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O desenvolvimento do capitalismo e a formação da cultura europeia no século XIX

Capitalist development and european cultural formation in 19th Century Europe

Resenha de FIGES, Orlando. . Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita.Rio de Janeiro: Record, 2022.

Resumo:

Apresenta resenha do livro Os europeus, do historiador britânico Orlando Figes. A partir de uma ampla gama de fontes primárias, Figes narra o triângulo amoroso entre o romancista russo Ivan Turgeniev, a cantora de ópera franco-espanhola Pauline Viardot-García e seu marido e empresário, o francês Louis Viardot. O historiador utiliza a vida dessas três pessoas do mundo das artes, cujas relações se desenrolaram em vários países europeus ao longo do século XIX, para traçar um panorama das mudanças econômicas e culturais pelas quais passava a Europa. Para Figes, o triângulo Turgeniev/García/Viardot pode ser considerado uma síntese da identidade comum europeia que se criava no século XIX.

Palavras-chave:
Europa; Artes; Século XIX; Identidade cultural europeia

Abstract:

The essay reviews the book The Europeans by British historian Orlando Figes. Working on a wide range of primary sources, Figes narrates the love triangle between Russian novelista Ivan Turgeniev, French-Spanish opera singer Pauline Viardot-Garcia and his husband, French art manager Louir Viardot. Figes uses the lives of these three people (all of them belonging to the world of arts) during 19th Century Europe to show the landscape of economic and cultural transformations which were ocurring in Europe. To Figes, the Turgeniev/García/Viardot triangle could be taken as a synthesis of common european identity in 19th Century.

Keywords:
Europe; Arts; 19th Century; European cultural identity

Um dos mais fascinantes atributos da história - enquanto disciplina acadêmica que lida com o que os seres humanos fazem e pensam ao longo do tempo - é o de evidenciar que categorias mentais aparentemente naturais e eternas são também históricas. Têm início espaço-temporal (mesmo que tal início geralmente seja de dificílima captação) e se transformam no decorrer da trajetória humana. Mesmo os consagrados conceitos que usamos para criar interpretações geopolíticas relativamente coerentes - América, Ásia, Europa, Oriente, Ocidente etc. - são construções sociais eivadas de significados que extrapolam a mera referência a áreas geográficas e “povos” tomados como blocos monolíticos. Em 1958, por exemplo, o historiador mexicano Edmundo O’Gorman publicou o hoje clássico A invenção da América (1992), com intenção de problematizar a noção então corrente de descoberta. Para O’Gorman, a América não era algo pronto, inscrito na natureza, apenas aguardando a descoberta por Colombo em 1492, mas sim um conceito inventado na medida em que a chegada física de exploradores a um continente até então desconhecido provocava alterações nas maneiras europeias de conceber e pensar o mundo. O crítico literário palestino Edward Said seguiu caminho semelhante em 1978, ao argumentar, em seu basilar Orientalismo (2006), que as ideias predominantes de Oriente e Oriente Médio - e das populações orientais e médio-orientais - teriam menos a ver com a realidade empírica desses lugares do que com o imaginário construído na Europa, na medida em que a dominação colonial se espraiava pelo planeta.

No entanto, se são notórios os processos pelos quais na Europa se constroem imagens de outros povos, não costumam ser abordadas de maneira detalhada, ao menos no Brasil, as maneiras pelas quais os europeus concebem e pensam suas próprias trajetórias. Em geral nos contentamos em constatar, geralmente baseados em Said, que a Europa construiu uma visão de si mesma como paradigma civilizatório destinado a tirar o mundo do obscurantismo - construção necessariamente atrelada à imagem de um Oriente bárbaro. Embora correta, a constatação é bastante simplista por não abordar as nuanças de como essa autoimagem foi constituída. Algumas obras se empenham em elucidar as complexidades dessa questão. Lucien Febvre, em A Europa: gênese de uma civilização (2004FEBVRE, Lucien. A Europa: gênese de uma civilização. Bauru: Edusc, 2004.), defende que uma noção clara de Europa começa a se formar em fins do século XV, aos poucos substituindo a ideia de Cristandade como forma de diferenciar os povos que hoje chamamos de europeus em relação a outras populações (por exemplo, otomanos islâmicos, nativos do Novo Mundo, os impérios do extremo Oriente etc.). Federico Chabod (2015CHABOD, Federico. Storia dell’idea d’Europa. Bari: Laterza, 2015.), por sua vez, argumenta que já no contexto da formação do império de Alexandre da Macedônia teriam surgido elaborações que distinguiriam “europeus”, “asiáticos” e “africanos”. Rémi Brague (2020BRAGUE, Rémi. Europa, a via romana. São Paulo: Mnêma, 2020.), filósofo francês, afirma que a identidade europeia, plasmada ao longo de séculos, incorpora principalmente tendências do helenismo, da latinidade do Império Romano, do cristianismo e do judaísmo.

É justamente nesse esforço - o de pensar a formação da ideia de Europa - que podemos inserir o livro do historiador britânico Orlando Figes, Os europeus, publicado em Londres em 2019 e trazido ao Brasil pela Editora Record em 2022. Ao contrário dos autores supracitados, Figes escolhe um recorte temporal menor, tomando o século XIX como a época em que haveria se desenvolvido um patrimônio espiritual comum a todo o continente europeu. Algo como “um espaço cultural europeu - compartilhado pelos ‘europeus’ e funcionando como traço de união entre eles” (Figes, 2022FIGES, Orlando. Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 518). Em síntese, a questão que o autor se coloca é: como surgiu, ao longo do século XIX, uma cultura europeia que extrapolasse as particularidades nacionais?

A problemática é complexa, e Figes, evidentemente, não tenta esgotá-la. Não pretende, por exemplo, analisar de forma ampla as mudanças nas atitudes e representações coletivas inconscientes das sociedades, tal como faria a história das mentalidades da tradição francesa (Vovelle, 1987VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.), a partir da qual se poderia estudar como, por meio de transformações nas estruturas mentais, os europeus teriam passado a narrar e conceber a si mesmos não apenas como parte de determinada nação, mas também como europeus. O autor, de forma mais restrita, prefere focar em homens e mulheres relacionados ao mundo das artes - a literatura, a música, o teatro, as artes plásticas - e em como, no século XIX, eles tiveram acesso a trocas de informações e tendências que perpassavam o continente e possibilitavam que artistas influenciassem uns aos outros de Madri a Paris e de Viena a Moscou e São Petersburgo, criando assim algo que Figes identifica como uma identidade cultural europeia.

O fio condutor do livro é um triângulo amoroso protagonizado pelo romancista russo Ivan Turgeniev (1818-1883), a cantora de ópera franco-espanhola Pauline Viardot-García (1821-1910) e seu marido e empresário, o francês Louis Viardot (1800-1883). Turgeniev, quando ainda jovem e inexperiente, conhecera Pauline em uma de suas turnês de canto e foi arrebatado pela paixão. Movido por uma devoção cega a seu objeto de desejo, Turgeniev logrou se tornar amigo íntimo não apenas de Pauline, que eventualmente correspondia a seus avanços, mas também de Louis, que era leniente em relação às infidelidades da esposa. A amizade entre os três perduraria até a morte do russo, em 1883.

Note-se a origem desses três personagens: Louis, proveniente de uma França que avançava na dominação colonial de outros povos e aos poucos procurava se impor como zênite da civilização e paradigma cultural a ser seguido mundo afora; Pauline, cuja ascendência remetia à então distante e exótica Península Ibérica e sua mescla de tradições castelhanas, galegas, catalãs e árabes; Ivan, aristocrata da longínqua Santa Rússia dos Romanov, um império em profunda tensão identitária, não decidido entre um suposto pertencimento ao “Ocidente” e um hipotético “espírito oriental”. Para Orlando Figes, as mudanças sociais e culturais que ocorriam na Europa facilitaram não apenas que essas pessoas oriundas de lugares tão diversos tenham se encontrado fisicamente, mas também que tenham encontrado um ambiente comum no qual pudessem estabelecer suas relações - o ambiente artístico, que no período oitocentista se tornava mais integrado e menos preso a idiossincrasias nacionais. Tomando como fundo documental as memórias e cartas escritas por Turgeniev, Pauline e Louis, Figes narra a história desse triângulo amoroso que se desenvolveu em vários países europeus ao longo da maior parte do século XIX. Em torno dessa narrativa, Figes mobiliza diversos conjuntos auxiliares de documentação (disponíveis em arquivos europeus e americanos) para tornar o romance Turgeniev/Pauline/Louis a síntese e o fio condutor por meio do qual vemos a construção de uma cultura europeia.

De sorte que acompanhamos Turgeniev se tornar um autor de sucesso e o romancista russo mais aclamado do continente ao mesmo tempo em que tenta conquistar os afetos de Pauline, que, por sua vez, com o agenciamento do marido, se firmava como estrela do canto lírico e marcava presença nas principais casas de ópera europeias. Em torno dessas três pessoas (e de uma série de “personagens” secundários, como Clara Schumann, George Sand, Hector Berlioz, Charles Dickens, Richard Wagner, Camille Saint-Saëns, Charles Gounod, Frederic Chopin, Gustave Flaubert, Jules Massenet, Giacomo Meyerbeer, Gioachino Rossini, Franz Liszt, Eugène Delacroix), Figes apresenta as profundas transformações com as quais aquelas pessoas precisavam lidar - transformações que possibilitavam a intensificação das trocas culturais e tecnológicas entre europeus das mais diversas nacionalidades (ou, ao menos, aos integrantes da aristocracia e das classes médias dessas nacionalidades). Isso resultou em um processo de influências múltiplas na literatura, na música e no teatro, criando, assim, elementos culturais passíveis de serem encontrados em todo o continente europeu.

Segundo o autor, o conceito de um espaço cultural europeu surgiu nas primeiras décadas do século XIX. O filósofo socialista Saint-Simon, por exemplo, “considerava que a Europa tinha uma ‘missão civilizatória’ definida por seu espírito secular, na qual as artes tomariam o lugar da religião, da raça ou da nação no empenho de unir os povos do continente” (Figes, 2022FIGES, Orlando. Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 518). O poeta alemão Goethe, por sua vez, “achava que um tipo híbrido de cultura europeia seria formado com o aumento da circulação e das trocas culturais entre as nações” (Figes, 2022FIGES, Orlando. Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 518). No entanto, foi apenas a partir de 1875 que se consolidou a “noção de uma sensibilidade europeia distinta, de uma identidade cultural: um sentimento de ‘europeidade’ compartilhado pelos cidadãos da Europa, independentemente da nacionalidade” (Figes, 2002FIGES, Orlando. Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 518).

O ponto forte do livro é a exposição das condições que tornaram possível a consolidação de um espaço cultural europeu consistente entre o Atlântico e os montes Urais. Para Figes, o desenvolvimento econômico, social e tecnológico proporcionado pela Segunda Revolução Industrial forneceu as bases materiais para que pessoas e sua produção simbólica pudessem percorrer maiores distâncias com mais velocidade e menor esforço. Não é à toa que as ferrovias são imagem constante na narrativa: Turgeniev e seus conhecidos viajavam de trem constantemente, visto que a malha ferroviária em expansão tornava todas as partes da Europa cada vez mais conectadas, dando nascimento ao que hoje chamamos de indústria de turismo e suas instalações: hotéis, restaurantes voltados para visitantes estrangeiros, lojas de souvenirs e livrarias de estações ferroviárias, voltadas para a venda de material para se ler durante os trajetos. O transporte por trem causou relativa popularização das viagens e tornou o continente mais acessível a um número maior de pessoas. Em 1873, o Edinburgh Review registrava, não sem alguma consternação conservadora:

Nos meses de outono, toda a Europa parece em estado de perpétua movimentação. [...] Cada lugar, por mais difícil o acesso, é atacado. O distante lago de Köenigssee, na Baviera, aonde talvez chegasse antes uma dúzia de estrangeiros ao longo de um mês, agora recebe quatro embarcações, enquanto as carruagens à espera na margem podem ser contadas aos cinquenta. O cume do Rigi já não tem mais relva, cheio de garrafas quebradas e fragmentos do Daily Telegraph (apud Figes, 2022FIGES, Orlando. Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 252-253).

Essas andanças colocavam os viajantes em contato com hábitos e produções culturais de outros países, em especial por intermédio de visitas a museus - instituições que se multiplicavam ao longo do século XIX. Além disso, as ferrovias estão diretamente relacionadas à popularização das peças de ópera via exibição em maior número de locais, uma vez que permitiam que cantores, instrumentos musicais e peças de composição cênica fossem transportados com mais facilidade. Isso ajudou na criação de um repertório operístico relativamente estável e disponível para todo o continente. No mesmo sentido, a literatura impressa em livros e em jornais (em forma seriada) alcançava maior distribuição - em parte devido à distribuição via ferroviária, em parte devido aos avanços nos procedimentos de imprensa, que levaram à fabricação de livros mais baratos e em menor quantidade, ajudando não apenas a estabelecer cânones literários amplamente aceitos, mas também a facilitar o intercâmbio de influências literárias. Não à toa os romances sociais do russo Dostoievski deviam muito ao britânico Dickens.

Em seus sucessos profissionais, Turgeniev, ao se tornar o primeiro autor russo amplamente lido e aclamado na Europa ocidental, e Pauline Viardot, ao se tornar cantora de ópera muitíssimo requisitada de Londres a Roma e de Madri a São Petersburgo, são exemplos paradigmáticos da ascensão de uma cultura pan-europeia no século XIX. Uma cultura interconectada pelas inovações tecnológicas da época - ladeando a expansão ferroviária e as melhoras no ramo da imprensa, os Oitocentos também viram outras novidades que impulsionaram a circulação de ideias: o telégrafo, a litografia, a fotografia, a produção em massa de pianos, além da criação das primeiras leis de copyright, que contribuíram para que muitos homens e mulheres pudessem viver de sua própria arte.

Em síntese, a tese de Figes é de que a identidade cultural europeia - uma identidade cosmopolita, que ultrapassa a mera soma das culturas nacionais individuais -se tornou possível a partir do desenvolvimento do capitalismo. As novas estruturas de comunicação e transportes advindas da dinâmica desse modo de produção possibilitaram que empresários musicais pudessem apresentar óperas em vários países, que romances fossem traduzidos em várias línguas e distribuídos rapidamente, que museus recebessem visitantes de várias partes e que imagens fotográficas feitas em um ponto do continente pudessem ser reproduzidas e vendidas em inúmeros locais. O acúmulo dessas trocas fez com que ao menos os homens e mulheres das artes e das classes médias puderam se sentir parte não apenas de suas nações de origem, mas de todo um continente - um continente cada vez mais interconectado, dotado de uma produção cultural que podia ser apreciada em praticamente qualquer cidade de médio porte entre o Atlântico e os Urais.

Os europeus, em suma, é uma valiosa contribuição, baseada em sólida pesquisa documental, para os interessados em estudos tais como os de O’Gorman, Said, Febvre, Chabod e Brague, citados no início desta resenha - trabalhos que indicam a historicidade de ideias tão entranhadas em nosso universo conceitual quanto América, Oriente ou Europa. Assim como essas noções são construídas em processos concretos específicos, Figes nos lembra, competentemente, que os sentimentos de pertencimento a uma cultura também são, em última instância, históricos.

Referências

  • BRAGUE, Rémi. Europa, a via romana São Paulo: Mnêma, 2020.
  • CHABOD, Federico. Storia dell’idea d’Europa Bari: Laterza, 2015.
  • FEBVRE, Lucien. A Europa: gênese de uma civilização Bauru: Edusc, 2004.
  • FIGES, Orlando. Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita Rio de Janeiro: Record, 2022.
  • O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América São Paulo: Editora Unesp, 1992.
  • SAID, Edward. Orientalism New York: Vintage, 2006.
  • VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades São Paulo: Brasiliense, 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2022
  • Aceito
    04 Out 2022
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