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A aparição do demônio na fábrica, no meio da produção

The apparition of the devil in the factory, in the middle of production

Resumos

A aparição do demônio, várias vezes, durante uma semana, em uma grande fábrica do subúrbio da cidade de São Paulo, em 1956, foi uma indicação de que os fenômenos de demonização podem ocorrer também fora do mundo tradicional e rural dos camponeses. Também os operários da moderna indústria estão sujeitos à invocação do imaginário arcaico para compreender as mudanças tecnológicas na produção. Quando a modernização industrial introduz uma separação radical entre o pensar e o fazer no processo de trabalho, o imaginário arcaico pode preencher esse vazio para lhe dar sentido: o sentido que sua irracionalidade pode ter.

imaginário; demonização; alienação; modernização; relações de trabalho


In 1956, several apparitions of the devil during a whole week in a large modern factory in the outskirts of São Paulo showed that the phenomena of demonization can also take place outside the traditional and rural world of the peasantry. Modern industrial workers are also liable to invoke archaic imagery in an effort to understand changes in production technology. When industrial modernization introduces a radical divide between thinking and doing in the work process, archaic imagery can fill the vacuun to give it meaning: the meaning that its irrationality can bring.

imagery; demonization; alienation; modernization; work relations


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Notas

  • 1
    Sou imensamente agradecido pela disponibilidade e pela atenção com que fui recebido pelos Drs. Renato Martins de Siqueira e Airton Mitidiéri e pelos Srs. Renato Maresti e José Francisco Martins, antigos funcionários da Cerâmica São Caetano S.A. Eles generosamente se dispuseram a ouvir as minhas perguntas e a respondê-las com esclarecimentos detalhados sobre as ocorrências relacionadas com o caso aqui estudado. Deram-me, também, o prazer de revê-los trinta e três anos após a minha saída da fábrica. Agradeço, igualmente, ao padre Carlo Fabbrini a acolhida atenciosa no bucólico recanto de São Bernardo do Campo em que exerce hoje o seu ministério. É inteiramente minha a responsabilidade pela interpretação aqui contida dos acontecimentos de 1956.
  • 2
    Trabalhei na Cerâmica São Caetano S.A. de novembro de 1953 a fevereiro de 1958, dos 15 aos 19 anos de idade.
  • 3
    Um dos engenheiros que entrevistei mencionou que as operárias que desmaiavam se diziam possuídas pelo demônio. Minha própria lembrança, porém, é a que tomei em consideração neste estudo: a de que as moças viam o demônio. Até porque as referências que tive na época vinham acompanhadas de uma descrição da fisionomia da aparição. Isto é, satanás era um ente com quem as operárias que o viam estavam numa relação de alteridade e de exterioridade. Não seria assim se estivessem possuídas. O padre Carlo Fabbrini me confirmou essa observação. Se fosse possessão, ele teria sido chamado para exorcizar o demônio. E num caso como aquele, envolvendo um grande número de pessoas, essa providência teria dependido de uma autorização especial do bispo diocesano e de um rito especial. Se tal tivesse ocorrido, pela sua excepcionalidade, ele teria guardado viva memória da ocorrência, o que afinal não se deu. Além disso, a possessão se expressaria no comportamento anormal da possuída e não na passividade do desmaio. Um ano antes da aparição do demônio na fábrica, houve a aparição do demônio no bairro do Catulé, município de Malacacheta, Minas Gerais. Ali, sim, vários moradores foram possuídos pelo demônio. No estado de possessão, mataram animais e crianças (cf. Castaldi, 1957CASTALDI, Carlos. (1957) A aparição do demônio no Catulé. In: QUEIROZ, Maria Isaura et alii. Estudos de sociologia e história. São Paulo, Editora Anhembi Limitada, São Paulo.).
  • 4
    Utilizo a concepção de acontecimento analisador-revelador no sentido que lhe dá Lefebvre analisando crises de outras dimensões: “Se é sempre conveniente analisar a crise (...) é preciso igualmente considerar essa mesma crise como analisador do mundo atual. Esta modificação metodológica transforma o horizonte e o curso do pensamento” (cf. Lefebvre, 1978LEFEBVRE, Henri. (1957) La pensée de Lenine. Paris, Bordas., p.232-233) (grifos do original). Em livro anterior, o mesmo autor assinala que “as transgressões servem de analisadores- reveladores; este processo, por efeito das transgressões, aparece na sua totalidade contraditória, dialética” (cf. Lefebvre, 1973, p. 16). Cf., também, Norbert Guterman e Henri Lefebvre (1979, p.3).
  • 5
    Fiz tentativas infrutíferas de localizar, nos bairros vizinhos à fábrica, antigas operárias que tivessem testemunhado as conseqüências do aparecimento do demônio. Esses bairros sofreram muitas transformações desde aquela época, afetados pelas migrações que têm marcado a região industrial do ABC. Isso talvez explique essa dificuldade. Além disso, as operárias da seção de escolha de ladrilhos eram mulheres jovens e solteiras, mais sujeitas a mudança de local de moradia em conseqüência do casamento.
  • 6
    A Cerâmica São Caetano S.A. tinha nessa época uma Divisão de Terra Cota e uma Divisão de Refratários. A Divisão de Terra Cota abrangia dois grandes setores: um de produção de telhas coloniais, lajotas e tijolos brilhantes com barro granulado e “úmido” e outro de produção de ladrilhos com barro pulverizado e “seco”. A Divisão de Refratários produzia tijolos e peças especiais para altos-fornos, especialmente os da Cia. Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda (RJ). Fora inaugurada, em 1944, pelo presidente Getúlio Vargas. A empresa pertencia à família de Roberto Simonsen, já falecido na época dos fatos aqui analisados.
  • 7
    Vários dos adolescentes eram invisíveis para os esquemas de vigilância da fábrica. Mas, eram invisíveis, também, para os operários e o próprio sindicato. Na greve de outubro de 1957 (v. adiante), as atividades da fábrica foram interrompidas à força e os operários foram obrigados a sair. Vários adolescentes, porém, nem sequer foram notados e permaneceram lá dentro, atônitos, sem saber o que fazer. Eu mesmo saí para comprar algumas coisas para os engenheiros que iam ficar na fábrica e voltei a entrar, passando pelo piquete, sem ao menos ser interpelado. Só depois é que deixei a fábrica definitivamente. No fundo, tanto para os patrões como para o sindicato, os menores que ali trabalhavam viviam numa espécie de limbo das relações de classe. Uma única vez, depois de estar trabalhando ali há muito tempo, alguém se deu conta de que, pelo meu trabalho, eu podia ver mais do que outros. Fui, então, advertido mais ou menos da seguinte maneira: “Tudo o que você vê aqui não pode ser contado a ninguém. Um dia você se casará e terá filhos. Nem a eles deverá contar o que viu aqui.” A preocupação, era evidentemente, não só com o que eu podia ver no funcionamento da fábrica, mas principalmente com o que eu podia ler nos documentos que levava de um lado para outro. A sábia preocupação era, obviamente, com o discernimento a posteriori que eu poderia ter a respeito do que via e lia, isto é, das informações e dos segredos técnicos da produção.
  • 8
    Sobre a relação entre a memória individual e a autobiografia, de um lado, e a memória coletiva, de outro, cf. Maurice Halbwachs (1990, p.51)HALBWACHS, Maurice. (1990) A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Ed. Vértice..
  • 9
    Na análise do processo de produção, enquanto unidade desencontrada do processo de trabalho e do processo de valorização, Marx já está propondo, de fato, o que se poderia chamar hoje de estudo sociológico dos aspectos propriamente cotidianos das relações de produção. As sugestões indiretas de uma análise desse tipo, contidas na noção marxiana de processo de trabalho, são incorporadas por Vera Maria Candido Pereira, na perspectiva fenomenológica, quando destaca, na apresentação de seu livro, a intenção de estudar não só as características do processo de trabalho, mas, também, “a maneira como os trabalhadores o experimentam”. O que, de alguma forma, conflita com a orientação althusseriana de seu estudo (cf. Pereira, 1979PEREIRA, Vera Maria Candido. (1979) O coração da fábrica. Estudo de caso entre operários têxteis. Rio de Janeiro, Ed. Campus., p.19).
  • 10
    Sobre a repercussão da greve de 1957 na região do ABC, cf. Fábio Antônio Munhoz (s/d, p.12)MUNHOZ, Fábio Antônio. (s/d) Sindicalismo e democracia populista: a greve de 1957.(mimeo). São Paulo, CEDEC. e Aloizio Mercadante (org.) (1987, p.91)MERCADANTE, Aloizio (org.). (1987) Imagens da luta. São Bernardo do Campo, Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de São Bernardo do Campo e Diadema..
  • 11
    Muitas referências à Cerâmica São Caetano podem ser encontradas no excelente livro de John D. French (1992)FRENCH, John D. (1992) The brazilian workers’ ABC. Class conflict and alliances in modern São Paulo. Chapel Hill, The University of North Carolina Press..
  • 12
    Foi a Cerâmica São Caetano que pagou o meu curso secundário no Instituto de Ensino de São Caetano do Sul. E era um funcionário da empresa que examinava e comentava minhas notas e minha carreira escolar.
  • 13
    Foi a Cerâmica São Caetano que pagou o meu curso secundário no Instituto de Ensino de São Caetano do Sul. E era um funcionário da empresa que examinava e comentava minhas notas e minha carreira escolar.
  • 14
    As jazidas de matérias-primas utilizadas tanto na Divisão de Terra Cota quanto na Divisão de Refratários estavam localizadas em vários pontos do país, algumas delas na Bahia. Eram geridas por uma subsidiária da Cerâmica, a Cia. Paulista de Mineração - COPAMI.
  • 15
    A desigualdade do desenvolvimento tecnológico entre as etapas do processo de trabalho, tanto na indústria quanto na agricultura, é hoje conhecimento de senso comum na sociologia do trabalho. Sobre a indústria, cf. Vera Maria Candido Pereira (1979, p.24)PEREIRA, Vera Maria Candido. (1979) O coração da fábrica. Estudo de caso entre operários têxteis. Rio de Janeiro, Ed. Campus.. Lefebvre já havia observado “que a desigualdade de desenvolvimento se estende e se estenderá não somente ao país, mas às regiões, aos ramos da indústria e mesmo ao interior das empresas (justaposição de técnicas atrasadas e de técnicas modernas)” (Lefebvre, 1957LEFEBVRE, Henri. (1957) La pensée de Lenine. Paris, Bordas., p.248).
  • 16
    Raríssimas informações que vazavam acidentalmente das reuniões semanais das sextas-feiras à tarde entre o diretor da empresa e os engenheiros indicam que era forte o temor do comunismo entre os proprietários da fábrica. Isso talvez explique porque um dos dois vigilantes era, provavelmente, como se dizia na época, agente da polícia política. A vigilância que procurava estabelecer a plena visualização dos corpos dos trabalhadores difundia um método de disciplina do trabalho baseado na visibilidade difusa e impessoal do que se fazia na fábrica, diferente do método da coação moral e indireta dos mestres das seções. Revelava, também, uma clara consciência da relação entre corpo e poder. Um rapaz espionado pelo encarregado de um dos sanitários masculinos, através de orifício feito exatamente para isso na porta de cada banheiro, foi suspenso do serviço porque fora surpreendido se masturbando. É compreensível que o olho do poder, na fábrica, tenha sido um “olho móvel”. Com umas poucas exceções, estavam as seções instaladas segundo a concepção do panóptico, de que nos fala Foucault. Num lugar estratégico ficava, em plano mais elevado, um pequeno escritório envidraçado onde trabalhavam o mestre e seus auxiliares. Porém, havia muitos recantos pela fábrica fora de qualquer visibilidade “natural”. Sobre esses temas, cf. Michel Foucault (1975)FOUCAULT, Michel. (1975) Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris, Éditions Gallimard. e (1982)______. (1982) Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado, 3ª edição. Rio de Janeiro, Editora Graal..
  • 17
    Fábricas fundadas entre o fim do século XIX e o início do século XX, como a Cerâmica São Caetano, tinham usualmente uma oficina mecânica destinada ao conserto, manutenção e recondicionamento de máquinas, geralmente importadas e de manutenção difícil e incerta por parte dos fabricantes. Como na Cerâmica, algumas dessas oficinas estavam em condições de produzir equipamentos industriais substitutivos dos importados. Foram essas oficinas, em grande parte, que asseguraram a sobrevida das indústrias brasileiras durante as duas guerras mundiais. Algumas delas se transformaram em fábricas autônomas. A indústria de bens de capital já estava instalada no interior da indústria de bens de consumo quando foi chamada a substituir importações com as dificuldades das guerras. Ela não nasceu, como pensam alguns historiadores da economia, dos estímulos de mercado criados artificialmente por esses bloqueios. Além disso, já havia uma incipiente indústria de equipamentos no país desde o final do século passado. Lembro que na Revolução de 1932 essas indústrias foram adaptadas em questão de dias para produzir material bélico.
  • 18
    O tema das repercussões do modo de vida da comunidade vizinha no interior da fábrica já aparece em pioneiros manuais de sociologia industrial. Cf. Eugene V. Schneider (1957, esp. p.365)SCHNEIDER, Eugene V. (1957) Industrial sociology. The social relations of industry and the community. New York, McGraw-Hill Book Company, Inc.. No Brasil, o tema foi originalmente estudado por Juarez Rubens Brandão Lopes, quase na mesma época das ocorrências aqui analisadas. Na concepção, porém, de que a comunidade envolvente estaria numa relação de contraponto com a indústria portadora do racional e do moderno, como fonte de condutas tradicionalistas. Ver Lopes (1964)LOPES, Juarez Rubens Brandão. (1964) Sociedade industrial no Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro. e (1967)______. (1967) Crise do Brasil arcaico. São Paulo, Difusão Européia do Livro.. Mais recentemente, José Sergio Leite Lopes retomou o tema, examinando o que de fato é um conflito entre a vila operária e a fábrica (Cf. Lopes, 1988LOPES, José Sergio Leite. (1988) A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo, Editora Marco Zero.).
  • 19
    Não obstante, “a realidade humana da produção pode entrar em contradição com seu resultado ‘inumano’; como a atividade e a maneira de produzir podem entrar em contradição com o que produzem...” (cf. Gorz, 1964, p.55) (grifos do original).
  • 20
    “A redução do trabalhador ao nível de um instrumento no processo produtivo não está, de modo algum, exclusivamente associada com a maquinaria. Devemos também observar, ou na ausência de maquinaria ou em conjunção com máquinas operadas individualmente, a tentativa de tratar os próprios trabalhadores como máquinas. Este aspecto da gerência científica foi ampliado pelos sucessores imediatos de Taylor” (cf. Braverman, 1981, p.151) (grifos do original). Roberto Simonsen, patriarca da família de proprietários da Cerâmica, foi defensor dos princípios tayloristas e sobre o assunto fez discursos e conferências (cf. Simonsen, 1973, esp. p.436-442).
  • 21
    Um estudo comparativo de processos de trabalho em que setores arcaicos estão localizados em momentos opostos, no começo ou no fim, poderia esclarecer minúcias do processo de produção capitalista e das relações de classe que têm mais importância do que se pode supor. Para isso, é necessário que os sociólogos do trabalho não privilegiem, em seus estudos, os setores de ponta, tecnologicamente mais desenvolvidos. Aronowitz sublinhou a desvalorização do artesanato na perspectiva dos estudiosos das relações de trabalho (cf. Aronowitz, 1978ARONOWITZ, Stanley. (1978) Marx, Braverman, and the logic of capital. In: ______. The insurgent sociologist. Vol. VIII, nº 2-3. Eugene, University of Oregon, fall., p.126).
  • 22
    Michael Taussig constatou, no vale de Cauca, na Colômbia, que os trabalhadores rurais assalariados acreditam poder aumentar a produção e seus ganhos estabelecendo um contrato secreto com o diabo. Mas, nunca o fazem quando trabalham em sua própria terra ou na terra de seus vizinhos, mesmo como assalariados. Crêem, também, que é possível batizar o dinheiro no momento do batismo de uma criança, privando-a, assim, dos efeitos despaganizadores do batismo. Para eles, diz Taussig, “o novo modo de produção (capitalista) é inerentemente crítico e antagônico” (cf. Taussig, 1977TAUSSIG, Michael. (1977) The genesis of capitalism amongst a South American peasantry: Devil’s labor and the baptism of money. In: ________. Comparative studies in society and history. Vol. 19, nº 2. Cambridge, Cambridge University Press, April., p.130-155).
  • 23
    “Uma aranha executa operações que lembram as do tecelão e uma abelha envergonharia, pela construção das células de sua colméia, mais de um mestre pedreiro. Mas, o que distingue vantajosamente o pior mestre pedreiro da melhor abelha é que o primeiro modelou a célula em seu cérebro antes de construí-la na cera. Ao consumar-se o processo de trabalho surge um resultado que antes dele começar já existia na imaginação do trabalhador, ou seja, idealmente” (cf. Marx, 1982______. (1982) El Capital. Crítica de la economía política, Libro primero, tomo I, vol. 1. Trad. de Pedro Scaron. México, Siglo Veinteuno Editores., p.216).
  • 24
    Halbwachs observa que “na sociedade de hoje, o passado deixou muitos traços, visíveis algumas vezes, e que se percebe também na expressão dos rostos, no aspecto dos lugares e mesmo nos modos de pensar e de sentir, inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas e dentro de tais ambientes...” (cf. Halbwachs, 1990HALBWACHS, Maurice. (1990) A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Ed. Vértice., p.68).
  • 25
    Poucos anos depois dos acontecimentos aqui examinados, estudando a industrialização e a consciência operária em São Paulo, Touraine observou que “na maioria dos casos, o imigrante reencontra na cidade uma parte de seu meio de origem, seja (...) porque a migração se realiza em família, seja porque o imigrante individual é acolhido, na sua chegada, por vizinhos próximos ou antigos” (cf. Touraine, 1961TOURAINE, Alain. (1961) Industrialisation et conscience ouvrière à São Paulo. In: _______. Sociologie du Travail. Troisième année, nº 4/61. Paris, Éditions du Seuil., p.93). Um bom indício da presença desses valores católicos tradicionais nos dois bairros em que moravam os operários da fábrica está num fato ocorrido alguns anos antes destes acontecimentos: uma menina, por ter falecido poucos dias depois de sua primeira-comunhão, sepultada no chamado Cemitério da Cerâmica, ao lado da fábrica, morreu com fama de santidade. Seu túmulo passou a ser objeto de romarias e promessas e o é ainda hoje. O padre Fabbrini relatoume que, muitas vezes, operárias da Cerâmica, antes de irem para o trabalho, iam à missa e recebiam o sacramento da Eucaristia. Mesmo nestes últimos anos, especialmente em Mauá e em São Bernardo do Campo, descobriu-se a existência de grupos folclóricos inteiros migrados de Minas Gerais e do Nordeste para trabalhar nas fábricas da região industrial do ABC: um grupo de sambalenço e duas folias-de-reis. Grupos idênticos foram localizados em Osasco e na zona leste de São Paulo, na região de São Miguel Paulista. Essas “sobrevivências” sugerem, no mínimo, cautela em relação às certezas definitivas difundidas por certas correntes teóricas que atribuem à cidade e à fábrica um poder de corrosão das culturas tradicionais que não está se confirmando na intensidade suposta.
  • 26
    Para discorrer sobre a crítica da vida cotidiana na própria ação, o autor se inspira justamente em Tempos Modernos, de Chaplin.
  • 27
    A celebração e a oferenda das primícias da produção agrícola foi muito difundida, até há pouco, no Brasil rural. Em parte para evitar o mau-olhado, o caráter maligno do olhar invejoso. Em parte, para evitar que a produção fosse possuída pelas forças do mal e, conseqüentemente, o próprio trabalho fosse alcançado e mutilado pelo maligno (cf. Araújo, s/dARAÚJO, Alceu Maynard. (s/d) Folclore nacional. Vol. III, 2ª edição. São Paulo, Edições Melhoramentos., p.117-120). Ritos de benzimento de edifícios na inauguração de empresas eram muito difundidos na localidade, na época destas ocorrências. Mas, o que aconteceu na fábrica não se ligava propriamente ao ato inaugural de tipo urbano e sim à concepção agrária de que a riqueza criada pelo trabalho pode se insurgir contra o trabalhador, se não for simbolicamente oferecida às forças do bem, que se opõem ao mal e o exorcizam preventivamente.
  • 28
    Sobre a antinomia do cotidiano e da festa, cf. Monique Périgord (1977, p.235-254)PÉRIGORD, Monique. (1977) Henri Lefebvre ou les moments de la quotidienneté. In: Revue de Synthèse. Tome XCVIII, nº 87/88. Paris, juillet/décembre..
  • 29
    Sobre a suspeita nas relações sociais, cf. Boltanski (1973, p.127-147)BOLTANSKI, Luc. (1973) Erving Goffman et le temps du soupçon. In: Social Science Information. XII-3. The Hague, International Social Science Council, Mouton & Co., June..
  • 30
    Essa concepção influenciou amplamente o desenvolvimento da chamada sociologia fenomenológica, nas suas várias correntes e desdobramentos, especialmente no interacionismo simbólico, de Blumer (cf. 1969)BLUMER, Herbert. (1969) Symbolic Interactionism. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, Inc.. Mas, também na dramaturgia social de Goffman (cf. 1971)GOFFMAN, Erving. (1971) La presentación de la persona en la vida cotidiana. Trad. de Hildegarde B. Torres Perrén e Flora Setaro. Buenos Aires, Amorrortu Editores..
  • 31
    Cf., em especial, Michael T. Taussig (1983)______. (1983) The devil and commodity fetishism in South America. Chapel Hill, The University of North Carolina Press. e Laura de Mello e Souza (1987)SOUZA, Laura de Mello e. (1987) O diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo, Companhia das Letras..
  • 32
    Num estudo extremamente interessante sobre o tema, Lefebvre, em referência ao Fausto, de Goethe, diz: “O diabo cumpre as promessas do conhecimento. O conhecimento anuncia e promete a totalidade da vida e da consciência, da natureza e do espírito, do poder e da espontaneidade, da juventude e do saber, e, ainda, a da alegria e da lucidez, da poesia e da inocência” (cf. Lefebvre, 1962LEFEBVRE, Henri. (1957) La pensée de Lenine. Paris, Bordas., p.68).
  • 33
    Na análise do fetichismo da mercadoria, Marx já havia assinalado que ela “é um objeto endemoninhado, rico em sutilezas metafísicas e reticências teológicas”. E acrescentou: “O misterioso da forma mercantil consiste, simplesmente, em que a mesma reflete ante os homens o caráter social de seu próprio trabalho como caracteres objetivos inerentes aos produtos do trabalho, como propriedades sociais naturais de ditas coisas e, portanto, em que também reflete a relação social que medeia entre os produtores e o trabalho global, como uma relação social entre objetos, existente à margem dos produtores” (cf. Marx, 1982______. (1982) El Capital. Crítica de la economía política, Libro primero, tomo I, vol. 1. Trad. de Pedro Scaron. México, Siglo Veinteuno Editores., p.87-88).
  • Trabalho apresentado no Simpósio de Antropologia Industrial organizado por Eliane Daphy e Oscar Gonzalez no 13o Congresso Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas. México (DF), 29 de julho a 5 de agosto de 1993.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Dec 1993

Histórico

  • Recebido
    Abr 1994
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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