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Humanização dos cuidados em saúde: ensaio teórico reflexivo fundamentado na filosofia de Emmanuel Lévinas

Resumos

O termo humanização tem sido frequente na área da saúde. Entretanto, não percebemos o apoio deste termo fundamentado em alguma teoria ou filosofia, dificultando a discussão da humanização em nível científico. O objetivo deste ensaio teórico é refletir sobre o termo humanização propondo um conceito fundamentado na filosofia de Emmanuel Lévinas. Propomos o conceito "relação eu-outro no e pelo ato de cuidar". A escolha da filosofia levinasiana para fundamentar tal conceito deve-se à finalidade das profissões da saúde e à complexidade que envolve o saber e o fazer destas profissões. Na relação eu-outro proposta por Lévinas, o outro apresenta-se como alteridade absoluta e o eu como subjetividade passiva. Apesar de estarem em relação, permanecem completamente separados: o outro exige cuidados, o eu responde às suas solicitações. A resposta do eu profissional da saúde torna-se humana por ter sido afetado pela alteridade que, ao mesmo tempo, expressa o incognoscível e suplica justiça.

Humanização da assistência; Relações interpessoais; Ética; Assistência centrada no paciente


the humanization term has been frequent in health area. Although we don't see this term support in any theory or philosophy what it makes difficult to discuss the humanization in a scientific level. This philosophical essay aims to reflect about the term humanization proposing a concept based in Emmanuel Lévinas philosophy. We propose the "relation I-other as an on the care act" concept. The choice for the levinasian philosophy to fundament the concept is because the health careers finality and complexity that involves the careers knowledge's and makes. In the relation I-another proposed by Lévinas the other appear as an absolute otherness and the I as a passive subjectivity. Despite their relation they continue completely separated: the other requires cares and the I answers it the requests. The I-health professional answer becomes human because was affected by the otherness in the same time expresses the unknowable and supplicates for justice.

Humanization of assistance; Interpersonal relations; Ethics; Patient-centered care


El término humanización ha sido frecuente en el área de la salud, sin embargo no se evidencia el apoyo a este término en alguna teoría/filosofía, dificultando la discusión a nivel científico. Objetivo: reflexionar sobre el término de humanización proponiendo un concepto basado en la filosofía de Emmanuel Lévinas. Proponemos el concepto "relación yo-otro" y "por el acto de cuidar". La elección de la filosofía levinasiana se debe a la finalidad de las profesiones de la salud y a la complejidad que involucra el saber y el hacer de estas profesiones. En la relación yo-otro propuesta por Lévinas, el otro se presenta como alteridad absoluta, el yo como subjetividad pasiva. Se relacionan y permanecen separados: el otro exige cuidados, el yo responde a las solicitudes. La respuesta del profesional de la salud se torna humana por haber sido afectado por la alteridad que, al mismo tiempo, expresa lo incognoscible y suplica justicia.

Humanización de la atención; Relaciones interpersonales; Ética; Atención centrada en el paciente


INTRODUÇÃO

O termo humanização tem sido frequente na área da saúde. Entretanto, não percebemos o apoio do termo em um conceito fundamentado em uma teoria ou filosofia, dificultando a discussão da temática da humanização em nível científico.

O fato do termo humanização ser polissêmico1Heckert ALC, Passos E, Barros MEB. Um seminário dispositivo: a humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) em debate. Interf Comunic Saúde Educ. 2009; 3(Supl 1):493-502.pode prejudicar a comunicação e, inclusive, a expressão da humanização nas práticas assistenciais.

Historicamente, a descrição do conjunto de fatores que permitem a humanização ou a desumanização do cuidado em saúde está presente desde meados de 1950.2Casate JC, Corrêa AK. Humanização do atendimento em saúde: conhecimento veiculado na literatura brasileira de enfermagem. Rev Latino-Am Enfermagem. 2005 Jan-Fev; 13(1):105-11. Os primeiros esforços em conceituar estes termos datam da década de 1970 e são contribuições da sociologia médica norte-americana.3Deslandes SF. Humanização: revisitando o conceito a partir das contribuições as sociologia médica. In: Deslandes SF, organizadora. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro (RJ): Fiocruz; 2006. p.33-47.

Uma socióloga norte-americana publicou o primeiro trabalho com o intuito de conceituar os termos humanização e desumanização.4Howard J. Humanization and dehumanization of health care: a concept view. In: Howard J, Strauss A, editores. Humanizing health care. New York (US): John Wiley & Sons; 1975. p.57-102. Relata que a primeira aproximação a estes termos baseou-se na premissa de que os seres humanos têm necessidades biológicas e fisiológicas.4Howard J. Humanization and dehumanization of health care: a concept view. In: Howard J, Strauss A, editores. Humanizing health care. New York (US): John Wiley & Sons; 1975. p.57-102. Portanto, as atitudes orientadas a satisfazê-las seriam consideradas humanizadas. Complementa que reconhecer apenas as necessidades biológicas e fisiológicas seria insuficiente para atingir o ser humano completamente. Propõe incluir as necessidades psicológicas, que contemplam a expressão e o respeito consigo mesmo, o afeto, a simpatia e o relacionamento social. Para essa autora, humanizar a assistência provavelmente seria atender completamente as necessidades de um ser humano, o que pressupõe ser possível acessá-lo completamente. Com isso, a referida socióloga acrescenta que se torna difícil avaliar a presença ou a ausência da humanização dos cuidados, pois os valores são individuais e culturais.4Howard J. Humanization and dehumanization of health care: a concept view. In: Howard J, Strauss A, editores. Humanizing health care. New York (US): John Wiley & Sons; 1975. p.57-102. Apesar disso, enfatiza que qualquer contexto de cuidado envolve no mínimo duas pessoas. Sendo assim, é a intersubjetividade viva do momento assistencial que efetiva um espaço relacional.5Anéas TV, Ayres JRCM. Significados e sentidos das práticas de saúde: a ontologia fundamental e a reconstrução do cuidado em saúde. Interf. 2011 Jul-Set; 15(38):651-62.

A palavra humanização tem sido utilizada nas situações em que, além de valorizar o cuidado em suas dimensões técnicas e científicas, reconhecem-se direitos do paciente*,6Silva RCL, Porto IS, Figueiredo NMA. Reflexões acerca da assistência de enfermagem e o discurso de humanização em terapia intensiva. Esc Anna Nery Enferm. 2008 Mar; 12(1):156-9. respeita-se sua individualidade,7Teixeira GG, Chanes M. As estratégias de humanização da assistência ao parto utilizadas por hospitais ganhadores do prêmio galba de araújo: ações de mérito, ações premiadas. Mundo Saúde. 2003 Abr-Jun; 27(2):270-3. dignidade,6Silva RCL, Porto IS, Figueiredo NMA. Reflexões acerca da assistência de enfermagem e o discurso de humanização em terapia intensiva. Esc Anna Nery Enferm. 2008 Mar; 12(1):156-9. autonomia e subjetividade,8Malheiros PA, Alves VH, Rangel TSA, Vargens OMC. Parto e nascimento: saberes e práticas humanizadas. Texto Contexto Enferm [online]. 2012 Abr-Jun; 21(2):329-37. [Acesso 2013 Jan 10]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072012000200010&lng=pt&nrm=iso
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sem se esquecer do reconhecimento do profissional, também, enquanto ser humano, pressupõe uma relação sujeito-sujeito.2Casate JC, Corrêa AK. Humanização do atendimento em saúde: conhecimento veiculado na literatura brasileira de enfermagem. Rev Latino-Am Enfermagem. 2005 Jan-Fev; 13(1):105-11.

Nestes trabalhos fica evidente a preocupação dos autores em afirmar a cidadania dos pacientes e, ao mesmo tempo, o respeito às suas idiossincrasias, isto é, a sintonia dos direitos coletivos e individuais dos sujeitos numa relação de cuidado. Enfatizamos que os autores acima mencionados utilizaram os termos paciente e profissional, que remetem a papéis sociais, mas também fazem uso de termos que remetem a um sujeito singular, como individualidade, autonomia e subjetividade.

Apesar dessa aparente indiferenciação entre os dois tipos de sujeitos, parece ser consensual entre os referidos autores que, mesmo quando o assunto é a humanização, a questão central é a relação entre o profissional da saúde e o paciente, caracterizando humanizada a assistência que é personalizada. Destacamos que aqui ocorre uma aporia: ao mesmo tempo em que os autores se referem às pessoas envolvidas no cuidado por meio de papéis sociais (profissionais da saúde e paciente), o que em maior ou menor grau implica estereótipos, caracterizam a relação humanizada como desprovida de papéis sociais, ou seja, personalizada.

Os papéis sociais surgem a partir de sistemas consuetudinários, o que permite que os membros de uma sociedade desenvolvam certos atos de maneira automática, possibilitando sua concentração em novos projetos e ideias. Por outro lado, o papel tem como estrutura própria a degradação das relações sociais, pois, ao desenvolver as ações pertinentes aos papéis assumidos, os seres humanos não precisam se mostrar como sujeitos, o que dificulta o conhecimento sobre si mesmos e sobre os outros e, ao mesmo tempo, reforça os comportamentos necessários aos papéis.9Heller A. Sobre os papéis sociais. In: Heller A. O cotidiano e a história. 8ª ed. São Paulo (SP): Paz e Terra; 2008. p.115-43.

A diferenciação entre sujeito individual e sujeito social torna-se necessária na relação estabelecida entre os sujeitos envolvidos no ato de cuidar, já que a indiferenciação pode conduzir a uma relação em que o papel social se destaca e a pessoa que é cuidada pode ser reduzida a um objeto, ou seja, uma relação em que o profissional encontra-se com o sujeito sem que se estabeleça, neste encontro, uma relação pessoa-pessoa. Ao estabelecerem comportamentos automáticos baseados, prioritariamente, nos papéis sociais, as relações do momento assistencial se degradam, dificultando a expressão dos sujeitos, o que seria essencial para uma assistência humanizada.

É importante enfatizar que tanto o profissional da saúde quanto a pessoa que busca pelo serviço de saúde são pessoas que assumem papéis sociais ao interagirem no contexto assistencial: ambos enquanto seres humanos únicos. A diferença fundamental entre eles é a singularidade. No nível do papel social, a diferença entre estas duas pessoas produz-se no fato de que uma, no momento, necessita de cuidados e, a outra, disponibiliza seus conhecimentos e habilidades profissionais e humanas em direção à demanda da primeira.

No plano das políticas públicas de saúde do Brasil, o Ministério da Saúde implantou em 2000, o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar,1010 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Programa Nacional da Assistência Hospitalar. Brasília (DF): MS; 2000. que define humanização como o aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos. Em 2004, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Humanização,1111. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização - a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília (DF); 2004. ampliando o alcance da humanização. Nesse documento é ressaltada a importância de incluir os princípios dessa política tanto na formação dos profissionais, quanto na gestão e na organização do trabalho na saúde, sendo seus princípios baseados nos "valores de autonomia e protagonismo dos sujeitos, de corresponsabilidade entre eles, de solidariedade dos vínculos estabelecidos, dos direitos dos usuários e da participação coletiva no processo de gestão".12:62

Os trabalhos supracitados apresentaram maneiras de expressão da humanização na prática assistencial. Destacam o caráter relacional e a singularidade dos sujeitos que aí atuam.

Após esta breve exposição, destacamos alguns pontos: polissemia do termo humanização; a questão inter-humana; e o caráter da singularidade dos sujeitos envolvidos no processo de cuidar, que parecem acompanhar este termo, mesmo evidenciando o paradoxo de tratar questões singulares com termos que remetem a papéis sociais. Diante disso, este ensaio teórico reflexivo tem o objetivo de refletir sobre o termo humanização na área da saúde, propondo um conceito fundamentado no pensamento de Emmanuel Lévinas.

Para isso, o texto que segue foi organizado do seguinte modo: apresentação do conceito de humanização que propomos e sua fundamentação filosófica; justificativa da escolha do referencial filosófico e exposição da relação eu-outro na filosofia levinasiana.

HUMANIZAÇÃO NA ÁREA DA SAÚDE: UMA PROPOSTA TEÓRICO-REFLEXIVA CONCEITUAL

A reflexão teórica, neste ensaio, baseia-se no conceito "relação eu-outro no e pelo ato de cuidar", o qual é fundamentado na filosofia de Emmanuel Lévinas.

Seria realmente essencial utilizar termos diferentes para as pessoas envolvidas no processo de cuidar (eu-outro) se ambas são pessoas? Acreditamos que esta diferenciação evidencia o outro como alteridade absoluta, diferentemente da expressão "encontro de subjetividades".1313. Almeida DV, Chaves EC, Brito JHS. Humanização dos cuidados de saúde: uma interpretação a partir da filosofia de Emmanuel Lévinas. Rev Ref. 2009 Jul; 2(10):89-96.

Enquanto "encontro de subjetividades" possibilita a objetivação do sujeito que será cuidado, a "relação eu-outro no e pelo ato de cuidar" impede-a por explicitar o outro como alteridade.

O fato de em "encontro de subjetividades" ambos os sujeitos serem identificados como subjetividades, coloca-os no mesmo plano: simetria e reciprocidade. Isso implica que o eu pode responsabilizar-se pelo outro, além de dominá-lo. Já a "relação eu-outro no e pelo ato de cuidar" deixa explícita a assimetria essencial da relação entre o eu e o outro ("relação eu-outro"). Dessa forma, o conceito proposto apresenta o outro como uma alteridade absoluta, aquela que não se entrega à objetivação e, ao mesmo tempo, exige sua responsabilidade, permitindo que o eu e o outro se relacionem permanecendo separados.

A ESCOLHA DA FILOSOFIA DE EMMANUEL LÉVINAS COMO FUNDAMENTAÇÃO PARA UM CONCEITO DE HUMANIZAÇÃO PARA A ÁREA DA SAÚDE

Esta escolha foi sugerida, fundamentalmente, pela finalidade das profissões da saúde e pela complexidade que envolve o saber e o fazer destas profissões.

Vale ressaltar que Lévinas utiliza termos como humano e humanismo em suas obras, mas não se refere ao contexto do cuidado. Dedica-se à relação entre um eu e um outro concretos e, portanto, singulares. Como o termo humanização na área da saúde é utilizado no contexto relacional, especialmente quando esta relação tem como característica tratar o outro como um ser singular, a filosofia levinasiana pode ser uma opção para fundamentar o termo humanização, mesmo que o filósofo não o utilize.

De modo geral, as profissões da saúde visam cuidar do outro nos diversos contextos. Destacamos que este cuidado apresenta-se num campo relacional concreto, efetivando uma relação. Se considerarmos ambos os sujeitos da relação (eu profissional da saúde e o outro) como subjetividades, teremos de considerar que, em certo sentido, apresentam-se idênticos: ambos são pessoas. Esta dedução é correta em um sentido: pessoa enquanto um conceito, que significa seres universais hábeis, competentes, morais, físicos e jurídicos.1414 Lalande A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 1999. O plano conceitual não é um plano real, mas o plano dos pensamentos, das representações, dos universais. Neste plano não existem singularidades, não existem pessoas concretas, estamos ao nível do logos e "o logos não é suficiente para afastar a ignomínia".15:29

Ao nos referirmos a um determinado eu profissional da saúde (um eu concreto e não simplesmente a um papel social) e a um sujeito específico que solicita cuidados, o conceito perde a sua prioridade, já que a apresentação do outro, como alteridade, exige que este eu responda às suas exigências e não às de uma entidade conceitual.

Portanto, os sujeitos envolvidos no processo do cuidar, enquanto pessoas, são, no plano conceitual, idênticos, e no plano real, completamente distintos. Aqui se revela a dicotomia central das profissões da saúde, pois cuidar da saúde da pessoa contemplando a questão humana implica articular o universal e o singular, sujeitando o primeiro ao segundo.

Por mais que cuidar de uma pessoa remeta para um cuidado personalizado, na prática essas relações nem sempre se apresentam conjuntamente. Cuidar de uma doença é diferente de cuidar de uma pessoa doente, embora essas duas maneiras sejam praticadas pelos profissionais da saúde.

Independente do tipo de cuidado prestado, as profissões da saúde apresentam um corpo de conhecimentos científicos direcionados para uma determinada prática profissional, na qual o eu profissional da saúde se depara com a alteridade.

Emmanuel Lévinas concebe a alteridade de maneira irredutível, uma alteridade que permanece alteridade, mesmo quando nos relacionamos com ela. Isso é possível porque a relação eu-outro, descrita por Lévinas, é uma relação assimétrica. Nesta, o eu pode responsabilizar-se pelo outro sem lhe cobrar a recíproca. Mesmo porque essa reciprocidade pode implicar uma certa posse do tu, já que para cobrá-lo sobre aquilo que poderá oferecer ao eu, este precisaria apreendê-lo de alguma maneira (o eu precisaria saber o que o outro lhe pode oferecer para cobrá-lo), o que implica que a alteridade perderia o seu caráter absoluto.

Lévinas, diferentemente do pensar ontológico que se baseia em universais para responder ao singular, concebe a ética como "filosofia primeira", anterior à ontologia (conhecimento). Assim, Lévinas apresenta uma alternativa à filosofia ocidental que está mergulhada na ontologia: a ética da responsabilidade. Responsabilidade que não é escolhida pelo eu, mas desde sempre é já uma resposta à solicitação do outro. Assim, a liberdade está subordinada à responsabilidade, é finita por ser concreta, situada, a liberdade de um eu perante um outro: o apelo de Lévinas "não é propriamente à revolução exterior, (...) não porque não veja necessidade de mudar, mas sim porque não vê a solução alcançável pela mudança exterior, mas só pela interior".16:109

Com uma ética do outro antes do eu - o humanismo que vem do outro homem - a relação humana, proposta por Lévinas, privilegia a alteridade do próximo, o que muitas vezes não acontece na área da saúde e é de fundamental importância, quando a finalidade do serviço é cuidar de um outro concreto e não do gênero humano. Ou seja, para conceber o outro, como alteridade, não poderemos seguir pelo caminho que procura o ser (universal) no outro (singular). Dessa forma, a alteridade seria relativa. Também não podemos seguir pelo caminho em que o eu profissional da saúde é infinitamente livre. Precisamos buscar um caminho em que o outro se impõe como alteridade e que assim permanece mesmo ao relacionar-se com o eu. Conceber uma alteridade com tal imposição parece ser um componente necessário para subsidiar as relações estabelecidas entre um eu profissional da saúde e um outro de forma que se relacionem permanecendo singularidades.

Poderíamos questionar sobre a possibilidade e legitimidade de falar de algo que acontece antes do conhecimento (a relação eu-outro) e, especialmente, em incluir tais conhecimentos nos saberes das profissões da saúde. Lévinas parte da relação de um eu com um outro para remontar à origem além da lógica. Faz uso do discurso para expressar tal relação, mas este não se reduz a esquemas e nem se deixa englobar pelos conceitos. Pois Lévinas usa os conceitos, fala e escreve através deles, "exprime-se com a linguagem filosófica. Porém, o seu verdadeiro pensamento apresenta-se como vindo de um outro mundo",17:13 o de "outro modo que ser", o mundo em que há outrem e que é o fundamento da ontologia. Para conseguir expressar esse face a face, que é como se desdissesse tudo o que dele dissemos, Lévinas faz uso de uma linguagem metafórica, pois a metáfora remete à ausência: "uma excelência relevando de uma ordem totalmente diferente da receptividade pura".18:21 Com essa linguagem e com a ambiguidade presente no rosto de outrem, ambiguidade do ser e do ente - o rosto aparece como silhueta e como o absolutamente outro - torna-se possível falar de um vestígio da alteridade sem que a possuamos.

Os profissionais da saúde são treinados a dirigirem-se ao outro com intenções - Quais são os sinais e sintomas? - conhecimentos claramente ontológicos e, portanto, partem de um eu que é livre antes de ser responsável, de um eu profissional da saúde que é soberano e, enquanto tal, responsabilizar-se-á pelo outro de acordo com a sua vontade e decisão, aquele eu que diz saber o que é melhor ou pior para o outro, que afirma quando o outro tem ou deixa de ter autonomia (que autonomia seria essa?). Não é um eu profissional da saúde que vive para o outro, mas um eu que vive para si, para satisfazer a sua sede de conhecer e cuidar. A filosofia levinasiana não menospreza o conhecimento ontológico, mas reposiciona-o, permitindo que olhemos para a relação entre um cuidador e uma pessoa cuidada de modo que a alteridade prevaleça, ou melhor, de modo que a alteridade se imponha afetando o eu.

Ao apresentar-se como rosto, o outro resiste a qualquer tematização, é o intocável e o indominável e, assim, aparece como frágil e com uma carência essencial (carente de conceito, se quisermos) e, ao mesmo tempo, com um imperativo que exige responsabilidade do eu profissional da saúde, uma responsabilidade que ele não escolheu, mas lhe foi incumbida. Dessa forma, qualquer ação do eu profissional da saúde já é resposta ao apelo que vem do rosto, uma vez que ser eu é ser passividade, é ser para o outro incondicional e infinitamente.

Com esta subjetividade que descobre o sentido humano da sua existência ao acolher outrem, poderemos conceber uma humanização dos cuidados que não se submeterá a regras, mas que fundamente o cuidado e que, inclusive, possibilite e dê sentido aos conhecimentos científicos e técnicos e às políticas públicas.

Enfim, as profissões da saúde lidam com duas dimensões distintas em sua prática: da ontologia, dimensão que conhece e se apossa do outro (conhecer uma patologia, o tratamento, por exemplo), e da alteridade, que jamais será compreendida por estar além dos limites de compreensão de um eu profissional da saúde. Apesar de distintas, estas dimensões são articuláveis, desde que a liberdade do eu seja concreta, ou seja, esteja situada na responsabilidade pelo outro, que a precede.

EU-OUTRO

Poderíamos perguntar: "quem é o eu? Quem é o outro?". A resposta levinasiana recairia na relação eu-outro: a identidade do eu surge da relação face a face; o outro apresenta-se ao eu como rosto. Em síntese, as categorias que existem, ou podem existir nas relações interpessoais (autonomia, liberdade, justiça, responsabilidade, por exemplo), emergem da relação eu-outro.

O ponto de partida é a relação do eu com o outro, na qual o outro se apresenta como rosto, sugerindo a ideia do infinito no eu, despertando este para um desejo insaciável, evidenciando a assimetria entre o eu e o outro, colocando a liberdade do eu em questão e exigindo responsabilidade dele.

Esta relação prévia do eu com o outro é já linguagem, o primeiro discurso, discurso ético. Linguagem não é simplesmente o modo de colocar o mundo em palavras, nem de conhecer outrem, é um modo de "expressão do pensamento, (...) a condição de uma tentativa de comunicação".19:21 É o modo como o eu profissional da saúde e o outro se encontram, o outro permanecendo alteridade e o eu "descobrindo-se" responsável. A linguagem ética tem o sentido de respeitar a alteridade e impossibilitar que o eu permaneça indiferente frente a outrem. Neste encontro se produz o diálogo, "o encontro não é união, mas aproximação - (...) - de dois discursos, se misturando, se evadindo: dia-logos".19:22

Na filosofia levinasiana há dois discursos na linguagem. Primeiro: discurso ético (dizer), aquele em que o outro é rosto, que se apresenta na sua exterioridade com o mandamento "não matarás", um apelo de outrem frente aos poderes de objetivação do eu profissional da saúde. Nessa linguagem em que o outro é altura e transcendência, aparece com a exterioridade própria de um mestre. O primeiro ensinamento que o eu profissional da saúde tem diante dele é sobre os limites dos seus poderes, ensinamento que não deixa este eu indiferente ao outro, mas, pelo contrário, leva-o a renunciar o seu mundo egoísta e a oferecê-lo a outrem.

Se no mundo existissem apenas um eu e um outro, o eu se responsabilizaria infinitamente pelo outro e, a princípio, não haveriam conflitos maiores. Entretanto, neste mundo existem o eu, o outro e os outros, os quais também exigem responsabilidade do eu profissional da saúde e, neste contexto, surge a pergunta: a quem deve responder primeiro? Com a entrada do terceiro, o eu tem que se questionar sobre questões de prioridade, tem que comparar e julgar;1515 Chalier C. Lévinas - a utopia do humano. Lisboa (PT): Instituto Piaget; 1996. "o outro e o terceiro, meus próximos, contemporâneos um do outro, distanciam-me do outro e do terceiro".20:245

Este distanciamento acontece porque o eu não fica indiferente à entrada do terceiro, nem se exime de seu amor pelo outro. A entrada do terceiro exige a tematização: "atrás das singularidades únicas, é preciso entrever indivíduos do gênero, é preciso compará-los, julgá-los e condená-los. (...). Eis a hora da justiça inevitável que a própria caridade todavia exige".21:241

É a responsabilidade pelo outro e pelo outros que exige o movimento do eu profissional da saúde da transcendência da sensibilidade para a objetividade e universalidade. Dito de outro modo, é a partir desse primeiro discurso (dizer) que é possível o segundo, o da troca de informações (dito), pelo fato do terceiro surgir no rosto: "a linguagem como troca de ideias sobre o mundo, com os pensamentos com segundas intenções que comporta (...) supõe a originalidade do rosto".22:176

É importante esclarecer que a entrada do terceiro nem sempre é um fato empírico, ele entra juntamente com o outro. Na relação face a face, o terceiro aparece na face do outro: "o terceiro observa-me nos olhos de outrem (...). O rosto na sua nudez de rosto apresenta-me a penúria do pobre e do estrangeiro; mas essa pobreza e esse exílio que apelam para os meus poderes, visam-me, não se entregam a tais poderes como dados, permanecem expressão de rosto".22:188

Outrem, que é cuidado pelo eu profissional da saúde, apresenta-se no discurso anterior às palavras, não é possível compreendê-lo, ele exprime-se, é rosto: "o modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a idéia do Outro em mim, chamamo-lo, com efeito, rosto. (...) O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu ideatum - a ideia adequada. Não se manifesta por essas qualidades (...). Exprime-se".22:21

Dizemos que o rosto se manifesta no sensível (dizer), que se exprime porque é pura expressão. É um modo de ser absolutamente peculiar, sua maneira de exprimir-se é transcendente, não pode ser forma nem conteúdo, exprime-se em sua nudez, o que significa que ele se apresenta com ausência de formas. Logo, não se oferece à ciência, aos nossos poderes, às nossas percepções, não é um conteúdo determinado pelo horizonte cultural, o qual é concreto e relativo.2323 Brito JHS. De Atenas a Jerusalém: a subjetividade passiva em Lévinas. Lisboa (PT): Universidade Católica Editora; 2002. É um conteúdo que transcende o saber de um eu,2222 Lévinas E. Totalité et infini. 4a ed. La Haye (FR): Martinus Nijhoff Publishers; 1980. não se enquadra em nenhum saber. O rosto despe-se da sua própria imagem e de qualquer ornamento cultural,1818 Lévinas E. Humanisme de l'autre homme. Montpellier (FR): Fata Morgana; 1972. é pura sensibilidade ou "uma realidade excessiva",15:116"experiência pura, experiência sem conceito".24:177

O que acontece para que o rosto resista à objetivação? O rosto exprime uma realidade que ultrapassa o fenômeno no qual o rosto se desvela: "no rosto, encontra-se um vestígio de algo que passa por ele e que nele se manifesta",17:119 o rastro do infinito, o qual impede qualquer objetivação do rosto.

O infinito, a ideia do infinito, não é um objeto imenso que ultrapassa os horizontes do olhar; surge na consciência do eu profissional da saúde ao se deparar com o outro que é alteridade. É uma ideia que ultrapassa sua própria ideia, ultrapassa a capacidade de pensar, é vazia na sua aparência, é uma ideia da idéia: "ao pensar o infinito - o eu imediatamente pensa mais do que pensa".24:172 O eu que pensa estabelece uma relação com o infinito, mas é uma relação diferente daquela que existe entre um ser pensante e um determinado conteúdo, é uma relação numa outra dimensão, num outro plano, o plano do absolutamente outro, do radicalmente outro, da transcendência, do separado e do diacrônico, aquele em que o tempo do eu profissional da saúde não se confunde com o tempo do transcendente. Por mais que a ideia do infinito seja uma ideia, não é um conceito: "o infinito em que toda a definição se decompõe não se define, (...), mas assinala-se; (...) assistindo à obra que o assinala; não se assinala somente, mas fala, é rosto".22:72

É a única ideia que ensina aquilo que se ignora,2424 Lévinas E. La philosophie et l'idée de I'infini. In: En découvrant l'existence avec Husserl et Heidegger. Paris (FR): Librairie philosophique J. VRIN; 1967. p.165-78. pois, como é a única ideia que é transcendente em relação ao eu é a única que pode trazer conteúdos exteriores ao eu e, assim, passíveis de serem conhecidos por ele. Porém, é um conhecimento diferente daquele que o eu pode apreender no sentido de dominar, é um conhecimento que ensina a humanidade ao eu. A ideia do infinito é o primeiro ensinamento: "o ensinamento primeiro ensina essa mesma altura que equivale à sua exterioridade, a ética".22:146 A ideia do infinito não ensina o que ela é, mas que o outro que está diante do eu, é absolutamente transcendente a ele. Este ensino, que vem de outrem, é conhecimento, é expressão do outro. É pelo ensinamento que a pessoa cuidada apresenta seu mundo ao eu profissional da saúde, expressa a maneira que prefere ser cuidada, os seus desejos e sonhos.

A ideia do infinito é o desejo infinito pelo outro, produz-se como desejo.2424 Lévinas E. La philosophie et l'idée de I'infini. In: En découvrant l'existence avec Husserl et Heidegger. Paris (FR): Librairie philosophique J. VRIN; 1967. p.165-78. O desejo deseja o que está para além de tudo que poderia completá-lo, é o desejo do absolutamente outro. O desejo respeita a separação, diferente da necessidade: "para além da fome que se satisfaz, da sede que se mata e dos sentidos que se apaziguam, a metafísica deseja o Outro para além das representações, (...). Desejo sem satisfação que, precisamente, entende o afastamento, a alteridade e a exterioridade do Outro".22:4

Pensamos ser importante enfatizar que é o desejo que entende a alteridade e que, embora ele esteja no eu profissional da saúde, é despertado pelo outro no momento da assistência, não pelo outro enquanto um ser simplesmente sensível que pode ser apreendido, mas no que ele tem de mais singular, a sua alteridade. Esta singularidade que impossibilita qualquer tematização é devida ao vestígio do infinito que se exprime no rosto. Logo, "a ideia do infinito é Desejo".17:27

Este desejo que o outro, ao invés de satisfazer, suscita, é um desejo completamente desinteressado (bondade). O desejo e a bondade supõem uma relação em que o outro detém todos os poderes do eu e este, diante dele, já sem nenhum poder, tem apenas um dever: responder-lhe, responsabilizar-se por ele, oferecer-lhe o mundo do qual tem posse: "nenhum rosto pode ser abordado de mãos vazias e com a casa fechada: (...) a hospitalidade é o fato concreto e inicial do recolhimento humano e da separação".22:147

O rosto só se oferece aos poderes do eu no sentido em que pode ser morto, ou seja, o eu profissional da saúde pode matá-lo enquanto alteridade, conceituando-o, representando-o. Por isso, "o seu logos [o logos do rosto] é: 'Tu não matarás'"24:173 - "não me conceitue, não me objetive" -, o que significa "farás tudo para que o outro viva"25:41 - "ofereça-me os seus conhecimentos".

Este ensinamento que vem de outrem surge na sensibilidade do rosto, no encontro concreto de um eu profissional da saúde com um outro, em que o rosto paralisa os poderes do eu através da sua resistência ética: "resistência que não tem resistência",22:173 por não colocar um limite à liberdade do eu, senão por colocá-la em questão, por exigir que ela se justa: "a liberdade do eu não é espontaneidade, é resposta ao Outro que, não limitando a liberdade do eu, o chama à responsabilidade, o que instaura e justifica a liberdade. É a responsabilidade pelo Outro que leva o eu a agir (...). O eu age não por originariamente ser livre, mas por ser responsável".23:85

O eu profissional da saúde não é um sujeito livre, não pode utilizar os seus conhecimentos da maneira que quiser, mas está sujeito ao outro, ao seu mandamento; o eu é "responsabilidade por tudo e por todos".15:82 Neste plano da responsabilidade produz-se a subjetividade e a alteridade devido à assimetria que há entre o eu e o outro. Isso não significa que o eu nada pode escolher, mas que as suas opções estão circunstanciadas na própria relação com outrem. O eu pode escolher a maneira de atender o outro, além de viver ou não a sua responsabilidade.

Na assimetria da relação do eu profissional da saúde com o outro, este surge como altura, como rosto, mestre deste eu, e este surge como responsável pelo outro. Esta responsabilidade é a característica fundamental da subjetividade, é a própria identidade do eu: "não sou sem responsabilidade".21:37

A identidade do eu profissional da saúde, apesar de vir de seu interior, não parte dele, da sua autonomia, origina-se na presença do outro.2323 Brito JHS. De Atenas a Jerusalém: a subjetividade passiva em Lévinas. Lisboa (PT): Universidade Católica Editora; 2002. O outro é quem chama o eu para a sua responsabilidade: "a identidade do eu não é o resultado de um saber qualquer: eu me encontro sem me procurar".19:87

Ao afirmar que o processo de individuação provém da responsabilidade, Lévinas atinge a subjetividade não a partir do universal, mas da sua singularidade e concretude,2323 Brito JHS. De Atenas a Jerusalém: a subjetividade passiva em Lévinas. Lisboa (PT): Universidade Católica Editora; 2002. pois só é possível responsabilizar-se por alguém, e este alguém é um outro, o qual se apresenta no face a face, afetando o eu.

Assim, a responsabilidade não surge de uma obrigação que parte do eu profissional da saúde, nem é uma qualidade sua. Ser responsável pelo outro que faz face ao eu profissional da saúde é "um contra a minha vontade que é mais do que eu-mesmo: é uma eleição. (...) ninguém mais pode fazer aquilo que só ele deve fazer".26:216 O fato de ser escolhido por outrem mostra que a sua responsabilidade não é um compromisso assumido livremente pelo eu profissional da saúde: "o eleito pertence à ordem da responsabilidade, (...) não se encontra em posição de decidir o que quer que seja a esse respeito".15:82 Esta eleição explicita duas questões: o caráter singular da subjetividade e a de situar a liberdade do eu na sua responsabilidade.

"Apenas a eleição torna único."15:111 Na sua responsabilidade por outrem o eu é insubstituível. Só este eu profissional da saúde singular pode responder àquele outro que o elegeu. E, como estamos falando de um eu na sua concretude, a sua maneira de responder é singular: "eu como unicidade, fora de toda comparação, já que à margem da comunidade, do gênero e da forma, (...), a diferença com respeito a si - é a não-indiferença".20:21

Outrem é livre, escolhe o eu para responder ao seu chamamento. O eu profissional da saúde não escolhe a sua responsabilidade pelo outro, esta é anterior à sua liberdade. O fato do eu responder, sem compromisso prévio, não significa que a sua resposta tenha menos mérito que a de um eu que escolhe assumir este compromisso, pois uma responsabilidade que não é assumida, torna-se infinita e indeclinável, o que é a fraternidade humana anterior à liberdade: "este modo de responder sem compromisso prévio - responsabilidade por outrem - é a própria fraternidade humana anterior à liberdade".20:184

É importante esclarecer que, mesmo a responsabilidade do eu sendo evocada por outrem na sensibilidade do face a face, este eu profissional da saúde tampouco é escravo do outro: "não se trata de uma abdicação do Mesmo, alienado e escravo do outro, mas abnegação de si mesmo como plenamente responsável pelo outro".20:111 A lei que aparece no rosto destrói o caráter definitivo do eu profissional da saúde e revela "o caminho das obrigações que introduzem o humano no ser".15:78Como é ao servir outrem, que o eu profissional da saúde se constitui como um eu humano e não como um papel social, podemos afirmar que a sua vocação é a responsabilidade por outrem, a qual "não é o acidente que lhe advém a um Sujeito, (...), não alcança a liberdade na qual havia adquirido o compromisso por outrem. (...). A ipseidade na sua passividade sem arché da identidade é refém. O termo Eu significa eis-me aqui, respondendo por tudo e por todos".20:180- 1Heckert ALC, Passos E, Barros MEB. Um seminário dispositivo: a humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) em debate. Interf Comunic Saúde Educ. 2009; 3(Supl 1):493-502.

Como o eu pode ser refém do outro? A condição de refém é aquela em que alguém fica, não por escolha própria, em poder de outrem como garantia que algo seja cumprido. Arriscaríamos dizer que o eu profissional da saúde, diante do outro, torna-se seu refém com a garantia de não tratá-lo como objeto. Só um absolutamente outro seria capaz de afetar o eu a ponto de paralisar os seus poderes ao chamá-lo à responsabilidade indeclinável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que o conceito "relação eu-outro no e pelo ato de cuidar" evidencia o outro, como alteridade, e a separação absoluta dos sujeitos (eu-outro) envolvidos na relação, especialmente por fundamentarmos tal conceito na filosofia de Emmanuel Lévinas, na qual o outro é rosto. Impõe-se destruindo a sua ideia plástica; e, ao mesmo tempo, afirma a sua alteridade exigindo responsabilidade do eu.

Outrem é alteridade absoluta e o eu, responsável por servi-la, responsabilidade não derivada de Códigos de Ética profissionais, mas que surge na sensibilidade do face a face, e que pode fundamentá-la. Esta relação em que o eu deseja o indesejável e que se descobre responsável ao mesmo tempo em que se dá conta da sua humanidade, abre espaço para a bondade e a solidariedade de modo absoluto.

A filosofia levinasiana exige que pensemos a situação de cuidado de maneira diferente do comum: o eu profissional da saúde "transforma-se" em um sujeito passivo, o outro é quem inicia o discurso ("não matarás") e a liberdade do eu é finita (contingente), mas isso não significa que Lévinas descreva uma relação eu-outro utópica. Desperta-nos para o encontro com outrem que acontece na sensibilidade e que antecede e possibilita o surgimento da ontologia. Conceber outrem como completamente exterior ao eu profissional da saúde, afeta-o de tal modo que exige um direcionamento particular da ontologia, exige que os conhecimentos técnicos e científicos do profissional sejam submetidos às demandas do outro, exige que as políticas públicas tenham sempre a finalidade de servir outrem justamente, atribuindo um caráter de singularidade ao conceito.

O fato do conceito "relação eu-outro no e pelo ato de cuidar" remeter às categorias que subjazem as relações humanas em um momento prévio a atribuição de valores, poderíamos ousar afirmar que torna esse conceito universal.

A proposta deste conceito, fundamentado na filosofia de Emmanuel Lévinas, possibilita tratar a temática da humanização cientificamente (conceito e fundamentação) e convidar, de modo especial, os profissionais da saúde a refletirem sobre as suas práticas.

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  • *
    A pessoa que receberá os cuidados será chamada por paciente, cliente, doente ou usuário de acordo com a opção do autor que está sendo citado. Quando o texto for da pesquisadora será utilizado o termo pessoa ou outro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2013
  • Aceito
    14 Nov 2013
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