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Conhecimento e ação: uma leitura de Popper

RESENHAS

Jézio Hernâni Bomfim Gutierre

Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação - UNESP - 17500 - Marília - SP

MENDONÇA, W.J.P. - Conhecimento e ação: uma leitura de Popper. Rio de Janeiro, Loyola, PUCRJ, 1981. 120p.

A crítica recente a Popper tem, em linhas gerais, incidido sobre o que se pode chamar não rigorosamente "o conflito entre Popper e o real". Como, pergunta-se, uma epistemologia assentada sobre base empírica convencionada pode pretender a absorção da realidade através de um esquema formal que seleciona teorias não apenas inverificáveis como (ponto freqüentemente descurado) infalsificáveis conclusivamente? Como sustentar uma epistemologia que, pela rigorosa distinção entre o "quid facti" e o "quid júris", não leva em conta a ampla contextuação cultural determinante de sua gênese, objetivos e, por que não, de seu desenvolvimento e estrutura? No estuário de questões como estas, distintas mas interrelacionadas, chega-se à conclusão de que o sistema de Popper é uma epistemologia idealizada - sob este aspecto, indiferenciável do neo-positivismo ortodoxo - incapaz, a nível metodológico, de retratar ou suplementar a prática científica real e, a nível filosófico e epistemológico, de dar conta dos problemas da teoria do conhecimento que se propõe, em particular da questão da apreensão do mundo real. É sobre esse pano de fundo e no que ele evoca que se desenrola boa parte dos ataques marxistas (e.g., M. Quintanilla in "Idealismo y Filosofia de la Ciencia") e a conhecida polêmica entre Popper e Habermas ("Der Positivismusstreit in der Deutschen Soziologie", 1969).

O trabalho de Wilson Mendonça, sem deixar de enveredar por um ângulo original, aproxima-se dessa linha crítica. Mas, desde já salienta-se que o objetivo de Mendonça não se restringe a uma crítica do pensamento popperiano, seu objetivo é positivo: defender uma teoria explicativa do conhecimento científico a partir de sua remissão ao contexto que lhe serve de gênese e utilização, contexto que, no caso, é o das ações executadas em comum para assegurar a vida do grupo social em um meio ambiente adverso (p.7). Na consecução desse objetivo, Mendonça incorpora a filosofia de Popper dado que, a seu ver, tanto a metodologia popperiana (formulada desde 1934 em "Logi der Forschung") como sua "epistemologia evolucionista" ("Objective Knowledge", 1972) podem ser aprofundadas até que fique clara a relação entre o conhecimento e esquemas de ação instrumental dirigidos à reprodução das condições de sobrevivência. Nesse sentido, Mendonça reconhece sua dívida para com Popper e encara seu próprio trabalho como um desenvolvimento de resultados fornecidos pelo sistema popperiano, o que justifica a justa posição de uma contribuição positiva a um comentário exegético. A ruptura entre ambos se dá quando Popper se opõe ao instrumentalismo e pragmatismo propugnando uma versão descritivista do conhecimento frente à verdadeira estrutura da realidade, vertente, segundo Mendonça, contraditória com o restante da doutrina popperiana.

Delineados os pontos de concordância e divergência, Mendonça inicia sua investigação esboçando o caminho seguido por Popper até a restrição da epistemologia à metodologia. Esse resultado encadear-se-ia à critica popperiana (L.d.F.) aos neopositivistas e a Kant. Ambos teriam delineado processos de formação teórica e admitido um conhecimento de cunho justificacionista. Em Popper, a descoberta de teorias é questão efeita à psicologia e não à filosofia do conhecimento, enquanto a opção justificacionista apresenta - especificamente em Kant e neo-positivistas - comprometimentos metafísicos insustentáveis. Assim, abandonando a questão da origem das teorias e desviando-se das dificuldades do justificacionismo, a epistemologia popperiana implicada restringe-se à investigação do método que rege a avaliação do "status" científico de idéias concorrentes (já existentes), método composto por regras convencionadas (evidenciando a ausência de um fundamento último). Essa metologia convencional pretende reconstruir a teoria do conhecimento em novas bases, almejando (1) elucidar os procedimentos dos cientistas "segundo as exigências que definem internamente a ciência" razão porque é uma "lógica da pesquisa", e (2) reduzir os problemas do conhecimento (princípio de causalidade, verdade, universalidade das leis, fatos naturais, etc.) à interpretação metodológica metafisicamente neutra. Desde que o método cientifico preocupa-se tão somente com a relação lógica entre enunciados, Mendonça infere que o Popper de 1934 é pouco elucidativo do ponto de vista filosófico, com o que, supõe, chega a concordar Popper ao afirmar que "não se deve esperar verdades profundas por parte da metodologia" ("Lógica", p.54). Nesses termos, é compreensível que não se possa, nos limites do discurso científico, dar uma resposta à já aventada questão da formação teórica ou, em outras palavras, "de porque temos tido sucesso em explicar o mundo". Essa questão seria metafísica e, enquanto tal, ao menos na "Lógica", transcenderia o debate racional. Para Mendonça, essa postura é inaceitável, não apenas por denotar um vínculo patente com o cientificismo neo-positivista, mas especialmente por se chocar com o objetivo pré-estabelecido por Mendonça. O problema da formação teórica necessariamente daria ensejo ao interesse pelo meio onde ocorre a gênese do conhecimento, e uma teoria que se limite à análise sintática dos enunciados científicos não pode dar conta da interrelação entre o contexto social e a atividade cognitiva. Mas, Mendonça reconhece que os resultados da metodologia popperiana são valiosos para uma orientação epistemológica que pretenda conciliar os aspectos práticos e epistemológicos do conhecimento. A obra de Popper forneceria elementos que poderiam ser "arrumados" (sic) de modo a fazer justiça à "continuidade essencial entre os atos praticados na pesquisa e as ações sociais que visam a autoconservação" (p. 28), ainda que se reafirmando que a discussão do conhecimento ultrapassa os limites da metodologia, Esse uso não ortodoxo do sistema de Popper só é possível porque, segundo Mendonça, a concepção estritamente metodológica da epistemologia conduziria à interpretação instrumentalista.

Para assegurar que os enunciados científicos formulados em linguagem formal possam relacionar-se com a realidade, Popper alega que somente a experiência poderia decidir entre sistemas logicamente possíveis. Não obstante a teoria estar presente na preparação, controle e interpretação da experiência, o acordo entre realidade e teoria a transcende pela possibilidade de confrontação com fatos independentes. A experiência relevante no processo de decisão é composta por fatos reprodutíveis por qualquer um (exigência de objetividade), o que tem como contrapartida lógica o requesito de que as proposições científicas tenham a forma de enunciados estritamente universais: só assim as teorias científicas, enquanto negações ou proibições de enunciados existenciais, seriam sensíveis ao crivo dos fatos. Mendonça sustenta que afirmar que algo não ocorre (como o faz uma teoria científica) é fornecer paralelamente uma regra proibitiva para a ação experimental, uma regra para a manipulação de efeitos reprodutíveis. Isso daria lugar ao que Mendonça denomina "modo pragmático" de enunciação de leis (p.34). A lei de conservação de energia, por exemplo, poderia ser formulada alternativamente como: "não se pode construir um moto-contínuo". Tem-se aí o primeiro sinal do teor instrumentalista em que recairia a epistemologia de Popper. De fato, se as teorias assumem o papel de negações de enunciados existenciais, ou de efeitos reprodutíveis, elas nada dizem sobre aqueles enunciados que aceita ("Lógica", p.86). Desse modo, as teorias só "descreveriam" o mundo no sentido de que possibilitam a ação bem-sucedida na manipulação das coisas, tornando-se conjuntos de regras para a ação na realidade. Em vista disso, o realismo popperiano na "Lógica" não pode passar de uma força de expressão, e a rigidez da fissura entre a dimensão teórica e instrumental da ciência cai por terra. A resistência de Popper a estas conclusões não apenas contraditaria sua aquiescência da indistinguibilidade lógica das noções de teste, predição e explicação, como desestabilizaria segmentos importantes de seu próprio sistema. Quanto a este último ponto, Mendonça enfoca especificamente o caso da escolha dos enunciados de teste, ou básicos. A questão que se coloca é: sendo os enunciados básicos tão testáveis quanto os enunciados teóricos, como justificar a sua aceitação sem incorrer numa regressão infinita? Popper reconhece que o regresso infinito só é sustado por uma decisão, decisão não arbitrária dado que regida por regras. Mas Popper é muito lacônico na estipulação dessas regras, não subtraindo a vaguidade inerente ao processo de escolha. Para Mendonça, a designação dos enunciados básicos só se esclarece com a incorporação da faceta pragmática da pesquisa científica: os enunciados básicos traduzem informações obtidas no curso de ações bem-sucedidas onde o critério de sucesso remonta à utilidade da informação para a sobrevivência da espécie dentro do aprendizado adaptativo, o que justificaria dizer que, em última instância, as teorias são selecionadas conforme seu valor adaptativo (p. 63-4). Mas não é apenas a questão da seleção dos enunciados básicos que se elucidaria por meio dessa perspectiva pragmática - que anteciparia as linhas da epistemologia evolucionista popperiana -, ainda por este meio, Mendonça julga possível eliminar o que de arbitrário parecia haver na fixação de todas as convenções metodológicas de Popper: a prescrição de que a nova teoria dê conta dos casos explicados pela teoria anterior decorreria da necessidade de preservação do comportamento prático no decorrer da pesquisa; a proibição de alterar o significado dos termos ocorrentes nos enunciados mais básicos derivaria da necessidade pragmática de correspondência entre o comportamento na pesquisa e o habitual na linguagem ordinária, e assim por diante. Enfim, o Popper sustentável, necessariamente deveria integrar-se a um fundamento utilitarista e pragmático. Entretanto, o desenvolvimento intelectual do Popper posterior à "Lógica" toma direção oposta. Após o impacto da teoria tarskiana da verdade, Popper abandona sua posição metafisicamente neutra e o uso sintático do conceito de verdade. Já em "Conjecturas e Refutações" (1963), encontra-se a verdade como conceito semântico e as teorias científicas não apenas como proibições, sendo avaliadas em termos de sua aproximação da verdade. Efetivamente, aí residiria a maior objeção de Popper à valorização dos aspectos práticos da pesquisa: o processo de desenvolvimento científico consistiria no encaminhamento gradual rumo à verdade absoluta. Evocado por Mendonça, um primeiro obstáculo a essa perspectiva reside em que só uma comparação direta com os fatos em si poderia avalizar a aproximação à verdade, pré-condição desde logo inatingível posto que, em Popper, não se pode comprovar a maior adequação da teoria com a realidade senão a partir de um conhecimento básico, ele próprio composto por teorias, lembrando também que um dos itens acentuados pela crítica popperiana ao empirismo lógico é o da evidenciação de que inexistem fatos "puros", não contaminados teoricamente. Contudo, Popper superaria esta crítica sustentando, com Tarski, que a transposição semântica de uma linguagem para a sintaxe de sua metalinguagem permite falar de correspondência sem supor um acordo "pictórico" entre linguagem e fatos. Tal concordância só seria exigível caso se pleiteasse um critério de verdade, mas não é esse o obj etivo de Popper para quem a verdade serviria não enquanto critério mas como idéia regulativa que dá partida ao movimento da ciência, fornecendo ao pesquisador a compreensão global do sentido de suas investigações. Não obstante essa possível réplica, Mendonça acredita que persista o compromisso metafísico com uma realidade em si na firme distinção popperiana entre fatos e normas. Popper admite que esta dualidade é fundamental para a manutenção do realismo e empirismo e a sustenta com base em que os fatos existem independentemente de nossas discussões ao passo que as normas ou padrões são criados na medida em que se decida por sua adoção. Mendonça (com Habermas) vê nisso um traço tardio de neo positivismo que o próprio Popper parecia haver descartado ao evidenciar que a base do conhecimento repousa sobre uma realidade interpretada (p.88).

Ainda pretendendo atestar os problemas que advém da inclusão do realismo no sistema popperiano, Mendonça analisa como Popper sustenta a interpretação realista do progresso do conhecimento sabendo-se que a teoria da verdade objetiva não fornece critérios. Popper expõe uma lista de casos onde uma teoria seria considerada uma melhor aproximação da realidade (mas simples, mais precisa, etc.). O que Mendonça observa é que esses indicadores de progresso já estão presentes na "Lógica", onde Popper não se compromete com a existência de fatos naturais, o que sugere que se esteja igualando os resultados de uma metodologia metafisicamente neutra à verossimilhança. Popper, na verdade, estaria incidindo em um erro que ele mesmo denunciou quando da "Lógica": a hipostasiação de critérios metodológicos (corroboração, fatos como efeitos reprodutíveis) em conceitos metafísicos (p. 97).

Assim, a inclusão do realismo não apenas se afasta da postura constatada na "Lógica" (neutralidade metafísica) como a antagoniza. O que teria levado a uma guinada tão profunda e influente nos trabalhos ulteriores de Popper? Para Mendonça, a motivação para este fato decorre de exigências da filosofia política popperiana. A noção de verdade absoluta funcionaria como antídoto contra o relativismo epistêmico e o pragmatismo sobre os quais repousariam as tendências políticas totalitárias. Daí decorreria que a adição do realismo e o afastamento do instrumentalismo (só possível, como foi dito, pela inclusão da noção semântica da verdade) é artificial, contrariando o ideário original da metodologia popperiana, ideário que Mendonça vê novamente permeando a chamada "epistemologia evolucionista", desenvolvida após 1960.

Foi dito anteriormente que, na "Lógica", a formação do conhecimento era tópico totalmente desprezado. Mas em "Objective Knowledge" (1972) Popper já apresenta uma teoria de aquisição teórica. Os indivíduos teriam a disposição inata de procura de regularidades, visando a antecipação das reações do meio ambiente. Nesse contexto, o conhecimento do mundo é identificado a um fenômeno biológico que visa a adaptação ao meio o que o torna, enquanto tal, biologicamente controlado: as antecipações sobre o meio ambiente são selecionadas, mantidas ou eliminadas pelo próprio meio, conforme o método de tentativa e erro, o que é válido tanto para o conhecimento humano como para o animal. O que irá distinguir a evolução humana da animal é que, a nível animal, as antecipações ao meio (mutações) são selecionadas pela morte, enquando no nível humano, fazendo-se uso da consciência, linguagem e pesquisa, pode-se evitar a aplicação de um comportamento que leve ao fracasso antes de sua implementação. O papel da pesquisa científica nesse processo de adaptação ativa consiste em contribuir (ao lado da consciência e da linguagem) para a separação das expectativas do meio vivo em que tiveram origem, facultando seu tratamento como coisas, criando, assim, o "conhecimento objetivo". Entretanto, se o interesse teórico destaca as expectativas e as seleciona mais eficazmente, nem por isso deixa de incorporar um esquema de ação originado da procura de adaptação biológica, partilhando do mesmo processo que rege a evolução orgânica: conjectura e refutação, erro e eliminação. Por isso, se Mendonça reconhece uma distinção entre interesse prático e teórico, minimiza essa autonomia dado que o sentido das teorias coincide com as possibilidades tecnológicas - instrumentais - dirigidas ao esforço adaptativo.

Contra a tese da continuidade entre a pesquisa e processos adaptativos, Popper alega que, embora tenha origem em meio ao processo de adaptação, o interesse teórico chega até mesmo a produzir resultados contra-adaptativos (O.K., 253). Mendonça replica fazendo uso de outro texto de Popper onde re-releva que a pesquisa e as teorias a ela associadas resgatarão o homem da posição de "estranho e amedrontado" num mundo que não fez (O.K., 285), ou seja, propiciando ao homem um poderoso instrumento adaptativo. Para Mendonça, essa incapacidade de Popper em articular as dimensões teórica e prática do conhecimento - entrevista pelas citações conflitantes -, se não justificável, é compreensível de vez que sendo a autoconservação um fenômeno estritamente biológico, e mantida a continuidade entre o teórico e o prático, não haveria como distinguir entre ação guiada por fins e ação instintiva. Destarte, não seria sustentável a proposta popperiana de um acréscimo cognitivo regulado por procedimentos críticos (p. 115). A superação do problema suscitado pela tensão entre continuidade e desvinculação das esferas prática/biológica e teórica, teria sido fornecida, segundo Mendonça, por Habermas em "Conhecimento e Interesse". Para Habermas, o interesse que comanda a pesquisa deriva ao mesmo tempo da natureza (realização dos instintos) e da ruptura cultural com a natureza (libertação da coação da natureza). Ainda que não se desvincule o interesse cognitivo das necessidades vitais, não se perde de vista que a evolução humana é qualitativamente diferente da evolução orgânica. Sustenta Habermas que, no homem, a auto-conservação não é fenômeno puramente biológico mas um fato contextuado pela evolução social, é um fenômeno histórico pois seria a sociedade que determinaria o que é bem viver.

Após a análise da filosofia popperiana e de posse do substrato instrumentalista que ela lhe fornece, Mendonça chega aos resultados finais de sua investigação. Do ponto de vista crítico: o trabalho de Popper pode ser prolongado sem rupturas, de modo a esclarecer a relação entre o conhecimento e os esquemas de ação instrumental. A inclusão do realismo no sistema popperiano acarretaria o desvirtuamento de seu encaminhamento original. Do ponto de vista doutrinário positivo: estrutura-se uma epistemologia que integra o conhecimento e a ação, encarando os processos cognitivos como um refinamento dos mecanismos pragmáticos de adaptação, e a realidade como resultado de um processo de objetivação da experiência que remonta à ação prática.

Sem pretender uma prospecção minuciosa do projeto epistemológico de Mendonça - a nosso ver, relevante e fértil - gostaríamos de tocar rapidamente em um ou dois aspectos mais problemáticos da sua leitura de Popper. Uma primeira observação deve ser feita quanto à suposta incipiência filosófica da metodologia contida na "Lógica". Se Popper afirma que não se deve esperar verdades profundas da metodologia ou das regras metodológicas convencionadas, isso se dá pelo lema sempre presente, em Popper, de que as convenções são dogmas e apenas o que fazemos com elas tem algum interesse. Na verdade, as convenções metodológicas só têm importância na medida em que contribuam para a resolução dos problemas filosóficos, processo claramente descrito por Popper em L.Sc.D., p.55. A reinterpretação (mais que hipostasia) dos problemas filosóficos em problemas de método forneceria a chave para sua solução.

No que respeita às razões que levaram Popper a incluir a noção de verdade objetiva em seu sistema, parece-nos não ter sido suficientemente evidenciado que a filosofia política tenha sido o motor preponderante. Permanece mais plausível o que Popper afirma autobiográficamente: a aceitação da noção só não havia sido incorporada em 1934 pelos problemas que pareciam afetá-la e que foram dirimidos com o advento da teoria de Tarski. Mas acreditamos que essa questão não seja crucial e, se Mendonça a menciona, o faz com o intuito de indicar o que a inclusão da noção de verdade tem de artificial, como se fosse uma imposição externa a um sistema de outra forma consistente. Nem tão irrelevante é outro tópico relacionado à verdade como correspondência, desta feita envolvendo a apontada incongruência entre a admissão popperiana de uma realidade interpretada e a proposta independência dos fatos. A exigência de que as teorias sejam comparadas a fatos independentes (considerada por Habermas, com a concordância de Mendonça, como último resquício, em Popper, da "problemática positivista viva" (p.88) não deve ser superestimada: estes fatos permanecem contaminados teoricamente, eles são independentes apenas no sentido de que não haviam sido levados em conta quando da emergência da teoria - evitando-se assim uma explicação teórica "ad hoc" (cf. sec. XVIII de C&R) -, mas jamais teriam sido selecionados do contínuo caótico do universo sem a aplicação da teoria. Nesse sentido, poder-se-ia trivialmente concordar com H. Albert em que "a teoria da verdade como correspondência de modo algum vem ligada a fatos nus" (p.89) acrescentando-se apenas a ressalva "na utilização que dela faz a prática da ciência", dado que, do ponto de vista da metafísica especulativa, Popper assume certamente uma realidade em si. Mas, seguramente a problemática relacionada à inclusão do conceito semântico de verdade e do realismo em Popper exigiria tratamento muito mais amplo, ultrapassando os limites dessas notas.

De qualquer forma, os comentários acima denotam tão somente que o texto de Mendonça é conscientemente polêmico e dá ensejo a discussões que se espalham por toda a extensão do sistema de Popper. Resta dizer que a contribuição de Mendonça é trabalho competente, propiciando um elemento relevante dentro da literatura disponível sobre Popper.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2011
  • Data do Fascículo
    Jan 1984
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