Acessibilidade / Reportar erro

Instrumentum vocale, mallams e alufás: o paradoxo islâmico da erudição na diáspora africana no Atlântico

Resumos

O artigo trata da origem da jurisprudência islâmica maliquita e na especificidade da sua aplicação à escravidão, além da evolução do debate em África envolvendo etnicidade, religião e escravização e de uma análise-síntese do manuscrito árabe que encontra-se no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Rio de Janeiro. Os tópicos abordados no artigo, originariamente, fazem parte de um contexto consideravelmente mais amplo, mas podem contribuir de forma positiva para alargar a discussão sobre o estudo da diáspora africana no Brasil.


This article analizes the Malikite Islamic laws about slavery, the Muslim booklet held at Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Rio de Janeiro, as well as the huge debate between Muslim scholars in Africa over questions of ethnicity, religion, and slavery. Though the scope has been narrowed for this article, the discussion nevertheless sheds new light on the African Diaspora in Brazil.


Texto completo disponível apenas em PDF.

Full text available only in PDF format.

  • 1
    O conceito foi empregado no trabalho como uma extensa entidade supranacional de ordem jurídica, religiosa e cultural. Tradicionalmente, porém, é uma terminologia usada por legisladores islâmicos para determinar terras sobre controle de governantes muçulmanos.
  • 2
    LOVEJOY, Paul E. "Background to Rebellion: "The Origins of the Muslim Slaves in Bahia", in: Slavery and Abolition, 15, 2, 1994, p. 25.
  • 3
    Segundo Brockopp, em contraste, os relatos de escravidão doméstica na Grécia antiga, Roma, Egito e Babilônia são mais completos. BROCKOPP, Jonathan E. Early Maliki Law: Ibn Abd al-Hakam and his major compedium of jurisprudence. Leiden-Boston-Köln: Brill, 2000, p.117. Os relatos mais próximos da escravidão doméstica na sociedade islâmica tratam do mercado de escravos. Esses mercados revelam importantes aspectos da escravidão como um fenômeno mais abrangente e nos permite conhecer mais sobre o tráfico escravo do que vida dos escravos domésticos. Ver: RAGIB, Yusuf. "Les Marchés aux esclaves en terre d'Islam", in: Mercati e Mercanti nell alto medioevo. Spoleto, 1993, pp. 721-763. Ragib também relata a pseudociência da fisiognomonia pela qual os escravos eram examinados. Esse assunto é objeto do estudo de MÜLLER, Hans. Die Kunst des Sklavenkauf, nasch arabischen, persischen und türkischen Ratgebern vom 10. bis zum 18. Jahrhundert. Freiburg: i.B., 1980 e LEWIS, Bernard. Islam from the Prophet to the Capture of Constantinople. New York: Harper Collins, 1974.
  • 4
    BROCKOPP, op. cit., p. 119.
  • 5
    Idem, p. 208.
  • 6
    Ver: HRBEK, I. "Die Slawen im Dienst der Fatimiden", in: Archive Orienalni, 21, 1953, pp. 543-581.
  • 7
    HEFFENING, W. "Zum Aufbau der islamischen Rechtswerke", in W. Heffening and W. Kirfel (ed.) Studien zur Gestichte und Kultur des nahen und fernen Ostens. Leiden, 1935, pp. 101-118.
  • 8
    BROCKOPP, op. cit., p. 148.
  • 9
    Idem, p. 148. Abd Allah ibn Abd al-Hakam acrescenta que essa regra aplicava-se mesmoa escravos que pertencessem simultaneamente a muçulmanos e cristãos. Se o muçulmano emancipasse sua parte, deveria comprar a parte de seu sócio cristão.
  • 10
    O escravo emancipado tem o direito de propriedade sobre seus pertences, mas no caso dos filhos, estes continuam a pertencer ao senhor. Idem, p. 151.
  • 11
    Ibidem, p. 152. Abd Allah ibn Abd al-Hakam a perda da propriedade não implicava a perda dos direitos de clientela. É importante notar que essa punição específica foi além das injunções encontradas no Corão. Podem ser encontradas exceções ao bom tratamento de escravos no al-Muktasar al-kabir. Por exemplo, quando estrangeiros, sob a proteção de muçulmanos, castravam escravos em terras islâmicas. A emancipação nesse caso não era um direito. A explicação para esse caso particular de maus-tratos sugere a existência de "fábrica de eunucos" em território muçulmano. Além disso, escravas podiam conseguir a emancipação por um contrato "em troca de produção" por crianças (que seriam escravas), mas nesses casos, havia a precondição de que o procedimento não causasse danos psicológicos para a mãe. O que deixa subentendido que tal arranjo legal podia ser oneroso para a escrava.
  • 12
    No caso em que as dívidas ultrapassassem os bens do escravo ou o escravo masculino(gulam) que tivesse atingido a maturidade. Ibidem, p. 152.
  • 13
    Ibidem, p. 152. Ambas as fontes, cristãs e judaicas, incluem mukatab, mudabbar, o escravo maltratado, umm walad e o cego, como passíveis de serem libertados após alguns anos. Abd al-Hakam acrescentou os infantes em fase de amamentação, os portadores de enfermidades crônicas como também passíveis de manumissão, mas nesses casos específicos a decisão caberia inteiramente ao senhor. Em outra passagem, ele especifica os escravos que a propriedade não pode ser questionada legalmente: os eunucos, os mancos e os caolhos.
  • 14
    De acorco com Crone, os aspectos do clientelismo romano não podem ser confundidos com os mesmos aspectos da lei maliquita. CRONE, Patricia. "Two legal problems bearing on the Early History of the Qur'an", in: Jerusalem Studies in Arabic and Islam, 18, 1994, pp. 1-37.
  • 15
    Outros exemplos consideram a clientela das crianças nascidas de uma mulher livre comum escravo posteriormente emancipado; e o escravo que é libertado do seu senhor (sa'ibah), neste caso, os vínculos são transferidos a toda comunidade muçulmana. Ver CRONE, op. cit., p. 68, sobre uma interessante interpretação dessa prática.
  • 16
    No caso de se permitir ao escravo libertar um escravo de sua propriedade, os vínculos de clientela acumulados passam para o senhor original. BROCKOPP, op. cit., p. 153.
  • 17
    Especificamente não pode ser comprada, vendida, ou objeto de desistência. Abd al-Hakam estendeu essas assertivas estabelecendo que esse vínculo não podia ser mudado pelas autoridades por danos físicos ao escravo. Idem, p. 153.
  • 18
    Ibidem, p. 138.
  • 19
    HUNWICK, John & HARRAK, Fatima. Miraj Al-Su'ud: Ahmad Baba's replies on slavery. Rabat: Institute of African Studies, University Mohammed V Souissi, 2000, p. 7.
  • 20
    Idem, p. 7. Ele utilizou o titulo alternativo al-Kashf wa'l-bayan li-asnaf majlub al-sudan.
  • 21
    Ibidem, p. 7.
  • 22
    Sudan, plural de aswad, quer dizer "negro". Foi utilizado aqui em oposição ao termo bidan (branco), referente aos povos árabes e bérberes do Saara.
  • 23
    Termo aplicado coletivamente originalmente aos zoroastristas, do antigo Persa magush usado para designar os sacerdotes (magus, pl. magi), mais tarde usado genericamente a povos que não fossem judeus ou cristãos, mas com os quais os muçulmanos desejavam manter boas relações. Ver o hadith no qual o Profeta disse: "Trate-os como tratam o Povo do Livro" (judeus e cristãos). Ver: ANAS, Malik b. Muwatta al-imam Malik, riwayat Yahya al-Laythi.Beirut: Ratib Amrush, 1971, p. 188. No Mediterrâneo ocidental, entretanto, foi aplicado de forma hostil aos vikings.
  • 24
    Idem, p. 11. O texto dessa fatwa faz parte do códice de alIsis. O Sudão em questão é o bilad al-sudan, a "terras dos povos negros".
  • 25
    KHALDUN, Ibn. The Muqaddimmah: An Introduction to History. Princeton: Princeton University Press, 1989, pp. 58-59.
  • 26
    Abu Ishak Ibrahim b. Hilal al-Sijilmasi, (morto circa 1497-1498), jurista norte-africano célebre por suas fatwas.
  • 27
    Shihab al-Din Ahmad b. Idris al-Qarafi al-Sanhaji (morto em 1285), jurista maliquitade origem bérbere que viveu no Cairo e advogava o princípio de que as leis deviam mudar conforme as circunstâncias.
  • 28
    HUNWICK & HARRAK, op. cit., p. 9.
  • 29
    Idem, pp. 21-53.
  • 30
    WILLIS, John R. Slaves and Slavery in Muslim Africa, vol.2: The Servile State. London: Frank Cass, 1985, p. 3.
  • 31
    Idem, pp. 1-9.
  • 32
    LOVEJOY, Paul E. "The Clapperton-Bello Exchange: the Sokoto Jihad and the Trans-Atlantic Slave Trade, 1804-1837," in Christopher Wise (ed.), The Desert Shore: Literatures of the African Sahel (Boulder: Lynne Rienner, 2000), p. 203.
  • 33
    SMITH, Abdallahi. "The Islamic Revolutions of the 19th Century", in: Journal of Historical Society of Nigeria, 2, 1961, p. 176, MARTIN, B.G. Muslim Brotherhoods in the Nineteenth-Century Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 1976, p. 18. Em 1817, no ano da morte de Uthman dan Fodio, seu irmão Abdullahi escreveu um tratado sobre os princípios do sufismo, que enfatizava a iniciação dele e Uthman dan Fodio, por intermédio de Jibril b. Umar. BRENNER, Louis. "Muslim thought in the Eighteenth-Century West Africa", in: LEVTZION, Nehemia & VOLL, John O. Eighteenth-Century Renewal and Reform in Islam. Syracuse (NY): Syracuse University Press, 1987, pp. 56-57, Last, Murray. The Sokoto Caliphate. New York: Humanities Press, 1967, Murray Last, "Reform in West Africa: The Jihad Movements of the Nineteenth Century," in History of West Africa, ed. J. F. A. Ajayi and Michael Crowder (London, 1975). FARINHA, António Dias. "Os Marabutos e a Presença Portuguesa em Marrocos" in: Colectânea de Estudos em Honra do Prof. Doutor Damião Peres, Academia Portuguesa de Letras, Lisboa, 1974, pp.301-307.
  • 34
    MARTIN, op. cit., p. 18.
  • 35
    Idem, p. 18.
  • 36
    Sabb al'-ajin 'alayha, freqüentemente mencionado por Uthman dan Fodio como signo de politeísmo. De forma análoga, Ibn al-Qadi enfatizava que sacrifícios a espíritos, árvores e outras criações são formas de adoração. A única adoração possível é aquela dirigida exclusivamente a Deus. Seguindo os padrões estabelecidos por al Maghli, Ibn al-Qadi observou: "um muçulmano comete apostasia simplesmente por imitar um infiel" em práticas que somente um infiel realizaria. Pare ele, a shari'a trata apenas das manifestações exótericas (zahir) do comportamento humano, e não de manifestações esotéricas (batin) que não podem ser vistas. MANSOUR, Mohamed Al & HARRAK, Fatima. A Fulani jihadist in the Maghrib: Admonition of Ahmad Ibn al-Qadi at Timbukti to the Rulers of Tunisia and Morocco. Rabat: Institute of African Studies, 2000, p. 28.
  • 37
    O corolário para essa situação de acordo com a lei islâmica é que aquele que nasceuinfiel (kafir bi l'asala) pode ser escravizado, enquanto os infiéis mencionados nas categorias 5 e 6 não devem ser escravizados se forem capturados como prisioneiros de guerra.
  • 38
    Pode-se incluir nessa categoria, a cobrança de taxas canonicamente ilegais, suborno, opressão e injustiça mencionados no Kitab al-farq, e as acusações de adoração de ídolos em Bornu.
  • 39
    Essa categoria foi motivo de grande controvérsia entre os muçulmanos na época de dan Fodio. Os defensores do ilm al-kalam(erudição teológica) entre os talaba não aceitavam aqueles que não podiam explicar o significado dos artigos da fé. Uthman dan Fodio admoestou os talabas sobre essa atitude.
  • 40
    MASRI, El F.H. (edited. and translated). Uthman ibn Fudi. Bayan wujub al-Hijra Ala 'L-'Ibad. Khartoum: Khartoum University Press, 1978, p. 8.
  • 41
    "A enfática negação ideológica do primado da identidade étnica (e posição social) quecaracteriza as religiões universais surgidas no Oriente Médio pode ser compreendida nesta perspectiva, já que praticamente qualquer movimento de reforma social ou ética nas sociedades poliétnicas dessa região colidiriam com as convenções e normas de caráter étnico." BARTH, Fredrik. O guru iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 36.
  • 42
    Idem, pp. 36-37.
  • 43
    São várias suratas e hadiths neste sentido. ZIDAN, Ahmad & ZIDAN, Dina (text & translation). Sahih Al-Bukhari. Cairo: Islamic INC, 1970, et passim. Em um hadith o Profeta enfatizou: "E árabe aquele que fala o árabe". No contexto, não deixa de ser uma tentativa de estender o conhecimento do idioma a qualquer povo que viesse estudar a revelação, independentemente de vínculos étnicos.
  • 44
    BARTH, Fredrik. O guru iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 72 e Nomads of South Persia: The Basseri tribe of the Khamseh Confederacy. Prospect Heights: Waveland Press, 1961.
  • 45
    Idem, p. 73.
  • 46
    MARTIN, op. cit., p. 126.
  • 47
    O trabalho de Martin enfocou vários movimentos islâmicos da África Ocidental, ao longo do Magrebe, até África Oriental. O xarifismo e a ação das irmandades sufis foram elementos importantes na mobilização das populações islâmicas e na legitimação de suas lideranças. Ver MARTIN, op. cit., et passim. Ver também o xarifismo marroquino e o conceito de imitatio Muhammadi, em CORNELL, Vincent. Realm of the Saints: Power and authority in Moroccan Sufism. Austin: University of Texas Press, 1998, pp. 129-229.
  • 48
    EL MASRI, op. cit., p.9.
  • 49
    LOVEJOY, The Bello-Clapperton Exchange, p. 204.
  • 50
    HISKETT, M. The Sword of Truth. New York: Oxford University Press, 1973, p. 77.
  • 51
    LOVEJOY, The Bello-Clapperton Exchange, p. 207.
  • 52
    Bello citou a fatwa de Ahmad Baba. Idem, p. 205. Sobre as comunidades fulas islamizadas e não-islamizadas ver: SILVA, Alberto da Costa e. Sobre a rebelião de 1835 na Bahia. Revista Brasileira, separata, Fase VII, abril-maio-junho 2002, Ano VIII, n° 31, pp.13-14.
  • 53
    LEVTZION, Nehemia. "Islam in African and Global Contexts: Comparative Studiesof Islam", paper apresentado na conferência The Institute Of Global Studies, Binghampton University, April 19-22, 2001. Sobre a ascensão da comunidade xiíta no Líbano, ver: AJAMI, Fouad. The vanished Imam: Musa al-Sadr and the shia of Lebanon. Ithaca (NY): Cornell University Press, 1986. No caso libanês, exemplificado pela ascenção inconteste dos movimentos políticos-religiosos dos grupos xiitas Amal e Hezbollah.
  • 54
    LOVEJOY, Paul E. "The Relation between Jihad and slavery in the Americas", apresentado no IFCS/UFRJ, Novembro de 2001.
  • 55
    ISHAQ, Ibn. The Life of Muhammad . London: Oxford University Press, 1955, p. 774.
  • 56
    RYAN, Patrick J. Imale: Yoruba participation in the Muslim tradition . Missoula: Scholars Press, 1978, p. 1.
  • 57
    HARROW, Kenneth, op. cit., in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 519.
  • 58
    STARRAT, Priscilla. "Islamic influences on oral traditions in Hausa literature" in:HARROW, Kenneth. The marabout and the muse. Portsmouth (NH): Heinemann, 1996, p. 9.
  • 59
    Idem, p. 164.
  • 60
    Lewis, I.M. (ed.). Islam in tropical Africa . London: Oxford University Press, 1968 e DIOUF, Sylviane A. Servants of Allah: African Muslims enslaved in the Americas. New York: NYU Press, 1998, p. 4.
  • 61
    OWASA-ANSAH, David. "Prayer, Amulets, and Healing", in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 480.
  • 62
    A primeira e única tradução conhecida dos manuscritos feita na época da insurreição(1835) foi realizada pelo hauçá Albino na presença de um juiz de paz. MONTEIL, Vincent. "Anályse de 25 documents árabes dês Malés de Bahia (1835)", in: Bulletin de l'Institute Foundamentale d'Afrique Noire, ser.B, 29, números 1-2, 1967, pp.88-98 e REICHERT, Rolf. Os documentos árabes do Arquivo do Estado da Bahia . Centro de Estudos Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia, 1979.
  • 63
    A tradução foi realizada pelo Nigerian Hinterland Project/UNESCO, York University,Toronto, Canadá. Agradeço ao Prof. Paul E. Lovejoy e especialmente a Ibrahim Hamza pela versão do árabe para o inglês.
  • 64
    DIOUF, op. cit., p. 107.
  • 65
    AUSTIN, Allan D. African Muslims in antebellum America: Transatlantic stories and spirituals struggles. New York & London: Routledge, 1997, p. 5.
  • 66
    DWIGHT, Theodore. "Condition and character of negroes in Africa", in: SCHIEFFELIN,Henry. The people of Africa: A series of papers on their character, condition, and future prospects. New York: A.D.F. Randolph, 1871, p. 49.
  • 67
    DIOUF, op. cit., p. 109.
  • 68
    GOODY, Jack. The power of written tradition. Washington (DC): Smithsonian Institution Press, 2000, pp. 1-2.
  • 69
    Idem, p. 106.
  • 70
    LOVEJOY, Paul E. "The Muslim factor in the Atlantic Slave Trade", Forthcoming in:LOVEJOY, Paul E. (ed.). African Slaves in Dar es-Salaam: The Central Sudan, Slavery, and the Muslim Diaspora. Princeton: Markus Wiener, p. 7.
  • 71
    Idem, p. 7.
  • 72
    Vamos considerar para efeitos conceituais a definição de Hunwick que alarga o concei-to subjetivo de "erudito" ou "letrado", dessa forma o termo incluiria não apenas os institucionalmente reconhecidos como ulemás (cadis, jurisconsultos e professores), mas imans, khatibs, sufis ascetas, os místicos pietistas (sulahas), e em geral a todos inseridos na categoria de "homens-santos". Este termo englobaria um escopo considerável de categorias que correspondem, a entre outras, ao mandinga mori, ao fulfulde cerno, ao hauçá mallam, ao songai e iorubá alfa, ao arabo-sudanês faki, ao somali wadadi, ao ubíquo marabuto eremita ou santo) da terminologia franco-árabe. HUNWICK, John. "Secular Power and Religious Authority in Muslim Society: The Case of Songhay" in: Journal of African History, 37, 1996, pp. 175-194. O termo "marabuto" e derivado de murabit, que significa "eremita ou "santo". Possivelmente através da história islâmica ligado a ribat (centro religioso fortificado, português "rebate") ou a "rabita", "convento", português "arrábida". FARINHA, op. cit., p. 302 e FARIAS, Paulo de Fernando de Morais. "The Almoravids: Some questions concerning the character of the movement during its periods of closest contact with the Western Sudan" in: Bulletin de I.F.A.N. t. xxix, série B, 3-4, 1967, pp. 794-878, FARINHA, António Dias. "Contribuição para o estudo das palavras portuguesas derivadas do árabe-hispânico" in: Portugaliae Histórica, vol. 1, Lisboa, 1973, p. 262, no. 115. Em 1600 surge em espanhol a palavra morabito e em francês que conheceu grande difusão existe uma citação para 1651. CORAMINAS, Joan. Breve Diccionario etimológico de la lengua Castellana. Madrid: 1967, p. 402.
  • 73
    DIOUF, op. cit., p. 39.
  • 74
    REICHMUTH, Stefan. "Islamic Education and Schorlarship in Sub-Saharan Africa", in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 419.
  • 75
    Idem, p. 419.
  • 76
    Ibidem, p. 421. De acordo com Gbadamosi, a interface do Islã com a cultura iorubáfacilitou a introdução do primeiro na Iorubalândia. GBADAMOSI, T.G.O. The Growth of Islam among the Yoruba, 1841-1908. Atlantic Highlands (NJ): Humanities Press, 1978, p. 2.
  • 77
    "Devassa Do Levante De Escravos Ocorrido Em Salvador Em 1835" in: Anais do Arquivo Público do Estado da Bahia vol. 38, p. 130. Daqui em diante apenas "Devassa do Levante".
  • 78
    RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
  • 79
    GOODY, op. cit., p.94.
  • 80
    REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês. (Segunda Edição Revista e Ampliada.) São Paulo: Companhia das Letras, 2002 (no prelo).
  • 81
    Segundo Ryan, na sua tese, o termo se refere à escola corânica. De forma mais acurada, resume melhor a instituição conhecida como "casa da recitação" porque envolve o aprendizado. RYAN, op. cit., p. 194.
  • 82
    "Quando esteve em Socoto em 1826, a capital do califado fula-hauçá, Clapperton observou algo semelhante numa escola corânica freqüentada por crianças das "classes média e baixa". Os alunos recitavam em coro suas lições, escritas pelo mestre sobre as tábuas, que eram lavadas e a água bebida somente após terem eles decorado a lição. O gesto propiciatório estava então vinculado à memorização das orações ou de passagens do Alcorão, uma espécie de recompensa pela tarefa cumprida. Assim se entende melhor as "vinte vezes escrita" do depoimento de Albino. Este, porém, pareceu distinguir entre exercícios elementares, sem eficiência protetora, e orações mais complexas, estas sim bebidas para fechar o corpo. O uso tanto doméstico como militar dessa beberagem foi documentado em outro trecho do diário de Clapperton, escrito em Boussa, uma cidade do reino de Borgu, ao norte de Oió." REIS, op. cit. Na Ilha de Bissau, o Aluhá é tábua onde escrevem-se os exercícios para os alunos. O aparo (Kalamo, literalmente "aparo", derivado do árabe Khalâm) é feito de delgadas hastes de bambu. A tinta obtém-se ou pela maceração de cascas (do tronco) da mangueira (árvore) ou de carvão vegetal reduzido a pó e misturado na água. CARREIRA, António. "Aspectos históricos da evolução do Islamismo na Guiné Portuguesa" in: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume XXI, 84, 1966, pp. 455-457.
  • 83
    DANMOLE, H.O. "Crises, Warfare, and Diplomacy in the Nineteenth-Century Ilorin", in: FALOLA, Toyin. Warfare and diplomacy in precolonial Nigeria. African Studies Program (University of Winsconsin-Madison), 1992, p. 52 See J.F.A. AJAYI, J.F A. "The Aftermath of the Fall of Oyo", in AJAYI, J.F.A. & CROWDER, M. History of West Africa II . London: Longman Publishing Group, 1987, pp. 129-166.
  • 84
    Ondè é um amuleto costurado em uma bolsa de couro colocada em volta da cintura. Yfunpà é um amuleto de couro usado no braço. A pele de qualquer felino podia ser usada na confecção desses amuletos por causa da habilidade desses animais de se moverem furtivamente. No depoimento do forro nagô-igbo Lobão em 1835, ele descreveu os amuletos encontrados pela polícia em sua casa: "Foi perguntado qual era o fim para o que ele trazia aquilo, cujos patuás, ou embrulhos de couro foram abertos neste ato descosendo-se com um canivete de aparar penas, onde se achou vários fragmentos de cousas insignificantes, como seja algodão, embrulhado em um pouco de pó e outros até com bocadinhos de lixo e o saquinho com uns poucos de búzios dentro, envolto em um dos embrulhos de couro um pequeno papel escriturado com letras arábicas, ao que ele respondente, declarou, que trazia aquilo para o livrar do vento, e que os búzios servia-se deles para untar sabão na cabeça quando lavava." Devassa do Levante, vol. 53, p. 112. Leão, o africano na Granada muçulmana do final do século XV, descreveu os amuletos como sendo pequenas bolsas de couro contendo escritos misteriosos para proteção contra a inveja e doenças. "Os puristas consideravam essas práticas contrárias à religião. No entanto, seus próprios filhos freqüentemente usavam amuletos porque os primeiros não logravam fazer suas esposas e mães escutarem a razão. Eu não posso negar a utilização de amuletos por mim mesmo. Fui presenteado no meu primeiro aniversário com um desses artefatos com desenhos cabalísticos que nunca pude decifrar. Eu não acreditava no seu poder mágico, mas o homem é tão vulnerável ao Destino que não pode resistir à atração de objetos envoltos em mistério. Poderá Deus, que me criou tão fraco, um dia reprovar-me pela minha fraqueza?" MAALOUF, Amin. Leo Africanus. Lanham (MD): New Amsterdam books, 1988, p. 30.
  • 85
    AJAYI, op. cit., in: AJAYI, J. F. A. & CROWDER, M. op. cit., p. 46.
  • 86
    Idem, pp. 129-166.
  • 87
    Ver: SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 213-226.
  • 88
    "Relato do chefe de policia Francisco Gonçalves Martins". Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 10/02/1835.
  • 89
    Ij6-170, jan-jul., 1835, Ofício do chefe de Polícia ao Ministro da Justiça, Arquivo Nacional. O documento foi publicado anteriormente em SOARES, Carlos Eugenio Líbano. A capoeira escrava e outras a tradições rebeldes no Rio Janeiro (1808-1850).Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p. 356. A presente transcrição foi feita diretamente da fonte. Agradeço a Alzira Durão pela transcrição.
  • 90
    Na América, certos rótulos étnicos implicavam em afiliação religiosa. Iorubá, por exemplo, podia incluir muçulmanos, apesar de freqüentemente se referir a não-muçulmanos (nagô e lucumi). O termo "iorubá" é aparentemente de origem hauçá e songhai cunhado do trabalho de Ahmad Baba em 1615 em Tombuctu no seu tratado de jurisprudência da escravidão no Islã. Nessa época, em Tombuctu, o songhai era falado e não o hauçá. O termo também foi usado em dendi, um dialeto do songhai falado em Borgu pelos comerciantes. No hauçá o termo é yarabawa (plural) e bayarabe (singular). LOVEJOY, Paul E. "The relationship between jihad and slavery in the Americas", p. 9. Ver também: LAW, Robin. "Ethnicity and the Slave Trade: "Lucumi" and Nago" as Ethnonyms in West Africa", in: History in Africa 24, 1997, pp. 205-219.
  • 91
    LOVEJOY, "The Relationship between jihad and slavery in the Américas", p. 11.
  • 92
    DIOUF, op. cit., pp. 11-13, 38, 135-137, 165-170.
  • 93
    De acordo com Wilks, a tradição "quietista" a que ele se refere como a tradição suwarianaenvolvia "acomodação e coexistência", baseadas nas políticas e práticas estabelecidas por al-hajj Salim Suwari, inicialmente em Ja (Dia) em Massina e mais tarde em Jahaba, Bambuhu no final do século XV. Reverenciado por juula e jahanke, e desse modo associado de forma abrangente com os mandingos, al-hajj Salim Suwari advogava ser possível muçulmanos viverem em comunidades não-muçulmanas. Assim teriam acesso à riqueza por via do comércio e do artesanato nesse mundo, o que não significava a negação da salvação no "outro" mundo. Essa crença baseava-se na rejeição de um proselitismo ativo. A conversão real ocorreria apenas no reino de Deus. Portanto, o jihad era rejeitado como instrumento de mudança, exceto em situações extremas de sobrevivência da comunidade muçulmana. Todos os infiéis seriam em algum momento convertidos, mas em estágios preestabelecidos. Aos muçulmanos restava manterem-se puros de acordo com a tradição do Profeta para esperar adequadamente a conversão futura dos infiéis. WILKS, Ivor. "Consul Dupuis and Wangara: A window on Islam in the early Nineteenth-Century Asante", in: Sudanic Africa, 6, 1995, p. 61.
  • 94
    WILLIS, John R. In the Path of Allah: The passion of al-hajj Umar: An essay into the nature of charisma in Islam.London: Frank Cass & Co., 1989, p. 49.
  • 95
    MARTIN, op. cit., p. 29.
  • 96
    Ver: Devassa Do Levante, vols. 38-40-50-54.
  • 97
    Ver AUSTIN, op. cit.,
  • 98
    LOVEJOY, "The relationship between jihad and slavery in the Americas", p. 12. Vertambem: LOVEJOY, Paul E. and ADDAOUN, Yacine D. The Arabic Manuscript of Muhammad Kaba Saghanughu of Jamaica, c.1823. University of West Indias, Mona, Jamaica, January 9-12, 2002, p. 10. O Kitab al-salat escrito por Muhammad Kaba na Jamaica, permitiu ligar os muçulmanos enviados para essa região como parte da tradição "quietista" da irmandade Qadiria no Sudão Ocidental, e revela a presença do sufismo no Caribe.
  • 99
    COSTA, Emília Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 232. No caso de Demerara, a participação maciça de escravos cristianizados, sob a liderança de um pastor inglês, pode ter influído decisivamente para o afastamento dos muçulmanos. Em contrapartida, podese constatar um caso de colaboração inter-religiosa na revolta de Denmark Vessey em Charleston, em 1822. ROBERTSON, David. Denmark Vessey. New York: Vintage Books, 2000, PEARSON, Edward A. Designs against Charleston: The Trial Record of the Denmark Vessey Slave Conspiracy of 1822. Chapel Hill: The University of Carolina Press, 1999 e WALKER, Lois A. & SILVERMAN, Susan. Documented History of Gullah Jack Pritchard and the Denmark Vesey Slave Insurrection of 1822. Lewiston: The Edwin Mellen Press, 2000.
  • 100
    Coleção Instituto Histórico. "Livrinho Encontrado Preso ao Pescoço de um Negro MortoDurante a Insurreição dos Malês na Bahia". Doação de J. de Sampaio Vianna, originais: IHGB, 102 p., lata 987, pasta 5.
  • 101
    Na África Ocidental, por exemplo, as famílias enviavam os filhos para a escola corânica quando a criança pudesse "contar ate dez". Os professores detinham total autoridade sobre os alunos, direito este outorgado pelo pai. Os estudantes começavam decorando a surah al-Fatiha (versículo de abertura do Corão) e as dez últimas suratas (conhecidas como "curtas"). O próximo estágio era estudar a gramática árabe, ler e recitar o texto corânico inteiro. Cada trecho (ahzab) decorado era celebrado. A cerimônia de formatura da instrução primária terminava com uma cerimônia em que o estudante ricamente vestido recitava a primeira parte do Corão diante dos professores, colegas e parentes. O professor era devidamente recompensado pelos pais com dinheiro e roupas novas. Esse aprendizado na escola corânica era também pré requisito básico para se iniciar a vida profissional. REICHMURT, op. cit., in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 424. Leão, o africano, no início do século XVI, relatou sua experiência pessoal: "Para entender o significado da "grande recitação" na vida do crente é preciso ter vivido em Fes, cidade onde o aprendizado foi construído ao redor das escolas (madrasas). Após vários anos de paciente memorização, chega-se a ponto de se recitar todos os versículos do Corão. Quando isso acontece, o professor declara o estudante pronto para a "grande recitação" e imediatamente passa da infância ao mundo dos homens, do anonimato para a fama. É quando alguns começam a trabalhar e outros são admitidos nos estágios superiores de aprendizado, fontes de erudição e autoridade". MAALOUF, op. cit., p.136. Sanim, um dos líderes da Revolta Malê, deixou escapar que apesar de todos os indícios apontarem-no como mestre, ele não exercia essa atividade em terras brasileiras: "Que é verdade ter o nome de Sanim na sua terra, mas que é falso o dizer se que ele ensina a língua, ou reza de Malê por que quando veio para terra de branco, não tratou mais disse, e nem se lembra". Devassa do Levante, vol. 38, p. 119.
  • 102
    Aquele reconhecidamente fraco, maltratado e oprimido. O mestre hauçá Dandará foimais claro: "e que ele é Mestre em sua Terra, e que aqui ele tem ensinado os rapazes; porém que não é para mal. Devassa do Levante, vol. 54, p. 212.
  • 103
    Livrinho Malê, p. 3. Surata An Nissá (As Mulheres, versículo 4: 102). A numeração obedecerá à paginação da tradução inglesa disponível em anexo na versão original da dissertação. A versão portuguesa usada no trabalho é a de Samir El Hayek. O Significado dos Versículos do Alcorão Sagrado, tradução Samir El Hayek. São Paulo: Marsam, 1994.
  • 104
    Ver conceitos de qiya em: PHILIPS, Abu Ameenah Bilaal. Evolution of the Madh-habs (Schools of Islamic Law). Ryadh: International Islamic Publishing House, 1988/1409 AH.
  • 105
    O documento apresenta transcrições dos seguintes versículos: Al-Bácara (a Vaca), Áal 'Imran(A Família de Imran), Al-Nissá (As Mulheres), Al-Máida (A Mesa Servida), AlA'raf (Os Cimos), Yunis(Jonas), Hud (Hud), Ibrahim(Abraão), An Nahl (As Abelhas), Al-Cahf (A Caverna), Taha (Taha), Al-Anbiyá (Os Profetas), Al-Muminun (Os Crentes), Al-Furcan (O Discernimento), Ach Chu'ará (Os Poetas), Al-Cassas (As Narrativas), As Sajda (A Prostração), Al-Ahzáb (Os Partidos), Sabá(Sabá), Fáter (O Criador), Sad (A Letra Sad), Caf (A Letra Caf), Az Záriat (Os Ventos Disseminadores), Al-Camar (A Lua), AlMumtahana(A Examinada), Al Hácca (A Realidade), Al Ma'arij (As Vias de Ascensão), Al-Tahrim (As Proibições).
  • 106
    RYAN, op.cit., p. 187.
  • 107
    Agradeço a Yacine Daddi Addaoun, doutorando do Nigerian Hinterland Project/UNESCO, York University, seus comentários sobre o documento.
  • 108
    A vocalização breve no idioma árabe é feito com o uso de sinais diacríticos fatha, damma e kasra colocados sobre as consoantes. As vogais longas possuem letras específicas. SABBAGH, Alphonse N. Dicionário árabe-português-árabe. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico/Ed. UFRJ, 1988, p. 10.
  • 109
    O indivíduo que memoriza todo o texto corânico é chamado Huffaz.
  • 110
    Havia dois africanos chamados Suleiman ou Sule envolvidos na rebelião de 1835. Umera liberto nagô e foi o pivô da denúncia da rebelião devido à denúncia de sua companheira. O outro era escravo nagô do inglês Stuart e apontado como um dos mestres dos escravos muçulmanos da Vitória. Ambos teriam perecido em combate. Essa hipótese é reforçada pelo fato de o manuscrito ter sido encontrado no pescoço de um africano morto na revolta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2003
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org