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Imagem, raça e humilhação no espelho negro da nação: cultura visual, política e "pensamento negro" brasileiro durante a ditadura militar* * Este trabalho sintetiza e amplia alguns dados de minha tese de doutoramento, financiada com bolsa Fapern/Capes, sob orientação de Ana Maria Mauad. Uma versão resumida foi apresentada no XXVI Simpósio Nacional da Anpuh. Cf. SANTIAGO JR., Francisco das C. F. Reações na (à) cultura visual: racialização e humilhação no Brasil dos anos 1970. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVI, 2011, São Paulo. Anais eletrônicos. Disponível em: <www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300889176_ARQUIVO_Reacoesna%28a%29culturavisual.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2012.

Resumos

Este artigo problematiza as relações entre cultura visual, "racialização" e novas sensibilidades políticas no Brasil de meados dos anos 1970 e princípios dos 1980 a partir das discussões da imagem e da representação do negro no cinema brasileiro. Observamos algumas das características da atualização e modificação da noção de raça no Brasil a partir da discussão sobre filmes brasileiros pelos representantes do que chamamos no texto de "pensamento negro", uma tradição reflexiva em formação que questionou como a intelectualidade brasileira concebia a cultura negra. A reflexão negra se apresenta num conjunto de escritos na imprensa nos quais desenvolveram uma retórica da imagem do negro como retórica de humilhação racial. A denúncia da humilhação negra na imagem produzida pelos brancos permitiu a constituição de uma nova identidade racial no Brasil.

cinema brasileiro; identidade racial; Xica da Silva; Tenda dos Milagres; cultura visual; cultura política; intelectualidade negra.


This article analyzes the relationship between visual culture, "racialization," and new political sensitivities in Brazil in the mid-1970s and early 1980s from the perspective of image and representation of Blacks in the Brazilian cinema. By examining the debate about Brazilian movies among those we call representatives of a "Black thought" in Brazil, we observed some characteristics of change and update of the notion of race in Brazil, within a rising reflective tradition that questioned the views of the Brazilian intelligentsia on Black culture. This Black thought is presented through a set of articles published in the press, where the rhetoric of the image of Blacks was equated to a rhetoric of racial humiliation. The denunciation of the humiliation of Blacks in the image produced by Whites allowed the establishment of a new racial identity in Brazil.

Brazilian cinema; racial identity; Xica da Silva; Tenda dos Milagres; visual culture; political culture; Black intellectuals.


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  • *
    Este trabalho sintetiza e amplia alguns dados de minha tese de doutoramento, financiada com bolsa Fapern/Capes, sob orientação de Ana Maria Mauad. Uma versão resumida foi apresentada no XXVI Simpósio Nacional da Anpuh. Cf. SANTIAGO JR., Francisco das C. F. Reações na (à) cultura visual: racialização e humilhação no Brasil dos anos 1970. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVI, 2011, São Paulo. Anais eletrônicos. Disponível em: <www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300889176_ARQUIVO_Reacoesna%28a%29culturavisual.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2012.
  • 1
    Cf. MITCHELL, W. Teoría de la imagen. Madri: Akal, 2009.
  • 2
    Cf. CLARK, T. J. Modernismos. São Paulo: Cosac & Naify, 2007; GRIEVESON, Lee. Policing cinema: movies and censorship in early-Twentieth-Century America. Los Angeles: University of California Press, 2004; SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
  • 3
    Tratamos a ideia de "raça" como um padrão formado a partir de um conjunto de práticas e tropos (uma retórica nem sempre concordante) que sistematizam as diferenças sociais a partir da aparência e da origem. É importante distinguir entre concepções racistas (referentes ao comportamento que costuma envolver medo, desprezo ou ódio contra pessoas de aparência definida) e concepções racialistas (referentes à ideologia, que se apropriam de padrões raciais para o combate ao racismo). Cf. GILROY, Paul. Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça. São Paulo: Annablume, 2007; TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros. Rio de janeiro: Zahar, 1993.
  • 4
    Embora filmes que toquem na questão racial sejam anteriores, como o clássico Também somos irmãos (1949), além de Rio 40 graus (1955) e Rio Zona Norte (1957).
  • 5
    Nem todos estes filmes estavam vinculados ao cinema novo.
  • 6
    Não queremos com isso dizer que os filmes não representavam as tensões raciais, mas apontar que essas tinham um papel definido no quadro das relações econômico-sociais.
  • 7
    Além de ser um dos temas principais na obra de Carlos Diegues como um todo.
  • 8
    SOUZA, Cláudio Mello e. Ganga Zumba domina a semana. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 mar. 1964. Caderno B, p. 3.
  • 9
    Cinemateca Brasileira. Centro de Documentação e Pesquisa. Pasta 109. ALBERTO, Luiz. Ganga Zumba. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 20 mar. 1964.
  • 10
    MORAES, Tânia. 'Ganga Zumba' quer dizer Zumbi (dos Palmares) e liberdade. Última Hora, Rio de janeiro, 29 ago. 1963. Cine Ronda, p. 12.
  • 11
    ANDRADE, Joaquim Pedro de. Joaquim Pedro de Andrade por ele mesmo. In: RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos fracos: cinema e história do Brasil. São Paulo: Edusc, 2002. p. 57.
  • 12
    Antes de Diegues, Antônio Callado escrevera um ato teatral sobre Xica da Silva nos anos 1950 na Escola de Teatro da Universidade da Bahia, com participação de Nevolanda Amorim e Othon Bastos.
  • 1
    Cinemateca Brasileira. Centro de Documentação e Pesquisa. Pasta 495. DIEGUES, Carlos. Entrevista. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 jun. 1976.
  • 14
    FREDERICO, Carlos. Abacaxica. Opinião. Rio de Janeiro, 15 out. 1976. Tendências e Cultura, p. 18.
  • 15
    HASENBALG, Carlos. Copiando o senso comum. Opinião, Rio de Janeiro, 15 out. 1976. Tendências e Cultura, p. 19.
  • 16
    NASCIMENTO, Beatrix. A senzala vista da casa grande. Opinião, Rio de Janeiro, 15 out. 1976. Tendências e Cultura, p. 20-21.
  • 17
    Ibidem.
  • 18
    Ibidem.
  • 19
    Ibidem.
  • 20
    Cinemateca Brasileira. Centro de Documentação e Pesquisa. Pasta 630. SODRÉ, Muniz. Mulata da melhor mulataria. IstoÉ, São Paulo, 23 nov. 1977.
  • 21
    Ibidem.
  • 22
    Ibidem.
  • 23
    Cf. PEREIRA, Amilcar Araújo. O mundo negro: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1975- 1995). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010; PEREIRA, Amauri Mendes; SILVA, Joselina da (Org.). O movimento negro brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça no Brasil. Belo Horizonte: Nandyala, 2009; SIQUEIRA, José Jorge. Entre Orfeu e Xangô: a emergência de uma nova consciência sobre a questão do negro no Brasil 1944/1968. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
  • 24
    Conferência Nacional do Negro (1946), Convenção Nacional do Negro (1949), I Congresso Nacional do Negro (1950), este último realizado pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Os Anais do I Congresso foram publicados em O negro revoltado, organizado por Abdias do Nascimento (Rio de Janeiro: GRD, 1968).
  • 25
    Cf. GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classe, raças de democracia. São Paulo: Ed. 34, 2004.
  • 26
    Alguns autores apontam que essa reflexão, inclusive na elaboração de trocas de ideias transatlânticas, já ocorria na imprensa negra antes do jornal O Quilombo. Cf. PEREIRA, Amilcar Araújo. Linhas (da cor) cruzadas: relações raciais, imprensa negra e movimento negro no Brasil e nos Estados Unidos. In: PEREIRA, Amauri Mendes; SILVA, Joselina da (Org.). O movimento negro brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça no Brasil. Belo Horizonte: Nandyala, 2009. p. 109-126.
  • 27
    SILVA JR., Hélio. Estados Unidos e África. In: ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amílcar Araújo (Org.). Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao Cpdoc. Rio de Janeiro: Pallas; Cpdoc-FGV, 2007. p. 69.
  • 28
    A primeira edição nacional de Os condenados da terra é de 1968. Cf. FANON, Franzt. Os condenados da terra. Prefácio de Jean-Paul Sartre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
  • 29
    Sobre isso, Carlos Alberto Medeiros recorda: "eu me lembro de como foi o impacto que essa coisa do cabelo teve sobre mim. Primeiro, porque percebi, inclusive, que passei a ser visto de outra maneira (...) Tinha a história de ser uma coisa diferente que estava rolando, e tinha o quanto de afirmação que aquilo continha. Era uma outra visão, era uma outra coisa do negro". Cf. MEDEIROS, Carlos Alberto. Estados Unidos e África. In ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amílcar Araújo (Org.). Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao Cpdoc. Rio de Janeiro: Pallas; Cpdoc-FGV, 2007. p. 70.
  • 30
    SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade. Salvador: Edufba, 2006. p. 43.
  • 31
    FRIAS, Lena. Black Rio - o orgulho (importado) de ser negro no Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 jul. 1976. Caderno B, p. 1, 4-6.
  • 32
    Cf. depoimentos em ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amílcar Araújo (Org.). Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao Cpdoc. Rio de Janeiro: Pallas; Cpdoc-FGV, 2007. p. 70.
  • 33
    NASCIMENTO, Beatriz. Por uma história do homem negro. In: RATTS, Alex (Org.). Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto Kuanza, 2007. p. 93. (publicado originalmente em: Revista de Cultura Vozes, v. 68, n. 1, p. 41-45, 1974.)
  • 34
    Ibidem, p. 94-96.
  • 35
    NASCIMENTO, Beatriz apud XAVIER, Ismail. Cinema e descolonização. Filme Cultura, ano XV, n. 40, p. 25, ago./ out. 1982.
  • 36
    A propósito, Orlando Senna escreveu anos depois: "Juana promove a formação de uma equipe iniciática de cinema para a realização dos filmes produzidos pela Secneb, no intuito de reduzir os ruídos culturais na abordagem e interpretação dos temas (...) chegar a um grupo de artistas e técnicos altamente familiarizados com o complexo cultural afro-brasileiro e pessoalmente integrados em seus princípios existenciais". Cf. SENNA, Orlando. Viver e morrer, o último quilombo. Filme e cultura, Rio de Janeiro, n. 41/41, p. 66, maio 1983.
  • 37
    SODRÉ, Muniz apud XAVIER, Ismail. Cinema e descolonização. Filme Cultura, ano XV, n. 40, p. 25, ago./out. 1982.
  • 38
    SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1983. p. 173.
  • 39
    Importante frisar que estamos falando de um processo de racialização que se inicia nos debates mais amplos sobre a cultura e a identidade negra, mas que não se propôs, na época, como uma posição hegemônica nas discussões do "pensamento negro", mas como um discurso em emergência. A racialização desenvolvia-se junto à etnicização do negro, sem que, contudo, esses dois processos sociais estivessem submetidos um ao outro. Infelizmente, neste artigo não é possível observar as múltiplas ramificações históricas e teóricas dessa questão.
  • 40
    0 Sobre a ideia de humilhação como um processo historicamente identificável cf. ANSART, Pierre. As humilhações políticas. In: MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (Org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: Edufu, 2005. p. 15-30.
  • 41
    NASCIMENTO, Beatriz. Por uma história do homem negro. In: RATTS, Alex (Org.). Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto Kuanza, 2007. p. 94. (publicado originalmente em: Revista de Cultura Vozes, v. 68, n. 1, p. 41-45, 1974.)
  • 42
    Ibidem.
  • 43
    BRUGGER, Silvia. Clara Nunes: o canto como missão. RECIIS, Rio de Janeiro, v. 4, n. 3, p. 103-117, set. 2010; SANTIAGO JR., Francisco das C. F. Imagens do candomblé e da umbanda: religiosidade e etnicidade no cinema brasileiro (1974-1984). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.
  • 44
    ANSART, Pierre. As humilhações políticas. In: MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (Org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: Edufu, 2005. p. 20.
  • 45
    O rebaixamento do sujeito a um nível de objeto que desencadeia uma dimensão de perda está na base do processo humilhante. Cf. AZEVEDO, Ana Vicentini. Da humilhação à sublimação: a vida da fantasia na psicanálise e na literatura. In: MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (Org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: Edufu, 2005. p. 49-84.
  • 46
    Pretendemos, no futuro, desenvolver uma pesquisa acurada sobre a questão da imagem do negro nos escritos de inúmeros intelectuais negros desde o jornal O Quilombo até os anos 1970. Essa investigação será fundamental para verificação das interpretações expostas neste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2011
  • Aceito
    10 Abr 2012
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