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A crise estrutural do capital

RESENHAS REVIEWS

Cézar Henrique Maranhão

Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Paraíba, Brasil <cezarmaranhao@uol.com.br>

Nascido em 1930, na cidade de Budapeste, Hungria, István Mészáros tem desenvolvido importantes estudos que procuram resgatar a densidade e a radicalidade da crítica marxista ao sistema de produção e reprodução social baseado no capital. Entre seus trabalhos destacam-se obras fundamentais para a compreensão contemporânea do pensamento de Marx, tais como: A teoria da alienação em Marx, livro que ganhou o Prêmio Deutscher em 1971; O poder da ideologia, publicado primeiramente no Brasil pela editora Ensaio, em 1996, e atualmente reeditado pela Boitempo; sem falar na sua obra de maior fôlego: Para além do capital, que reúne, num denso e longo volume, mais de 25 anos de estudos sobre a atualidade da crítica marxiana. Vale ressaltar que recentemente o autor foi contemplado com o Prêmio Simon Bolívar do Pensamento Crítico pelo seu livro O desafio e o fardo do tempo histórico, lançado em 2007, também pela Boitempo. Todas essas publicações fazem parte da construção de uma crítica devastadora aos mecanismos de produção e reprodução que o autor chama de 'sistema sociometabólico do capital'. Através de uma aguda investigação, István Mészáros tem se firmado como um dos principais intelectuais marxistas contemporâneos e como um dos críticos mais profundos e radicais das sérias ameaças impostas pelo capital ao futuro da humanidade.

O livro A crise estrutural do capital reúne sete artigos e uma entrevista que condensam as principais teses e formulações analíticas do autor sobre as raízes concretas da atual crise do sistema capitalista mundial. Com textos escritos ao longo de duas décadas, o mais antigo em 1971 e o mais recente em 2009, a publicação contém artigos que, ao negarem a substância episódica ou pontual da atual crise capitalista, apontam para a existência de uma "crise estrutural do sistema metabólico do capital" que afeta todas as esferas de produção e reprodução social.

Ao contrário das teses sobre um suposto 'capitalismo organizado', que dominaram o debate intelectual pós-Segunda Guerra, desde o final dos anos 60 do século passado, Mészáros já chamava a atenção para a emergência de uma nova fase da crise capitalista. Depois de um longo período dominado pelas tradicionais crises cíclicas, que alternavam momentos de expansão e recessão, o sistema capitalista passa agora a atravessar uma crise endêmica, cumulativa, crônica e permanente, indicando a ativação dos limites estruturais absolutos do sistema socio-metabólico do capital. Assim, a crise estrutural do capital tem aprofundado a histórica disjunção entre produção para as necessidades sociais e a autorreprodução do capital, ampliando suas características destrutivas e recolocando como imperativo vital para o futuro da humanidade a busca por uma alternativa ao sistema metabólico do capital.

Ao desenvolver suas análises sob o prisma do método inaugurado por Marx, as reflexões de Mészáros procuram respostas para duas questões fundamentais: Que determinações históricas fizeram com que o capital adentrasse uma fase em que não pode mais encontrar soluções duradouras para as suas próprias contradições ficando condenado a exacerbar seu potencial destrutivo? E que contradições inscritas na dinâmica da luta de classes e no próprio desenvolvimento capitalista podem oferecer as condições e requisitos para uma alternativa radicalmente contrária à dinâmica coisificante e predatória do capital?

Para responder tais indagações, o autor buscará a raiz da crise atual no próprio esgotamento do modo de intercâmbio e controle humano sobre as forças da natureza desenvolvido sob a égide do capital. No terceiro capítulo do livro, argumenta que no decurso do desenvolvimento histórico humano a função de controle social, antes assumida pelos próprios produtores, foi gradativamente alienada do corpo social e transferida para o capital. Surge, assim, uma forma de controle da produção reificada que adquiriu o poder de aglutinar os indivíduos num padrão de produção hierárquico estrutural e funcional possuindo uma lógica de reprodução, ou seja, um 'metabolismo social', na qual as necessidades de acumulação do capital assumem o objetivo primordial do intercâmbio orgânico com a natureza em detrimento das necessidades sociais dos próprios produtores. Assim é que Mészáros reafirma a teoria da alienação de Karl Marx que, ainda nos anos 40 do século XIX, percebeu a imposição gradativa do capital enquanto força alienada e estranha que, ao não admitir qualquer tipo de controle consciente, reduz os cálculos e planejamentos humanos a zero. Por isso, o capital é um modo de produção, por princípio, incapaz de prover a racionalidade abrangente de um adequado controle social. Para Mészáros é exatamente essa impossibilidade de qualquer tipo de controle externo consciente sobre a lógica de acumulação do capital que gera a atual crise estrutural que presenciamos. Em outras palavras, a substância essencial da crise contemporânea radica na inerente disjunção, cada vez mais acentuada, entre a produção para atender as necessidades sociais e a autorreprodução alienada e incontrolável do capital.

Em períodos anteriores da história do capitalismo foi possível às diversas personificações do capital, com a ajuda de seus Estados, amortecerem ou deslocarem, por um curto período de tempo, os efeitos mais nefastos das crises cíclicas capitalistas. Para Mészáros, essa possibilidade limitada a uma fase específica do desenvolvimento capitalista fez surgir, inclusive no interior do movimento socialista, a defesa de que seria possível estabelecer um gradativo controle estatal sobre o capital. No entanto, diante da atual crise estrutural, as intervenções do Estado na economia perderam o seu potencial de deslocamento dos efeitos negativos da crise para se converterem em novas causas para o agravamento do poder destrutivo do capital. Esta realidade fica evidente com a presente estratégia de 'nacionalização das falências' que possibilitou aos países imperialistas salvarem os grandes grupos transnacionais do desastre através da socialização de suas perdas e do saque contínuo ao dinheiro público. Dessa forma, as próprias contradições capitalistas ironicamente puseram fim às ilusões social-democratas de uma humanização do capital e acabaram por transformar antigos adeptos das teses reformistas em atuais defensores das políticas neoliberais.

É importante ressaltar que, apesar de afirmar o bloqueio do crescimento da economia e o desgaste do papel civilizatório do capital pela crise, não há em Mészáros qualquer sinal de uma teoria fatalista que aponte para uma autodestruição do capitalismo. Pelo contrário, para o referido autor, a atual incapacidade do capital encontrar soluções duráveis para sua crise estrutural abre possibilidades históricas para uma reativação da alternativa socialista no mundo. Preocupado com os caminhos do movimento socialista no século XXI é que Mészáros irá desenvolver uma controvertida e rigorosa crítica às experiências socialistas do século XX. Para o autor, a identificação equivocada do alvo apropriado para a transformação socialista radical trouxe consigo sérias consequências para o movimento socialista. O autor alerta que as experiências do chamado "socialismo real", ao confundirem a mera "expropriação dos expropriadores" com o horizonte da transformação socialista, proporcionaram uma sobrevida ao capital mesmo no interior de uma economia pós-capitalista. Assim, a tese do autor oferece uma explicação sobre os motivos pelos quais as sociedades socialistas repetiram e adensaram as desumanidades típicas das sociedades de classe. Mesmo sem a figura do expropriador capitalista, mas com a permanência de um sistema baseado na alienação dos trabalhadores de suas condições de existência, o capital conseguiu manter seu metabolismo social no interior do chamado socialismo real. Por isso, Mészáros faz um alerta ao movimento socialista no século XXI. Não basta acabar com o capitalismo - enquanto forma política de dominação de uma classe sobre outra - para que a sociedade socialista seja criada de maneira sustentável, faz-se necessário ir para além do capital, superando a forma alienada de intercâmbio orgânico com a natureza através da restituição do controle social da produção pelos produtores diretos.

Publicado para concentrar as principais elaborações do autor sobre as determinações concretas da crise atual, A crise estrutural do capital é um livro que tanto aglutina o pessimismo do rigor analítico de um grande intelectual marxista já em sua maturidade quanto reúne o otimismo de um militante convicto da causa revolucionária socialista. Apesar de em muitas passagens o argumento do autor parecer demasiadamente abstrato, os ensaios reunidos no livro oferecem significativas contribuições para intelectuais e militantes interessados na compreensão das atuais determinações da crise capitalista e dos desafios futuros do movimento socialista internacional. Nas páginas deste livro, o leitor encontrará bem mais do que um conjunto de análises sobre a mais grave crise social da história da humanidade; descobrirá também um belíssimo manifesto em nome da plena realização da liberdade e da igualdade substantiva, uma histórica bandeira dos trabalhadores e que, atualmente, também se impõem como condição de existência futura da própria humanidade.

  • A crise estrutural do capital. István Mészáros. São Paulo: Boitempo, 2009, 133 p.

    No final da década de 40 do século XX, ao escrever um ensaio sobre Goethe, o filósofo marxista György Lukács modestamente afirmava que se contentaria caso o resultado de seus estudos o possibilitassem erguer uma frágil ponte para facilitar a alguns homens o caminho entre passado e futuro no então confuso e desfavorável período de transição vivido naquele momento. Passadas mais de três décadas da morte de Lukács, um antigo discípulo e companheiro de estudos chamado István Mészáros confirma que o conjunto da obra lukacsiana, empenhada em dinamizar o 'renascimento do marxismo', nos legou mais do que uma frágil ponte entre o passado e o futuro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 2009
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