente instigantes e atuais, o que reforçou nosso entusiasmo pelo objeto da investigação. Na luta contra a dominação, o movimento mundial está voltado para a transformação das relações humanas em dois pontos básicos: o feminismo e o ambientalismo.2

Não é redundante lembrar que os valores humanos e ecológicos estão em evidência no cenário de conquistas destacadas no tempo presente. Na construção da sua identidade, os profissionais de enfermagem inserem esses dois movimentos de uma forma marcante. As suas questões profissionais estão intimamente vinculadas às questões da mulher na sociedade.1

Esse aspecto fica muito claro nas imagens mentais e visuais apresentadas, assim como nas próprias ações profissionais mencionadas pelos participantes da pesquisa. Quanto ao ambientalismo, alguns enfermeiros têm atribuído ênfase a essa dimensão, buscando desenvolver ações do cuidado que contemplem a ética, a estética e a subjetividade.5

Cumpre ressaltar que a identidade profissional mantém interfaces com elementos de poder, política, filosofia, arte, pois que sua construção ocorre na sociedade. Numa visão cultural, seu reconhecimento está ligado a valores morais, éticos, religiosos, de raça ou povos. Seu valor é referente à importância que assume para a sociedade. Observamos assim que, ao estudar a identidade profissional, estaremos contribuindo para uma melhor compreensão de como as relações e os movimentos sociais acontecem no cotidiano.6

Mesmo sabendo que o método escolhido para pesquisar tem local, tempo e grupo determinados, entendemos que as representações dessas enfermeiras sobre identidade deverão desencadear reflexões a respeito da prática profissional e acadêmica da enfermagem.

O estudo da imagem é um empreendimento interdisciplinar, da arte, da mídia, de teorias sociológicas e antropológicas, de estudos da Psicologia, da Semiótica e da cognição. As imagens se dividem em dois domínios: o primeiro, das imagens como representações visuais (desenhos, pinturas, gravuras, fotografias, imagens televisivas e cinematográficas) e, neste sentido, são objetos materiais, signos que representam nosso meio ambiente visual; e o segundo, é o domínio imaterial das imagens na nossa mente, e aparecem como representações mentais, como visões, esquemas, imaginações, modelos, em geral.7 Ambos os domínios existem ligados à sua gênese. Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, assim como não existem imagens mentais que não tenham origem no mundo concreto dos objetos visuais. Seus conceitos unificadores são de signo e representação.

METODOLOGIA

O estudo foi orientado pela abordagem qualitativa.8 Participaram do estudo sete enfermeiras e três enfermeiros, que exerciam a profissão há mais de cinco anos em campos diversificados como o da saúde pública, o hospitalar e o da docência.

Na seleção dos participantes, entendeu-se que seria importante a experiência profissional, especialmente para contemplar a passagem pelo terceiro espelho, que envolvia momentos marcantes de construção/desconstrução/reconstrução da sua identidade no trabalho e na prática de fazer Enfermagem.

A produção dos dados aconteceu nas Cenas de Produção Estética em duas etapas: a primeira, de construção de imagem visual sobre o tema; e a segunda, de interpretação da produção, imagem mental, através da fala.9

Do ponto de vista operacional, inicialmente foi prestado esclarecimentos sobre o objeto de pesquisa, a dinâmica de trabalho, o sigilo das informações, o anonimato das identidades, com o uso de pseudônimos e também sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos participantes para utilização das informações fornecidas.10

Em seguida, foi distribuído lápis, caneta, revista, papel, cola, tesoura, para construção pictográfica. Esta etapa durou, em média, uma hora e meia. Os participantes construíram com desenhos, pinturas e fotos três momentos da construção da identidade. A orientação para este momento foi a seguinte: A enfermeira que eu imaginava (antes de entrar para faculdade); A enfermeira que eu aprendi a ser (durante a formação acadêmica); A enfermeira que sou (na vida profissional).

Depois, deu-se início à interpretação dos conteúdos desenvolvida pelos próprios participantes. Esse momento foi designado como a interpretação da produção, quando eles expressaram verbalmente as imagens mentais. Os depoimentos foram gravados em fita cassete.

Por meio dos procedimentos desenvolvidos em grupo, os participantes de nosso estudo puderam resgatar vivências marcantes que, de alguma forma, dizem respeito à profissão de Enfermagem, desde a época de adolescente até a atualidade. Como as construções foram realizadas coletivamente, os cuidados foram redobrados.

Outro fator importante para o êxito do trabalho foi a preparação do ambiente para torná-lo propício à descontração e ao prazer da construção. No total, foram realizadas três Cenas de Produção Estética: a primeira, com quatro participantes, e as outras duas, com três participantes cada. Portanto, tivemos a participação de dez profissionais, sendo que cada um estruturou as três passagens, referentes aos momentos de construção de sua identidade profissional. Então, na análise, discutimos as 30 representações do estudo. Vale esclarecer que o último grupo foi formado só por homens. Nossa intenção, com essa escolha, era a de observar como eles construíram suas identidades, e que rumo dariam às discussões, no sentido de saber se havia diferenças ou semelhanças de suas produções comparadas às das mulheres.

O tratamento das informações foi particularizado. As produções estéticas emergentes da parte de coleta de dados foram fotografadas. Os depoimentos foram documentados através da gravação em fitas magnéticas e depois transcritos, preservando, dessa forma, a fidelidade do conteúdo emitido pelos personagens da pesquisa.

Após a organização das informações, nós as classificamos e categorizamos. Com este propósito, as fotografias e as entrevistas foram agrupadas, de acordo com o critério das passagens pelo espelho e, desse procedimento, derivaram três grandes categorias.

Na análise, foi utilizada tanto as mensagens escritas, que são consideradas mais estáveis e objetivas, como as produções estéticas, elaboradas durante as cenas e que têm sentido metafórico. O objetivo de trabalhar com as produções estéticas foi o de remeter o simbolismo pluralizado a uma simbologia coletiva, estabelecendo um vínculo entre significado e significante.11

Ao discutir os momentos de construção da identidade profissional da enfermeira, foi privilegiada a dimensão da subjetividade das informações para identificar a complexidade e a transversalidade da temática. Acreditasse que a via através da qual ela é construída tem continuidades, rupturas e descontinuidades, não sendo apenas o resultado de antagonismos de idéias.

A PASSAGEM PELOS ESPELHOS

A metáfora da passagem pelos espelhos foi empregada para refletir sobre a construção da identidade profissional da enfermeira. Ao comparar as lembranças dos entrevistados, as suas imagens icônicas, com o que a literatura apresenta, foi percebido coerência, isto é, que eles, de forma similar a outros grupos sociais e profissionais, mostraram avanços, conquistas, frustrações e derrotas, pontos de tensão e recuos de sábia renúncia.

Ao se refletirem no 1º Espelho – A morte do sonho adolescente, as personagens desta pesquisa mostraram que iniciaram a construção de sua identidade profissional simultaneamente ao processo de sua identificação juvenil, esbarrando com a força da família, as questões políticas, o poder da mídia. Assim, descobrem no seu exterior um mundo desconhecido, por vezes instigante; mas, em outros momentos, muito difícil de enfrentar.

Na contingência da opção profissional, algumas reformularam expectativas anteriores, buscando uma profissão que atendesse aos seus desejos de cuidar e promover o bem-estar, mas que atendesse ao critério de compatibilidade com a condição sócioeconômica familiar. Sob essa influência, optaram pela Enfermagem, mesmo sem conhecerem bem a profissão.

A construção da identidade do grupo de participantes do estudo, nessa fase, espelhou igualmente o movimento empreendido por muitos jovens brasileiros, na direção da independência financeira. Eles lutam movidos tanto por ideais (internos) de realização profissional, como (externos) de necessidade econômica e social.

A influência das vivências da adolescência, na passagem pelo 1º Espelho, revelou-se como particularmente importante. Aí foram destacados os questionamentos sobre os princípios da sociedade, da política, da religião, da família e até mesmo da escola como elementos relevantes, na construção de uma identidade profissional.

Essa fase incendiária e romântica do jovem, de maior sociabilidade, ao mesmo tempo em que se luta por segurança, necessita de orientação da família e da escola. Os sonhos de conquistar o mundo e romper com as desigualdades são importantes para que ele se engaje num trabalho em que a preocupação social coexista com o desejo de realização pessoal, tal como costuma ocorrer no processo de formação de um cidadão consciente, crítico e transformador da realidade.

Para compreender essa tendência, foi assinalado que o sonho está longe de ser um presságio do futuro, como algumas pessoas tentam inutilmente adivinhar, por meio da sorte.12 O sonho se revelou ao autor como a representação da realização de um desejo do sonhador. Por isso, quando um autor faz sonhar os personagens construídos por sua imaginação, seu objetivo é retratar seu estado de espírito. O sonho é o prosseguimento dos pensamentos e sentimentos, que morrem e renascem a cada dia.

Na passagem pelo 2º Espelho, as enfermeiras trataram da Construção da identidade de resistência. Nas imagens e verbalizações elas expressaram que, via de regra, não tinham boas lembranças do período de formação universitária. Numa tentativa de síntese, poderíamos dizer que, nesse período, seus sonhos de realização profissional estiveram ameaçados de desmoronar. Os horários eram rígidos, os uniformes tinham que ser impecáveis, e o mais importante, ressentiam-se da falta de liberdade de expressão.

Diante de tão magnas dificuldades, recorreram aos mecanismos de resistência, que foram marcantes na construção de sua identidade profissional. A todo momento, tinham que dar a impressão de ajustamento submisso a sistemas hierarquicamente dominantes e repressivos, nos dois principais ambientes em que viviam: no ensino-aprendizagem, por meio da relação aluno-professor, e na assistência, pelas desigualdades da relação médico-enfermeiro.

Na verdade, essa problemática nem surpreende. Sucessivos estudos têm demonstrado que a Enfermagem, em sua história, é uma profissão marcada pela ordem, disciplina e que enfrenta limites muito precisos, definidos por terceiros. Os relatos das enfermeiras entrevistadas demonstram isso: elas viveram a experiência de uma cultura dominadora, de corpos rijos e contidos, frutos de um sistema arcaico, que procura enrijecer o movimento de construção de identidade das novas gerações, em especial, quando se refere às chamadas minorias, onde se situam as mulheres e as chamadas profissões femininas.

Para reverter esse processo inaceitável, as escolas precisam dar liberdade para o aluno criar, cuidar, desenvolvendo, não só a dimensão intelectual e o conhecimento científico, mas também a vertente psico-sócio-emocional, com ênfase na subjetividade e nas relações socioculturais, necessárias a todo ser humano. O grande desafio do professor é ensinar a pensar, estimulando o pensamento na, sobre e entre a enfermagem.13

As mudanças de paradigmas que norteiam as ações humanas, junto com as transformações curriculares, segundo uma orientação progressista, que tornam o aluno mais participativo do processo de aprendizagem, podem diminuir o sofrimento e motivar para o crescimento pessoal e profissional, criando condições para que os jovens universitários aprendam a sentir o prazer de ser enfermeiros. É importante estimular o pensar complexo e a formação de profissionais críticos-criativos, comprometidos com a felicidade.13

Nessa perspectiva, o que se deseja é que o curso de Enfermagem promova atividades que tenham o propósito de formar indivíduos capazes de atuar cooperativamente, em situações em que o produto final é uma ação de saúde, que resulta da concorrência do trabalho de diversos profissionais não mais independentes entre si.

Para que se realize essa utopia, no âmbito da assistência, cumpre orientar diferentemente o trabalho da equipe, evitando a fragmentação cartesiana do trabalho controlado pelo médico, que por muito tempo assumiu gradativamente o papel de gerenciador do fazer nas instituições hospitalares e ambulatoriais.

É relevante, portanto, combater a reprodução dessa distorção do modelo assistencial nas universidades. É preciso que evitemos, no cotidiano dos hospitais-escola, que médicos, professores e alunos de Medicina, desde sua admissão na instituição, usufruam de privilégios em relação a colegas de outros cursos.

Nesse sentido, é animador constatar que as enfermeiras, cada vez mais, têm aprimorado sua formação profissional, por meio do domínio de conhecimentos relativos ao estado físico, psico-emocional e social dos clientes. Esse conjunto de conhecimentos constitui importante requisito para ampliar e dar consistência ao seu saber/fazer. Dessa forma, adquirem relevo às experiências de aprendizagem que instrumentalizam para o desenvolvimento de atitudes de assistir, apoiar, capacitar e facilitar, como recursos auxiliares ao trabalho de proporcionar bem-estar e saúde a indivíduos, famílias e grupos.

Na passagem pelo 3º Espelho – A construção da identidade de projeto, obtiveram destaque questões práticas do cotidiano da Enfermagem, tais como a qualificação, a autonomia e o reconhecimento profissional.

Elas "rostificaram" o cuidado. O rosto não tem papel de modelo ou de imagem, mas o de sobrecodificação para todas as partes do corpo e da paisagem; ou seja, o rosto tem expressão e representa todas as partes descodificadas do mundo.14

É como se pudéssemos ver o mundo nos rostos (alegres, tristes, redondos, com rugas, jovens ou velhos) e o cuidado do corpo do outro, nos rostos de quem cuida e de quem é cuidado.

A perspectiva é de que a prática de enfermagem atribua ênfase ao cuidado, à preservação da qualidade de vida, ao conforto do cliente e assegure aos enfermeiros o reconhecimento pelas suas atividades profissionais.

No que se refere ao campo profissional, voltado à administração e gerência, é evidente que as enfermeiras, ao longo do tempo, têm ampliado sua participação, com maior intensidade e freqüência, de forma direta em diferentes espaços, como auditoras, em cargos de chefia e em comissões consultivas.

Os participantes desta pesquisa acrescentaram que é usual encontrarem dificuldade de trabalhar na sua área de especialização. Ressentem-se, por isso, da falta de valorização sistemática da especialização do profissional de Enfermagem.

Em relação à qualificação, assinalaram a importância do aprimoramento constante, como forma de melhorar a prática assistencial. Elas deixaram claro que a universidade não poderia assumir integral e isoladamente a responsabilidade de instrumentalizar seus egressos com todas as qualificações necessárias aos complexos desafios que se fazem presente no mundo do trabalho em saúde no Brasil de hoje. Daí decorre a relevância de continuar estudando.

Em relação ao reconhecimento profissional, os dados indicam que as enfermeiras gozam mais de prestígio individual do que social. Por isso, os caminhos da autonomia são tão complexos, ou impenetráveis.15 São verdadeiras lutas no seio do campo político. No entanto, lembram que a trajetória de uma enfermeira abre espaço para repensar que na singularidade também está a totalidade.16

Sobre as questões éticas, de um modo geral, elas parecem encontrar mais espaço do que as vinculadas à estética. Entretanto, entendemos que quando a enfermeira presta cuidados com apoio em conhecimentos interdisciplinares respeita a individualidade do cliente, exerce sua prática e incentiva a equipe a trabalhar com a arte e com a subjetividade, ela está trabalhando com a estética.

Existe uma ruptura do laço entre a ética e a estética, trata-se da separação entre a moral e a arte.15 Muitas vezes, a prática assistencial está cercada de comportamentos supostamente éticos, rígidos, iguais para todos, como se fossem orientados por um olhar único, enquanto que a estética respeita a subjetividade e a criatividade humana, e é esse último caminho que a enfermagem está buscando.

A estética compromete o homem todo, corpo e mente, intelecto e afetos, vida prática e cognitiva.9 Pressupõe, portanto, uma concepção fundamentalmente bipolar, isto é, em que um momento subjetivo (o homem) entra em contato com um objetivo (o mundo, a natureza e o ambiente).

Dessa forma, compreendemos que a identidade é construída na relação do homem com ele mesmo, com os outros e com a natureza. A identidade é fonte de significado e experiências de um povo. São vários os comportamentos e as crenças subjacentes à sua construção.2 Não temos a intenção de dizer que existe um caminho verdadeiramente certo ou errado, porque não consideramos que a identidade deva ser uma unidade conservadora de cultura; ao contrário, nossa intenção é valorizar as diferenças e multiplicidades.

Esse pressuposto encaminha o raciocínio a perceber que as experiências vividas pelas enfermeiras do estudo são, ao mesmo tempo, individuais e coletivas. Nenhum pensamento individual cria idéias, sem referência a um alicerce mental formado social e culturalmente. Por mais individual que sejam as experiências, outras pessoas as compartilharam de alguma forma.

Desse modo, observamos por meio das representações expressas na passagem pelos espelhos que a construção da identidade é tanto própria, particular, como social. Depende, simultaneamente, das experiências de cada um, das situações em que se (con)vive, como do enfrentamento a valores morais, econômicos e políticos dominantes na sociedade.

Sem sombra de dúvida, o estudo sobre construção de identidades é complexo e pode abalar nossas estruturas, porque revela o interior. É um princípio gerador de tomada de decisões que produz desmontes e metamorfoses.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciar as considerações finais, cumpre ressaltar que as investigações sobre o processo de construção de identidade profissional precisam envolver, simultaneamente, uma reflexão cuidadosa sobre o lugar do indivíduo, no contexto dos movimentos sociais, segundo o enfoque político e cultural, entendido como o espaço de relações de poder. As instituições acadêmicas constituem o ambiente privilegiado para a realização de estudos nessa área específica, seguindo o exemplo das escolas francesas de Ciências Sociais que privilegiaram grupos minoritários como objeto de seus estudos.

Do ponto de vista sociológico, podemos considerar que toda e qualquer identidade é construída socialmente. A principal questão, na verdade, diz respeito "a como", "a partir de que", "por quem", e "para que" isso acontece. Em linhas gerais, o conteúdo simbólico, imagens visuais e mentais, de uma identidade depende de quem a constrói e para que é construída. Indivíduos, grupos sociais e sociedades reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em determinada estrutura social, que define certa visão de tempo e espaço, hegemonicamente.

Decorre daí que a identidade focalizada pelo nosso estudo tem a marca histórico-temporal. Temporal no recorte da tese e atemporal no que se refere ao movimento da própria Enfermagem pela sua natureza, a de cuidar do ser humano, que se modifica ao longo da vida e, conseqüentemente, vai transformando o agir da enfermeira, na medida que sofre influência de transformações políticas, econômicas, culturais e ideológicas. O fenômeno que estudamos traz ainda a marca geográfica de vivências humanas, em uma metrópole da região sudeste do Brasil, sem esquecer as influências regionais daqueles que, ao longo de sua vida, migraram de outros Estados.

Outro fator relevante a ser levado em conta no momento de tecer considerações finais é que toda e qualquer construção de identidade desenvolve-se num contexto cultural. No sentido antropológico, a cultura é o conjunto das representações e dos comportamentos adquiridos pelo homem enquanto ser social. Conceito que serve para designar tanto a formação/construção do espírito humano quanto de toda personalidade do homem. 16

Isto posto, lembramos que, entre outros debates, adquire relevo, nos tempos atuais, a problemática das tendências conflitantes entre o fenômeno da chamada globalização e o da identidade. A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram nova forma de interação, que ele designa como sociedade em rede.2 Esse processo é caracterizado pela globalização de atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico, por sua forma de organização em redes, pela flexibilidade e instabilidade do emprego e pela individualização da mão-de-obra. Evidencia ainda a tendência a destacar uma cultura de virtualidade real, construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado. Além disso, é marcante a transformação das bases materiais da vida, o tempo e o espaço, mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo "intemporal", como expressões das atividades e elites dominantes.

Essa nova forma de organização social, dentro de sua globalidade que penetra de alguma forma em todos os níveis de sociedade, está sendo difundida pelo mundo, do mesmo modo que o capitalismo e o estatismo industrial foram disseminados no século XX, abalando instituições e transformando culturas. Admirável ou não, trata-se do novo mundo de conflito entre a noção de identidade e de globalização.

Nos últimos vinte anos, temos assistido ao avanço de expressões poderosas de identidade coletiva que desafia a globalização que se contrapõe à singularidade cultural e ao controle das pessoas sobre as próprias vidas e os ambientes.

A partir desse pressuposto, esclarece que determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo pode ter identidades múltiplas, aqui remetemos as múltiplas atividades, os múltiplos espaços e sujeitos.2 Porém, essa pluralidade é fonte de tensão e contradição, tanto na auto-representação, como na ação social. Esse conflito é compreensível se considerarmos a necessidade de distinguir identidade e papéis sociais, tal como entende a sociologia. O conceito de papel implica noções como, por exemplo, de vizinho, de mãe, de militante, de freqüentador de certa religião, ao passo que a concepção de identidade envolve um processo de autoconstrução e auto-identificação. Em termos gerais, podemos dizer que identidades organizam significados enquanto papéis estruturam funções.

A questão identitária discute o confronto entre as vontades e liberdades individuais e o peso das estruturas sociais. O importante é termos consciência de que, mesmo pertencendo a determinado grupo (de enfermeiras), as pessoas não perdem sua identidade pessoal; ao contrário, permanecem únicas, tendem a diferenciar-se, tornando-se autônomas e afirmando-se como sujeitos.4 A identidade da enfermeira é, portanto, construída a partir da identidade desses sujeitos distintos. Nem mesmo uma clonagem humana poderia fazer com que duas pessoas tivessem a mesma identidade; ela só é possível em nível biológico. Mesmo possuindo idêntico DNA, dois seres humanos terão histórias de vida diferentes, que resultarão em processos identitários distintos.

A construção da identidade profissional da enfermeira é um processo dinâmico que, no final do século, desloca seu eixo principal para a auto-identificação, a intersubjetividade da ação humana, em função da saúde e do bem-estar social, da liberdade de expressão e da preservação do equilíbrio ecológico.

Recebido em: 15 de agosto de 2005

Aprovação final: 22 de fevereiro de 2006

  • 1 Oliveira BGRB. A construção da identidade profissional da enfermeira: o significado atribuído pelas alunas ingressantes na graduação [dissertação]. Rio de Janeiro: EEAN/UFRJ; 1995.
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    Beatriz Guitton Renaud Baptista de Oliveira.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Aceito
      22 Fev 2006
    • Recebido
      15 Ago 2005
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