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Uma defesa da comunidade

CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA

Uma defesa da comunidade

Luis Carlos Jackson

Apesar de ter desempenhado papel central no período de formação das ciências sociais em São Paulo, a importância da obra e da atuação institucional de Emílio Willems (1905-1997) não foi ainda plenamente avaliada1 1 Entre os textos que discutem sua trajetória e obra, ver Glaucia Villas Boas, "De Berlim a Brusque, de São Paulo a Nashville: a sociologia de Emílio Willems entre fronteiras". Tempo Social, 12 (2), nov. de 2000; Nísia Trindade Lima, Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro, Revan/Iuperj, 1998. . O texto O problema rural brasileiro do ponto de vista antropológico, republicado neste número da Tempo Social, foi editado e distribuído gratuitamente em 1944 - como um opúsculo - pela Diretoria de Publicidade Agrícola, vinculada à Secretária da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo, que também publicou Cunha: tradição e transição em uma comunidade rural do Brasil, em 1947.

O apoio estatal - intermediado provavelmente por Carlos Borges Schmidt, que por essa época dirigia a Diretoria de Publicidade Agrícola2 2 Sobre Carlos Borges Schmidt e sua gestão nesse órgão, ver Maria de Lourdes Zuquim, Os caminhos do rural: uma questão agrária e ambiental. São Paulo, Senac, 2007. - na edição de seus escritos indica um dos pontos de sustentação de Emílio Willems no campo intelectual paulista nos anos de 1940. Outros e mais determinantes foram seus vínculos profissionais com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, onde obteve a livre-docência em 1937 e assumiu a cátedra de Antropologia em 1941, e com a Escola Livre de Sociologia e Política, para a qual, nesse mesmo ano, foi convidado pelo sociólogo norte-americano Donald Pierson, para lecionar na Divisão de Estudos Pós-Graduados. O antropólogo alemão foi ainda o principal mentor e editor (com Romano Barreto) de Sociologia, primeiro periódico especializado nessa matéria, entre 1939 e 1949. Nesse contexto, publicou, além dos textos citados, os livros Dicionário de etnologia e sociologia (1939), Assimilação e populações marginais no Brasil (1940), Aculturação dos alemães no Brasil (1946), Dicionário de sociologia (1950) e inúmeros artigos.

Como editor da revista mais prestigiosa do período e professor das duas escolas, Willems logrou reuni-las temporariamente numa espécie de "projeto ecumênico". Estimulados por ele, alunos graduados na USP realizaram o mestrado na ELSP durante a década de 1940, entre os quais Florestan Fernandes e Gioconda Mussolini. Além disso, Sociologia publicou os primeiros trabalhos desses então jovens cientistas sociais e também artigos de Roger Bastide. Foi com Donald Pierson, entretanto, que estabeleceu sua aliança mais forte e decisiva. Juntos formularam o primeiro programa de pesquisas levado a cabo pela sociologia paulista, o dos "estudos de comunidades".

A liderança que os dois exerceram durante os anos de 1940 seria desfeita, entre outras razões, por uma recepção extremamente negativa dos "estudos de comunidades", iniciada pela resenha de Caio Prado Jr. a Cunha,publicada na revista Fundamentos, no ano de 1948. O autor de Formação do Brasil contemporâneo (1942) criticou duramente o empirismo que caracterizaria o trabalho de Willems, associando esse aspecto a uma possível visão política conservadora. Explícita ou implicitamente, esse argumento seria assimilado pelos cientistas sociais da USP, sobretudo por Florestan Fernandes e grupo, nas décadas seguintes, mas também por Gioconda Mussolini e Antonio Candido.

Embora seja injusto dizer que em Cunha esteja ausente a teoria - o autor se apoia em inúmeros trabalhos realizados pela Escola de Chicago, sobretudo em Folk Culture of Yucatan, de Robert Redfield -, é válida a crítica que contesta a timidez de suas conclusões sobre o problema analisado naquele livro, a transformação das sociedades caboclas diante do processo de urbanização. Por isso mesmo, vale a pena retirar o pó que recobre O problema rural brasileiro do ponto de vista antropológico, texto pouco conhecido, de difícil acesso e que pode ser lido como um programa geral dos "estudos de comunidades" que seriam realizados em seguida.

Menos comprometido nesse trabalho com os pressupostos teóricos e metodológicos que orientaram esses estudos, sobretudo com a exigência de realizar pesquisa empírica exaustiva antes de fazer qualquer generalização, Willems explicita nele sua hipótese geral sobre a constituição histórica e social do mundo rural no Brasil, a qual valoriza a autonomia das "sociedades caboclas", afirmando o sucesso relativo por elas logrado na colonização miúda dos "sertões" brasileiros, desde o século XVI. Afirma ainda, com todas as letras, que as dificuldades enfrentadas por tais grupos nada tinham a ver com condicionantes biológicos. Acredito que, dessa perspectiva, não devamos entender a segunda parte de Cunha,que registra medições antropométricas da população estudada (desprovida de importância para o leitor contemporâneo), como indício de uma suposta visada racista por parte do autor.

Enfim, não é demais relembrar que a fase de maior aproximação entre a USP e a ELSP, diretamente relacionada com a presença de Emílio Willems, foi determinante para o desenvolvimento futuro do projeto acadêmico e do programa de pesquisas liderado por Florestan Fernandes à frente da Escola Paulista de Sociologia, nas décadas de 1950 e 1960. O sociólogo percebeu naquele momento que o alcance de uma pesquisa coletiva ultrapassava muito qualquer empreendimento individual e, também, que a fundamentação empírica de uma análise sociológica deveria ser extremamente rigorosa. Da mesma maneira, devemos reconhecer que a maioria dos estudos sociológicos e antropológicos sobre as sociedades rurais, realizados depois de Cunha e de outros "estudos de comunidades", lhes são diretamente devedores.

Emílio Willems transmigrou para os Estados Unidos em 1949, em função das condições de trabalho que lhe foram oferecidas pela Universidade de Vanderbilt (na qual se aposentou em 1974) e, eventualmente, também por ter se sentido traído por seus alunos, fato que pode estar implícito na passagem seguinte de um curto depoimento que forneceu a pedido de Marisa Correa: "Não quero mencionar aqui as várias causas que determinaram a minha transmigração para os Estados Unidos. Uma delas reside no fato de que fui convidado por uma instituição especializada em estudos brasileiros"3 3 Marisa Correa (org.), História da antropologia no Brasil ( 1930-1960). Testemunhos: Emílio Willems e Donald Pierson. Campinas, Editora da Unicamp/Vértice, 1987. .

De todo modo, importa menos conhecer os motivos que determinaram sua saída do Brasil do que investigar o papel decisivo que desempenhou entre nós, por meio de sua obra e de sua atuação institucional. Essa tarefa envolve reconsiderar a importância dos "estudos de comunidades", missão possível atualmente por estarmos distantes das disputas acadêmicas e políticas que os desqualificaram.

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    Entre os textos que discutem sua trajetória e obra, ver Glaucia Villas Boas, "De Berlim a Brusque, de São Paulo a Nashville: a sociologia de Emílio Willems entre fronteiras".
    Tempo Social, 12 (2), nov. de 2000; Nísia Trindade Lima,
    Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro, Revan/Iuperj, 1998.
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    Sobre Carlos Borges Schmidt e sua gestão nesse órgão, ver Maria de Lourdes Zuquim,
    Os caminhos do rural: uma questão agrária e ambiental. São Paulo, Senac, 2007.
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    Marisa Correa (org.),
    História da antropologia no Brasil (
    1930-1960).
    Testemunhos: Emílio Willems e Donald Pierson. Campinas, Editora da Unicamp/Vértice, 1987.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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