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Supervisão de trabalhadores de enfermagem em unidade básica de saúde

Supervision of nurses at a basic health unit

Supervisión de trabajadores de enfermería en unidad básica de salud

Resumos

Aborda-se, neste artigo, a supervisão de trabalhadores de enfermagem de nível médio no atendimento da demanda espontânea em uma unidade básica de saúde na cidade de São Paulo. Seu objetivo foi analisar como se processa a supervisão desses trabalhadores e a maneira de atuação do supervisor. É um estudo qualitativo baseado na observação direta de uma semana típica de trabalho, com análise temática apoiada no software NVivo e no referencial da supervisão do processo de trabalho. Observaram-se 55 atendimentos realizados pelos trabalhadores de enfermagem com a solicitação de supervisão em 23 casos. Tanto nas solicitações de supervisão quanto nas respostas dos supervisores predominou o enfoque biomédico centrado em queixas agudas ou crônicas e prescrições medicamentosas e de exames. Concluiu-se que a supervisão dos trabalhadores de enfermagem de nível médio por profissional de nível superior na recepção da demanda espontânea potencializa a resolubilidade dessa atividade. Recomenda-se, no entanto, ampliar o enfoque da apreensão e da análise das necessidades do usuário na perspectiva da integralidade.

acolhimento; supervisão de enfermagem; atenção primária à saúde; trabalho; relações interpessoais


The issue addressed in this article is the supervision of middle-level nursing staff in serving spontaneous demand at a basic health unit in São Paulo (Brazil). The goal was to analyze how these workers are supervised and how the supervisor proceeds. It is a qualitative study based on the direct observation of a typical work week, with thematic analysis supported by the NVivo software and by the work process supervision framework. Fifty-five cases served by the nursing staff, done at the supervisor's request in 23 cases, were observed. The biomedical approach focused on acute or chronic complaints and on drug prescriptions and tests predominated both in cases requested by the supervision and in the supervisors' responses. It was concluded that the supervision of the mid-level nursing staff by a higher level professional in the receipt of spontaneous demand enhances this activity's solvability. It is recommended, however, to expand the focus of the understanding and analysis of user needs from the perspective of completeness.

user embracement; nursing supervision; primary health care; work; interpersonal relationships


Se aborda, en este artículo, la supervisión del personal de enfermería de nivel medio en la atención de la demanda espontánea en una unidad básica de salud en la ciudad de São Paulo (Brasil). Su objetivo fue analizar cómo se maneja la supervisión de estos trabajadores y la forma de actuar del s upervisor. Se trata de un estudio cualitativo basado en la observación directa de una semana de trabajo típica, con el análisis temático apoyado por el software NVivo y con referencia de la supervisión del proceso de trabajo. Se observaron 55 atenciones realizadas por el personal de enfermería con solicitud de la supervisión en 23 casos. Tanto enlas solicitudes de supervisión como en las respuestas de los supervisores predominó el enfoque biomédico centrado en las quejas agudas o crónicas e en las prescripciones de medicamentos y exámenes. Se concluyó que la supervisión del personal de enfermería de nivel medio por profesional de nivel superior, en la recepción de la demanda espontánea, mejora la capacidad de resolución de esta actividad. Se recomienda, sin embargo, ampliar el enfoque de asimilación y análisis de las necesidades del usuario desde el punto de vista de la integralidad.

acogida; supervisión de enfermería; atención primaria a la salud; trabajo; relaciones interpersonales


Introdução

O tema central do presente artigo é a supervisão de trabalhadores de enfermagem de nível médio (TENMs) em atenção básica. O tema é abordado com base em resultados de pesquisa empírica sobre a supervisão da atividade de recepção de usuários, em situação de demanda espontânea, em uma unidade básica de saúde (UBS) do município de São Paulo. Nessa UBS, a assistência realizada pelos TENMs é supervisionada de forma compartilhada pelos profissionais de nível superior (enfermeiras e médicos), visto que o trabalho se dá em equipe e a supervisão médica não substitui a da enfermeira, e sim a complementa. É importante ressaltar que a enfermeira é a responsável formal e legal pela supervisão dos trabalhadores de enfermagem de nível médio. Segundo pesquisa realizada por Propp et al. (2010)PROPP,Kathleen M. et al. Meeting the complex needs of the health care team: identification o f n urse-team communication practices perceived to en hance patient outcomes. Qualitative Health Research, Salt Lake City, v.20, n. 1, p. 15-28, 2010., a mediação entre TENMs e médicos realizada pela enfermeira cria um clima positivo entre os profissionais, bem como empodera os TENMs em seu processo de trabalho.

A recepção da demanda espontânea é relevante no processo de trabalho das UBSs, pois constitui um espaço de apreensão, de atenção às necessidades de saúde dos usuários e de organização da assistência, podendo contribuir para ampliar a resolubilidade do serviço. Nas UBSs, a recepção é, comumente, considerada uma atividade da qual emergem conflitos não apenas entre trabalhadores e usuários, mas também entre os próprios trabalhadores, pois nem sempre o serviço consegue atender a demanda ou o trabalhador de enfermagem é capaz de perceber outras respostas possíveis às necessidades de saúde apresentadas (Takemoto e Silva, 2007TAKEMOTO, Maira S. L.; SILVA, Eliete M. Acolhimento e transformações no processo de trabalho de enfermagem em unidades básicas de saúde de Campinas, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio d e Janeiro, v. 23, n. 2, p. 331-340, fev. 2007.; David et al., 2009DAVID, Helena M. S. L. et al. Organização do trabalho de enfermagem na atenção básica: uma questão para a saúde do trabalhador. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 206-214, abr./jun. 2009.; Sá et al., 2009SÁ, Elisete T. et al. O processo de trabalho na recepção de u ma unidade básica d e saúde: ótica do trabalhador. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 30 , n. 3, p. 461-467, 2009.).

Na perspectiva da integralidade da saúde, a apreensão das necessidades deve ser realizada de forma contextualizada e ampliada a fim de abarcar as múltiplas dimensões do processo saúde-doença (Mattos, 2004MATTOS, Ruben A. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p. 1.411-1.416, set./out. 2004.). Na atenção básica, a recepção de usuários é atividade executada, em grande parte, pelos TENMs (Takemoto e Silva, 2007TAKEMOTO, Maira S. L.; SILVA, Eliete M. Acolhimento e transformações no processo de trabalho de enfermagem em unidades básicas de saúde de Campinas, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio d e Janeiro, v. 23, n. 2, p. 331-340, fev. 2007.; David et al., 2009DAVID, Helena M. S. L. et al. Organização do trabalho de enfermagem na atenção básica: uma questão para a saúde do trabalhador. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 206-214, abr./jun. 2009.). Dada a sua complexidade, essa atividade requer supervisão em dois sentidos: para a ampliação da resposta do serviço à demanda do usuário e para o apoio ao trabalhador, como medida da gestão do trabalho.

A supervisão, como ferramenta do processo de trabalho gerencial, é utilizada com a finalidade de qualificar a assistência e os trabalhadores de enfermagem (Felli e Peduzzi, 2005FELLI, Vanda E. A.; PE DUZZI, Marina. O trabalho gerencial em enfermagem. In: KURCGANT, P. (Org .). Gerenciamento em enfermagem. Rio d e Janeiro: Guanabara Koogan, 2005. p. 1-13.). Há escassez de literatura sobre a supervisão em enfermagem, embora tenham sido desenvolvidos estudos relevantes que tomaram o processo de trabalho como referencial teórico (Silva, 1991SANT'ANNA, Suze R.; HENNINGTON, Élida A. Micropolítica do trabalho vivo em ato, ergologia e educação popular: proposição de um dispositivo de formação de trabalhadores da saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011 . Disponível em : < www.scielo.br/pdf/tes/v9s1/11.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2014.
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, 1997SILVA, Eliete M. Supervisão do trabalho de enfermagem em saúde pública no nível local. 1997. 30 6 f. Te se (Doutor ado em Enfe rmagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1997. e 2007SILVA, Eliete M. Supervisão, tecnologias e trabalho: tecendo relações e práticas. Tese (Livre-docência) - Fa culdade d e Ci ências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.). Tal concepção é adotada neste estudo, no qual se analisa particularmente a supervisão de TENMs, que pode ser compartilhada por enfermeiros e outros profissionais de saúde (Silva, 1991SANT'ANNA, Suze R.; HENNINGTON, Élida A. Micropolítica do trabalho vivo em ato, ergologia e educação popular: proposição de um dispositivo de formação de trabalhadores da saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011 . Disponível em : < www.scielo.br/pdf/tes/v9s1/11.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2014.
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, 1997SILVA, Eliete M. Supervisão do trabalho de enfermagem em saúde pública no nível local. 1997. 30 6 f. Te se (Doutor ado em Enfe rmagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1997. e 2007SILVA, Eliete M. Supervisão, tecnologias e trabalho: tecendo relações e práticas. Tese (Livre-docência) - Fa culdade d e Ci ências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.), dado o caráter interprofissional do trabalho no contexto da atenção básica.

O estudo justifica-se pela necessidade de aprofundar o conhecimento sobre a supervisão de trabalhadores de enfermagem, pela sua expressiva presença na atividade de recepção em toda a rede básica de saúde do país e pela escassez de literatura sobre o tema. Busca-se contribuir para a compreensão e a utilização da supervisão como ferramenta gerencial, orientada para a qualificação do trabalho no sentido da integralidade da atenção à saúde. Tem-se como objetivo analisar como se processa a supervisão de TENMs no atendimento de recepção da demanda espontânea em UBSs, considerando os motivos da solicitação de supervisão, a atuação do supervisor, a relação entre o TENM e o supervisor, e o retorno para o usuário após a supervisão.

Referencial teórico

A análise crítica da literatura sobre o tema resultou na concepção de três dimensões da supervisão em enfermagem: ensino, controle e articulação política (Silva, 1991SILVA, Eliete M. Supervisão em enfermagem: análise crítica das publicações no Brasil dos anos 30 à década de 80. 1991. 158f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1991.). O ensino é uma característica central da supervisão, dado que o atendimento ao processo saúde-doença pressupõe complexidade técnica e comunicacional, cuja vivência pode configurar tensões e contradições que demandam reflexão (Silva, 1991SILVA, Eliete M. Supervisão em enfermagem: análise crítica das publicações no Brasil dos anos 30 à década de 80. 1991. 158f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1991. e 1997SILVA, Eliete M. Supervisão do trabalho de enfermagem em saúde pública no nível local. 1997. 30 6 f. Te se (Doutor ado em Enfe rmagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1997.). Nesse sentido, o caráter educativo da supervisão deve viabilizar a participação ativa dos trabalhadores, numa espécie de construção coletiva, uma vez que é no "encontro em ato que o profissional de saúde produze se produz"(Sant'Anna e Hennington, p. 230, 2011SANT'ANNA, Suze R.; HENNINGTON, Élida A. Micropolítica do trabalho vivo em ato, ergologia e educação popular: proposição de um dispositivo de formação de trabalhadores da saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011 . Disponível em : < www.scielo.br/pdf/tes/v9s1/11.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2014.
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), criando novas formas de intervir no trabalho. O caráter de controle dá-se pela organização do trabalho em bases coletivas que requerem atividades articuladoras as quais lhe confiram unidade e garantam a efetivação de suas finalidades, e refere-se ao direcionamento organizacional quanto aos fluxos e padronizações internas do serviço de saúde e da rede de atenção à saúde (Silva, 1991SILVA, Eliete M. Supervisão em enfermagem: análise crítica das publicações no Brasil dos anos 30 à década de 80. 1991. 158f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1991. e 1997SILVA, Eliete M. Supervisão do trabalho de enfermagem em saúde pública no nível local. 1997. 30 6 f. Te se (Doutor ado em Enfe rmagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1997.). A dimensão de articulação política evidencia a posição intermediária e intermediadora da supervisão, visto que o supervisor atua como tradutor da política institucional no plano da execução das ações de saúde e do cuidado de enfermagem (Silva, 1991SILVA, Eliete M. Supervisão em enfermagem: análise crítica das publicações no Brasil dos anos 30 à década de 80. 1991. 158f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1991.). O caráter político das ações está presente também nas dimensões de ensino e de controle, pois, no concreto do trabalho, as ações educativas e as de controle condicionam-se por posicionamentos ético-políticos que podem acarretar relação ou sobreposição entre as três dimensões.

Estudo sobre supervisão (Silva, 2007SILVA, Eliete M. Supervisão, tecnologias e trabalho: tecendo relações e práticas. Tese (Livre-docência) - Fa culdade d e Ci ências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.) destaca aspectos considerados aqui: a possibilidade das dimensões de ensino e de controle aparecerem juntas na supervisão, em um movimento de retroalimentação; e o reconhecimento do controle no sentido restrito, no qual a abordagem do supervisor é limitada e não contempla todos os aspectos apresentados pelo TENM durante a supervisão.

Publicações sobre o tema apontam para a predominância da supervisão tradicional como atividade burocrática, acrítica, com ênfase no controle e na fiscalização restrita, coercitiva e normativa, baseada na abordagem funcionalista (Servo, 2002SERVO, Maria L. S. Novo olhar, novo feixe de luz, nova dimensão: eis a supervisão social. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 15, n.1-2, p. 97-107, jan./ago. 2002.; Correia e Servo, 2006CORREIA, Valesca S.; SERVO,Maria L . S. Supervisão da enfermeira em unidade básica de saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 59, n. 4, p. 527-531, jul./ago. 2006.; Frimpong et al., 2011FRIMPONG, Jemima A. et al. Does supervision improve health worker productivity? Evidence f rom t he Upper East Region o f Ghana. Tropical Medicine and International Health, Oxford, v. 16, n. 10, p. 1.225-1.233, Oct. 2011.). Em contrapartida, outros estudos destacam a importância da concepção ampliada da supervisão em enfermagem, concepção que vai além do âmbito funcionalista (Silva, 1991SANT'ANNA, Suze R.; HENNINGTON, Élida A. Micropolítica do trabalho vivo em ato, ergologia e educação popular: proposição de um dispositivo de formação de trabalhadores da saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011 . Disponível em : < www.scielo.br/pdf/tes/v9s1/11.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2014.
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e 1997). Nela, a supervisão é entendida como suporte para a aprendizagem, que proporciona aos estudantes e profissionais de enfermagem desenvolvimento integrado de competências e a assunção de responsabilidades para o cuidado, com destaque à dimensão educativa (Simões e Garrido, 2007SIMÕES, João F. F. L.; GARRIDO, Antonio F. S. Finalidade das estratégias de supervisão utilizadas em ensino clínico de enfermagem. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 16, n. 4, p. 599-608, out./dez. 2007.).

A supervisão pressupõe uma relação de confiança e constitui possibilidade de espaço de reflexão da prática, com o intuito de reinterpretá-la e qualificá-la. Assim, com base no exposto sobre supervisão e na concepção de trabalho em equipe na atenção primária à saúde, na qual diferentes núcleos de saberes profissionais se complementam num mesmo campo de saber - o da saúde (Campos, 2000aCOLOMÉ, Isabel C. S.; LIMA, Maria A. D. S.; DAVIS, Roberta. Visão das enfermeiras sobre articulações das ações de saúde entre profissionais de equipes de saúde da família. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 42, n. 2, p.56-61, 2008.) -, chama-se aqui de supervisão compartilhada a ação complementar do trabalho da enfermeira e do médico com os TENMs, uma vez que a supervisão da enfermeira proporciona atmosfera de colaboração entre os profissionais, e a supervisão médica esclarece dúvidas em relação a condutas clínicas (Propp et al., 2010PROPP,Kathleen M. et al. Meeting the complex needs of the health care team: identification o f n urse-team communication practices perceived to en hance patient outcomes. Qualitative Health Research, Salt Lake City, v.20, n. 1, p. 15-28, 2010.; Matumoto et al., 2005MATUMOTO, Silvia e t al. Supervisão de equipes no Programa de Saúde da Família: reflexões acerca do desafio da produção de cuidados. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9,n. 16, p. 9-24, set. 2004-fev. 2005.).

Ao se realizar busca nas bases de dados de informações técnico-científicas em saúde sobre a atividade da recepção de usuários, nota-se significativa correlação dela com o tema do acolhimento. Esse foi difundido em meados dos anos 1990 e impulsionado pela implantação e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), em especial pela Estratégia Saúde da Família (Teixeira, 2003TEIXEIRA, Ricardo R. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In : PI NHEIRO, Ro seni; MATTOS, Ruben A. (Org.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Uerj/IMS/Abrasco, 2003. p. 89-111.; Solla, 2005SOLLA, Jorge S. P. Acolhimento no sistema municipal de saúde. Revista B rasileira de Saúde Materno-Infantil, Recife, v. 5, n. 4, p. 493-503, out./dez. 2005.). Diferentemente do tema recepção, há abundante literatura sobre acolhimento, o que evidencia seu significado polissêmico e dificulta a apreensão precisa e a diferenciação do conceito. Identifica-se um conjunto de definições para acolhimento: recepção e triagem, atitude adequada do profissional para o atendimento, modo específico de encontro entre trabalhador e usuário, tecnologia relacional, disparador de mudanças, ação gerencial de reorganização do processo de trabalho, diretriz para as políticas públicas, escuta qualificada e dispositivo comunicacional (Takemoto e Silva, 2007TAKEMOTO, Maira S. L.; SILVA, Eliete M. Acolhimento e transformações no processo de trabalho de enfermagem em unidades básicas de saúde de Campinas, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio d e Janeiro, v. 23, n. 2, p. 331-340, fev. 2007.; Fracolli e Zoboli, 2004FRACOLLI, Lislaine A.; ZOBOLI, Elma L. C. P. Descrição e análise do acolhimento: uma contribuição para o programa de saúde da família. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 143-151, 2004.; Franco, Bueno e Mehry, 1999FRANCO, Tulio B.; BUENO, Wanderlei S.; MERHY, Emerson E. O a colhimento e o s processos d e trabalho e m s aúde: o ca so de Betim, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 345-353, abr./jun. 1999.).

Neste estudo, consideram-se acolhimento e recepção termos correlatos, mas distintos, pois o primeiro refere-se aos vários sentidos acima apontados e o segundo, a uma atividade específica, realizada na chegada do usuário à UBS, com atendimento agendado ou por demanda espontânea, na qual se espera haver o acolhimento.

O estudo também utiliza, de forma articulada à categoria analítica central supervisão, os conceitos de processo de trabalho em saúde (Mendes-Gonçalves, 1994MENDES-GONÇALVES, Ricardo B. Tecnologia e organização so cial d as p ráticas d e saúde. São Paulo: Hucitec, 1994.), processo de trabalho de enfermagem (Felli e Peduzzi, 2005FELLI, Vanda E. A.; PE DUZZI, Marina. O trabalho gerencial em enfermagem. In: KURCGANT, P. (Org .). Gerenciamento em enfermagem. Rio d e Janeiro: Guanabara Koogan, 2005. p. 1-13.; Rossi e Silva, 2005ROSSI, Flavia R.; SILVA, Maria A. D. Fundamentos p ara processos gerenciais na prática d o cuidado. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 39, n. 4, p. 460-468, 2005.), necessidades de saúde (Campos e Mishima, 2005CAMPOS, Celia M. S.; MISHIMA, Silvana M. Necessidades de saúde pela voz da sociedade civil e do Estado. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21,n. 4, p. 1.2601.268, 2005.) e integralidade da saúde (Mattos, 2004MATTOS, Ruben A. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p. 1.411-1.416, set./out. 2004.).

Percurso metodológico

Foi feito um estudo de caso de abordagem qualitativa que analisa a supervisão do trabalho como fenômeno interativo entre trabalhador e usuário e entre os profissionais. O local de estudo foi o Centro de Saúde Escola Prof. Samuel B. Pessoa, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que desenvolve ações de atenção à saúde, ensino e pesquisa. A coleta de dados foi realizada no setor de atenção à saúde do adulto e integra uma pesquisa mais ampla sobre necessidades e organização do trabalho na recepção de usuários.

O serviço estudado tem experiência consolidada na educação permanente de TENMs, gestão participativa e trabalho em equipe de saúde. Conta com médicos sanitaristas que compartilham a supervisão dos TENMs com as enfermeiras da unidade, em particular, na retaguarda da recepção da demanda espontânea. A recepção é realizada pelos TENMs, individualmente, em salas específicas, onde escutam e dialogam com o usuário a fim de apreender suas necessidades de saúde e, se julgarem necessário, procurar o supervisor. Cotidianamente, dois trabalhadores de enfermagem são escalados pela enfermeira para desempenhar essa atividade. Os usuários são chamados às salas de recepção, segundo ordem de chegada. Em média, são realizados 40 atendimentos de recepção por TENM, em cada período do dia (manhã e tarde). Durante o período da coleta de dados, foram observados 55 atendimentos.

Constituíram sujeitos da pesquisa dez TENMs (nove técnicos e um auxiliar de enfermagem) que realizaram atendimentos de usuários na recepção de demanda espontânea e sete médicos supervisores. Na coleta de dados foi utilizada observação direta sistematiza da da recepção de demanda espontânea realizada por TENM, em uma semana típica de trabalho, de 13 a 24 de agosto de 2007. A coleta foi realizada por enfermeiras que conheciam a dinâmica de trabalho do serviço, o que assegurou qualidade ao registro. Procedeu-se ao registro detalhado de cada observação com o acompanhamento completo da recepção: o primeiro momento do atendimento, com a interação entre o TENM e o usuário; a supervisão, quando solicitada; e o retorno ao usuário das condutas definidas entre o TENM e o supervisor.

Os registros foram conferidos quanto à sua coerência e consistência, digitados e armazenados no programa NVIVO (software de análise qualitativa que também permite identificar a frequência absoluta e relativa das categorias de análise do material empírico). A leitura reiterada do material empírico permitiu a definição das categorias incluídas no NVivo para categorização.

A exploração do material empírico foi feita segundo a técnica de análise temática, com base no referencial teórico e na literatura sobre o tema de estudo (Bardin, 1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.; Minayo, 2008MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2008.). A análise das dimensões da supervisão considerou as suas três modalidades - educação, controle e articulação política (Silva, 1991SILVA, Eliete M. Supervisão em enfermagem: análise crítica das publicações no Brasil dos anos 30 à década de 80. 1991. 158f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1991., 1997SILVA, Eliete M. Supervisão do trabalho de enfermagem em saúde pública no nível local. 1997. 30 6 f. Te se (Doutor ado em Enfe rmagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1997. e 2007SILVA, Eliete M. Supervisão, tecnologias e trabalho: tecendo relações e práticas. Tese (Livre-docência) - Fa culdade d e Ci ências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.) - e foi realizada de forma independente por dois integrantes da equipe de pesquisa. A seguir, os resultados foram cotejados e as discordâncias debatidas com o conjunto dos pesquisadores, para definir um consenso. Em cinco casos para os quais isso não foi alcançado, a coordenadora do projeto atuou como mediadora na construção do acordo.

O projeto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (processo n. 594/2006), e todos os sujeitos foram consultados e assinaram o termo de consentimento livree esclarecido.

Resultados encontrados

Dentre os 55 atendimentos de recepção observados, em 23 casos (42%), os TENMs solicitaram supervisão, realizada por profissional médico; em 25 casos (45%), os trabalhadores não solicitaram supervisão; e em sete casos (13%), os TENMs deveriam ter solicitado supervisão, mas não o fizeram.

A análise do material empírico identificou quatro categorias e respectivas subcategorias que permitiram compreender os motivos da solicitação de supervisão e a ação do supervisor: razão da solicitação de supervisão, ação do supervisor, relação supervisor/trabalhador de enfermagem, retorno para o usuário após a supervisão (Quadros 1, 2 e 3).

Quadro 1
Categoria "Razões da solicitação de supervisão" e respectivas subcategorias, segundo descrição e número de casos

Quadro 2
Categoria "Ação do supervisor" e respectivas subcategorias, segundo descrição e número de casos

Quadro 3
Categoria "Relação supervi sor/trabal hador de enfermagem" e respectivas subcate gorias, segundo descrição e número de casos

Quadro 4
Categoria "Retorno para o usuário após a supervisão" e respectivas subcategorias, segundo descrição e número de casos

Na categoria "Razões da solicitação de supervisão", um mesmo caso apresentou mais de uma razão para supervisão, sendo que a maioria se referia a queixas biológicas agudas ou crônicas (70%), seguidas da necessidade de prescrições e de solicitação de exames e laudos (39%) e da necessidade de inserir o usuário no fluxo de programas internos e ex ternos ao serviço (39%), além de outras razões (26%).

No que se refere à categoria "Ação do supervisor", na maioria dos casos o supervisor investigou no âmbito das informações que o TENM apresentou à supervisão (61%). Em 13% dos casos, houve investigação de outras necessidades n o âmbito biológico ou de condições epidemiológicas, em 13% foram investigadas questões relacionadas ao trabalho e à vida do usuário e em 13% o supervisor não fez nenhum tipo de investigação.

A análise da categoria "Relação supervisor/trabalhador de enfermagem" mostrou que, na grande maioria dos casos, houve discussão (87%), e o supervisor considerou a percepção d os TE NMs, com predomínio d a relação dialogada, na qual o supervisor considera e/ou reitera as opiniões do TENM na apreensão das necessidades de saúde, na investigação e n a proposta de cuidados.

Em relação à categoria "Retorno para o usuário após a supervisão", predominou a forma em que o trabalhador repassa ao usuário tudo o que foi discutido com o supervisor (74%) , porém, em 26% dos casos, o retorno foi parcial ou não ocorreu.

A análise evidenciou que em oito casos a supervisão poderia ter ocorrido de forma conjunta entre o médico e a enfermeira, pois, além das questões de âmbito biomédico, foram apresentadas à supervisão questões relacionadas ao autocuidado , à prevenção de risco cardiovascular, às relações familiares e conjugais e aos direitos do usuário em rel ação ao trabalho, que constituem demandas relacionadas também, e especialmente, à prática de enfermagem.

O estudo contemplou ainda a análise das dimensões da supervisão segundo descritas no referencial teórico. Observou-se que as dimensões controle e edu cação a parecem de forma concomitante em 12 casos. Quando essas esferas da supervisão apareceram separadamente, prevaleceu o controle restrito. A articulação política foi a dimensão menos observada n a supervisão dos TENMs, na recepção de usuários em UBS (Quadro 5).

Quadro 5
Dimensões da superv isão e sua prev alênci a entre os atendimentos observados

Discussão

O reconhecimento da relação recíproca entre processo de trabalho e necessidades d e saúde e a apreensão e resposta ampliada às necessidades dos usuários colocam-se diante do desafio de contemplar a integralidade. Essa põe à mostra a complexidade da atividade de recepção em UBSs, os limites da autonomia dos TENMs e sua demanda por supervisão para alcançar os objetivos do atendimento, tendo como parâmetro as políticas institucionais (Correia e Servo, 2006CORREIA, Valesca S.; SERVO,Maria L . S. Supervisão da enfermeira em unidade básica de saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 59, n. 4, p. 527-531, jul./ago. 2006.; Frimpong et al., 2011FRIMPONG, Jemima A. et al. Does supervision improve health worker productivity? Evidence f rom t he Upper East Region o f Ghana. Tropical Medicine and International Health, Oxford, v. 16, n. 10, p. 1.225-1.233, Oct. 2011.).

No presente estudo, a supervisão dos TENMs no atendimento à demanda espontânea seria necessária na maioria dos casos estudados (55%), somando-se os 23 casos em que a supervisão foi solicitada (42%) aos 7 casos em que a supervisão deveria ter sido solicitada (13%), o que expressa o reconhecimento da complementaridade entre as ações desses trabalhadores e as dos supervisores, sejam eles médicos, como nos casos observados, ou enfermeiros. Percebe-se aqui a importância do trabalho em equipe, em que um profissional reconhece as limitações do seu núcleo de saber e admite no trabalho do outro a possibilidade de complementar sua prática, garantindo assim a resolutividade da necessidade de saúde apresentada ( Campos, 2000aCAMPOS, Gastão W. S. Saú de pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 219-230, 2000a.; Colomé, Lima e Davis, 2008COLOMÉ, Isabel C. S.; LIMA, Maria A. D. S.; DAVIS, Roberta. Visão das enfermeiras sobre articulações das ações de saúde entre profissionais de equipes de saúde da família. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 42, n. 2, p.56-61, 2008.).

Por outra parte, os resultados evidenciaram que os TE NMs tinham relativa autonomia no trabalho realizado na recepção de usuários da UBS estudada, visto que em 25 casos não solicitaram apoio do supervisor. Esse resultado evidencia a pertinência da participação desses profissionais de enfermagem nesse atendimento, que é reconhecidamente um nó crítico da atenção básica. Esse resultado também mostra que a atuação dos TENMs com supervisão de profissional de nível superior tem potencial para a ampliação da resolubilidade do serviço, como também se vê em estudo realizado por Frimpong et al. (2011)FRIMPONG, Jemima A. et al. Does supervision improve health worker productivity? Evidence f rom t he Upper East Region o f Ghana. Tropical Medicine and International Health, Oxford, v. 16, n. 10, p. 1.225-1.233, Oct. 2011., em que esses autores apontam a supervisão de nível superior como importante ferramenta para aumentar a produtividade do serviço.

Entretanto, o fato de a supervisão não ter sido solicitada em casos em que se fazia necessária demonstra que algumas vezes os TENMs ultrapassam os limites de sua autonomia profissional, podendo comprometer a qualidade da atenção. Há que se destacar, no entanto, que o modo de organização da recepção na UBS estudada coloca sob a responsabilidade do trabalhador de enfermagem o reconhecimento do seu limite de ação e da necessidade de apoio do supervisor, o que pode levá-lo a extrapolar os limites de sua esfera de responsabilidade. Nesse senti do, caberia um movimento de mão dupla, em que também o supervisor tivesse a iniciativa de oferecer apoio ao TENM, evitando que esse venha a concentrar a responsabilidade pela condução da recepção (Takemoto e Silva, 2007TAKEMOTO, Maira S. L.; SILVA, Eliete M. Acolhimento e transformações no processo de trabalho de enfermagem em unidades básicas de saúde de Campinas, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio d e Janeiro, v. 23, n. 2, p. 331-340, fev. 2007.) ou estabelecer uma rotina de discussão de alguns casos da recepção em que não houve demanda por supervisão, com vistas a ampliar a ação educativa.

Usualmente, a autonomia técnica desse segmento de trabalhadores é restrita à identificação de alterações e ao encaminhamento à enfermeira ou ao médico, o que acarreta a sua insatisfação no trabalho, pelo pouco controle e oportunidade d e decisão acerca da própria atuação (David et al., 2009DAVID, Helena M. S. L. et al. Organização do trabalho de enfermagem na atenção básica: uma questão para a saúde do trabalhador. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 206-214, abr./jun. 2009.). Entende-se que a maior autonomia dos ag entes da enfermagem na UBS estudada está relacionada às características do serviço apontadas anteriormente, em especial a educação permanente e a gestão participativa.

Ambas promovem tanto o aprendizado no trabalho, que permite fundamentar as decisões técnicas ante as necessidades de saúde dos usuários, quanto a ampliação da autonomia dos sujeitos, que se percebem partícipes de uma esfera mais ampla de decisões, além de mais comprometidos com o trabalho.

Entende-se que a recepção em UBS executada pelos TENMs pode favorecer um olhar mais horizontal para um conjunto mais amplo de necessidades de saúde, visto que seu núcleo de saber não é o da clínica, e sim o do cuidado à pessoa. Dessa forma, a investigação feita por esse profissional no primeiro contato com o usuário aborda não somente as demandas clínicas, mas também a relação delas com o trabalho, a interação familiar e social, o autocuidado e outras temáticas relacionadas à prevenção e à promoção da saúde.

Os resultados mostraram que os TENM procuram o supervisor prioritariamente c om demandas biológicas, e que ele, por sua vez, restringe sua investigação e conduta a esse âmbito de atenção , o que expõe o predomínio do foco biomédico na atuação d os profissionais de nível médio na atenção básica (Takemoto e Silva, 2007TAKEMOTO, Maira S. L.; SILVA, Eliete M. Acolhimento e transformações no processo de trabalho de enfermagem em unidades básicas de saúde de Campinas, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio d e Janeiro, v. 23, n. 2, p. 331-340, fev. 2007.). Esse resultado evidencia a necessidade de que os enfermeiros se mantenham próximos, por meio da supervisão, dos TENMs nas atividades cotidianas da UBS, com vistas a contribuir para o aprimoramento das práticas em saúde dos TENMs, a fim de que reconheçam o cuidado d e enfermagem como seu núcleo específico de saber, identificando outras necessidades de saúde para além das demandas biológicas apresentadas.

A ação do supervisor se ateve, majoritariamente, aos aspectos que os TENMs apresentaram como solicitação de supervisão, o que mostra que o supervisor não amplia a apreensão das necessidades de saúde e que confia na escuta e exploração das necessidades feitas pelos TENMs. Os resultados também evidenciaram que, em alguns casos, a investigação do supervisor ficou aquém das demandas levadas pelo trabalhador de enfermagem. Essa restrição na investigação do supervisor tende a manter a relação entre trabalhador e usuário centrada em queixas clínicas, reduzindo o potencial do trabalho de enfermagem na recepção, que poder ia abarcar outras necessidades relacionadas à vida e ao trabalho.

O estudo mostrou que ocorreu também ausência de investigação por parte d o supervisor, o que não se justifica, vi sto que ele tem como uma de suas funções a ampliação das respostas dadas às demandas captadas na recepção, no sentido de abarcar as múltiplas dimensões do processo saúde-doença na perspectiva da integralidade (Mattos, 2004MATTOS, Ruben A. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p. 1.411-1.416, set./out. 2004.).

Quanto à relação entre supervisor e trabalhador de enfermagem, predominou a forma dialogada, com discussão do caso e consideração das percepções e opiniões do trabalhador por parte do supervisor para a tomada de decisão. Esse resultado ressalta que a supervisão em enfermagem requer relação de parceria com maior simetria e colaboração entre os profissionais (Simões e Garrido, 2007SIMÕES, João F. F. L.; GARRIDO, Antonio F. S. Finalidade das estratégias de supervisão utilizadas em ensino clínico de enfermagem. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 16, n. 4, p. 599-608, out./dez. 2007.).

No serviço estudado, a supervisão se dá de m odo a buscar o entendimento mútuo dos sujeitos envolvidos, o que favorece a reflexão crítica sobre a prática e o controle do trabalho no sentido do direcionamento organizacional dos fluxos de atendimento para a efetivação dos objetivos do serviço (Silva, 1991SILVA, Eliete M. Supervisão em enfermagem: análise crítica das publicações no Brasil dos anos 30 à década de 80. 1991. 158f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1991., 1997SILVA, Eliete M. Supervisão do trabalho de enfermagem em saúde pública no nível local. 1997. 30 6 f. Te se (Doutor ado em Enfe rmagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 1997. e 2007SILVA, Eliete M. Supervisão, tecnologias e trabalho: tecendo relações e práticas. Tese (Livre-docência) - Fa culdade d e Ci ências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.; Bosch-Capblanch e Garner, 2008BOSCH-CAPBLANCH, X.; GARNER, Philip. Primary health c are supervision in de veloping countries. Tropical Medicine a ns International He alth, Ox ford, v. 13, n . 3, p. 369-383, Mar. 2008.; Frimpong et al., 2011FRIMPONG, Jemima A. et al. Does supervision improve health worker productivity? Evidence f rom t he Upper East Region o f Ghana. Tropical Medicine and International Health, Oxford, v. 16, n. 10, p. 1.225-1.233, Oct. 2011.). Esse resultado corrobora outro achado do presente estudo que se refere ao predomínio das dimensões educativas e de controle de forma integrada.

A relação observada entre a dimensão controle, no senti do de orientação do trabalho segundo o projeto institucional, e a dimensão educativa, traduzida pelas orientações realizadas nos casos discutidos na supervisão, evidencia o potencial desse instrumento gerencial no favorecimento do diálogo e reflexão sobre as práticas de cuidado. Esse instrumento de gerência tende a valorizar a opinião e o potencial dos TENMs, clarificar suas ideias e orientá-los se m condicioná-los (Simões e Garrido, 2007SIMÕES, João F. F. L.; GARRIDO, Antonio F. S. Finalidade das estratégias de supervisão utilizadas em ensino clínico de enfermagem. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 16, n. 4, p. 599-608, out./dez. 2007.) , numa prática que busca a construção de consensos. A relação entre as duas dimensões da supervisão - educação e controle - expressa uma possível circularidade entre ambas, com potência para a qualificação do trabalho (Silva, 2007SILVA, Eliete M. Supervisão, tecnologias e trabalho: tecendo relações e práticas. Tese (Livre-docência) - Fa culdade d e Ci ências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.).

A articulação entre a educação e o controle na supervisão, também observada em outros estudos recentes (Silva, 2007SILVA, Eliete M. Supervisão, tecnologias e trabalho: tecendo relações e práticas. Tese (Livre-docência) - Fa culdade d e Ci ências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.; Kawata et al., 2009KAWATA, Lauren S. et al. O trabalho cotidiano da enfermeira na saúde d a família: utilização de ferramentas da gestão. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 313-320, abr.-jun. 2009.), permite a distinção entre duas modalidades d e controle, aqui denominadas controle e controle restrito. A primeira refere-se a um conjunto de normatizações organizacionais que, dadas as b ases coletivas d o trabalho, buscam conferir unidade e garantir a efetivação dos objetivos do serviço. Já o controle restrito indica a aplicação mecânica, parcelada e fragmentada das normatizações, desconsiderando as necessidades apresentadas pelo trabalhador no ato da supervisão e pelos usuários no atendimento. Esse formato de controle expressa a lógica taylorista/fordista ainda predominante como racionalidade gerencial hegemônica que tem n a disciplina e no controle o seu eixo central (David et al., 2009DAVID, Helena M. S. L. et al. Organização do trabalho de enfermagem na atenção básica: uma questão para a saúde do trabalhador. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 206-214, abr./jun. 2009.; Campos, 2000bCAMPOS, Gastão W. S. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia e m instituições - o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000b.).

O estudo também evidencia que a supervisão da atividade de recepção pode configurar-se como instrumento que favorece o trabalho em equipe e a interdisciplinaridade na execução das práticas em saúde, aumentando a resolutividade do serviço. Contudo, essa modalidade de supervisão requer políticas institucionais que lhe forneçam suporte, tais como educação permanente, gestão participativa e prática compartilhada de supervisão entre enfermeiros, médicos e profissionais d e outras áreas, qu e ampliem a abordagem interdisciplinar da assistência dos TENMs na atenção básica.

Considerações finais

Os resultados do estudo mostram a pertinência da atuação dos TENMs na recepção da demanda espontânea e sua potencialidade para ampliar a resolubilidade do serviço, visto que n a UBS estudada a atividade se desenvolve com relativa autonomia num contexto em que ocorre educação permanente e gestão participativa. Esse resultado, no entanto, difere do usualmente encontrado nos estudos sobre os TENMs, quando se considera apenas a educação profissional como suporte ao seu saber fazer.

A supervisão é reconhecida e legitimada pelos TENMs, pois são eles que buscam o supervisor ao reconhecerem seus limites de atuação e a necessidade de apoio de outro saber para o direcionamento e a complementaridade das ações de assistência aos usuários. Todavia, esse movimento unilateral dos TENMs aponta a necessidade de suporte mais próximo por parte das enfermeiras supervisoras, a fim de diminuir os riscos da não solicitação de supervisão para ações que ultrapassem os limites de atuação dos TENMs e que possam comprometer a qualidade da assistência prestada.

Ao supervisor, independentemente da categoria profissional, cabe realizar investigação abrangente do caso exposto pelo TENM, para que se ampliem as necessidades já captadas e se gere reflexão contínua das práticas. A relação dialógica entre supervisor e TENM também favorece a efetividade da atenção à saúde, por propiciar maior horizontalidade de relações e a percepção de pertencimento a uma equipe de trabalho com objetivos congruentes no plano institucional. A articulação observada entre as dimensões de educação e controle assinala a supervisão como ferramenta gerencial que favorece a interação, sem que haja o condicionamento das ações dos trabalhadores, mas um alargamento de suas possibilidades de resposta às necessidades de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2011
  • Aceito
    03 Fev 2013
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