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Significação & metáfora: algumas reflexões sobre as relações entre literatura e sociedade

ARTIGOS

Significação & metáfora: algumas reflexões sobre as relações entre literatura e sociedade* * Este texto, aproveitando algumas análises incluidas em meu A Metáfora Crítica, publicado pela Editora Perspectiva, serviu como base para algumas discussões acerca das relações entre Literatura e Sociedade, desenvolvidas no I Seminário Brasileiro de Teoria Literária promovido pela Universidade Federal de Pernambuco, em Outubro de 1973.

João Alexandre Barbosa

1. Desde a segunda metade do século XI X tornou-se possível discutir a validade das preocupações sociais do poeta.

Por isso, a afirmação de John R. Harrison de que "somente a partir do fim do último século tem havido qualquer separação entre as atividades do artista e o estudo da sociedade"(1 (1 ) Em The reactionaries. Yeats. Lewis. Pound. Eliot. Lawrence. A study of the Anti-Democratic Intelligentsia. New York : Schocken Boods, (1967), p. 15. ) aponta para um problema mais complexo.

Na verdade, esta separação é um dado pós-romântico que não se desvincula da crise da significação na literatura. Mais ainda: a questão parece relacionar-se com a própria consciência pós-romântica do texto literário como objeto verbal, expressando-se pelo princípio da auto-referencialidade que faz da obra um sistema gerador de significações não a partir de suas relações com a realidade mas desde o momento em que suas articulações sofrem a crítica interna de seus fundamentos.

Neste sentido, a crítica da realidade passa a ser dependente da crítica da linguagem que o texto literário é capaz de exercer. Em trecho de Octavio Paz, pode-se encontrar finamente formulado o problema:

"É algo, diz ele, comum a todos os poetas de todas as épocas mas que, desde o romantismo, converte-se no que chamamos consciência poética: uma atitude que não conheceu a tradição. Os poetas antigos eram menos sensíveis ao valor das palavras que os modernos; em troca, foram quanto ao significado. O hermetismo de Gongora não implica uma crítica do sentido; o de Mallarmé ou o de Joyce é, antes de tudo, uma crítica e, às vezes, uma anulação do significado. (...) . O poema não tem objeto ou referência exterior; a referência de uma palavra é outra palavra. Assim, o problema da significação da poesia se esclarece desde que se observa que o sentido não está fora senão dentro do poema: não que dizem as palavras, mas naquilo que se dizem entre elas"(2 (2 ) Cf. "Qué nombra la poesía", em Corriente alterna. México: Siglo veintiuno editores, (1967), p. 5. ).

Deste modo, vê-se como a pergunta pelo que nomeia a poesia (título do texto de Octávio Paz) é dependente da questão de se saber qual o grau de transitividade da obra literária. Ou, para dizer de outro modo, até que ponto é possível refletir acerca da obra enquanto objeto significante e enquanto trânsito de significado. Transitividade e intransitividade da obra ou, para usar os termos consagrados por Ferdinand de Saussure, sincronia e diacronia, ou ainda, como prefere Mikel Dufrenne, estrutura e sentido.

De qualquer forma, trata-se de saber em que medida é possível falar de significação do texto literário.

Deixando-se de lado aquelas teorias formuladas no século passado e que se fundam em critérios de circunstancialidade (incluindo-se aí todo o Positivismo Crítico), é possível discernir algumas linhas de reflexão sobre o problema fundadas no que se poderia chamar de critérios de literariedade.

2. Foi, como se sabe, Roman Jakobson quem, em ensaio de 1919, utilizou-se desta última expressão para designar os objetivos dos estudos literários.

"O objeto da ciência da literatura, dizia ele, não é a literatura mas a literariedade (literaturnost), isto é, o que faz de uma obra dada uma obra literária"(3 (3 ) Em "A nova poesía russa". Cito pela trad. franc. de Tzvetan Todorov, em Poétique, 7 (1971), p. 290. ).

Tomando-se emprestada a designação jakobsoniana, pode-se dizer que são teorias da literariedade todas aquelas que buscam, pelos estudos das diversas obras, definir a especificidade do objeto literário, procurando marcar em que difere e como é realizado.

Propensas, como é natural, ao estudo instrínseco do texto literário, estas teorias, no entanto, deixam ver de que modo é procurada a significação do texto literário não mais enquanto elemento externo mas enquanto componente da própria organização.

Pode-se dizer que, para estas teorias, a significação deixa de ser dada na relação circunstância-autor-obra-leitor para ser apreendida através do deciframento das articulações entre significante e significado que vêm a constituir o signo literário específico.

Está claro, todavia, que estas articulações, no que concerne às obras artísticas, à diferença do que ocorre num nível lingüístico puramente descritivo, realizam-se através de relações sempre aproximadas de som e sentido - confirmando o que já era percebido por Paul Valéry quando ele falava em hesitação entre som e sentido como constituindo o fundamento da operação poética.

Ora, são precisamente estas relações aproximadas que vão definir aquilo que, sobretudo depois do livro famoso e decisivo de William Empson, passou-se a chamar generalizadamente de ambigüidade(4 (4 ) Cf. Seven types of ambiguity. Edinburgh: A New Direction Book (1974). ). Ou de plurisignation, como quer Philip Weelwright(5 (5 ) Cf. The burning fountain. A study in the language of symbolism. Bloomington: Indiana University Press, (1968). ), ou de "informação paradoxal da ambigüidade", na expressão de Gilio Dorfles, ou ainda de "abertura" como prefere Umberto Eco(6 (6 ) Cf. Símbolo, comunicación y consumo. Trad, de Maria Rosa Viale. Barcelona: Editorial Lumen, 1967 e Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Editora Perspectiva, (1968). ).

Em qualquer dos casos, entretanto, está a idéia fundamental, já formulada por John Stuart Mill, de que a linguagem utilizada pela atividade literária faz valer aqueles elementos de conotação que, fugindo ao rigor da denotação, conferem um valor plural, e não unívoco, à expressão literária(7 (7 ) Cf. "The two kinds of poetry", em Mill's Essays on Literature and Society. Ed. with an introd. by J. B. Schneewind. New York: Collier Books, 1965. ).

Assim sendo, a significação do texto literário seria determinada pela própria variação semântica imposta aos seus termos pela estruturação ambígua dada aos elementos de organização da obra.

A significação do texto literário estaria assim em função da menor ou maior abertura de seus valores conotativos, ampliando a referência e tornando complexa a nomeação da palavra "em estado de dicionário".

Por outro lado, nesta ampliação e neste movimento de tornar mais complexo os valores denotativos residiria a significação do texto literário como forma de conhecimento que, numa linha de acentuada tendência aristotélica, preenche a maior parte das indagações dos chamados "new critics" norte-americanos, para os quais a significação do texto literário é dependente daquilo que ele comunica - como se pode ler em críticos tão diversos quanto Cleanth Brooks(8 (8 ) Cf. "What does poetry communicate ?", em The well wrought urn. New York: Harcourt, Brace & World, Inc., (1947). ), Allen Tate(9 (9 ) Cf. "Literature as Knowledge", em Essays of four decades. New York: William Morrow & Co., Inc., (1970) (O ensa-io é de 1941. ) ou Kenneth Burke(10 (10 ) Cf. "Literature as equipment for living", em The philosophy of literary form,. Studies in simbolic action. New York: Vintage Books, (1957). ).

3. Desta maneira, através dos exemplos mencionados, pode-se verificar como o conceito de significação do texto literário é, por assim dizer, interiorizado, passando a fazer parte da estrutura mais profunda da obra.

Não é mais o estímulo exterior que preocupa a quem procura captar a significação do texto mas o seu tratamento enquanto material da organização da obra.

Sendo assim, prefere-se falar em processo de significação do que em significação do texto tout court. É o que ocorre, por exemplo, com Roland Barthes quando afirma:

".. . entendo sempre significação como processo que produz o sentido e não este sentido em si"(11 (11 ) Cf. "Littérature et signification", em Essais critiques. Paris: Éditions du Seuil, (1964), p. 260. ).

De modo semelhante, mas a meu ver bem mais rico, o estruturalismo tcheco dos anos 30 e 40, sobretudo através a obra de Jan Jukarõvsky, tratou do problema falando em "processo de formação do sentido" ou em "gesto semântico".

Na verdade, num ensaio de 1936, somente agora traduzido para o inglês, o crítico tcheco aborda a função estética, a norma e o valor como fatos sociais, procurando esclarecer a questão do significado do texto literário em suas vinculações com a forma, como se pode depreender do seguinte trecho:

"Na verdade, os elementos formais da pintura são fatores semânticos exatamente como os elementos lingüísticos o são na literatura. Porém, por si mesmos, eles não estão presos por qualquer conexão material a um certo aspecto mas, como elementos numa obra musical, eles carregam energia semântica potencial que, emanando da obra total, indica uma certa atitude ante o mundo da realidade"(12 (12 ) Em Aesthetic function, norm and value as social fasts. Transi, from Czech, with notes and afterword by Mard E. Suino. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1970, p. 102. ).

A partir de um relacionamento desta ordem, é possível, portanto, procurar elucidar o problema da significação do texto literário sem, por um lado, cair no esvaziamento daquilo que, no texto, é comunicação da experiência de uma personalidade, nem, por outro, exarcerbar os vínculos entre o texto e a circunstância.

É o que se pode ler em trecho bem mais recente:

"A obra de arte, diz Mukarõvsky, é, sem dúvida, um signo muito complexo: cada um de seus elementos, cada uma de suas partes é o veículo de um significado parcial. Estes significados parciais acumulam-se até formar o sentido geral da obra. E somente quando o sentido geral da obra está concluído, a obra artística converte-se num testemunho da relação do autor com a realidade e num convite ao indivíduo perceptor para que se interesse na realidade, como um todo, sua relação particular, emotiva, intelectiva e volitiva a um só tempo. Todavia, antes que o perceptor chegue a descobrir o sentido geral, deve examinar o processo de formação deste sentido geral. E o processo (... ) é a substância da obra"(13 (13 ) Em "O strukturalismu", Studve z estetiky. Cf. Milan Jankovic, "La obra como realización de un sentido", em Linguistica formal y critica literaria. Trad, de Maria Esther Benitez. Madrid: Comunicación 3,(1970), p. 131. ).

4. Creio que o processo delineado até aqui é suficiente indicação para o fato, sublinhado no início, da dependência entre o separar-se "as atividades do artista e o estudo da sociedade" (Harrison) e uma perspectiva, por assim dizer, de suspeita quanto à significação do texto literário.

Passando-se a ver na circunstância não um condicionante (à maneira do Positivismo Crítico) mas um elemento que, transformado pela linguagem da obra, passa a fazer parte da forma, o estudo das relações entre o texto e a sociedade desloca-se do que, em fins da década de 40, o manual de Wellek/Warren chamava de "modo extrínseco" no estudo da literatura, para o nível da análise formal.

Mesmo porque é sempre possível estabelecer, de um ponto de vista rigorosamente hermenêutico, como faz E. D. Hirsch, distinções entre o significado (meaning) que está numa obra enquanto sistema de linguagem e a sua significação (significante) com referência aos valores simbólicos que incorpora e para os quais ela aponta com relação ao espaço cultural e à tradição(14 (14 ) Cf. "Objective interpretation", em Validity in interpretation. New Heven: Yale University Press, (1967), p. 211. ). No primeiro caso, sempre de acordo com Hirsch, ter-se-ia o campo da interpretação e, no segundo, o da crítica.

A passagem de um momento para o outro, assim como da sincronia para a diacronia, parece ser o eixo da tarefa que pretenda apanhar o texto literário como sistema de convergência em que os espaços interiores e exteriores são, por assim dizer, resolvidos pela instauração de um "espaço literário" (Maurice Blanchot) que os solda indissoluvelmente.

Entre um e outro, está claro, perpassa o sentido da historicidade que termina por conferir coerência à literatura enquanto sistema sincrónico de obras que, não obstante sua singularidade, se intercomunicam num incesante processo de transmisão de valores que lhes conferem uma razão de ordem cultural.

(Quando utilizo o termo historicidade estou a mil léguas de pensar em historicismo - esta doença infantil do estudo da literatura. Penso, isto sim, no modo pelo qual a História, o sentido da História, é internalizado, 'consumido", pelo texto literário). A isto, A. J. Greimas chamaria de isotopía ou Lucien Goldmann de homología. Não importa aqui, para o caso, a alcunha: importa o que, sob ela, se esconde.

5. E o que se esconde é o que leva ao fulcro daquilo que estes apontamentos pretendem comunicar, ou seja, indagar pelas possibilidades de um estudo das relações entre literatura e sociedade.

Não um "método sociológico" de abordagem do texto literario, pois isto seria fugir à arena em que estas reflexões se colocam, passando dos estudos literarios para a Sociologia, mas conservando-se sob o signo da literariedade, tentar pensar o mecanismo de relações entre texto e sociedade.

Está claro que existe uma Sociologia da Literatura, mas esta, como observa Antonio Cândido, "não propõe a questão do valor da obra, e pode se interessar, justamente, por tudo que é condicionamento. Cabe-lhe, por exemplo, acrescenta o ensaista, pesquisar a voga de um livro, a preferência estatística por um gênero, o gosto das classes, a origem social dos autores, a relação entre as obras e as idéias, a influência da organização social, econômica e política etc. É urna disciplina de cunho científico, sem a orientação estética necessariamente assumida pela crítica"(15 (15 ) Cf. "Crítica e sociologia (tentativa de esclarecimento)", em Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, (1965), p. 5. ) .

O que, entretanto, está na mira destas reflexões é algo diverso: não a Sociologia da Literatura mas o modo pelo qual o dado externo, tido antes como condicionante, "importa, para ainda utilizar as expressões de Antonio Cândido, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno"(16 (16 ) Idem, ibidem. (17) Para uma discussão mai s acurada do problema, é fundamental a obra Rornanticism and Consciousness. Ed. by Harold Bloam. New York: W. W. Norton, (1970). ).

Por isso mesmo, o que se fez anteriormente foi vincular a separação das atividades do artista e o estudo da sociedade por intermédio da problematização do próprio significado do texto que, de exterior, passa a interior através de vários e diferentes approachs críticos.

Ora, nada melhor para tornar mais técnica a questão, do que se pensar, por exemplo, na metáfora - elemento privilegiado como mediador entre o texto literário e a realidad.

6. Na verdade, a utilização da metáfora, por um movimento de saturação (semelhante ao da redundância vocabular, já estudado por Max Bense, e que se encontra, por exemplo, num poema como "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade) pode perder o seu valor original de mediação entre realidades já conhecidas que se revelam numa nova, para se constituir, por si mesma, um procedimento estético enquanto sistema auto-orientado.

Por outro lado, esta direção para si mesma não se efetiva senão sob o risco de uma perda de nomeação, isto é, a metáfora deixando de ser mero elemento mediador, ganhando resistência lingüística, não diz mais do que a relação tenor/vehicle (para usar os termos de I. A. Richards) pode dizer enquanto elemento de um texto específico.

Em casos extremos - como o de João Cabral, por exemplo -, a desmontagem da metáfora utilizada pode vir a ser um recurso de articulação entre a construção do texto e a realidade por ele instaurada. Nesse sentido, um recurso retórico tanto quanto a escolha vocabular, ou o uso da rima. Mas cuja singularidade, à diferença dos últimos, está em responder a uma instigação que tem de ver com a própria evolução do poema moderno.

7. Não é de espantar, por isso, que seja em Baudelaire que se vai encontrar, de modo mais ou menos sistemático, a primeira manifestação moderna de saturação metafórica.

De fato, em meados do século XIX, como já se insinuou, o poeta já não podia apenas utilizar a tradição: ele, para continuar criando, tinha que reduzí-la ao nível de consumo poético pela descoberta da crise de seus valores (67) .

A metáfora baudelaireana ainda é possível: a inadequação entre linguagem e mundo pode ser resolvida em termos de spleen, de viagem, de morte, porque na partlha existencial é o mundo que é vergastado.

E a metáfora, para o poeta, é o açoite privilegiado.

Cobrindo o mundo, está salva a linguagem do poema e, com ela, a maldição do poeta é reduzida às proporções do individualismo desajustado.

Para isso, no entanto, é preciso que a metáfora, seja literalmente um artifício, um recurso retórico, através do qual o mundo não revela senão a face ultrajada e vencida pela linguagem do poema e arte do poeta. O que se pretende não é desmascarar o mundo mas recobrí-lo com a metáfora que lhe deu existência poética e, portanto, o venceu.

"A verdade da poesia - afirma Michael Hamburger - torna-se inseparável do que Oscar Wilde chamou 'a verdade das máscaras"(18 (18 ) Em The truth of poetry New York : Harcourt, Brace, Jovanovich, (1969), p. 59. ).

Quando, por exemplo, Baudelaire retoma a imagem do Cisne como servindo de mediação entre a poesia e a existência do poeta prisioneiro das contingências(19 (19 ) Cf. Mme. E. Noulet, em Mallarmé, Oeuvres Complètes. (Paris) : Bibliothèque de la Pléiade, NRF , (1956), p. 1460. ), constrói o seu texto através do esquema saturação/individuação (isto é, a imagem romântica à Vigny é repassada pelos valores do poeta urbano e maudit).

Da mesma forma, enquanto Corbière e Laforgue se desfazem da metáfora poética pela imersão no coloquialismo e na ante-poesia, repercutindo, mais tarde, em Eliot e Pound, mas agora já indicando uma outra ordem de problemas, Mallarmé paga o seu tributo à temática do Cisne, transformando a metáfora romântica em comentário intrínseco do poema.

8. Assim, o Cisne de Baudelaire, aquele com que o artista se identificava enquanto preso e incapaz de vôo, não é o de Mallarmé: o deste é o Cisne que deixou de ser simples termo de metáfora e se transformou, por força da memória,

"Un cygne d'autrefois se souvient que c'est lui

Magnifique mais qui sans espoir se délivre

Pour n'avoir pas chanté la région où vivre

Quand du stérile hiver a resplendi l'ennui",

em consciência de uma ciência realizada no exílio.

Exílio do mundo? Exílio da experiência humana, vivida?

Não, antes o da palavra buscada que se esconde por sob a "agonia branca" do "cygne" - homófono de "Signe", signo, palavra(20 (20 ) A idéia de vincular os dois termos homófonos está em Henri Peyre, na análise didática que fez do poema em The poem itself. Ed. by Stanley Burshaw. New York: Schocken Books, 1967, p. 55. ).

"Tout son col secouera cette blanche agonie

Par l'espace infligée à l'oiseau qui le nie,

mais non l'horreur du sol où le plumage est pris.

Fantôme qu'à ce lieu son pur éclat assigne

Il s'immobilise au songe froid de mépris

Que vêt parmi l'exil inutile le Cygne".

É a partir deste interstício entre a metáfora e sua recuperação, por assim dizer, "falida" que se instaura o poema. Não apenas consciência e canto - mas ciência exilada. Má consciência, se se quiser.

Publicado em 1885, o soneto - segundo os editores do poeta - ".. . talvez nasceu de uma imagem antiga tomada de empréstimo a Gautier nos Émaux et Camées:

"Un Cygne s'est pris en nagean

Dans le bassin des Tuileres(21 (21 ) Mondor, Henri e Aubry, Jean G., em Mallarmé, Op. cit. p. cit. )".

Não importa o rigor das origens: como não ver naquele "cygne d'autrefois" a reminiscência baudelaireana?

A negação do espaço, que está no segundo verso do primeiro terceto, não serve também de comentário à negação da poesia pela ação de Rimbaud?

A inutilidade do exílio do "Cygne" é também a do "Signe": a metáfora da impossibilidade do canto e do vôo, em Baudelaire ou em Gautier, é, pela redundância, a do poema, do poeta e sua arte.

Por se desdobrar assim em comentário intrínseco, a metáfora é reabilitada como processo capaz de "donner un sens plus pur aux mots de la tribu", como está dito em Le Tombeau d'Edgard Poe.

9. Desta maneira, as relações entre o poeta e a realidade não apenas se realizam através do poema, por sua mediação: antes de chegar à realidade pelo poema, este cons trói a sua realidade através da qual, na qual, as "palavras da tribo" são recuperadas intransitivamente, ao mesmo tempo que abrem o trânsito para a diacronia. De outro modo, como emergir daquele pesadelo da História que Dedalus/ Joyce, muito mais tarde, consumirá no Ulysses*?

A negação pode ser assim uma estratégia de realização: incluindo explicitamente o seu contrário, aquilo que a obra diz está nas dobras de suas oposições.

Quer dizer: deixando de ser uma metáfora do poema para ser uma metáfora para o poema, o Cisne de Mallarmé consome a história do topos na medida mesma em que se consome. E se o seu significado, nos termos já mencionado de E. D. Hirsch, pode ser apreendido no espaço do poema enquanto poema, a sua significação somente é esclarecida a partir do relacionamento com a tradição, por assim dizer, moderna.

10. Todavia, veja-se bem, o que possibilita a significação não está fora do texto: é a própria discussão interna do topos, agora travestido em tropo, que lhe confere validade. Para dizer tudo: a metáfora é agora a metalinguagem de uma reflexão diacrônica.

Neste sentido, pode-se dizer que o exercício metafórico não é mais apenas uma vinculação entre realidades anteriores dando como resultado uma nova: no conjunto do texto, a metáfora é a realidade sobre a qual se discute em termos de poema. E, para a sua discussão, importa tanto nomear quanto sugerir desde que não é de uma possível aura que o seu efeito surge mas de sua própria relevância enquanto componente estético do texto. E - o que é sobremodo importante - esta relevância não é conferida a partir de um sinal positivo, isto é, o valor da metáfora enquanto tropo, mas a partir de uma negação de sua viabilidade como instrumento de representação. A sua "relevância enquanto componente estético do texto" é dada assim em termos de recusa de seu valor tópico.

Da mesma maneira que a redundância vocabular pode realizar a configuração de um espaço poético, assim a saturação metafórica (no texto e da tradição por ele recolhida) pode indicar, por negação, a possibilidade de um contexto poético que perdure para além de sua aceitação.

"Je profere la parole, pour la replonger dans son inanité" - afirma Mallarmé pela voz de Igitur(22 (22 ) Op. cit. p. 451. ).

11. O que o texto instaura, portanto, é urna parole destinada à inanição: inserto na Historia, na tradição, o poeta repensa, e não apenas replonge, os termos de seu jogo - os seus dados que jamais podem abolir o acaso. Mesmo porque a ação de recolocar exige a reflexão sobre um espaço anterior. Mas ele não foge ao seu espaço: a resposta é buscada por entre os restos de linguagem que o procedimento poético definiu como poema. E não é no ensaio, no comentário, na nota, que está a procura: ela se encontra por entre os modos de aproximar-se da própria linguagem do poema.

Por isso, falou-se antes em metalinguagem ou, para ser mais explícito, na própria realização textual como atividade auto-orientada inserta na elaboração do texto.

Não há, contudo, metalinguagem ali onde não está presente a consciência de uma História que obriga à reflexão acerca dos valores postos em jogo. E, no caso da literatura, sendo de linguagem estes valores, é a própria historicidade da linguagem que, afinal, se discute. Ou, se se preferir, a permanência dos valores da linguagem enquanto instrumento hábil de captação da realidade experimentada pelo escritor.

Desconfiando dessa permanência, o escritor não apenas cria o seu texto mas pensa um texto anterior absorvido pela historicidade de sua condição. O eixo de interseção sincronia/diacronia não é mais apenas realizado pelo leitor, pelo crítico, mas sofre a orientação prévia do próprio texto que lhe serve de sustentação. No caso específico do soneto de Mallarmé, a saturação metafórica termina por ser uma estratégia de saturação histórica: a sua decifração pelo leitor requer o trânsito diacrónico para que a sua intransitividade se revele no espaço construído pela reflexão do poeta acerca dos valores da linguagem de que se utiliza.

12. Desta maneira, dando um salto em direção da diacronia imposta pelo texto, a significação do poema é fisgada na medida em que o seu significado é percebido sincronicamente, isto é, por intermédio da desmontagem de sua sintaxe figurativa.

Quem lê a figura é o leitor: mas ela só será completa desde que se saiba uma re-leitura, isto é, uma decifração daquilo que o poeta codificou em termos não mais de linguagem-objeto mas de metalinguagem.

Está claro que, para o leitor, o texto persiste enquanto uma primeira leitura da realidade pelo escritor mas, a não ser que a crítica possa satisfazer-se com a tradução literal, o que interessa é o modo pelo qual esta leitura inclui um sentido da historicidade da própria linguagem de que se serve o escritor. E este sentido, para que se complete o círculo de reflexão logo atrás começado, é metalingüístico desde o momento em que, não abdicando de sua condição, o poeta, através da linguagem, o que procura não está para além daquilo que a linguagem é capaz de dizer num espaço privilegiado historicamente.

É, por isso, importante para o crítico, no caso de Mallarmé, não apenas considerar o que há de indicativo acerca de uma crise da literatura nas conferências inglesas de "La Musique et les Lettres", por exemplo, mas sobretudo ver de que maneira este sentido da crise, que não é outro senão o do próprio valor histórico do poema e do poeta, está fundando a própria atividade literária na medida em que esta se requer consciente dos dados postos em jogo.

Na verdade, o que mais parece importar é precisamente aquilo que Paul de Man soube acentuar tão bem:

".. . um texto que finge designar uma crise quando ele é, de fato, a própria crise a que se refere. Porque aqui (...) , o ato de escrever reflete na realidade sobre sua própria origem (...) (23 (23 ) Cf. "Criticism and crisis", em Blindness & insight. Essays in the rethoric of contemporary criticism. New York: Oxford University Press, 1971, p. 7. )".

Vê-se, desde modo, a impossibilidade de uma leitura que, partindo de uma decifração do uso da metáfora, como a do exemplo que se procurou concretizar, não chegue a ser necessariamente uma reflexão sobre o modo pelo qual o tropo é consumido historicamente no espaço do próprio poema.

13. A consideração histórico-social do texto literário é realizada a partir das variáveis de sua significação tratadas de modo intrínseco enquanto constituintes de um sistema auto-orientado.

Afirmar isto, por fim, é tentar dizer que o estudo do texto literario sob uma perspectiva sociológica só será válido desde que for possível descortinar, por sob as contradições da diacronia, o sistema sincrónico que lhe confere especificidade .

É o que, vejo agora, muito metaforicamente talvez, estas reflexões procuraram significar.

  • 1
    (1) Em The reactionaries. Yeats. Lewis. Pound. Eliot. Lawrence. A study of the Anti-Democratic Intelligentsia. New York : Schocken Boods, (1967), p. 15.
  • (3) Em "A nova poesía russa". Cito pela trad. franc. de Tzvetan Todorov, em Poétique, 7 (1971), p. 290.
  • (12) Em Aesthetic function, norm and value as social fasts. Transi, from Czech, with notes and afterword by Mard E. Suino. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1970, p. 102.
  • (17) Para uma discussão mai s acurada do problema, é fundamental a obra Rornanticism and Consciousness. Ed. by Harold Bloam. New York: W. W. Norton, (1970).
  • (18) Em The truth of poetry New York : Harcourt, Brace, Jovanovich, (1969), p. 59.
  • (20) A idéia de vincular os dois termos homófonos está em Henri Peyre, na análise didática que fez do poema em The poem itself. Ed. by Stanley Burshaw. New York: Schocken Books, 1967, p. 55.
  • *
    Este texto, aproveitando algumas análises incluidas em meu
    A Metáfora Crítica, publicado pela Editora Perspectiva, serviu como base para algumas discussões acerca das relações entre Literatura e Sociedade, desenvolvidas no I Seminário Brasileiro de Teoria Literária promovido pela Universidade Federal de Pernambuco, em Outubro de 1973.
  • (1
    ) Em
    The reactionaries. Yeats. Lewis. Pound. Eliot. Lawrence. A study of the Anti-Democratic Intelligentsia. New York : Schocken Boods, (1967), p. 15.
  • (2
    ) Cf. "Qué nombra la poesía", em
    Corriente alterna. México: Siglo veintiuno editores, (1967), p. 5.
  • (3
    ) Em "A nova poesía russa". Cito pela trad. franc. de Tzvetan Todorov,
    em Poétique, 7 (1971), p. 290.
  • (4
    ) Cf.
    Seven types of ambiguity. Edinburgh: A New Direction Book (1974).
  • (5
    ) Cf.
    The burning fountain. A study in the language of symbolism. Bloomington: Indiana University Press, (1968).
  • (6
    ) Cf.
    Símbolo, comunicación y consumo. Trad, de Maria Rosa Viale. Barcelona: Editorial Lumen, 1967 e
    Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Editora Perspectiva, (1968).
  • (7
    ) Cf. "The two kinds of poetry",
    em Mill's Essays on Literature and Society. Ed. with an introd. by J. B. Schneewind. New York: Collier Books, 1965.
  • (8
    ) Cf. "What does poetry communicate ?",
    em The well wrought urn. New York: Harcourt, Brace & World, Inc., (1947).
  • (9
    ) Cf. "Literature as Knowledge",
    em Essays of four decades. New York: William Morrow & Co., Inc., (1970) (O ensa-io é de 1941.
  • (10
    ) Cf. "Literature as equipment for living",
    em The philosophy of literary form,. Studies in simbolic action. New York: Vintage Books, (1957).
  • (11
    ) Cf. "Littérature et signification", em
    Essais critiques. Paris: Éditions du Seuil, (1964), p. 260.
  • (12
    ) Em
    Aesthetic function, norm and value as social fasts. Transi, from Czech, with notes and afterword by Mard E. Suino. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1970, p. 102.
  • (13
    ) Em "O strukturalismu",
    Studve z estetiky. Cf. Milan Jankovic, "La obra como realización de un sentido", em
    Linguistica formal y critica literaria. Trad, de Maria Esther Benitez. Madrid: Comunicación 3,(1970), p. 131.
  • (14
    ) Cf. "Objective interpretation",
    em Validity in interpretation. New Heven: Yale University Press, (1967), p. 211.
  • (15
    ) Cf. "Crítica e sociologia (tentativa de esclarecimento)", em
    Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, (1965), p. 5.
  • (16
    ) Idem, ibidem.
    (17) Para uma discussão mai s acurada do problema, é fundamental a obra Rornanticism and Consciousness. Ed. by Harold Bloam. New York: W. W. Norton, (1970).
  • (18
    ) Em
    The truth of poetry New York : Harcourt, Brace, Jovanovich, (1969), p. 59.
  • (19
    ) Cf. Mme. E. Noulet, em Mallarmé,
    Oeuvres Complètes. (Paris) : Bibliothèque de la Pléiade, NRF , (1956), p. 1460.
  • (20
    ) A idéia de vincular os dois termos homófonos está em Henri Peyre, na análise didática que fez do poema em
    The poem itself. Ed. by Stanley Burshaw. New York: Schocken Books, 1967, p. 55.
  • (21
    ) Mondor, Henri e Aubry, Jean G.,
    em Mallarmé, Op. cit. p. cit.
  • (22
    ) Op. cit. p. 451.
  • (23
    ) Cf. "Criticism and crisis",
    em Blindness & insight. Essays in the rethoric of contemporary criticism. New York: Oxford University Press, 1971, p. 7.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      1974
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