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A profissionalização da enfermagem brasileira

RESENHAS REVIEWS

Rosalba Pessoa de Souza Timoteo

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. <rpstimoteo@hotmail.com>

A profissionalização da enfermagem brasileira. Almerinda Moreira e Taka Oguisso. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005, 152 pp.

Eis um livro que, diferentemente dos estudos realizados sobre a origem da enfermagem no Brasil, vem questionar a concepção hegemônica sobre sua institucionalização no país, a qual somente é reconhecida a partir da regulamentação da escola de enfermagem vinculada ao Departamento Nacional de Saúde Pública, no ano de 1923. Para Almerinda Moreira e Taka Oguisso, trata-se de uma omissão que altera os rumos da história e ignora a existência de mais de 30 anos da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (EPEE), atual Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, criada em 1890, junto ao Hospital Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro.

Movidas pela necessidade de reverter esta condição da história da enfermagem no país, as autoras lançam-se ao desafio de questionar, levantar hipóteses, analisar controvérsias naquilo que esteve, segundo elas, anos a fio sem ser contestado.

Desse modo, o livro tem por objetivo perscrutar e registrar os primórdios da profissionalização da enfermagem brasileira, tendo como recorte temporal o período histórico que começa em 1890 e termina em 1920, ou seja, uma etapa que antecede a inserção da enfermagem moderna no país. De uma maneira geral, trata-se de rediscutir as origens deste campo no Brasil, mediante a análise e interpretação de documentos que também tiveram como propósito ressaltar o impacto e a representatividade da EPEE no contexto social em que foi criada.

Para as autoras, as omissões e lacunas nos registros históricos acerca da existência da EPEE, criada pelo decreto no 791, de 27 de setembro de 1890, favoreceram a construção de uma história oficial, vista na maioria das vezes como a única versão, na qual não estão incluídos diversos acontecimentos relevantes nem a existência de profissionais que atuaram como enfermeiros no período em análise. Todavia, ressaltam que, além de rever a importância do estudo da história da enfermagem, o livro se propõe também a obter elementos que conduzam à reconstrução da identidade profissional, incluindo-se algumas discussões acerca da feminização na profissão, dos modelos adotados no ensino e do processo de profissionalização em diversos países, particularmente no Brasil.

Por conseguinte, trata-se de estudo que não se limita apenas a lograr uma visão crítica da profissão, mas a desvelar a realidade de modo a permitir um novo olhar sobre a profissão.

Tal compreensão impulsiona a investigação, aprofundada e cuidadosa, contribuindo para a superação do pensamento pragmático que nega o passado, ou o relega a planos menos importantes. Além disso, desmistifica a visão unilateral da história como processo anacrônico, formado por vultos, mitos e heróis que, solitariamente, enfrentam desafios, vencem batalhas e traçam jornadas sem que apareçam as idéias, a luta e o trabalho de outros que compartilharam com eles as vitórias e dividiram os insucessos.

Essa é uma das teses que passam a ser defendidas em todo o percurso metodológico que orienta o desenvolvimento do livro, que, após introduzir o tema, discorre sobre a gênese e o desenvolvimento do processo de profissionalização da enfermagem em diversos países e no Brasil.

Nas considerações iniciais da obra, apresentam-se os objetivos, o percurso metodológico, as fontes e os locais pesquisados. Assim, com vistas a alcançar os objetivos anteriormente expostos, utilizando-se da análise de conteúdo como técnica de pesquisa a documentos e registros escritos e iconográficos, as autoras desenvolveram o estudo histórico na perspectiva orientadora da História Nova. Neste sentido, foram priorizados como fontes de pesquisa os documentos oficiais da EPEE, os relatórios da Assistência aos Alienados, encaminhados ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, a revista O Brazil-Médico, o periódico Jornal do Commércio e manuais de enfermagem, pesquisados em arquivos e bibliotecas de âmbito nacional, estadual e setorial.

No capítulo 2, "Gênese da profissionalização da enfermagem", trabalham-se o conceito de profissionalização e as implicações contextuais que consolidaram o termo profissão ao longo do tempo. O ponto central é o debate sobre a diferenciação entre ocupação e profissão e, dentre as ocupações, sobre quais poderiam ser consideradas profissões. Na saúde, as profissões, da maneira como hoje se apresentam, parecem ter emergido de um tronco histórico comum, o que contribui para dificultar, de certa forma, a identificação dos cuidados e práticas específicos da enfermagem.

No Brasil, a profissionalização da enfermagem passa a se configurar a partir da prestação de cuidados às pessoas enfermas em domicílios, o que, posteriormente, ganha contornos de profissionalização com a sistematização do ensino. Para as autoras, a enfermagem profissional representa a atividade exercida por pessoas que passaram por um processo formal de aprendizado, com base em um ensino sistematizado, portadoras de diploma legal e titulação específica que lhes conferem direitos ao exercício do ofício pelos conhecimentos adquiridos.

No capítulo 3, "O hospital: origens e influência na formação dos enfermeiros", realiza-se uma breve retomada da origem da instituição hospitalar, fazendo a relação com seu processo de modernização e com a profissionalização das práticas desenvolvidas nessas instituições. No Brasil, a exemplo dos hospitais europeus, a finalidade era prestar cuidados a enfermos, alienados e portadores de doenças infectocontagiosas oriundos da camada pobre da sociedade. A característica principal dessas instituições era a benemerência e os cuidados, na maior parte das vezes realizados por religiosos e religiosas. A saída desses religiosos das instituições hospitalares gerou uma séria crise nos hospitais, pois, até então, o governo não havia se preocupado com a formação de trabalhadores que substituíssem a força de trabalho exercida pelas irmãs de caridade. Foi preciso, portanto, contratar enfermeiras vindas da França.

Como a necessidade se centrava, principalmente, no Hospital Nacional de Alienados, os psiquiatras trouxeram para o Brasil o modelo de escola que preparava pessoal para cuidar dos doentes mentais, trazendo também o modelo laico de enfermagem que admitia o recebimento de remuneração pelos serviços prestados. Para as autoras, isso favoreceu a imagem do enfermeiro como um "trabalhador da doença", por sua origem e profissionalização no interior do hospital, mesmo quando a formação ganhava contornos preventistas a partir da criação do curso ligado ao Departamento Nacional de Saúde Pública, cujo enfoque voltava-se para atender às endemias e epidemias que acometiam o país na época.

O capítulo 4, "Os movimentos de profissionalização da enfermagem", faz uma viagem pelas diversas realidades culturais, trazendo características do modo de realizar as práticas de saúde e de enfermagem nos diversos países estudados: Reino Unido, Estados Unidos da América (EUA), França, Portugal, Espanha, Argentina e Taiwan. As autoras concluem que alguns aspectos são comuns à origem e ao processo de profissionalização nos diversos países estudados, como a exigência da qualidade moral e da formação básica para o candidato ao curso de enfermagem, aspirante a enfermeiro, o que não é prerrogativa exclusiva do modelo nightingaleano, já que outras iniciativas de formação também incluíam em seus requisitos tais atributos.

Majoritariamente, o surgimento das primeiras escolas de enfermagem deu-se no âmbito hospitalar, com ênfase no ensino teórico-prático ministrado por médicos. As escolas foram criadas sob a égide do saber médico com vistas a suprir a necessidade de pessoal qualificado para colaborar com o trabalho deste profissional. Para tanto, os trabalhadores deveriam ser dotados de índole dócil, lealdade, devoção e submissão, além de serem leigos, de preferência do sexo feminino, embora não se excluísse a presença significativa do homem na profissão, principalmente em instituições voltadas para doentes mentais. Enfim, outros aspectos mais específicos a cada país são postos em relevo, o que pode ser constatado no quadro sinóptico contendo informações referentes à trajetória dos movimentos que conduziram à profissionalização e à sistematização do ensino de enfermagem em cada realidade estudada.

No capitulo 5, "Trajetória da profissionalização da enfermagem no Brasil", resgatam-se a origem do ensino de enfermagem no país, mostrando a forte ligação desta com as instituições psiquiátricas, e o início da profissionalização, a exemplo do que ocorreu com o Hospital Nacional de Alienados, a partir do qual se instituiu a primeira escola de enfermagem, em 1890. Abordam-se os requisitos necessários ao candidato, bem como a finalidade do curso, fato que deu a justificativa para a sua criação. Relatam-se ainda os episódios em que aquela escola não funcionou regularmente, devido à sobrecarga de trabalho dos que atuavam no hospital, e ressalta-se a necessidade da vinda de enfermeiras francesas para a instituição. A retrospectiva também evidencia que os 100 anos de trajetória da enfermagem no país caracterizam-se por um formato hospitalocêntrico em todas as instituições estudadas.

No capítulo 6, "O ensino da escola profissional de enfermeiros e enfermeiras", trata-se do sistema de ensino desenvolvido pela EPEE, orientado particularmente pelo decreto n° 791, que criou a escola e relacionou as matérias a serem ministradas no curso. Ressalta-se que o método adotado não se coadunava com o método nightingaleano, tendo em vista que este último preconizava uma maior autonomia profissional e um ensino ministrado por enfermeiras, as quais também seriam responsáveis pela direção da escola, o que não ocorria no modelo de ensino francês adotado pela EPEE.

Para finalizar, os capítulos 7 e 8 trazem informações atuais sobre a EPEE, hoje denominada Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, e mais uma vez enaltecem a importância do estudo como forma de resgatar historicamente o contexto social que favoreceu a sua criação, bem como a trajetória da profissionalização da enfermagem no Brasil.

Em suma, a obra, pela forma instigante de apresentar o tema e pela diversidade de informações e análises, configura-se em importante contribuição para aqueles que se debruçam sobre o estudo da história em saúde e enfermagem. Sua leitura torna-se indispensável principalmente para os que acreditam que a história precisa ser vista e contada a partir de diversos ângulos, permitindo a abertura de novas vertentes que incorporem a complexidade e a multiplicidade dos contextos historiográficos da enfermagem brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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