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O carcereiro de si mesmo

The jailer of himself

Resumo

O artigo analisa as conexões entre os dispositivos de monitoramento eletrônico de presos e o dispositivo carcerário, com enfoque nos impactos dos sistemas de rastreamento sobre a vida de pessoas monitoradas. O texto se baseia na análise de documentos legais, entrevistas e pesquisa de campo realizadas entre 2015 e 2018 junto a presos e presas submetidos à utilização de tornozeleiras eletrônicas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. No primeiro movimento do artigo, apresenta-se o desenvolvimento da política de monitoração no país, concomitante ao incremento da população prisional brasileira. Em seguida, são descritas algumas das interfaces estabelecidas entre a prisão e a supervisão eletrônica. Por fim, o terceiro movimento analisa as dimensões políticas dos dispositivos de monitoramento eletrônico e seus processos correspondentes de subjetivação. De maneira geral, o texto é motivado pelo interesse nas atuais transformações operadas pelo poder de punir, assim como na rearticulação das estratégias de condução das condutas mobilizadas pelas novas tecnologias de controle.

Monitoramento Eletrônico; Prisão; Tecnologias de subjetivação; Governamentalidade neoliberal

Abstract

The article analyzes the connections between electronic monitoring devices and prison, focusing on the impacts of tracking systems on the lives of monitored persons. The text is based on the analysis of legal documents, interviews and field research conducted between 2015 and 2018 with individuals submitted to electronic monitoring in the states of São Paulo and Rio de Janeiro. The first movement of the article presents the development of the electronic monitoring policy in Brazil, concomitant with the increase of the country’s prison population. Following, some of the interfaces established between prison and electronic supervision are investigated. Finally, the third movement analyzes the political dimensions of electronic monitoring and the subjectivation processes triggered by them. In general, the text is motivated by the interest on the current transformations operated by the power of punishing, as well as the re-articulation of the strategies of conducts conduction mobilized by new control technologies.

Electronic Monitoring; Prison; Technologies of the self; Neoliberal governmentality

Introdução

Tecnologia de prisões: põem-se grilhões eletrônicos no pé do condenado.

HARUN FAROKI, Imagens da prisão.

Baseado em documentos legais, entrevistas e pesquisa de campo realizadas entre 2015 e 2018 junto a presos e presas submetidos a sistemas de monitoramento eletrônico, o artigo que se segue analisa a implementação da monitoração eletrônica no Brasil e seus impactos sobre a vida de pessoas monitoradas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. São investigadas algumas das interfaces estabelecidas entre a prisão e a supervisão eletrônica e os processos de subjetivação desencadeados por esse acoplamento. De maneira geral, o texto é motivado pelo interesse nas atuais transformações operadas pelo poder de punir, assim como na rearticulação das estratégias de condução das condutas (Foucault, 2008bFOUCAULT, Michel. (2008b), Segurança, território, população. São Paulo, Martins Fontes.), viabilizada pelas novas tecnologias de controle.

No primeiro movimento do artigo, apresenta-se o desenvolvimento da política de monitoração no país, concomitante ao incremento da população prisional brasileira. São verificados os processos de ampliação e intensificação das capacidades de controle penal, alavancados pela sobreposição complementar estabelecida entre as práticas de monitoramento e de encarceramento. Na segunda parte do texto, são localizadas algumas das conexões específicas entre a prisão e a supervisão eletrônica, mediante as sanções disciplinares acarretadas por “falhas técnicas” nos sistemas de rastreamento. A noção de falha performativa (Butler, 1997BUTLER, Judith. (1997), Excitable speech: a politics of the performative. Nova York/Londres, Routledge.) é mobilizada como forma de identificação dos efeitos produzidos pelos erros de comunicação e defeitos sociotécnicos apresentados pelos dispositivos de monitoramento remoto. Por fim, o terceiro movimento do artigo investiga as dimensões políticas da monitoração eletrônica e seus processos correspondentes de subjetivação. Nele, são investigados os mecanismos de incorporação das regras de conduta sob controle eletrônico, que configuram o dispositivo de monitoramento como uma tecnologia de si (Foucault, 2008aFOUCAULT, Michel. (2008a), Nascimento da biopolítica. São Paulo, Martins Fontes.; Lemke, 2012).

Dilatação e densificação do sistema penal

Art. 146-C. O condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o equipamento eletrônico e dos seguintes deveres:

I – receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder aos seus contatos e cumprir suas orientações;

II – abster-se de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça;

[…]

Parágrafo único. A violação comprovada dos deveres previstos neste artigo poderá acarretar, a critério do juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa:

I – a regressão do regime;

II – a revogação da saída temporária;

[…]

VI – a revogação da prisão domiciliar;

VII – advertência, por escrito, para todos os casos em que o juiz da execução decida não aplicar alguma das medidas previstas nos incisos de I a VI deste parágrafo (Lei n. 12.258/2010).

O documento acima compõe a lei n. 12.258 de junho de 2010, que alterou a Lei de Execução Penal (n. 7.210/1984), autorizando a aplicação do monitoramento eletrônico em pessoas condenadas ao regime semiaberto ou prisão domiciliar. Trata-se da primeira lei federal que aprovou a modalidade eletrônica de cumprimento de pena no Brasil. Em maio de 2011, a aprovação da lei federal n. 12.403 (Lei das Cautelares) incluiu a supervisão eletrônica entre as medidas cautelares diversas da prisão (art. 319, IX). A partir de então, as pessoas processadas que aguardavam julgamento também poderiam ser submetidas ao rastreamento remoto. Desse modo, a utilização de equipamentos de monitoração é disponibilizada à magistratura como forma de supervisão das condições de cumprimento de pena em regime semiaberto e prisão domiciliar, ou para controle de medidas cautelares determinadas durante a fase de instrução penal.

Via de regra, o monitoramento eletrônico consiste no acoplamento de um aparelho rastreador no tornozelo do indivíduo a ser monitorado, cujo itinerário é determinado pelo juiz responsável. Uma área de inclusão é estabelecida pelo magistrado e programada no software de controle, no interior da qual a pessoa deve permanecer em determinados horários. Do mesmo modo, podem ser definidas áreas de exclusão, cuja penetração é interdita ao usuário monitorado. A recarga periódica da bateria do aparelho e os devidos cuidados com o equipamento são de responsabilidade do indivíduo.

Com a aprovação da medida em 2010, a gestão da política de monitoração ficou a cargo das administrações estaduais que passaram a contratar, por meio de processo licitatório, empresas privadas que desenvolvem aparelhos, disponibilizam infraestrutura e fornecem os serviços necessários ao controle eletrônico empregado pelo sistema penal. Cada estado é responsável pela gestão dos serviços e contratação das empresas que fornecem os equipamentos, estrutura e auxílio técnico à aplicação da medida.

A principal empresa do ramo no Brasil e na América do Sul é a Spacecom Monitoramento Ltda., com sede na cidade de Curitiba. Seu sistema de rastreamento, denominado SAC24 (Sistema de Acompanhamento de Custódia 24 horas), baseia-se em um conjunto de hardware e software que integra tecnologias de telecomunicação e geoprocessamento. Uma tornozeleira eletrônica é fixada na pessoa monitorada, calculando seu posicionamento por meio dos sistemas GPS (Global Positioning System) e GPRS (General Packet Radio Services) e enviando as informações de geolocalização em tempo real para o software instalado nos terminais de controle1 1 . Spacecom. Sistema SAC24 – Apresentação. Disponível em http://spacecom.com.br/?s=mon, consultado em 6/1/2017. . Um conjunto de alarmes luminosos, sonoros e vibratórios é acionado e reportado ao juiz responsável, caso seja detectado algum tipo de violação. Periodicamente, um relatório analítico é gerado pelo software, contendo o registro das informações relativas ao itinerário do usuário.

A implementação do monitoramento no país fora sustentada pela necessidade de elaboração de novas técnicas penais diante da superlotação do sistema carcerário brasileiro. De maneira geral, as justificativas que fundamentam as leis e projetos de lei que autorizam a medida no Brasil enfatizam as possibilidades de substituição do cárcere pelo controle eletrônico em meio aberto2 2 . Ver PLS 165/07 e PLS 175/07. .

Todavia, o acompanhamento dos dados oficiais relativos à evolução dos índices de encarceramento e ao avanço dos programas de monitoramento eletrônico aponta para o crescimento da quantidade de pessoas presas no país, concomitante à difusão do uso de tornozeleiras eletrônicas, aplicadas majoritariamente em pessoas condenadas ao regime semiaberto. O desenvolvimento e a expansão da política de monitoração têm ocorrido no Brasil de maneira simultânea ao crescimento da população carcerária.

De acordo com as informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2009 – cerca de um ano antes do início dos programas de rastreamento –, a quantidade total de pessoas no sistema penitenciário brasileiro era de 469,5 mil. Já em junho de 2016, os dados apontam para um contingente de 726,7 mil indivíduos encarcerados. O número absoluto de presos e presas não parou de crescer, e a taxa de aprisionamento no país seguiu aumentando. Se em junho de 2009 havia cerca de 248 presos para cada 100 mil habitantes no Brasil, em junho de 2016 essa taxa chegou a mais de 352/100 mil (Brasil, 2017bBRASIL. (2017b), Ministério da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília, Depen.). Paralelamente, o avanço da política de monitoração fez com que em 2017 já houvesse 51,5 mil pessoas rastreadas pelo sistema penal brasileiro (Brasil, 2017aBRASIL. (2017a), Ministério da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional. Diagnóstico sobre a política de monitoração eletrônica. Brasília, Depen.).

A supervisão eletrônica tem sido aplicada de maneira complementar ao cárcere, ampliando e intensificando os controles penais, sem, contudo, favorecer o anunciado processo de desencarceramento. Apesar disso, a medida permanece em expansão e crescem os investimentos voltados à sua estruturação. Órgãos dos poderes Executivo e Judiciário demonstram-se empenhados em fomentar o seu uso e encontrar meios para promover o seu “potencial desencarcerador” (Idem).

Interessa, portanto, investigar algumas das conexões diretas estabelecidas entre o monitoramento eletrônico e o confinamento punitivo, para que se verifiquem as dimensões qualitativas da interface estabelecida entre o cárcere e suas atuais modulações a céu aberto. De que modo o fluxo pendular prisão-monitoramento incide sobre a vida das pessoas monitoradas? O item a seguir identifica alguns dos pontos de contato entre essas duas formas distintas de exercício punitivo.

Falha performativa e conexão com o castigo

Equipamento TZPR01 (1 peça)

Se a luz roxa piscar, ligue para 0800 643 5510;

Você é fiel depositário destes equipamentos;

A sua liberdade depende do cumprimento destas regras;

Recarregue por pelo menos 3 horas por dia;

Não quebre nem mexa neste aparelho.

(Instruções de utilização ao monitorado, Spacecom).

Esse breve excerto foi extraído da folha de instruções, entregue aos condenados à Prisão Albergue Domiciliar no estado do Rio de Janeiro, referente à utilização da tornozeleira de geolocalização que integra o Sistema de Acompanhamento de Custódia 24 horas. Suas regras de utilização ressaltam os cuidados e responsabilidades do usuário monitorado para com o equipamento de supervisão, especificando ocasiões de contato com os agentes responsáveis pela operacionalização do sistema.

A monitoração eletrônica é também monitoração humana, na medida em que requer o trabalho de agentes, públicos e privados, encarregados de sua supervisão. Alguns estados brasileiros contam com equipes de psicólogos e assistentes sociais voltados ao acompanhamento das pessoas monitoradas. É o caso do Acre, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Roraima e Santa Catarina (Brasil, 2017aBRASIL. (2017a), Ministério da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional. Diagnóstico sobre a política de monitoração eletrônica. Brasília, Depen.). Nas demais unidades federativas, o trabalho de monitoramento é realizado exclusivamente por agentes penitenciários e funcionários da empresa contratada, restringindo-se à verificação se a pessoa rastreada está ou não cumprindo as condições judiciais determinadas e à execução das sanções decorrentes de possíveis descumprimentos.

O artigo 146-C da lei n. 12.258/10 especifica tais sanções: regressão de regime; revogação da saída temporária para presos no regime semiaberto; suspensão da prisão domiciliar ou advertência. Cada um dos incisos guarda, contudo, implicações subjacentes, irredutíveis à codificação legal, na medida em que são aplicados a partir do critério dos operadores diretamente responsáveis pelos serviços de rastreamento. No limite, a qualidade das sanções será efetivamente definida pelos agentes encarregados de fiscalizar a execução penal, tendo a lei como contorno normativo. O dispositivo de monitoramento é composto, dessa maneira, pelas conexões que se fazem entre a lei, os servidores públicos e privados envolvidos, o sistema eletrônico de rastreamento e os próprios usuários, sem os quais o sistema não se fecha. Essa malha sociotécnica (Latour, 2013LATOUR, Bruno. (2013), Jamais fomos modernos. São Paulo, Editora 34.), como qualquer outra, não é imune a imprevistos, interferências e falhas de comunicação, cujas consequências serão determinadas pelo juiz, intermediado pelas equipes de monitores. Nesse sentido, não são raros os percalços técnicos e sociotécnicos relatados por presos monitorados e seus familiares. É frequente a ocorrência de falhas nos equipamentos, que acarretam sanções regimentais ou extrarregimentais aos indivíduos rastreados. O destino de Deivid diz um pouco sobre isso.

Durante os primeiros dias de 2016, em ocasião da saída temporária no regime semiaberto de cumprimento de pena, Deivid enfrentou problemas com seu equipamento de monitoração, composto por duas peças: uma tornozeleira e uma Unidade Portátil de Rastreamento (UPR). Os equipamentos comunicam-se entre si via radiofrequência. Conforme a orientação do Diretor de Reintegração da Penitenciária II de Sorocaba, onde o rapaz cumpria pena no regime semiaberto, a tornozeleira não pode ultrapassar uma distância de 30 metros da UPR. Caso contrário, o aparelho acusaria “afastamento”, sinalizado, nesse caso, por um LED de luz branca. Por conta disso, Deivid permanecia com a UPR na mão, ou em uma mochila, enquanto mantinha a tornozeleira fixa no corpo. Quando saía de casa, levava sempre os dois aparelhos.

Certo dia, no entanto, Deivid e sua esposa, Irene, notaram que a mencionada luz branca havia acendido na UPR. Pouco tempo depois, o equipamento passou a emitir um beep sonoro. Preocupados, Deivid e Irene telefonaram para a unidade prisional, dizendo o que se passava. Foram orientados pelos agentes penitenciários a manter os equipamentos próximos um ao outro e retomar suas atividades normalmente, já que, segundo eles, o software de monitoramento instalado na penitenciária não apontava nenhuma irregularidade. O casal seguiu a orientação. No dia de retorno da saidinha3 3 . Saidinha é como os presos e presas denominam as saídas temporárias no regime semiaberto. Elas não excedem sete dias cada uma e são autorizadas cinco vezes ao ano, nas datas comemorativas de Natal/Ano Novo; Páscoa; Dia das Mães; Dia dos Pais; Finados. , contudo, Deivid foi surpreendido ao ser recebido na unidade prisional sob socos, algemas e empurrões. Foi imediatamente colocado no castigo4 4 . Castigo ou pote são os nomes dados, no sistema prisional paulista, às celas reservadas a detentos que supostamente violaram regras de execução penal ou que entraram em conflito com a administração da unidade. Em geral, são pequenas celas superlotadas nas quais os presos são privados de banho de sol por dias, semanas ou até meses. , onde o mantiveram por um mês, sob a justificativa de que tinha se afastado da UPR. Na carta a seguir, ele relata o ocorrido:

Eu, sentenciado Deivid Matias Nascimento, no momento me encontro na unidade Penitenciária 2 de Sorocaba. Quero relatar o que ocorreu no dia 3 de janeiro de 2016 às 13 horas quando eu voltava da saidinha de Natal. Quando eu cheguei aqui, os funcionários vieram para cima de mim me algemando, me batendo e dizendo que eu ia descer pro castigo. Eu perguntei o que tava acontecendo. Eles disseram que tinha dado problema no UPR da pulseira, que eu tinha afastado e tava dando fora de área. Por causa disso eu fiquei 30 dias trancado no poço e depois regredi pro fechado. Antes, quando eu tava na minha casa, na saidinha deu problema na pulseira. Começou a apitar e acendeu a luz branca. Deu afastamento mas eu tava em casa. Aí logo minha mulher ligou pra unidade. Eles disseram que tava normal. Eu perguntei se ia dar problema aquilo. Eles disseram que não, pode voltar normal. Quando eu cheguei de volta pra unidade me mandaram pro castigo. Aqui a gente só tem 3 horas de sol, ficamos o dia todo trancado. Tem um monte de gente na mesma situação que se encontra no Raio 1. A comida é pouca, tem preso passando fome e quase não tem atendimento médico pra gente. O castigo tá cheio. Qualquer coisa eles colocam no castigo. Fico muito agradecido pela atenção. Deus abençoe (Deivid, P-II de Sorocaba)5 5 . Carta de Deivid, remetida pela intermediação de sua esposa, Irene, entrevistada no dia 27 de agosto de 2016. .

Deivid aguardou por dois anos no regime fechado até que o “benefício” do semiaberto fosse novamente concedido. Durante o mês em que esteve isolado, Irene pouco sabia sobre suas condições e tampouco os motivos do isolamento. Como é de praxe nos casos de sanção disciplinar, suas visitas eram proibidas enquanto ele era mantido no castigo. Evandro, preso na Penitenciária de Presidente Prudente, no interior de São Paulo, também regrediu de regime quando, segundo ele, seu equipamento de monitoração passou a vibrar e apitar sem que houvesse motivo claro. Permaneceu por mais de quinze meses no regime fechado.

A respeito das falhas nos sistemas de monitoração, Maurício, agente prisional no Centro de Progressão Penitenciária do Butantã, relata: “Tinha vez que a central ligava aqui na unidade às 3 da manhã dizendo que tinha acusação de rompimento da tornozeleira. Quando ia ver, a presa tava dormindo na cela. Tava com o aparelho e fez algum movimento, sei lá”6 6 . Conversa informal registrada a partir de pesquisa de campo no CPP do Butantã, realizada no dia 14 de abril de 2016. . Tanto o equipamento quanto a leitura humana das informações emitidas por ele são passíveis de erro, como todo sistema de comunicação. Monitorada em 2011 na capital paulista, Maria reitera: “É uma pegadinha. Você pode se dar bem, não ter problema nenhum, ou o aparelho falha e você se dá mal. Acontece muito. É um aparelho que dá defeito, como qualquer outro”7 7 . Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2016. . Todavia, as implicações decorrentes de “problemas técnicos” são, nesse caso, bastante particulares a um dispositivo conectado ao sistema penitenciário. Na ocasião relatada por Deivid, um suposto defeito no equipamento, atrelado à intransigência do juiz e à truculência dos agentes prisionais, resultou na regressão ao regime fechado e nas agressões mencionadas. Maria acrescenta: “A verdade do aparelho é a mentira nossa. Nunca a falha vai ser do aparelho, vai ser sempre do preso”8 8 . Idem. .

Associada ao descrédito prévio nas explicações e depoimentos fornecidos por presos e presas, a aposta na eficiência e objetividade da tecnologia confere às informações emitidas pelo equipamento a qualidade de verdades incontestáveis. Artefatos não mentem. A suposta neutralidade tecnológica garante a veracidade do sistema. Nesse sentido, a percepção de Maria é clara. Os agenciamentos entre as máquinas e seres humanos que compõem os sistemas de monitoração eletrônica desencadeiam os mais variados efeitos ligados à produção da verdade. Uma verdade codificada por LEDs, beeps e alertas vibratórios, transmitida à equipe de monitores, retransmitida ao juiz de execução e recodificada pelo enquadramento na lei penal. Uma verdade produzida no interior do agenciamento maquínico que constitui os mecanismos de controle eletrônico e que será então contraposta à verdade do preso. No caso de Deivid, prevaleceu a verdade do aparelho, convertendo alarmes luminosos em espancamentos na cela do castigo.

De todo modo, as ligações entre os dispositivos de monitoramento e o dispositivo carcerário se fazem também mediante os alarmes falsos, os erros de leitura, as “falhas técnicas” que trazem de volta ao interior dos muros os que tiveram a má sorte de portar um equipamento defeituoso. Se o controle eletrônico permite uma flexibilização da constrição espacial fixada pelos limites duros da prisão-prédio, essa flexibilidade é qualificada por uma certa elasticidade (Augusto, 2013AUGUSTO, Acácio. (2013), Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro, Lamparina.), cuja tendência de reposicionamento reafirma a centralidade da prisão com suas torturas, espancamentos e agressões subjacentes. As relações de conexão e complementaridade entre a prisão e suas atuais modulações eletrônicas são estabelecidas inclusive a partir dos bugs. Não se trata, portanto, de enxergar nas falhas a inoperância do sistema, mas de detectar o seu funcionamento também a partir dos erros, dos distúrbios, das comunicações interrompidas. Furtar-se à conclusão rápida de que o dispositivo não funciona porque é falho e indagar como, a partir de sua falibilidade, uma certa funcionalidade é produzida (cf. Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. (1987), Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes.).

Falha performativa é a noção aqui proposta para designar a dimensão produtiva dos alarmes falsos acionados pelos dispositivos de monitoramento eletrônico, tomando como referência as discussões realizadas por Judith Butler (1997)BUTLER, Judith. (1997), Excitable speech: a politics of the performative. Nova York/Londres, Routledge. a respeito dos aspectos performáticos das falhas de comunicação. Em diálogo com Jacques Derrida (1978)DERRIDA, Jacques. (1978), Writing and difference. Chicago, University of Chicago Press., a filósofa analisa a falibilidade das práticas discursivas e sistemas comunicacionais como elemento constituinte de sua performance social e política. A falha é percebida como dimensão intrínseca à produtividade dos agenciamentos baseados na emissão de sinais e troca de informações.

No que diz respeito aos sistemas de monitoramento eletrônico, as informações emitidas pelos aparelhos transmissores repercutem diretamente no andamento processual das pessoas monitoradas, atuando como agente avaliador da conduta dos apenados, cujas informações registradas no software serão posteriormente reportadas ao juiz e tomadas como base para as decisões judiciais relativas à possível progressão ou regressão penal. A sinalização de um descumprimento às regras de monitoramento, ainda que decorrente de uma possível falha no sistema, pode acarretar em sanções disciplinares e no encaminhamento ao regime fechado.

Nesse sentido, a própria execução da pena sob controle eletrônico é inevitavelmente condicionada à possibilidade de regressão ao regime fechado nos casos de descumprimento das condições determinadas, relativas às áreas de inclusão e exclusão, e ao bom ou mau uso do aparelho. Se a noção de “prisão virtual” é muitas vezes evocada como imagem simbólica nas análises a respeito do monitoramento de presos (Roberts, 2004ROBERTS, Josh. (2004), The virtual prison: community sutody and the evolution of imprisonment. Cambridge, Cambridge University Press.; Maciel, 2014MACIEL, Welliton Caixeta. (2014), Os ‘Maria da Penha’: uma etnografia de mecanismos de vigilância e subversão de masculinidades violentas em Belo Horizonte. Brasília, dissertação de mestrado, Universidade de Brasília.), a virtualidade do cárcere reside mais em sua iminência do que em qualquer tipo de simbolismo. A prisão é mantida como risco necessário, conservado no horizonte próximo do sujeito monitorado. Não há dimensão simbólica ou metafórica.

O carcereiro de si mesmo

Para além do erro, inerente aos aparatos técnicos, importa considerar os aspectos políticos inscritos nos projetos, programas e protocolos que compõem uma determinada tecnologia. Aparatos tecnológicos não são neutros e a sua utilização implica direcionamentos nas formas pelas quais se pretende mediar e ordenar as relações sociais (Winner, 1986WINNER, Langdon. (1986), “Do artifacts have politics?”. In: WINNER, Langdon. The whale and the reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago, The University of Chicago Press.). Projetados como componentes de uma estratégia específica de controle penal e inseridos nos procedimentos de gestão penitenciária, os sistemas de monitoramento eletrônico dificilmente podem ser apartados de sua dimensão política intrínseca, distante, de uma neutralidade presumível. Seu caráter político é dado desde a sua concepção até a sua operacionalização, através das interações com os diversos agentes dos quais o seu funcionamento depende (Latour, 1994LATOUR, Bruno. (1994), “On technical mediation: philosophy, sociology, genealogy”. In: Common Knowledge. Durham, Duke University Press, 3: 2.). De ponta a ponta, intencionalidades se materializam. Relações de poder se inscrevem em aparatos técnicos e aparatos técnicos se inscrevem nas relações de poder (Winner, 1986WINNER, Langdon. (1986), “Do artifacts have politics?”. In: WINNER, Langdon. The whale and the reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago, The University of Chicago Press.; Latour, 1994LATOUR, Bruno. (1994), “On technical mediation: philosophy, sociology, genealogy”. In: Common Knowledge. Durham, Duke University Press, 3: 2.).

Interessa, portanto, investigar quais as relações de poder mobilizadas sob o invólucro dos discursos, práticas, leis e tecnologias que constituem os programas de monitoramento de presos e presas. A que tipo de racionalidade esses dispositivos obedecem e retroalimentam? Quais os efeitos dessa racionalidade quando ela se materializa na vida e no corpo das pessoas monitoradas? Não se pretende aqui buscar uma única resposta ou modelo explicativo, mas explorar possibilidades analíticas suscitadas pela aproximação junto a indivíduos monitorados e suas percepções.

A ideia de que os propósitos da monitoração eletrônica vinculam-se à reiteração da sensação de vigilância pelo usuário, relembrando-o permanentemente de que seus movimentos estão sendo observados e de que o descumprimento das determinações judiciais acarretará uma punição mais severa (Nellis, Beyens e Kaminski, 2013NELLIS, Mike et al. (2013), “Introduction: making sense of electronic monitoring”. In: NELLIS, Mike et al. Electronically monitored punishment: international and critical perspectives. Nova York, Routledge.), provoca reverberações que conformam as experiências vivenciadas por aqueles que são sujeitos ao controle eletrônico a distância. “Pra mim, a pulseira mexe com a cabeça tanto quanto a cadeia”, afirmava Anderson durante os meses em que foi monitorado. “Eu vou pra rua, mas eu continuo preso. Parece que eu tenho um guarda do meu lado o tempo todo, me olhando em todo canto.”9 9 . Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.

A incorporação da vigilância pelo preso é um dos aspectos do modelo panóptico de disciplinarização intramuros (Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. (1987), Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes.). A máquina benthamiana, projetada no tardar do século XVIII, já transferia a inspeção centralizada para cada elemento inspecionado, subjetivado como vigia de si mesmo. “Tratava-se de um novo modo de garantir o poder da mente sobre a mente, em um grau nunca antes demonstrado”, dizia Jeremy Bentham a respeito de sua invenção (Bentham, 2008BENTHAM, Jeremy. (2008), O panóptico. Belo Horizonte, Autêntica., p. 17). Entretanto, o exame do comportamento do indivíduo e sua respectiva transformação no interior de espaços fechados são redimensionados e reconfigurados pelas atuais tecnologias de punição mediante a transposição dos procedimentos de observação e controle para ambientes a céu aberto, ao nível e alcance de sistemas de sensoriamento remoto e geolocalização. A ultrapassagem da mecânica disciplinar é efetivada por um movimento de desterritorialização das técnicas de vigilância (Froment, 1996FROMENT, Jean Charles. (1996), “Le pouvoir souverain, la peine et le corps: élements pour une philosophie pénale de la surveillance électronique”. Revue Interdisciplinare d’Etudes Juridiques, 37: 1-44.; Bogard, 2006BOGARD, William. (2006), “Surveillance assemblages and lines of light”. In: LYON, David. Theorizing surveillance: the panopticon and beyond. Portland, Willian Publishing.), convertidas em monitoramento móvel, modular e ininterrupto.

Mais do que o sequestro das liberdades, o que está em jogo aqui é a produção, a concessão e o gerenciamento de liberdades sob medida. O poder inclui a liberdade como elemento indispensável ao seu exercício, mobilizando mecanismos que não bloqueiem as possibilidades de circulação dos indivíduos, mas regulem essa circulação, garantindo uma margem de segurança através de medidas que atuem como contrapesos às liberdades concedidas pela justiça criminal sob a forma de benefícios. Nesse sentido, os princípios operativos do monitoramento eletrônico respondem a uma racionalidade política orientada por práticas de governamentalidade, cuja efetividade supera a dominação baseada na constrição comportamental em instituições de encerramento. “Governar, nesse sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros” (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. (2009), “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS Hubert & RABINOW, Paul. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, pp. 231-249., p. 244). Ao conceder uma liberdade de circulação ao indivíduo monitorado no interior de zonas de controle mais ou menos restritas, vinculadas a horários de entrada, saída e permanência, o juiz de execução penal estabelece a demarcação do campo de condutas possíveis do condenado, abdicando a uma intervenção excessiva fundada em técnicas de adestramento.

Não se trata tanto de corrigir e moldar o sujeito, mas de criar um padrão de vida de baixo risco, com hábitos, rotinas e um estilo de vida seguros para a sociedade. […] Um posicionamento ilícito faz disparar o alarme não porque implique necessariamente que a pessoa tenha cometido um novo delito: implica o risco de que ela o cometa (Vitores e Domènech, 2007, pp. 13-15).

A análise de riscos futuros deve orientar as políticas penais, pautadas pelo cálculo que equaciona liberdade e segurança na formulação e otimização de técnicas de controle, concebidas em termos de eficiência e utilidade. As atuais tecnologias biopolíticas atuam “por antecipação de ações, na previsão dos próximos movimentos, operando e agindo nos limites da variação da incerteza” (Kanashiro, 2011KANASHIRO, Marta Mourão. (2011), Biometria no Brasil e o registro de identidade civil: novos rumos para identificação. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo., p. 66).

O objeto de intervenção passa a ser menos a individualidade do sujeito do que a sua conduta, entendida aqui, a partir da definição de Michel Foucault, como “a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades” (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. (2009), “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS Hubert & RABINOW, Paul. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, pp. 231-249., p. 243). É a conduta do usuário em seu “ambiente natural” que se deve controlar, governar e conduzir por meio das tecnologias de monitoramento eletrônico (Schwitzgebel, 1969). Para isso, invertem-se os termos: ao invés de inserir o corpo do indivíduo em um dispositivo de controle, instala-se o dispositivo de controle no corpo do indivíduo. Do corpo na prisão passa-se à prisão no corpo.

Essa inversão técnica e procedimental não ocorre sem maiores implicações nas maneiras pelas quais o criminoso é subjetivado. O imperativo do autocontrole, ancorado no paradigma neoliberal da responsabilização individual, encontra aqui sua expressão prototípica, a níveis impensáveis à distopia benthamiana. O sujeito submetido ao monitoramento remoto deve projetar, por sua própria conta, o risco ao qual se expõe caso decida violar as condições impostas pelo juiz. Nenhum impedimento físico lhe é imposto senão a virtualidade da prisão. Onde quer que esteja, o indivíduo deve ser capaz de conduzir a si mesmo, a partir das possibilidades que as condições judiciais lhe oferecem.

A respeito das regras de seu regime semiaberto, Anderson explica:

Não posso estar em lugares que oferecem algum risco pra mim. Perto de um ponto de droga, balada, bar… Mas na real, tem umas barreiras aí que eu mesmo crio. Às vezes eu acho que eu sou muito correto. Às vezes até dava pra extrapolar, mas eu penso mil vezes10 10 . Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015. .

Mais do que fixar limites estabelecidos por muros e estruturas arquitetônicas, a ideia é fazer com que o indivíduo crie ele mesmo seus próprios limites, mediados pelo acoplamento de um dispositivo de controle em seu corpo. A prisão e sua iminência permanecem no horizonte próximo do qual o sujeito monitorado deve se livrar por meio de uma conduta segura, distante dos circuitos de ilegalidade que o conduziram a ela. Se não se trata de moldar o comportamento do indivíduo por meio de mecanismos disciplinares, uma certa modulação subjetiva é operada pelo monitoramento remoto11 11 . Na diferenciação entre dispositivos disciplinares e dispositivos de controle, Deleuze afirma que “os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro” (1992, p. 225). .

Sobre as condições relativas à execução de sua PAD sob controle eletrônico, Sérgio pondera:

Eles falaram que eu não posso frequentar lugar que vende bebida, por exemplo. Mas se eu tiver que entrar num bar, eu vou entrar. Não me privaria de ir. Agora qual é a questão? Se rola uma briga no bar e eu ali, eu lascado. Se eu sou pego pra testemunho, mesmo se eu for vítima no fato ali, no caô, eu vou pra delegacia. Posso ser vítima nesse processo, mas eu não deveria nem ali. Eu vou preso. Então tem que avaliar, pensar bem12 12 . Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016. .

A ameaça da regressão penal aparece como o risco a ser avaliado e evitado. O indivíduo monitorado deve analisar os riscos que corre com a violação das regras judiciais, contrabalanceando-os com os benefícios que poderia obter com seu descumprimento. O cálculo íntimo que opõe as vantagens de uma conduta “livre”, que negligencie as regras judiciais, aos riscos da regressão penal deve servir de parâmetro para que o sujeito monitorado conduza a si mesmo, a partir de seus próprios julgamentos, orientados por avaliações e prognósticos de perdas e ganhos.

A racionalidade utilitária que equaciona vantagens e desvantagens converte-se em parâmetro orientador das formas de condução de si do sujeito monitorado, vinculando os dispositivos de monitoramento ao conjunto de técnicas de poder que constituem a governamentalidade neoliberal, compreendida como uma forma específica de condução das condutas pautada pela transversalização dos fundamentos da economia de mercado sobre as esferas jurídicas, políticas, sociais e subjetivas (Foucault, 2008aFOUCAULT, Michel. (2008a), Nascimento da biopolítica. São Paulo, Martins Fontes.). A grade racional pela qual se governam as relações econômicas torna-se o princípio de concepção e inteligibilidade da política penal, associando a liberdade ao lucro e a intervenção punitiva ao prejuízo.

Nessa medida, a governamentalidade neoliberal não apenas assume que todos os aspectos da vida social e política podem ser reduzidos a cálculos de utilidade, mas desenvolve programas e tecnologias de poder sustentados por práticas e discursos que ratificam essa visão, produzindo individuações pautadas pela balança que pesa e contrapesa prognósticos de riscos e benefícios (Brown, 2005BROWN, Wendy. (2005) Edgework: critical essays on knowledge and politics. Nova Jersey, Princetown University Press.)13 13 . Observam-se, nesse sentido, a emergência e a deflagração de saberes criminológicos que tomam o infrator como um agente calculista que empreende sua conduta pautado em escolhas racionais orientadas por avaliações e prognósticos de custo-benefício. “Baseada em teorias como a da rational choice, tal concepção insiste na ideia de que os delinquentes calculam suas ações e de que o crime é um aspecto trivial da existência cotidiana, um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado” (Alvarez, 2014, p. 57). O Homo criminalis dá lugar ao homo oeconomicus (Foucault, 2008a). . “O risco tornou-se um microrrisco personalizado” (Aubrey, 2000AUBREY, Bob. (2000), L’entreprise de soi. Paris, Flammarion., p. 101). “O indivíduo deve governar-se a partir de dentro por uma racionalização técnica de sua relação consigo mesmo” (Dardot e Laval, 2016DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. (2016), A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo., p. 350). A pena é vista, antes de mais nada, como uma dívida social a ser paga e administrada pelo próprio condenado.

Vinculados ao imaginário criminológico que toma o infrator como um agente racional e calculista que empreende o crime como um investimento qualquer – tendo como único parâmetro de diferenciação a quantidade e a qualidade do risco implicado pelo investimento (Becker, 1974BECKER, Gary. (1974), “Crime and punishment: an economical approach”. Disponível em https://www.nber.org/chapters/c3625.pdf, consultado em 10/8/2019.
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) –, os efeitos mobilizados pelo monitoramento eletrônico relacionam-se à transferência das tarefas do agente prisional para o próprio prisioneiro, reposicionando as atividades de vigilância para o campo do autogoverno. A abordagem econômica do fenômeno criminal encontra sua eficácia no sujeito concebido pela política penal. O indivíduo monitorado torna-se tecnicamente orientado, analista dos riscos que corre e gestor individual de sua própria pena.

Entretanto, a conversão do condenado no agente prisional de si mesmo que transpõe o olhar do vigia para os espaços em que habita revela-se das mais variadas maneiras, dentre elas a tendência ao isolamento e à autoexclusão, reforçada pela marca ostensiva que o aparelho de monitoração imprime no corpo. Deivid permanecia a maior parte do tempo fechado em sua casa durante as saídas temporárias em que esteve monitorado, receoso de que a vizinhança desse conta da presença de um prisioneiro no bairro. “Mesmo dentro de casa, quando chegava visita, uma pessoa que ele ainda não conhecia, ele procurava sempre no quarto, não saía do quarto”14 14 . Entrevista realizada no dia 27 de agosto de 2016. , relata sua companheira, Irene. Anderson descreve a saída temporária sob monitoramento como mais um momento de recolhimento: “Dá vontade de me isolar e ficar só em casa. Acho que é medo, por causa dessa pulseira”15 15 . Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015. .

Já a reação de Elton foi mais esdrúxula. Monitorado no Rio de Janeiro em cumprimento de prisão domiciliar, Elton ergueu um muro ao redor de sua casa para que ninguém da rua pudesse cogitar em vê-lo com uma tornozeleira, conforme conta sua esposa, Ângela: “O Elton, quando chegou aqui, a primeira coisa que ele fez foi fazer obra na casa. Levantou um muro em volta e tampou todas as frestas do portão. Todas as passagens do portão entreabertas, ele tampou tudo. Ele lacrou a casa”16 16 . Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016. .

À vergonha de ser exposto com um aparelho que identifica o usuário como criminoso atrelam-se as ameaças suscitadas pela sensação persecutória. A prisão desterritorializada, virtualizada por meio de sistemas telemáticos de localização e comunicação que transpõem seus limites para além dos muros institucionais, se reterritorializa e se atualiza nos espaços em que habita o indivíduo rastreado, seu trabalho, seu bairro, sua casa, tornada casa-prisão em que os muros são finalmente repostos, agora pelo próprio prisioneiro. Não se trata de um confinamento voluntário, mas de um isolamento induzido, conduzido pela relação que se estabelece entre o sujeito monitorado e o dispositivo de monitoramento.

De todo modo, a imposição de limites físicos que demarcam espaços de encerramento já não é necessária para que a condição de prisioneiro se estabeleça. O dentro e o fora atingem um tal ponto de indiferenciação em que as muralhas já não circunscrevem o espaço penal e seus controles, agora atrelados ao próprio corpo do apenado. O prisioneiro converte-se em seu próprio carcereiro, orientado pela aritmética utilitária que reitera a regressão penal como risco e virtualidade permanente. Uma nova individualidade criminosa é construída, imanente à sua linha de supressão que erradica a cisão entre o corpo e a prisão do corpo.

Considerações finais

Anunciado como estratégia de desencarceramento, o monitoramento eletrônico configura-se atualmente no Brasil como técnica penal suplementar ao cárcere, estabelecendo um processo duplo de dilatação e densificação dos controles punitivos exercidos pelo Estado, em parceria com a iniciativa privada. De um lado, ampliam-se os contingentes populacionais submetidos à égide penal, dentro e fora das unidades prisionais. De outro, fortalece-se a supervisão exercida especificamente sobre presos e presas nos regimes penais domiciliar e semiaberto.

Do ponto de vista microfísico (Foucault, 1979FOUCAULT, Michel. (1979), Microfísica do poder. São Paulo, Graal.), a difusão dos dispositivos de monitoramento no país levanta uma série de questionamentos a respeito de seus diversos impactos sobre a vida e sobre o corpo de pessoas monitoradas, uma vez que a medida inaugura um conjunto de novas relações entre o aparelhamento penal e o sujeito penalizado. As frequentes falhas ou defeitos nos sistemas sociotécnicos de rastreamento são apenas alguns dos pontos de conexão entre a prisão e o rastreamento eletrônico. A desterritorializacão dos controles penitenciários para além dos muros institucionais e a marcação do corpo criminoso pelo aparelho de monitoração constituem alguns dos demais efeitos da interseccionalidade estabelecida pelo monitoramento eletrônico entre o dentro e o fora, entre a prisão e a liberdade.

Na medida em que a penalidade deixa de incidir somente sobre o preso, passando a atuar também sobre o indivíduo livre, posto para circular em liberdade, ela já não reconhece mais limites. A própria vida social passa a ser atravessada por sua presença. Suas formas de controle se confundem com a existência livre, e suas técnicas de punição são reinterpretadas sob a forma de benefícios. Dito de outro modo, ao passo em que as atividades dos sistemas penais já não se limitam à extração e contenção da liberdade, mas passam a regular, ordenar, controlar e produzir mesmo a liberdade, a justiça penal e seus mecanismos de poder deixam de admitir um domínio que lhes seja exterior. Seus horizontes se abrem a potenciais ilimitados. O sistema punitivo já não pode reconhecer, dessa forma, um campo de exterioridade. E a intervenção penal que se pretendia mínima revela suas tendências de maximização.

Quando se teme em demasia o controle exacerbado exercido pelas novas tecnologias, podem ser temidos também os processos mediante os quais as novas tecnologias tendem a fugir ao controle.

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  • 1
    . Spacecom. Sistema SAC24 – Apresentação. Disponível em http://spacecom.com.br/?s=mon, consultado em 6/1/2017.
  • 2
    . Ver PLS 165/07 e PLS 175/07.
  • 3
    . Saidinha é como os presos e presas denominam as saídas temporárias no regime semiaberto. Elas não excedem sete dias cada uma e são autorizadas cinco vezes ao ano, nas datas comemorativas de Natal/Ano Novo; Páscoa; Dia das Mães; Dia dos Pais; Finados.
  • 4
    . Castigo ou pote são os nomes dados, no sistema prisional paulista, às celas reservadas a detentos que supostamente violaram regras de execução penal ou que entraram em conflito com a administração da unidade. Em geral, são pequenas celas superlotadas nas quais os presos são privados de banho de sol por dias, semanas ou até meses.
  • 5
    . Carta de Deivid, remetida pela intermediação de sua esposa, Irene, entrevistada no dia 27 de agosto de 2016.
  • 6
    . Conversa informal registrada a partir de pesquisa de campo no CPP do Butantã, realizada no dia 14 de abril de 2016.
  • 7
    . Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2016.
  • 8
    . Idem.
  • 9
    . Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
  • 10
    . Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
  • 11
    . Na diferenciação entre dispositivos disciplinares e dispositivos de controle, Deleuze afirma que “os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro” (1992, p. 225).
  • 12
    . Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.
  • 13
    . Observam-se, nesse sentido, a emergência e a deflagração de saberes criminológicos que tomam o infrator como um agente calculista que empreende sua conduta pautado em escolhas racionais orientadas por avaliações e prognósticos de custo-benefício. “Baseada em teorias como a da rational choice, tal concepção insiste na ideia de que os delinquentes calculam suas ações e de que o crime é um aspecto trivial da existência cotidiana, um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado” (Alvarez, 2014ALVAREZ, Marcos César. (2014), “Teorias clássicas e positivistas”. In: LIMA, Renato Sergio de et al. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo, Contexto, pp. 50-59., p. 57). O Homo criminalis dá lugar ao homo oeconomicus (Foucault, 2008aFOUCAULT, Michel. (2008a), Nascimento da biopolítica. São Paulo, Martins Fontes.).
  • 14
    . Entrevista realizada no dia 27 de agosto de 2016.
  • 15
    . Entrevista realizada no dia 14 de outubro de 2015.
  • 16
    . Entrevista realizada em 17 de novembro de 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2019
  • Aceito
    31 Ago 2019
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