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RESENHA

Lauro F. B. da SilveiraI; Rosana M. FigueiredoII; Carlos H. de C. GonçalvesIII; Juliano César da SilvaIV

IProfessor Assistente Doutor do Departamento de Filosofia da UNESP - 17525-900 - Marília - SP - Brasil

IILicenciada em Filosofia. Bolsista de Aperfeiçoamento e Pesquisa do CNPq - 17525-900 - Marília - SP - Brasil

IIILicenciando em Filosofia. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq - 17525-900 - Marília - SP - Brasil

IVLicenciando em Filosofia. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq - 17525-900 - Marília - SP - Brasil

ECO, U., SEBEOK, T. A. (Orgs.) O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1983.

Introdução

A obra O signo de três é uma compilação de vários artigos elaborados por autores de diversas áreas do saber, confrontando o método de investigação do personagem de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes, e o argumento abdutivo de C. S. Peirce. O resultado desse embate não poderia ser mais interessante: a análise cognitiva estudada à luz do conhecimento interdisciplinar põe a nu os processos metodológicos e científicos utilizados na ficção.

Para não trair a originalidade da obra, será mantido seu caráter antológico, inclusive com suas possíveis repetições. E, a cada capítulo se dedicará um pequeno resumo comentado, reservando as críticas ao momento da conclusão.

1 Um, dois, três, uberdade desta vez - Thomas A. Sebeok

As tríplices correlações parecem povoar o cosmo e o universo da cultura. Elas foram escolhidas, por filósofos e cientistas, para explicarem fenômenos de fundamental importância. E sua grande vantagem parece ser a sua capacidade autogerativa e expansiva; já que a presença de um terceiro correlato interpreta a relação dos outros dois e abre a potencialidade de continuidade do ciclo interpretativo. Este é o tema explorado por Thomas Sebeok e que motiva o título do próprio livro.

Peirce, com a evolução de seu quadro categorial, ao propor as noções de primeiridade, secundidade e terceiridade, organiza a totalidade do universo fenomênico, aprofunda as relações triádicas e permite mostrar sua aplicabilidade aos mais diversos domínios do real. Outros autores, contudo, igualmente exploram tais relações: Lotz, ao estudar em Lingüística o sistema vocálico; Gamow, ao sugerir a existência do código trigêmio na informação hereditária; e Murray Gell-Mann ao propor para os quarks o modelo óctuplo de constituição de famílias de octetos.

A tríade, no entanto, pode já ser encontrada nas propostas de Kant e Hegel. O primeiro, ao agrupar sob quatro tópicos as 12 categorias do entendimento, considerando três casos formalmente relacionados entre si em cada um daqueles tópicos, e o segundo com os famosos três momentos constitutivos do processo dialético.

A escolha da tripartição encontra-se presente, também, na base da teoria psicanalítica freudiana, em noções tais como as de Ego, Id e Superego.

2 "Você conhece meu método": uma justaposição de Charles Sanders Peirce e Sherlock Holmes - Thomas A. Sebeoke e Jean Umiker-Sebeok

O artigo se elabora a partir de um jogo de cena. Peirce e Holmes parecem se opor um ao outro: o primeiro, um cientista fundador de uma importante teoria semiótica, defende a lógica do levantamento de hipóteses para sustentar qualquer empreendimento racional; o outro, um homem prático, personagem de ficção detetivesca, rejeita iniciar qualquer investigação sustentando previamente qualquer hipótese.

Porém, acontece que Peirce, ao menos num caso narrado por ele mesmo, desvenda um roubo devido ao seu poder de observação e ousadia em conjecturar. Enquanto Sherlock Holmes faz, ao longo dos romances, preciosas digressões técnicas de semiótica.

Em comum a ambos se encontra o máximo cuidado na observação dos detalhes. E se Sherlock não admite submeter-se a hipóteses prévias, isso decorre da atitude preconceituosa e convencional que tal submissão provoca em quem a elas se submete: policiais, investigadores profissionais e cidadãos comuns, estes últimos representados por Dr. Watson.

A abdução proposta e explorada por Peirce, à qual, em sua teoria, também denomina retrodução, seria aceita e praticada por Sherlock Holmes e a convergência entre ambos seria muito acentuada. Percebe-se esta convergência, quando o investigador, no caso, Sherlock Holmes, raciocina a partir de um evento e prevê suas conseqüências. Mas também e, principalmente, quando este mesmo investigador, a partir de um fato dado consegue remontar às suas fontes. Este modo de raciocinar é denominado pela personagem de "raciocinando para trás".

Em comum, também, pode-se destacar que ambos tinham conhecimento da prática médica. Esta exige, e freqüentemente exercita, as virtudes fundamentais do investigador, sendo o raciocínio retrodutivo imprescindível para o levantamento de hipóteses diagnosticas.

3 Sherlock Holmes: psicólogo social aplicado - Marcello Truzzi

Na introdução, o texto levanta a tese: "a imagem de Sherlock Holmes como epítome da explicação da racionalidade e do método científico ao comportamento humano é, certamente, um fator fundamental do talento do detetive para conquistar a imaginação do mundo" (Eco & Sebeok, 1983, p.59). A rara força dessa imagem produziu um tão alto grau de aceitação por parte do público leitor que muitos assumiram-na como uma realidade palpável; além de, ao mesmo tempo, alimentarem literariamente seu próprio desenvolvimento.

Essa aceitação decorre da capacidade da personagem de colocar a argúcia a serviço das soluções de problemas concretos e, aparentemente pouco importantes: a solução de crimes, a identificação de pessoas comuns segundo seus hábitos de vida, seus afazeres, interesses e problemas. A inteligência, através de um método atencioso, sustenta o acesso possível às grandes descobertas. Essa inferência teve repercussão inclusive na própria área da criminalística: a realidade colhendo na ficção diretrizes importantes de atuação.

O famoso método aqui promovido partiria do senso comum, trabalhando-o pela acuidade da observação e síntese da imaginação. Assumiria a possibilidade de se construir o todo a partir da observação dos fragmentos. Consistiria freqüentemente num processo publicamente comunicável, de articular conhecimento, observação e dedução.

Com efeito, considerando o universo uma trama única e determinística, para o cabal esclarecimento de um fato é necessário ter disponível um conhecimento das mais diversas áreas do real. Deste modo, o que parece estranho e inverossímil, à primeira vista, encontra na trama do real sua explicação determinística.

O fato, de seu lado, exige atenção total para ser observado e o máximo controle por parte do observador para não fazer intervir seus temores, desejos e preconceitos.

Pela análise dos fatos, é possível remontar às suas causas, embora tal processo ofereça grandes dificuldades. Mais fácil seria deduzir, a partir das causas, seus efeitos; mas na decifração de um crime, o processo inverso é fundamental.

A abdução ou retrodução, como lógica de levantamento de hipóteses; a dedução, como processo inferencial necessário das conseqüências experimentais das hipóteses e a indução, como estratégia lógica de verificação dessas conseqüências, embora sem a pretensão de superar o falível, produzem elas próprias o fundamento que confere objetividade às suas conclusões. Se se procurar aplicar a abdução defendida por Holmes às exigências lógicas dos três tipos de argumento peirceanos, percebe-se que várias falhas ocorreriam no raciocínio do detetive, a maioria por falta de rigor.

Por sua vez, o sucesso das investigações do detetive, à luz da lógica de investigação científica, dependeria em grande parte da trama construída da narrativa. Não fosse sua elaboração literária, muitos casos encaminhados segundo a lógica de Sherlock não teriam encontrado a solução dada.

Quanto à compreensão psicológica das motivações humanas, que fazem de Sherlock um exímio perscrutador das intenções, o artigo mostra que o detetive guarda um ceticismo de fundo quanto às relações sociais. E recorre às minúcias nas personagens para inferir suas motivações, não deixando de considerar o comportamento dos animais domésticos, já que informam sobre seus donos. Além disso, Holmes é extremamente sensível à personalidade feminina pois, diante do jogo de sedução que as mulheres são capazes de exercer, é necessário redobrar o autocontrole para não se deixar iludir.

Embora procurasse a justiça, Sherlock permitia-se violar as normas sociais sobre os direitos à privacidade. Ele compartilhava os preconceitos da sociedade vitoriana, fazendo restrições às minorias. Contudo, o detetive era um analista de caracteres e, deste modo, avaliava as motivações dos crimes que ocorriam: nos crimes sem motivação, via os mais difíceis de serem esclarecidos; naqueles praticados por um médico, os melhores a serem dissimulados. Sherlock, com seus estratagemas, recorre a livres associações, antecipando o que mais tarde se considerará o fazer aflorar o inconsciente.

4 Chaves do Mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes -Carlo Ginsburg

Em seu artigo o autor examina o que se chama de "modelo conjectural para a construção do conhecimento". Segundo ele, esse modelo se baseia na utilização de pistas aparentemente irrelevantes tornando-as centrais para tal construção. Além disso, data o aparecimento do modelo conjectural em fins do século XIX, mas cujos primeiros sinais de suas origens podem ser detectados nos caçadores pré-históricos.

Como exemplo desse modelo conjectural, temos o de Giovanni Morelli: o "método Morelli" era utilizado para avaliar a autenticidade de obras através da verificação de detalhes de pouco interesse estético. A crítica o achava mecânico ou meramente positivista. Deve-se ressaltar que tal método é considerado próximo ao da filologia.

Os livros de Morelli parecem ser verdadeiros arquivos policiais, aproximando-o do método adotado por Holmes - interpretação de detalhes, inclusive anatômicos. É provável que Conan Doyle tenha conhecido os trabalhos de Morelli, este também médico. Freud considerava este método próximo da Psicanálise; e também manifestava interesse em Sherlock Holmes - reconhecendo na Psicanálise, em Sherlock e em Morelli, minúsculos detalhes que fornecem a chave para uma realidade mais profunda, inacessível por outros métodos.

Os estudos voltados para o indivíduo são sempre antropocêntricos e etnocêntricos, mas a influência da ciência de Galileu levava o século XVII a procurar mais caracterizar tipos do que descobrir individualidades, desenvolvendo com isto a História Natural. Começam, inclusive, as tentativas de aplicação do "método galileano", fundamentado na Matemática, às atividades sociais, principalmente quando suscitavam questões demográficas (uso da estatística). Predomina, contudo, a abordagem qualitativa entre as ciências humanas, sobretudo na Medicina. As classificações não eram freqüentemente aplicadas e todo conhecimento era indireto e conjectural, não se podendo sequer provar a eficácia do procedimento médico. A presença da prática, da tradição e da observação dos casos era fundamental.

A Enciclopédia marca a apropriação burguesa desse tipo de conhecimento generaliza-se a coleção sistematizada de pequenos achados, permitindo grandes descobertas (ver Eco & Sebeok, 1983, p.35-41). E a ciência reconhece a contribuição que pode receber desse método.

O método Morelli, baseado no caráter identificador dos traços mais ínfimos dos detalhes anatômicos na pintura, coincide com o aumento da extensão do poder do Estado sobre os indivíduos, quando então se recorre ao cadastramento de seus mínimos traços individualizadores. Um exemplo significativo disso são as impressões digitais e, mais recentemente, o mapeamento do código genético como recurso de identificação dos indivíduos. No cerne do paradigma conjectural ou semiótico está a concepção de que a realidade é opaca, mas há certos pontos - pistas, sintomas - que nos permitem decifrá-la. Assim, chega-se à Psicanálise e ao pensamento aforismático (nome tomado da obra de Hipócrates), em que as opiniões sobre a sociedade são tomadas com base em sintomas, pressupondo que essa sociedade esteja enferma.

O paradigma oferece a vantagem de um "rigor elástico", de difícil formulação e aprendizado, exigindo a chamada intuição - saltar do conhecido ao desconhecido. Ela tem origem nos sentidos, com base nos quais os extrapola.

5 Suposição: sim ou não? Eis a questão - Massimo A. Bonfantini e Giampaolo Proni

Comparar o procedimento de Sherlock Holmes, na descoberta do assassino em Um Estudo em Vermelho, com a lógica de investigação de Charles Sanders Peirce, é a tarefa à qual se dedicam M. Bonfantini e G. Proni.

Os autores procuram a nítida correspondência mantida entre Sherlock e Peirce: o primeiro parte de um processo indutivo inicial, caracterizado pelo conjunto das primeiras observações; o segundo segue o processo abdutivo de levantamento de hipóteses, capaz de identificar possíveis causas de eventos resultantes. Em seguida, deduzem-se as conseqüências necessariamente inerentes às hipóteses formuladas e passa-se a experimentar, na situação concreta, tais conseqüências. Esta semelhança não pode, porém, fazer que se desprezem as diferenças do método adotado por Peirce e Holmes.

Sherlock defende com veemência a necessidade de se "raciocinar retrospectivamente" (Eco & Sebeok, 1983, p.138), o que corresponderia a adotar a abdução, a qual ele denomina análise. O fato, porém, de a abdução em Peirce procurar leis gerais já se diferencia, à primeira vista, da procura de Holmes de uma causa específica, individualizada, para um evento geralmente específico.

As hipóteses de Sherlock Holmes encontram apoio nas ciências experimentais, na classificação de produtos e mercadorias, na observação dos hábitos da vida cotidiana e no senso comum. Medem-se todas pela simplicidade e eficiência, sendo da ordem da resolução de quebra-cabeças e não da hermenêutica, como interpretação de fatos "opacos". A personagem evita, pois, embarcar em suposições, mantendo-se no nível das evidências.

Contrastadamente, a preocupação de Peirce é com a hipótese arriscada e criativa, não podendo se livrar do exercício da suposição. Ao não aceitar a propalada simplicidade das impressões dos sentidos, Peirce considera abdutivas todas as etapas do processo de conhecimento. O grau de complexidade dos fenômenos levaria a se estabelecer diversos tipos de abdução: daqueles simples, que somente identificam um objeto sem uma definição, àqueles que exigem a elaboração de uma idéia nova para explicar um fato desconhecido e não aceitadamente representado. Neste caso, fica evidente a aceitação necessária de um risco para se lançar a hipótese.

Pode-se, assim, concluir e enumerar três tipos de abdução: quando a passagem do resultado ao caso se faz quase automaticamente; quando a lei que permite a passagem pertence a uma enciclopédia disponível; e quando essa lei necessita ser inventada. A base que sustenta a possibilidade da abdução é, para Peirce, o instinto ou "luz natural". Decorrem eles da inserção da inteligência numa natureza em constante evolução, à qual pertencem também os objetos do conhecimento. Garante-se, deste modo, uma base de realidade às conjecturas que fazemos. Os autores deste capítulo, contudo, prefeririam trocar a luz natural por luz cultural, a fim de evitar a adoção da tese da transmissão de caracteres adquiridos.

6 Peirce, Holmes, Popper - Gian Paolo Capretini

Se a história de detetive for uma fábula, que consiste na produção de sintomas, é evidente que o leitor, convidado a decifrá-los, sentir-se-á obrigado a tomar constantes decisões. Isto se faz em vários níveis com a variação do grau de evidência dos sintomas.1 1 A tradicional distinção entre signo e sintoma, sendo o primeiro baseado na artificialidade, arbitrariedade e convencionalidade, e o segundo na naturalidade, não-arbitrariedade e motivação, não é inteiramente satisfatória no que concerne aos textos aqui considerados, pelo menos se pretendemos uma distinção rigorosa. A dificuldade inerente a tal abordagem surge de modo mais flagrante quando se trata de casos de simulação, ou seja, produção voluntária de sintomas. Pensemos, por exemplo, em uma pegada na areia. Mesmo que pareça um caso evidente de signo natural, há a possibilidade de que, em uma circunstância determinada, tenha sido intencionalmente produzida de modo a desviar o rumo de uma investigação. Depende de uma hipótese interpretativa, da decisão (motivada) de o detetive considerá-la ou signo ou um sintoma. Por exemplo, Vali, o assassino, deixou uma pegada no peitoral da janela para fazer crer a todo mundo que ele teria escapado desse modo. Naturalmente, a simulação, como produção de uma realidade fraudulenta, ainda que não totalmente infundada, baseia-se na coerência e na probabilidade das pistas que fabrica. No caso da situação acima, suas incongruências acabaram por voltar-se contra a pessoa que havia originalmente produzido a falsa pista (Eco & Sebeok, 1983, p.152). Deve-se lembrar que o autor conceitua signo, sintoma e índice de maneira diversa da aceita. Por índice ou indícios considera as diversas marcas deixadas no ambiente. Os sintomas são baseados na naturalidade, motivação e acrescem aos índices uma função designativa de uma causa. E aos signos reserva-se um sentido convencional. A consideração da presença e da ausência sintomática de indícios é que diferencia Sherlock Holmes do Dr. Watson e dos detetives de polícia.

Esse valor sintomático decorre da hipótese levantada para elucidar um caso. É aí que se requer o cuidado para se interpretar indícios como sintomas. A própria distinção entre signo intencionalmente produzido e sintoma natural precisa ser tomada com cuidado, dada a dissimulação possível de indícios.

No caso de um crime cometido, invariavelmente, Dr. Watson, por descuido na análise dos indícios, se engana diante dos estratagemas usados pelo assassino. Suas confusões servem, sobretudo, de contraponto para mostrar as diferenças entre os pontos de vista interpretativos dele e de Sherlock. Não se deixar confundir pela aparente coerência dos indícios é a atitude de Sherlock; ou seja, é a de não se deixar levar pela conclusão de que o número de indícios para explicitar um caso é completo. Mas a tal dissimulação atinge o próprio Holmes diante de alguns inimigos.

A racionalidade de Sherlock encontraria seu eixo não na dedução, como foi por ele declarado, mas num processo imaginativo controlado que aproxima abdução de indução. Tal processo procura encontrar uma explicação natural, verificável diante do contexto. Isto supõe, com base em um ponto de apoio sólido, uma escolha feliz de dados. Uma hipótese inicial, submetida à prova dos fatos, poderia dar origem a outras hipóteses e com isto aproximar-se da verdade dos fatos.

Estes últimos não supõem uma única interpretação possível. Eles apontam para direções diferentes conforme o ângulo do qual são observados. O fato em história de detetive transforma sintoma em signo, fechando-se alternativas (daí a ilusão de fato seguro). Mas nem todo fato tem a mesma capacidade de produzir diferenças em sua extensividade: alguns permitem inferências locais e somente alguns, inferências globais.

A gradação das inferências distingue o procedimento de Sherlock do de Dr. Watson. O último salta rápido de zonas de verossimilhança a zonas de mistério, do óbvio a casos sem solução. Para Sherlock, contudo, é uma questão de abdução. Além do poder de dedução ou abdução e de observação, Sherlock é capaz de recorrer a um vasto estoque de conhecimento dirigido para sua atividade de detetive.

À desordem do crime, Sherlock opõe a desordem do conhecimento. Mas o conhecimento de Sherlock tem a ordem (caleidoscópica) de uma enciclopédia. E tal conhecimento não basta, pois é necessária uma atividade de afastamento diante dos sentimentos e emoções. Assim, é possível conhecer o modo de representar os outros e não se deixar influenciar pela aparência.

7 Sherlock Holmes em confronto com a Lógica Moderna: para uma teoria de obtenção de informação através do questionamento - Jaakko Hintikka e Merril B. Hintikka

8 Sherlock Holmes formalizado - Jaakko Hintikka

Os capítulos 7 e 8 se complementam e articulam-se mutuamente, procurando conferir ao procedimento de Sherlock Holmes um tratamento proveniente da Lógica Moderna. Além de substituir as proposições gerais por questões, os autores do primeiro artigo supõem a presença de um fundo tácito de informações verdadeiras, necessárias e universalmente acessíveis ao qual remeteria todo questionamento.

Enquanto a filosofia considerar que a lógica só lida com tautologías, em nada contribuirá para que se obtenha um aumento de informação sobre a realidade. Sherlock Holmes, através do relato do Dr. Watson, julga que seu método de dedução e análise traz informações, contribuindo para o aprimoramento da prática de investigação.

Através do questionamento, produzem-se premissas adicionais com base em uma massa desclassificada de informação de fundo, somando-as às informações colhidas através de conclusões deduzidas de premissas do senso comum: explicita-se a informação tácita, derivada da dedução sherlockiana. Deve-se, assim, criar um contexto conceitual adequado para discutir e avaliar este procedimento.

Traduzindo toda informação anterior em respostas às perguntas, conclui-se que o processo de avaliação do "conhecimento tácito" é controlado pelas perguntas que servem para extrair essa informação para a atualidade.

A melhor pergunta pode ser aquela de maior poder informativo. Cabe, agora, estudar as perguntas, as respostas e suas inter-relações. As respostas às perguntas irão se constituir em premissas para o conjunto inter-relacionado de conclusões.

As perguntas freqüentemente decorrem de combinações das respostas às questões, com conclusões produzidas de premissas lógica ou temporalmente anteriores.

Dada a impossibilidade de se dispor do conjunto completo de informações para que se constituam premissas e, muito especialmente, em casos complexos da vida real em que se envolvem detetives, tem-se que encontrar meios de se obter progressivamente as informações necessárias para a obtenção de tais premissas. Freqüentemente, parte das informações de fundo que permitem as premissas e as conclusões intermediárias é inconsciente. Há, pois, lugar para um processo inconsciente de elaboração, sendo que a percepção implica a coleta de informações e não acesso direto a impressões sensíveis não estruturadas.

Conclusões também podem levar à busca de dados, permitindo que o raciocínio percorra o caminho inverso pelo qual se vai das premissas às conclusões.

Para que se obtenha informações, baseando-se em questões e deduções, pode-se pensar o processo como um jogo proposto à natureza e um armazenamento da informação tácita do investigador, contando-se pontos segundo os tableaux de Beth (1955). Quanto mais informativas forem as questões, menos pontos são perdidos até que se possa chegar à conclusão esperada.

Segundo Jaakko Hintikka, "... a habilidade de um brilhante e aplicado raciocinador é uma opção bastante estratégica. Consiste em colocar questões estrategicamente corretas, isto é, questões cujas respostas resultam ser mais informativas e abrem canais futuros de outros questionamentos bem-sucedidos" (Eco & Sebeok, 1983, p.189). A teoria matemática dos jogos ou, como seria melhor, a teoria da estratégia, é atualmente o melhor instrumental disponível, sendo capaz de estabelecer as seqüências de perguntas-respostas: jogam o investigador e a natureza e adotam-se, para registro contábil, os tableaux de Beth. Um bom exemplo da aplicação desse jogo pode ser dado ao se analisar o raciocínio de Sherlock Holmes em Silver Blaze (exemplo -idem, p.194).

A tradutibilidade mútua de questão-resposta e dedução mostra que se está trabalhando num sentido compatível com a declaração de Sherlock Holmes.

9 O arcabouço do modelo de detetive: Charles S. Peirce e Edgar Alan Poe - Nancy Harrowitz

A abdução é uma teoria desenvolvida para explicar um fato preexistente. Você observa um fato, e a fim de explicitá-lo e compreendê-lo, busca em sua mente um vislumbre de teoria, uma explicação. Resta testar a nova hipótese.

A abdução é literalmente a base necessária que antecede a codificação de um signo: ela cria uma nova idéia. Em Peirce, abdução remete a algo tomado como regra: a lei ou regra da Natureza ou outra verdade geral (incluindo também a experiência pública ou particular).

Poe constrói o hiper-real - o contexto inusitado e quase maravilhoso, em que ocorrem os fatos narrados - por via da ratiocination. Este é um estado da mente que permite as abduções, através de um trabalho raciocinante. A presença da razão se faz manifestar, superando as emoções alteradas. Supõem-se a presença de conhecimentos prévios e um agudo poder de observação, daí ser possível formular abdutivamente a regra que subsume o caso.

Escapando ao domínio da regra, não basta o cálculo para se inferir conclusões. É necessário, na linguagem de Poe, recorrer à análise - essa decorre da observação de inúmeros indícios, e permite que surja um processo abdutivo. Para a ocorrência deste último interferem, corretamente, várias causas. A resolução de um crime exige que seja sempre mantida uma visão do todo e que se prove que as impossibilidades aparentes são possíveis.

A ratiocínation envia ao jogo de ruminação ("musement") peirceano, o qual exige tempo e paciência para que as idéias se aproximem uma das outras. A questão é, para Peirce, quais as teorias e conceitos que devemos acolher (Robin, 1967, p.61).

10 Chifres, cascos, canelas: algumas hipóteses acerca de três tipos de abdução - Umberto Eco

Neste artigo, o autor utiliza três metáforas para ilustrar o princípio abdutivo. Chifres para Aristóteles, cascos para Zadig de Voltaire e canelas para Sherlock Holmes.

Uma boa definição, segundo Aristóteles, apenas diz "o que uma coisa é e não que uma coisa é. Contudo, dizer o que uma coisa é também significa dizer porque é assim, ou seja, conhecer a causa de ser assim" (Eco & Sebeok, 1983, p.220).

Em sua lógica, preferivelmente parte-se de uma proposição universalmente verdadeira para toda uma classe de substâncias para se concluir que o que é predicável de toda classe e necessariamente predicável de qualquer uma das classses incluídas, ou mesmo de um indivíduo que a ela pertença. Toda explicação que conseguir inserir-se nesse processo inferencial dirá com plena necessidade para uma espécie de seres - espécie, podendo ser, logicamente, considerada uma classe - aquilo que puder ser deduzido de sua definição.

No mundo empírico, para Aristóteles, para explicar fatos surpreendentes tornase necessário encontrar uma causa que os explique e que sirva de termo médio para uma demonstração (silogismo). Aparece, deste modo, a causa final como explicativa de certas propriedades dos animais. A escolha do termo médio e da definição significa a escolha do que deve ser explicado.

Nos estudos realizados por Aristóteles sobre os animais, por exemplo, depois de descrever e tentar bem definir os portadores de chifres, propõe-se explicar a formação de chifres como meio de proteger o ruminante, já que estes não apresentam outros meios de defesa, tais como dentes incisivos superiores. A inadequação de tais dentes a um animal herbívoro faria que se deslocasse para a formação de chifres o material que para outros animais seria dedicado à arcada dentária. Na causa final - como a preservação da espécie - presidiria a forma assumida por aquela mesma espécie. "Chifres são, portanto, a causa final da falta de incisivos superiores. Desse modo, podemos dizer que os chifres são responsáveis pela falta de dentes" (Idem, p.221).

Esse procedimento lógico coincide com o que Peirce denomina hipótese ou abdução. Aristóteles admitia, conforme a escolha da propriedade do deãniens, definições diferentes do deãníendum. Se a apagoge, para Aristóteles, não procedia de uma função definitória, para Peirce, ela coincide com a abdução, exercendo um papel em todo o conhecimento, mesmo na percepção (Peirce, 1974, v.5, §181) e na memória (Idem, v.2, §625). Na verdade, a apagoge equivale ao modelo epistemológico aristotélico para aqueles casos nos quais não era possível dar-se uma definição completa por gênero e diferença específica. Nesse modelo, quando não se obteve a essência completa do deãníendum, recorre-se à observação do mundo empírico, e nela escolhem-se os aspectos (propriedades) que mais se adequem aos propósitos do próprio conhecimento. O termo médio já não é mais a essência, mais um conjunto de predicados.

Continua existindo a questão crucial da escolha do termo médio, que varia conforme as circunstâncias das observações: o grau de imposição deste termo segue freqüentemente critérios de regularidade e normalidade. A abdução pode conduzir de fatos surpreendentes a uma lei geral, ou de fatos particulares a um outro fato, desde que tal condução seja explicativa. No primeiro caso, a explicação diria respeito à natureza do universo, e no segundo, à dos textos. Esta distinção talvez se reduza a um único tipo de abdução para o qual ou o texto é lido como universo, ou o universo como texto.

De fato, outras divisões poderiam ser preferíveis para classificar as abduções: as hipercodifiçadas, as hipocodificadas, as criativas e as metaabdutivas. Nas abdutivas hipercodificadas, o código permitiria representar uma classe de fenômenos, sendo de tal maneira unívoco que a interpretação se faria quase automaticamente. Nas demais, o trabalho interpretativo se faria com maior risco e participação do investigador. Na abdução hipocodificada haveria a necessidade de uma escolha entre regras equiprováveis de interpretação. Na abdução criativa, a lei precisaria ser inventada ex novo; e nas metaabdutivas, dever-se-ia decidir se o próprio universo possível delineado por abduções coincidiria com o universo de nossa experiência.

A personagem Zadig, de Voltaire, relaciona-se com os três tipos de abdução: as hipercodificadas, as hipocodificadas e as metaabdutivas, somente não se relacionando com as criativas. Enquanto a estas se relaciona Sherlock Holmes, Zadig colhe os dados do universo e o constrói como um texto; ele fala do universo empírico como se fosse um universo imaginário, como se estivesse contando uma história, quando então entra em choque com as expectativas das pessoas que querem informações sobre o mundo real. Ele se nega a fornecê-las por não admitir que as inferências por ele produzidas sejam de fato reais. Sherlock Holmes, por outro lado, parte dos fatos encontrados no meio e os arranja como se estivesse montando um texto de ficção; remete as evidências encontradas nesse texto ao mundo empírico, com plena convicção de que elas sejam adequadamente elucidativas. Para o total sucesso do empreendimento da personagem, colabora o escritor que elimina as alternativas indesejáveis.

Grande parte das abduções de Sherlock pode ser classificada como pertencente às criativas. Essas recriam meios para explicar os fatos, mas se deslocam para as metaabdutivas, pois ele crê firmemente que a ordem das idéias e de suas conexões corresponde à ordem da realidade a ponto de denominar dedução suas hipóteses. Sherlock Holmes, diferentemente do falibilismo de Peirce e das dúvidas de Zadig, nunca erra.

A abdução para Peirce se encerra no universo sempre falível da experiência. Pretende explicá-lo, mas para isso corre o risco de sempre vir a falhar. A infalibilidade jamais será um predicado da ciência.

Conclusão

Ao longo desse estudo, notou-se que a relação entre a "abdução peirceana" e o que se passou a chamar "método sherlockeano" é analisada através da visão particular que cada autor a ela destina em seus respectivos textos. Nestas visões, os autores delimitam o campo do que é abdução, pesquisam a lógica do pensamento do detetive e, por fim, procuram a possibilidade de existir uma semelhança entre aqueles dois modos de proceder.

A abdução, dentro das três formas de raciocínio propostas por Peirce, é a única que inaugura uma idéia nova. Ela permite formular um prognóstico geral, mesmo sem garantias de resultados bem-sucedidos. Holmes, ao dizer que nunca faz suposição ou que não mantém um constante uso dos processos perceptivos e hipotéticos, se engana, pois é justamente o contrário que ele mais faz. É através de suposições que a personagem consegue retroceder dos resultados às fontes dos fatos. Com alto grau intuitivo, constitutivo da abdução, Sherlock congrega indícios até ser capaz de formular suas hipóteses.

É importante ressaltar que, nesse estudo, Jaakko Hintikka foi talvez o único autor que partiu de um ponto de vista não da abdução mas de um processo indutivo permitido pela lógica formal. Trata-se de uma alternativa interessante que, contudo, não parece retirar nada do valor real da abdução, apresentado ao longo da obra O Signo de Três. Se o método do questionamento evita a suposição de uma lei geral para explicar os eventos, requer, no entanto, um fundo infalível de verdade que compreenda a toda e qualquer questão!

  • 1 BETH, E. W. Semantic entailment and formal derivability. Mededilingen van de Koninklijke Nederlandse Akademie van Wetenschappen, Afd. Letterkunde, N. R., v.18, n.13, p.309-42,1955.
  • 2 ECO, U. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985a.
  • 3 ______. Escrito a O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985b.
  • 4 ECO, U., SEBEOK, T. A. (Orgs.) O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1983.
  • 5 PEIRCE, C. S. Collected Papers of C S. Peirce. Cambridge, MA: Harvard University, v.1-6, 1974; v.7-8, 1958.
  • 6 ROBIN, R. S. Annotated catalogue of the papers of Charles S. Peirce. Worcester, MA.: The University of Massachusetts Press, 1967.
  • 7 VOLTAIRE, F. M. A. Contos / Voltaire. Trad. M. Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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    A tradicional distinção entre signo e sintoma, sendo o primeiro baseado na artificialidade, arbitrariedade e convencionalidade, e o segundo na naturalidade, não-arbitrariedade e motivação, não é inteiramente satisfatória no que concerne aos textos aqui considerados, pelo menos se pretendemos uma distinção rigorosa. A dificuldade inerente a tal abordagem surge de modo mais flagrante quando se trata de casos de simulação, ou seja, produção voluntária de sintomas. Pensemos, por exemplo, em uma pegada na areia. Mesmo que pareça um caso evidente de signo natural, há a possibilidade de que, em uma circunstância determinada, tenha sido intencionalmente produzida de modo a desviar o rumo de uma investigação. Depende de uma hipótese interpretativa, da decisão (motivada) de o detetive considerá-la ou signo ou um sintoma. Por exemplo, Vali, o assassino, deixou uma pegada no peitoral da janela para fazer crer a todo mundo que ele teria escapado desse modo. Naturalmente, a simulação, como produção de uma realidade fraudulenta, ainda que não totalmente infundada, baseia-se na coerência e na probabilidade das pistas que fabrica. No caso da situação acima, suas incongruências acabaram por voltar-se contra a pessoa que havia originalmente produzido a falsa pista (Eco & Sebeok, 1983, p.152).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Jan 1995
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