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Comentário a “Propedêutica do conceito de democracia””

O artigo “Propedêutica do Conceito de Democracia”, de autoria de Luís Uribe Miranda, explora muito bem algumas das preocupações de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que integram a sua derradeira obra coletiva, O Que é a Filosofia?: a desterritorialização dos conceitos, sim, mas também o seu enraizamento em um plano que será sempre concreto e envolvido por diferentes relações materiais. É um trabalho que, antes de mais nada, interroga a potência do conceito (DELEUZE; GUATTARI, 1991DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Éditions de Minuit, 1991.).

É estratégico que o autor tenha optado pelo livro de Roberto Esposito, Pensamento Vivo, uma vez que ali o autor não apenas estabelece a sua compreensão da formação e da atualidade da filosofia italiana, como também expõe a sua autocompreensão enquanto personalidade que participa e contribui para essa tradição. Nesse processo, Esposito recorre explicitamente às indagações de Deleuze e Guattari acerca da territorialização e desterritorialização, já apresentadas em Mil Platôs (DELEUZE; GUATTARI, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, v. 3. São Paulo: Martins Fontes, 2012a.; DELEUZE; GUATTARI, 2012bDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, v. 4. São Paulo: Martins Fontes , 2012b.). Trata-se de um conceito central, não apenas para a maneira como Esposito aborda a emergência de uma filosofia italiana que dialoga com outras tradições, mas que também, no decorrer desse diálogo, reformula conceitos, redefine abordagens e traz à tona indagações que emergem de aspectos específicos da vivência italiana, aquela mesma que sustenta a herança de Maquiavel.

Neste ponto, é importante uma cautela adicional, porque tanto o par territorialização/desterritorialização quanto a expressão vivência italiana podem remeter a uma compreensão de terra estabelecida em termos de fixação, como Miranda (2021MIRANDA, L. U. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 215-244, 2021.) observou: “[...] a fixação remete diretamente ao fortalecimento de fronteiras e ao estático.” Esse não é o caminho adotado por Deleuze/Guattari, na composição das linhas desses conceitos: é o movimento, a migração e os seus sucessivos deslocamentos que são subjacentes a esse ponto, como observa Esposito (ESPOSITO, 2014ESPOSITO, Roberto. Pensiero vivente. Origine e attualità della filosofia italiana. Turim: Einaudi, 2014 (Versão E-Book)., p. 18).

Se a filosofia é atravessada, desde os seus primórdios, por fluxos de migração, de transposição e reinserção em outras circunstâncias, isso também se estende aos seus conceitos. É nesse ponto de cruzamento entre a filosofia e os seus conceitos que o autor estabelece o fio condutor de sua proposta, tendo como recorte a democracia:

O conceito de democracia, submetido à reflexão filosófica, tem um destino similar ao da filosofia. A desterritorialização da democracia, tanto na sua versão grega clássica, quanto na moderna e contemporânea, aparece evidente após o fenômeno da globalização, que coincide com o processo no qual a comunidade acontece como um nada em comum, como uma relação caracterizada pela falta de um lugar comum. (MIRANDA, 2021MIRANDA, L. U. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 215-244, 2021., p. 217).

Se a democracia hoje se impõe como um conceito amplamente disseminado e sobre o qual se forma um consenso difícil de confrontar, afinal de contas, o antidemocrático teoricamente é apresentado como patológico, nos diferentes debates contemporâneos, o significado da democracia e as suas potencialidades estão, sim, abertas à investigação. Ao estabelecer uma tipologia dos significados históricos do conceito de democracia, o autor examina o potencial totalitário subjacente à democracia, o que é abordado em meio à contraposição entre as perspectivas de Ernest Cassirer e de Roberto Esposito (MIRANDA, 2021MIRANDA, L. U. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 215-244, 2021.). Se o primeiro associa esse potencial a uma assimilação do democrático ao técnico, potencialmente culminando em uma tecnocracia, o segundo vislumbra esse potencial no valor absoluto atribuído ao próprio conceito.

Em minha leitura, essa sucinta contraposição com Cassirer serve a dois propósitos dentro da estrutura geral da pesquisa: o primeiro, mais evidente, é o do desenvolvimento da reflexão de Esposito em torno da democracia liberal, já apontado no início do trabalho; o segundo ponto, implícito, é introduzir mais uma etapa da reflexão sobre esse conceito, a partir da própria filosofia italiana, ou seja, a desterritorialização do conceito em meio a uma trajetória marcada pelo diálogo entre gerações.

Penso que uma outra possibilidade para o percurso apresentado, a qual remete à especificidade da filosofia italiana, ao mesmo tempo que a coloca em contato com uma outra tradição, a francesa, seria a de explorar mais essa ausência de substancialidade referente à comunidade (ESPOSITO, 2013ESPOSITO, Roberto. Community, Immunity, Biopolitics. Angelaki: Journal of The Theoretical Humanities, v. 8, n. 3, p. 83-90, 2013., p. 83ss). O Nada em comum apontado por Esposito representa aqui também um desdobramento de um diálogo entre autores, que se forma precisamente em contraposição a duas tradições, pelo menos: uma compreensão organicista de comunidade, a Gemeinschaft, e uma outra que será presente em diferentes autores comunitaristas. Em ambas, a totalidade da comunidade é estabelecida em termos de essência e substância (ESPOSITO, 2013ESPOSITO, Roberto. Community, Immunity, Biopolitics. Angelaki: Journal of The Theoretical Humanities, v. 8, n. 3, p. 83-90, 2013., p. 83ss). Os trabalhos de Blanchot (1984BLANCHOT, Maurice. La Communauté Inavouable. Paris: Editions de Minuit, 1984.), Nancy (2014NANCY, Jean-Luc. La Communauté désavouée. Paris: Editions Galilée, 2014.), Agamben (AGAMBEN, 2001AGAMBEN, Giorgio. La comunità che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001.) e, posteriormente, Esposito (2006ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi, 2006.), instauram uma ruptura com essa abordagem (ESPOSITO, 2013ESPOSITO, Roberto. Community, Immunity, Biopolitics. Angelaki: Journal of The Theoretical Humanities, v. 8, n. 3, p. 83-90, 2013., p. 83).

Uma vez que o autor realizou uma incursão pela filosofia política de Norberto Bobbio, especificamente em sua reflexão crítica acerca da distinção entre ideais democrático e democracia real, culminando, como bem observa o autor, em uma inserção da democracia, no âmbito da teologia, eu acredito que seria oportuno para eventuais pesquisas futuras sobre esse mesmo tema explorar igualmente o lugar da normatividade jurídica, não apenas em Bobbio, mas também na própria perspectiva de Esposito sobre a ausência de essência da democracia e o vazio da comunidade.

Em parte, esse aspecto é abordado no diálogo com Cassirer, mas aqui a preocupação tende a ser uma passagem de uma racionalidade ancorada nos procedimentos para uma compreensão da democracia como valor, o que não é exatamente o ponto que pretendo salientar. O que procuro enfatizar, por normatividade jurídica, no tocante ao democrático, certamente é revestido por um certo procedimentalismo, como pode ser encontrado na obra de Bobbio e no conceito de democracia formal, mas na maneira como a defesa do Estado de Direito (Rule of Law), por meio de uma ênfase na força normativa da Constituição e dos direitos fundamentais, tende a ignorar os riscos e tensões que Esposito realça tanto, em sua incursão pela democracia (BOBBIO, 2009BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz & Terra, 2009.).

Parece-me que uma contemplação desse ponto é realizada pelo autor, quando ele destaca a abertura do democrático em meio ao nada da sua fundamentação. A passagem vale a pena ser citada diretamente:

A Democracia imunitária, como consequência do nada em comum da comunidade e seu tornar-se imunidade, paradoxalmente, poderia ser a chance para a democracia, para sua proteção no entrelaçamento do próprio com o impróprio. A quebra do caráter ontológico da comunidade, abre novas perspectivas para pensar o futuro da democracia como sendo uma ausência. (MIRANDA, 2021MIRANDA, L. U. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 215-244, 2021., p. 240).

Pensá-la como ausência é o contrário de uma compreensão normativa da democracia, a qual entende que o seu potencial disruptivo e incalculável pode ser circunscrito por determinações normativas, como as que se encontram nas Constituições. É a existência dessa abertura que introduz também o risco do político e da desagregação da comunidade: almejar circunscrever essa abertura, através de desenhos institucionais e normas jurídicas, em meu entendimento, implica estabelecer a democracia e a comunidade em termos de presença.

Acredito que possa ser importante explorar ainda de que maneira a reflexão desenvolvida por Esposito acerca do fundamento ausente da comunidade venha a impactar a subjetividade política nas democracias liberais. O ponto é que, como firmado em Communitas e Immunitas, o pertencimento a uma comunidade política por parte dos indivíduos não ocorre em função de uma integração social que lhes atribua direitos e deveres, por meio de uma personalidade jurídica, remetendo-os ao domínio do próprio, mas por um movimento que transcende os limites dessa personalidade rumo a uma dívida, um munus, diante do outro (ESPOSITO, 2013ESPOSITO, Roberto. Community, Immunity, Biopolitics. Angelaki: Journal of The Theoretical Humanities, v. 8, n. 3, p. 83-90, 2013., p. 84).

Neste ponto de discussão, a indagação que proponho é a seguinte: a abertura que envolve a democracia, reiteremos, pensada aqui em termos de ausência, não traria consigo também novas possibilidades de expropriação da personalidade dos indivíduos ou, em direção inversa, formas de personalidade que ultrapassem, modulem e se sobreponham às leis e aos mecanismos democráticos de controle do poder político estabelecido? Entendo que são questões que marcam e emergem, a partir da própria desterritorialização persistente do conceito de democracia e das suas sucessivas apropriações.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. La comunità che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001.
  • BLANCHOT, Maurice. La Communauté Inavouable. Paris: Editions de Minuit, 1984.
  • BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz & Terra, 2009.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Éditions de Minuit, 1991.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, v. 3. São Paulo: Martins Fontes, 2012a.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, v. 4. São Paulo: Martins Fontes , 2012b.
  • ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi, 2006.
  • ESPOSITO, Roberto. Community, Immunity, Biopolitics. Angelaki: Journal of The Theoretical Humanities, v. 8, n. 3, p. 83-90, 2013.
  • ESPOSITO, Roberto. Pensiero vivente. Origine e attualità della filosofia italiana. Turim: Einaudi, 2014 (Versão E-Book).
  • MIRANDA, L. U. Propedêutica do conceito de democracia. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 3, p. 215-244, 2021.
  • NANCY, Jean-Luc. La Communauté désavouée. Paris: Editions Galilée, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2020
  • Aceito
    04 Dez 2020
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