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François Chesnais. Finance capital today: corporations and banks in the lasting global slump. Boston, Brill Academic Pub., 2016. 310 pp.1 1 Agradeço a Clarisse Coutinho Ribeiro pelos comentários ao texto, eximindo-a, contudo, da responsabilidade pelas imperfeições deste texto.

François, Chesnais. . Finance capital today: corporations and banks in the lasting global slump. Boston: Brill Academic Pub, 2016310pp.

Com cinco livros publicados no Brasil2 2 Levando em conta autoria e coautoria/organização: Chesnais (1996, 1998a), Chesnais et al. (2003), Chesnais (2005a) e Chesnais et al. (2010). , além de artigos, o economista François Chesnais tornou-se uma referência para os estudos críticos sobre a financeirização em todo o campo das ciências sociais, tendo sido um dos pioneiros no tratamento da questão (praticamente ignorada pelo mainstream da economia até hoje). Por empregar os termos da Escola da Regulação na primeira fase da sua obra (anos de 1990), devido à importância dessa corrente no debate francês3 3 Mas também fora dele. Na mesma época, David Harvey (1993) assumidamente realiza uma análise regulacionista do capitalismo contemporâneo. , foi por vezes considerado regulacionista. Progressivamente, essa via de análise perdeu força em seus textos, em benefício de um maior recurso a Marx, e foi abandonada a partir de 2006. O autor foi, assim, um dos poucos a teorizar a financeirização de modo mais aprofundado, buscando retomar de perto a obra marxiana4 5 Ver, particularmente, o capítulo do autor em A finança capitalista (Chesnais et al., 2010). . Trata-se de um esforço fundamental, na medida em que nesta não se encontra imediatamente a ideia de uma fase financeira ou de financeirização, mas um quadro conceitual e analítico indispensável.

A financeirização, tal como entendida pelo autor, não significa somente o aumento da riqueza circulando em canais financeiros, mas um longo processo histórico de transformações do capitalismo, impulsionado fundamentalmente por uma situação de sobreacumulação do capital em âmbito mundial. Esta culminou na recessão mundial dos anos de 1970, no fim do fordismo-keynesianismo e na afirmação do neoliberalismo através de uma mundialização5 5 Respeita-se neste texto a tradução consagrada em português do termo mondialisation empregado pelo autor. Os termos em francês mondialisation e globalisation muitas vezes são empregados como sinônimos. No campo crítico, no entanto, a preferência é pelo primeiro, de modo a se distanciar do caráter vago e mesmo apologético que o termo anglófono globalization por vezes possui - de um mundo que se integra mais e de culturas que compartilham mais entre si, obscurecendo a questão do capital. do capital operada cada vez mais pelos mercados e agentes financeiros. Ao escrever La mondialisation du capital, Chesnais percebeu a importância crescente das finanças, de modo que a edição brasileira (publicada dois anos depois) possui “acréscimos substanciais”6 6 Por uma questão de clareza, neste texto serão usadas aspas duplas para citações e aspas simples (fora das citações) para palavras com emprego não convencional, neologismos etc. (Chesnais, 1996CHESNAIS, François. (1996), A mundialização do capital. São Paulo, Xamã., p. 13) nos dois capítulos que tratam da mundialização financeira. O livro seguinte, uma obra coletiva tendo o objetivo de apresentar diferentes aspectos desse novo fenômeno, já levou o título de La mondialisation financière [A mundialização financeira].

Chesnais (1998bCHESNAIS, François. (1998b), “Introdução”. In: CHESNAIS, François. (org.), A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo, Xamã, pp. 11-33. ) reconstituiu, assim, as principais etapas dessa história até a década de 1990, que envolveu principalmente: a abertura e desregulamentação financeiras; transformações do sistema monetário internacional; o surgimento/fortalecimento de novos atores ligados ao capital portador de juros e ao capital fictício (fundos de investimento e de pensão e seguradoras); mudanças na ação do Estado (política de juros, de câmbio, fiscal etc.) e na organização das empresas (ampliação das atividades financeiras, adoção de parâmetros financeiros de rentabilidade e as consequentes reestruturações produtivas); e reconfiguração da relação de forças entre capital e trabalho (vantajosa àquele) e entre frações da classe capitalista (em prol das finanças e do “capital-propriedade”).

A primeira dessas etapas (1960-1979) iniciou-se quando os sistemas monetários e financeiros ainda eram compartimentados e havia uma situação de finanças administradas e “internacionalização financeira ‘indireta’” (Chesnais, 1998bCHESNAIS, François. (1998b), “Introdução”. In: CHESNAIS, François. (org.), A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo, Xamã, pp. 11-33. , p. 24). Nos anos de 1970, há o retorno de intensa especulação com moedas, de modo que o mercado de câmbio foi o primeiro a ingressar na mundialização financeira. A segunda etapa (1980-1985) caracterizou-se propriamente pelo “golpe de Estado” (Chesnais, 2005bCHESNAIS, François. (2005b), “O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos”. In: CHESNAIS, François. (org.), A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo, Boitempo, pp. 35-67. , p. 40) dos credores, com a desregulamentação e liberalização financeiras a partir da consolidação do neoliberalismo, sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido. Nesse período, surgiram novos produtos financeiros e houve a expansão dos mercados de títulos da dívida pública e a sua interligação em âmbito mundial. A partir do Big Bang da City7 7 Conjunto de medidas liberalizantes colocadas em prática num curto espaço de tempo na praça financeira londrina que pressionou os mercados de outros países a também realizarem mudanças nesse sentido. Uma das consequências foi a concentração bancária que deu origem a grandes bancos de investimentos. , ingressou-se na terceira etapa (1986-1995). Após a inclusão dos mercados de câmbio e de títulos da dívida - que continuaram crescendo e abrigando cada vez mais transações -, foi a vez dos mercados acionários serem abertos e desregulamentados em todo o mundo. Nessa etapa, os derivativos se multiplicaram, a governança corporativa se consolidou como modo de gestão, o shadow banking system8 8 Setor paralelo aos bancos comerciais que combina o dinheiro como capital centralizado por, basicamente, fundos de investimento e de pensão. encontrou novas oportunidades e ocorreu a incorporação de países “emergentes”, com suas economias mais frágeis, à mundialização financeira.

Em Finance capital today, Chesnais tanto realiza uma síntese de seu trabalho das últimas duas décadas quanto analisa a situação do capitalismo no século XXI, resultando em uma valiosa contribuição para a compreensão crítica do capitalismo. Norteando-se pelas indicações de Marx nos Grundrisse, considera mais a sério a consolidação do “mercado mundial”9 9 As referências a Finance capital today serão indicadas apenas com o número da página e as citações são de tradução nossa. (p. 10), onde a totalidade do sistema capitalista se consumaria. Isso o conduz, por exemplo, a se debruçar mais sobre as economias “emergentes”10 10 O autor utiliza tanto o termo “emergente” quanto “em desenvolvimento” para designar países/economias não centrais. Aqui eles serão empregados em cada ocasião conforme o uso no livro. de maior relevância, inclusive o Brasil11 11 Os livros anteriores se concentravam no sistema mundial e nos países centrais (Europa e Estados Unidos, praticamente). Pierre Salama, especialista em economias emergentes/periféricas, é que ficou a cargo do tratamento dessa questão em capítulos de obras coletivas. .

Nos capítulos 1 e 2, o autor retoma a reconstrução histórica realizada anteriormente e a contribuição teórica de Marx (também e sobretudo no capítulo 3), para então apresentar o que se poderia considerar uma quarta etapa da financeirização. Não se trata propriamente de uma nova rodada de expansão da mundialização financeira, dado que ela já abarcava praticamente todo o mundo capitalista e seus mercados, mas de seu aprofundamento através de uma maior conexão entre os grandes bancos internacionais, de uma progressão na centralização e transnacionalização do capital, da proliferação de produtos financeiros (novas formas do capital fictício) e do atingimento de certos limites do capitalismo.

Por meio de uma linguagem relativamente acessível aos não especialistas em finanças12 12 Há um glossário de termos financeiros no final do livro. , são considerados aspectos anteriormente não trabalhados a fundo pelo autor, como as transformações do sistema bancário e do crédito, assim como o que estava, e está, em jogo na crise econômica e financeira mundial iniciada em 2007. Essa crise foi um marco, na medida em que pôs fim à “mais longa fase de acumulação da história do capitalismo” (p. 25), e sua ocorrência revelou que havia novos processos em curso desde 2001. Infelizmente, algumas questões são tratadas de forma menos aprofundada, compreensível na medida em que o intuito é abarcar diversos aspectos relevantes do capitalismo atual. Não obstante, há apêndices interessantes e várias referências a outros trabalhos e relatórios para o leitor mais interessado. O cuidado na apresentação de dados para sustentar a argumentação também se revela no capítulo mais teórico, com boa referência a Marx e recurso à obra de David Harvey como comentador profícuo daquele13 13 Em A finança capitalista, Chesnais já mobiliza mais a obra de Harvey na argumentação, porém o recurso a ela em Finance Capital Today é sensivelmente maior. Os benefícios analíticos de explorar as relações entre a produção dos dois autores levaram-me a tratar do assunto (ver Lapyda, 2011). , bem como na exposição das divergências em relação a outros marxistas.

Para as ciências sociais brasileiras, a importância da obra é inegável, primeiramente, pela maior atenção dada à situação dos países em desenvolvimento em relação a livros anteriores do autor. Além disso, o entendimento adequado do fenômeno da financeirização (cujos aspectos centrais estão resumidos na p. 16) e dos processos recentes que o capitalismo atravessou é fundamental para a compreensão das transformações econômicas, sociais (sobretudo do mundo do trabalho) e políticas pelas quais o Brasil tem passado. Alguns exemplos: a centralidade da dívida pública e da taxa de juros nas decisões governamentais brasileiras; a política dos “campeões nacionais” de governos petistas e da atuação do BNDES; a atual crise política e a série de reformas (Trabalhista, da Terceirização, da Previdência, do Teto dos Gastos) que são seu ponto-chave.

Nas próximas seções, são comentados os pontos centrais do livro.

Crise de financeirização ou queda da taxa de lucro?

Já na Introdução do livro, são adiantados aspectos primordiais do trabalho, entre os quais justamente a concepção sobre a crise mundial atual. Ela ocorre em um momento histórico caracterizado não só pela financeirização, mas pela completude do mercado mundial (com a entrada da China e dos países socialistas do Leste Europeu/União Soviética) e pelo abalo da hegemonia dos Estados Unidos (que não seria mais capaz de, sozinho, erguer a economia mundial). Contrariamente a Lapavitsas, para quem se trataria de uma “crise de financeirização” (pois não haveria queda de lucratividade), Chesnais afirma estarmos diante de uma “crise do capitalismo tout court” (pp. 1-2). Ou seja, uma crise de sobreacumulação e superprodução, agravada pela queda da taxa de lucro - adiada desde os anos de 1990 através da criação massiva de crédito e da incorporação da China à economia mundial.

A proposição da queda da taxa de lucro é um dos elementos controversos do livro e ainda deverá ser muito debatida pelos economistas em sua “guerra” de dados. Lapavitsas e Mendieta-Muñoz (2016LAPAVITSAS, Costas & MENDIETA-MUÑOZ, Ivan. (2016), “The profits of financialization”. Monthly Review (on-line), 68 (3), jul. https://monthlyreview.org/2016/07/01/the-profits-of-financialization/.
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), por exemplo, afirmam que a taxa de lucro caiu até os anos de 1980, tendo se estabilizado a partir de então. Uma resposta a isso se encontra no capítulo 1, ao se confrontar também a tese de HussonHUSSON, Michel. (2017), “Le capital financier et ses limites: autour du livre de François Chesnais”. Disponível em Disponível em http://alencontre.org/economie/le-capital-financier-et-ses-limites-autour-du-livre-de-francois-chesnais.html , consultado em 23/6/2017.
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(p. 29), de que a taxa de lucro nos países centrais tem aumentado. Por um lado, aponta-se o movimento (descendente) da taxa de lucro das empresas não financeiras nos Estados Unidos14 14 Husson (2017) volta a insistir em sua tese com base em dados sobre o aumento da taxa de lucro e a estabilidade, ou mesmo queda, da taxa de acumulação. . Por outro, são apresentados os efeitos, nas últimas décadas, das contratendências à queda da taxa de lucro levantadas por Marx n’O Capital. Ou seja, Chesnais busca justamente explicar ao longo da obra por quais expedientes a taxa de lucro pode se manter estável ou até se elevar por algum tempo sem que haja necessariamente aumento da produtividade ou da taxa de acumulação do capital: intensificação da exploração do trabalho, aumento da superpopulação relativa, atividades financeiras por parte das empresas, apropriação pelos oligopólios de parte da mais-valia gerada por seus concorrentes ou por suas subcontratadas etc.

De todo modo, a persistência do quadro de sobreacumulação (em decorrência da insuficiente destruição de capacidade produtiva e da pouca eliminação de capital fictício devido aos salvamentos financeiros) conduz ao diagnóstico de uma crise que teve seu curso interrompido e, consequentemente, da falta de perspectiva de sua superação. Os países centrais ainda não teriam encontrado substituto para o modelo de “crescimento impulsionado pela dívida” [debt-led growth] e os trabalhadores não teriam conseguido evitar que os custos recaíssem sobre os mais vulneráveis, devido às pressões decorrentes da ampliação do exército industrial de reserva global pelo contingente chinês15 15 Este último ponto leva Chesnais a discutir, no final do capítulo 6, a questão da superexploração da força de trabalho e do subimperialismo. A posição do autor é de que a internacionalização do “grau médio de habilidade e intensidade do trabalho” (produtividade do trabalhador), com a existência de diferenças salariais em cada país, explica a desindustrialização das economias centrais, assim como os lucros obtidos na periferia. .

Duas dimensões da financeirização: finance capital e financial capital

Outro ponto fundamental da Introdução é conceitual/terminológico. Dados os mais de vinte anos de produção teórica do autor desde A mundialização do capital, os diferentes termos (próprios e citados) por vezes semelhantes entre si e as inevitáveis questões de tradução para o português16 16 Das obras publicadas no Brasil, talvez a Finança Mundializada seja a que mais se prestou a mal-entendidos pela diversidade de termos empregados, à qual o próprio autor atenta: “O capital portador de juros (também designado “capital financeiro” ou simplesmente “finança”) não foi levado ao lugar que hoje ocupa por um movimento próprio” (p. 35). Para uma breve consideração sobre os termos empregados por Marx e por Chesnais, ver Lapyda (2011, Anexo II). , algumas confusões surgiram e, com elas, críticas nem sempre acertadas a Chesnais. Talvez a principal seja a concepção equivocada de que financeirização significaria uma mera “hipertrofia” dos mercados financeiros ou uma progressiva indistinção entre o capital produtivo e o capital monetário que faria com que a valorização do capital deixasse de se basear na produção de mercadorias.

Consciente disso, desde o início (p. 1) o autor diferencia conceitos relativos a “duas dimensões interconectadas, ainda que distintas, da economia capitalista mundial contemporânea” que se ligam à financeirização. Primeiramente, há o finance capital, tradução em inglês do termo empregado por Hilferding17 17 Em seu livro mais famoso, Das Finanzkapital (Capital financeiro, na tradução brasileira, Hilferding, 1985). . Na formulação de Chesnais, refere-se às “formas e consequências do entrelaçamento entre bancos globais altamente concentrados e internacionalizados, grandes empresas transnacionais industriais e de serviços e gigantes do comércio” (p. 1). Sua configuração contemporânea é analisada ao longo do livro, mas uma diferença importante em relação à Hilferding é colocada desde logo: atualmente não haveria uma clara hegemonia dos bancos. Os executivos de uma General Motors, de um Wal Mart e de um Goldman Sachs estariam em patamares semelhantes18 18 Evidentemente, a configuração varia entre os países. Chesnais afirma que na Alemanha ainda são perceptíveis traços da posição privilegiada dos bancos (pp. 94-95). Também nessa questão, o autor diverge de Lapavitsas (2009, p. 143 ss.), para quem a teoria do finance capital é incompatível com a situação atual. ; e as grandes corporações industriais seriam forçadas a destinar parte da mais-valia (variando segundo a correlação de forças, poderes de monopólio/monopsônio e posição na cadeia global de valor) a essas outras modalidades de capital.

Esses gigantes oligopolistas, por sua vez, têm cada vez mais se envolvido com o financial capital, o capital de investimento financeiro propriamente dito (tradicionalmente gerido pelas instituições financeiras), cuja compreensão parte do conceito marxiano de capital portador de juros. Ou seja, trata-se da finance qua finance: “processos associados com e resultantes do crescimento espetacular, ao longo dos últimos quarenta anos, de ativos (títulos, ações, derivativos) possuídos por empresas financeiras (grandes bancos e fundos), mas também pelos departamentos financeiros das empresas transnacionais e dos mercados específicos em que operam” (p. 1).

Como ressalta Chesnais, essa segunda dimensão da economia capitalista mundial colocou a classe trabalhadora em uma situação na qual enfrentam o capital como trabalhadores nas fábricas e como devedores na vida cotidiana. O lucro financeiro (produzido por empresas financeiras) subiu de 15-20% do lucro total nos anos de 1980, para 40% às vésperas da crise de 2007-2008 nos Estados Unidos. Houve elevação do ganho com taxas e comissões dos bancos devido às mudanças em sua atuação, assim como de novos “modos espoliativos de apropriação” [exploitative modes of appropriation] (p. 75) dos salários dos trabalhadores19 19 O termo é emprestado de Lapavitsas, que passou a empregar a expressão mais sucinta de “expropriação financeira” (Lapavitsas, 2009; Lapavistas e Mendieta-Muñoz, 2016). : juros e taxas sobre hipotecas, empréstimos estudantis, cartão de crédito etc. (sobretudo nos Estados Unidos). Semelhanças com a situação brasileira são nítidas.

Desde os anos de 1980, a concentração e centralização do capital industrial e do financial capital tornaram-se, então, indissociáveis (embora não indistintas). Desse modo, a financeirização diz respeito tanto às finanças como à produção: liga-se, decerto, ao aumento do capital de investimento financeiro em circulação, mas também a um processo de oligopolização crescente do capital (em todas as suas formas) em escala mundial, sendo as atividades financeiras um de seus veículos e modos de reprodução fundamentais. Certamente para enfatizar isso é que o título do livro leva o termo “finance” (e não “financial”) e que, nos capítulos 4 a 6, Chesnais trata desses oligopólios globais e de seu modo de operação.

O capítulo 4 inicia-se com uma análise de quatro casos, mostrando como historicamente o finance capital se configurou de modo distinto nos países (Alemanha, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França), sobretudo no que se refere ao predomínio dos bancos. Principalmente no caso dos Estados Unidos, o desenvolvimento da acumulação financeira, a emergência dos fundos de pensão e o restabelecimento da força dos mercados de ações, conferiu importância à questão da propriedade e do controle do capital. Dessa forma, a interconexão dos conselhos de administração das empresas tornou-se um elemento importante de análise, embora, segundo Chesnais, a formação de uma “classe capitalista mundial” seja de difícil efetivação, devido à grande concorrência entre as empresas oligopolistas20 20 Na Europa, a existência da União Europeia imporia às grandes empresas a necessidade econômica e política de buscar o apoio dos seus países-sede no jogo da concorrência, de modo que a interconexão dos conselhos de administração seria mais difícil e a formação de uma “classe capitalista transnacional”, ainda mais distante. Por outro lado, estudos recentes têm revelado um aumento das interconexões, e o setor financeiro é justamente aquele em que há maior transnacionalização (pp. 106-108). . De toda forma, a imposição dos interesses das finanças, através da governança corporativa e outros expedientes, provocou uma série de transformações no país: lógica “curto-prazista” (da política de investimento e de retorno), diminuição dos gastos em P&D, estratégia empresarial de downsize and distribute (enxugamento da empresa, sobretudo em termos de força de trabalho, e distribuição de dividendos) e desindustrialização (queda da participação da indústria e perda de competitividade).

Nesse sentido, o autor busca em Lazonick a melhor caracterização sobre o que ocorreu nos Estados Unidos nas últimas décadas: uma transição da ênfase na criação de valor para a extração de valor (p. 104). Essa formulação vai ao encontro da questão da “expropriação financeira” de Lapavitsas (ver nota 19), e da “acumulação por espoliação” de Harvey (2004HARVEY, David. (2004), O novo imperialismo. São Paulo, Loyola.). Um dos traços da financeirização, portanto, é a dissolução da antiga divisão entre as operações financeiras e não financeiras das grandes empresas, embora analiticamente elas devam ser distinguidas (p. 112). Tanto empresas de produção e de comércio de mercadorias (como General Motors e Wal Mart) ampliam suas atividades financeiras com o lucro não reinvestido, constituindo até bancos próprios, como conglomerados financeiros passam a atuar nas atividades de produção e comércio (como o Citigroup e o JP Morgan Chase).

Assim, se perante os trabalhadores o finance capital se apresenta como um bloco, entre as empresas oligopolistas há grande rivalidade, da qual resulta a importância atual dos chamados “lucros da circulação”, expressão à qual Chesnais busca dar um sentido marxista. Esses lucros (do ponto de vista individual) provêm do jogo de soma zero das atividades especulativas (o ganho de um é perda para o outro) e da disputa entre esses gigantes pela apropriação da mais-valia gerada na produção (p. 114). No final do capítulo, ainda é feita uma observação importante - que poderia estar mais desenvolvida - sobre os oligopólios no setor de recursos naturais e petróleo, no qual ocorre fusão entre renda e lucro (tradicionalmente considerados como pertencentes a tipos de capitalistas diferentes): a receita obtida pela propriedade da terra soma-se à exploração do trabalho na obtenção do produto. Desse modo, nesse tipo de atividade obtém-se “um lucro extra [surplus profit] baseado simultaneamente na posse de recursos naturais e na eficiência e brutalidade da organização capitalista da extração” (p. 122).

Finance capital e imperialismo

No capítulo 5, a teoria clássica do imperialismo é retomada com base em Hilferding (1985HILFERDING, R. ([1910] 1985), O capital financeiro. São Paulo, Nova Cultural. ), de modo a estabelecer as bases para o entendimento da configuração contemporânea da “internacionalização” do capital produtivo, ou seja, do “processo pelo qual a produção e apropriação de mais-valia são realizadas por capitalistas no exterior, fora do seu país de base” (pp. 133-134). Ressalta-se que Hilferding trouxe elementos de grande atualidade que explicam o espraiamento das transnacionais para o “Terceiro Mundo” nos anos de 1970 e 1980, tais como: o lucro empresarial no país de destino da exportação de capital ser maior devido à força de trabalho excepcionalmente barata; os custos de produção serem baixos também porque a renda da terra é pequena ou puramente nominal; e os lucros serem elevados em razão de privilégios especiais e monopólios.

Chesnais explica, então, as transformações ocorridas. Na primeira geração de empresas multinacionais/transnacionais (consideradas sinônimo no livro), isto é, no pós-guerra, a integração era horizontal. As filiais realizavam operações semelhantes à da matriz e segundo as necessidades do mercado doméstico ou das necessidades de exportação locais. Até os anos de 1980, empresas estadunidenses com esse modelo de “multiplantas” estavam, assim, na dianteira da internacionalização do capital produtivo. Com o início do processo de liberalização a partir do final dos anos de 1960 na Europa, abriu-se a possibilidade de uma incipiente divisão do trabalho no continente. A abertura e desregulamentação dos governos Thatcher e Reagan possibilitaram, então, de fato a integração vertical das transnacionais, ou seja, a produção em diferentes países segundo uma divisão do trabalho estabelecida pela sede, assim como o desenvolvimento do comércio intrafirmas - que, vale ressaltar, corresponde atualmente a um terço do comércio mundial (ver UNCTAD, 2013UNCTAD. (2013), “80% of trade takes place in ‘value chains’ linked to transnational corporations”. Disponível em Disponível em http://unctad.org/en/pages/PressRelease.aspx?OriginalVersionid=113 , consultado em 27/5/2016.
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).

A liberalização do comércio, dos investimentos externos diretos e dos fluxos financeiros abriu caminho para a aceleração da centralização de capital, tendo o oligopólio global se tornado a única “forma de estrutura de mercado do mercado mundial” (p. 142)21 21 O mesmo relatório da UNCTAD citado anteriormente mostra que 80% do comércio mundial ocorre nas cadeias globais de valor ligadas às transnacionais. . Fusões e aquisições se tornaram mecanismos fundamentais e foram operacionalizados, nos Estados Unidos, principalmente por bancos de investimentos (que lucraram muito com taxas e comissões), enquanto os Estados foram cruciais em outros países, como no caso do Brasil. Para as transnacionais, as fusões e aquisições (por vezes na forma de aquisição hostil) em outros países via Investimento Estrangeiro Direto (IED) se tornaram oportunidades estratégicas. Com base na caracterização do “poder de monopólio”, entendido como a “capacidade de moldar a trajetória da vida social sob o capitalismo em seu modo mais essencial” (p. 144), Chesnais comenta os casos de oligopolização na indústria automobilística, farmacêutica e no agrobusiness. Observa-se que a competição de preço só ocorre em última instância, pois as empresas tentam superar umas às outras pela inovação de produtos, escolhas estratégicas etc., o que tende a conservar a lucratividade em cada setor.

O final do capítulo é dedicado a considerações sobre os países em desenvolvimento (reservando-se alguns parágrafos para o Brasil). Um dado relevante é que atualmente alguns deles, principalmente os BRIC, entraram no jogo dos oligopólios mundiais, em grande parte por meio de empresas estatais ou estimuladas pelo Estado (com destaque para a atuação do BNDES no Brasil). Os fundos soberanos22 22 Detidos por Estados, sobretudo aqueles com grandes excedentes nas exportações, devido normalmente ao petróleo e outros recursos naturais. também se desenvolveram intensamente nos últimos anos e, embora a maior parte se volte para países do centro, uma fração é investida, via IED, em recursos naturais de países em desenvolvimento. Por fim, há o crescimento do IED das transnacionais desses países através de fusões e aquisições em outros países do “Sul”. Em boa parte dos casos, isso se deve ao vácuo deixado por “desinvestimento” dos países desenvolvidos, inclusive no setor financeiro.

O capítulo 6 concentra-se no modo de operação das empresas transnacionais nas últimas décadas, cujo traço principal é a evolução da internacionalização para a mundialização. Com a liberalização comercial e dos fluxos de IED, uma segunda onda de mundialização se inicia (a primeira tendo ocorrido no final do século XIX), culminando em cadeias globais de valor mais complexas a partir da metade dos anos de 1990. A produção se divide entre mais países, primeiramente com filiais, em seguida com a subcontratação de pequenas e médias empresas. O uso de tecnologia da informação e da comunicação permitiu o incremento da mais-valia, a redução dos custos de transporte e a apropriação de valor das empresas subcontratadas (como uma das formas de “lucros da circulação”).

Após uma breve avaliação crítica da “teoria da administração” sobre as cadeias globais de valor, Chesnais prossegue explicando que a situação das cadeias de produção de mercadorias atualmente é de tipo “comandado pelo comprador” [buyer-led]. Os gigantes do varejo, por exemplo, conseguiram estabelecer formas predatórias de apropriação de valor dos produtores menores através de seus privilégios de monopsônio23 23 É analisado o caso do Wal Mart, que se tornou modelo ao lograr um incrível rebaixamento de salários, além de impor condições draconianas a seus fornecedores. . Além disso, nos anos 2000, o amplo recurso das transnacionais em geral à terceirização e à produção em outros países [offshoring] tornou-se central e elevou drasticamente a exploração do trabalho. Uma interessante e importante constatação do autor é de que nas últimas quatro décadas observou-se, assim, uma progressiva “‘desintegração’ vertical” (p. 163): externaliza-se uma série de etapas ou processos produtivos - sem perder de fato o controle sobre estes, mas livrando-se de responsabilidades e dos riscos de flutuações de mercado; e apropria-se de valor produzido por empresas terceirizadas ou parceiros comerciais mais frágeis, normalmente operando em países com níveis salariais menores.

A consequência de tamanha fragmentação e dispersão das atividades produtivas é que atualmente cerca de 60% do comércio mundial se refere a bens e serviços intermediários (que compõem alguma etapa do produto final) e que nos últimos 25 anos o comércio mundial cresceu mais rápido do que o PIB. Além disso, as cadeias globais de valor tornaram os países em desenvolvimento de perfil exportador muito vulneráveis à demanda mundial, já que esses chamados non-equity modes de produção internacional são ainda mais voláteis que o IED. A expansão do comércio “Sul-Sul” ainda depende bastante do funcionamento dessas cadeias, agravando-se pelo fato de que, em muitos países, as exportações estão concentradas em poucas empresas. No Brasil, por exemplo, 1% das empresas exportadoras concentram 56% das exportações; e 10% das empresas, 98% das exportações (p. 168).

Capital fictício e o sistema financeiro mundial

O capítulo 7 é dedicado à evolução da mundialização financeira e à expansão de novas formas de capital fictício. De início, mostra-se o aumento expressivo de fluxos financeiros internacionais entre 1990 e 2007 e que os fluxos brutos de capital subiram de 10% do PIB mundial em 1998 para 30% em 2007 (p. 174). Essa expansão foi resultante de operações entre economias avançadas, a participação de emergentes sendo bem inferior. Porém, o mais relevante é o significado desse movimento. O autor explica que o forte aumento dos indicadores de mundialização financeira no período é resultado e causa da acumulação financeira. Quando a taxa de lucro começa a cair, uma fração maior do capital assume a forma de capital portador de juros em busca de rentabilidade. Assim, entrando em outro ponto polêmico, afirma que o aparente “desvio de investimento” das empresas para mercados financeiros (visão pós-keynesiana)24 24 Tal visão é agora criticada. Porém, o autor flertou com ela em textos mais antigos (ver Chesnais, 1998b, 2005b), na forma como empregou os termos “punção da finança” e “atonia da produção”, por exemplo. , assinalaria, na realidade, o declínio das oportunidades lucrativas de investimento (estado de sobreacumulação do capital).

Nesse contexto, os fluxos financeiros (para dentro e para fora) entre os Estados Unidos e o resto do mundo se tornaram, a partir dos anos de 1990, uma das características mais importantes das relações macroeconômicas no âmbito mundial. Eles tiveram papel importante na crise mundial de 2007, na medida em que os fluxos para dentro dos Estados Unidos se concentraram nos setores privado e ligados a hipotecas, provindos da Europa na sua maioria. Além disso, em grande medida devido aos fundos de investimento e de pensão e às seguradoras, as transações nos mercados de câmbio e de derivativos se tornaram as mais difundidas, sendo muito mais volumosas (embora menos visíveis e reveladoras do “humor” do mercado) que as dos mercados de títulos e ações. Mesmo após o início da crise, essas transações continuaram elevadas, entre outros fatores devido à relativamente reduzida destruição de capital fictício e elevada injeção de liquidez pelo FED, mas com aumento do investimento em mercados emergentes (nos quais havia maiores possibilidades de ganho).

Outro ponto importante do capítulo são as considerações sobre os derivativos. Estes se tornaram, nos anos 2000, a principal forma de transação financeira internacional. Seu volume e importância é tal que alguns autores, de forma fetichista, viram neles a forma contemporânea do dinheiro mundial, o que é criticado por Chesnais. Como o próprio nome diz, esses produtos são atrelados a um ativo de base que, inicialmente, eram sobretudo moedas ou juros. Por serem uma “reivindicação sobre uma reivindicação previamente estabelecida de futuras receitas” (citação de Ivanova na p. 182), os derivativos são uma forma peculiar de capital fictício, em relação à qual a fronteira entre a necessidade de proteção [hedge] e especulação é impossível de estabelecer. Recentemente, outros tipos de ativos subjacentes foram sendo utilizados, sobretudo em derivativos negociados em balcão (pouco regulados), sendo considerados uma forma de “‘capital fictício à enésima potência’”. Um deles se tornou muito transacionado, os credit default swaps (CDSS), e foi um dos pivôs da crise pelo fato de seus riscos se tornarem sistêmicos.

No final do capítulo, mais uma vez a atenção se volta aos países em desenvolvimento, inclusive o Brasil (pp. 190-192), que ganharam importância com a relativa desaceleração da mundialização financeira decorrente da crise. Entre outros fatores, dada a melhora geral da dívida externa desses países e as baixas taxas de juros praticadas no centro, os fluxos de capital para os primeiros retornaram: em 2012, os países em desenvolvimento respondiam por 32% dos fluxos de capital mundiais, ao passo que eram 5% em 2000 (p. 189). Ainda nesses países, como resultado da abertura dos anos de 1990, de modo geral houve uma internalização da dívida pública (embora esta esteja controlada por estrangeiros).

A oligopolização e a transformação do sistema bancário e do crédito são tratadas no capítulo 8 como um passo da conexão entre a situação geral do capitalismo contemporâneo - sua organização e forma de exploração do trabalho e de obtenção de lucro - e a análise mais detida da atual crise mundial e de seu contexto mais imediato. Em suma, nos anos que antecederam a crise, o sistema de crédito sofreu um processo de degeneração baseado no excesso de capital monetário em busca de lucros financeiros, que se caracterizou por um crescimento espetacular do nível de endividamento das empresas financeiras perante o qual os governos foram permissivos.

Desde os anos de 1970, a atividade dos bancos comerciais esteve ameaçada pela desintermediação dos empréstimos operada pelos novos atores financeiros (fundos de pensão e de investimento) e o fortalecimento do mercado de títulos em geral. Isso obrigou os primeiros a uma diversificação de suas atividades, possível graças ao processo de liberalização e desregulamentação que se seguiu, reforçado pelo processo de concentração do setor a partir dos anos de 1990, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. A virada para os anos de 1990 foi fundamental, quando a inovação técnica criou novos instrumentos para empréstimo interbancário, reduzindo a necessidade de grandes reservas em dinheiro e abrindo o caminho para a alavancagem. Os bancos comerciais então criaram fundos de investimento para seus clientes, passaram a oferecer serviços de administração para fundos de pensão e até a investir em hedge funds25 25 Tipo de fundo de investimentos menos regulado e, normalmente, de perfil mais agressivo. . A fronteira entre as transações para os clientes e para si próprios [proprietary trading] também se tornou difícil de estabelecer.

O único campo em que os bancos comerciais ainda ficavam atrás era o da emissão de securities26 26 A definição de securities é vaga e basicamente refere-se a títulos financeiros negociáveis. Sobretudo quando se trata de títulos de dívida, sua difusão pelo mercado, em tese, diminui os riscos de crédito. , um tipo de operação que viria a se tornar um dos pivôs da crise mundial. A centralização do setor bancário e a modificação de legislação, cujos passos principais na Europa e nos Estados Unidos são resumidos ao longo do capítulo, abriram caminho para um novo modelo de atividades bancárias, sobretudo a partir de meados dos anos 2000: o “criar para distribuir” [originate to distribute]. Utilizando-se do processo de securitização, bancos passaram a transacionar uma série de produtos que não apareciam em seus balanços, pois eram, junto com os riscos, repassados ao mercado. Desse modo, não contrariavam as limitações regulatórias de suas atividades.

Chesnais expõe o malabarismo técnico envolvido nessas operações (special purpose vehicles, fatiamento e empacotamento de ativos etc.) e ressalta seu alcance sistêmico (p. 210). A multiplicação dessas operações em relação a hipotecas de famílias nos Estados Unidos a partir de 2003 alimentou e foi alimentada por uma bolha imobiliária. A enorme quantidade de capital fictício criada circulava pelo shadow banking system e estimulou seu desenvolvimento. O risco sistêmico ampliou-se sem muito controle, sobretudo pela interconexão dessas operações com a de bancos e seguradoras, e porque hoje as atividades de shadow banking system se elevaram também em outras partes do mundo (inclusive tendo crescido nos países emergentes).

A crise mundial

Os capítulos 9 e 10 tratam propriamente da primeira grande crise de crédito “pós-securitização”, segundo o autor. Diferentemente de 1929, quando ocorreu primeiramente um crash da bolsa, houve uma enorme crise bancária imediata, marcada por uma retração do crédito entre corporações financeiras27 27 Em outra ocasião, Chesnais (2010, p. XIII) afirma ainda que, na década de 1920, “o chamado à realidade” da economia real em relação à bolha da bolsa foi rápido, ao passo que “desta vez não é uma bolha financeira a mais que explode. É uma imensa construção fictícia que está caindo, um mundo-fetiche que se esvai”. . Os protagonistas foram os bancos de investimento e os hedge funds, que são analisados por Chesnais. Eles se tornaram muito alavancados nos anos imediatamente anteriores à crise, para além da alavancagem “latente” [embedded leverage], existente devido ao risco sistêmico mencionado anteriormente. Isso seria decorrência da diminuição dos fluxos de valor devido à queda da taxa de acumulação, bem como da resultante pressão colocada sobre os administradores para conceberem formas de “investimento” que equivaliam a redistribuições de valor já criado.

As baixíssimas, senão negativas, taxas de juros nos países centrais nos últimos anos criaram problemas também para fundos que deveriam ser mais conservadores (como os de pensão), que foram levados a assumir mais riscos. Por outro lado, pelo mesmo motivo, o endividamento privado foi estimulado e aumentou desde 2003, tendo sido particularmente rápido nos países emergentes. Ambos os fatores compuseram as causas da crise ou instabilidade atuais, porém as autoridades não possuíam uma teoria do risco e do contágio em um sistema que lidasse com o capital fictício. Não houve, portanto, capacidade para lidar com a alta centralização dos fundos de investimento nem com as entradas e saídas volumosas e rápidas de investimento financeiro propiciadas pelas tecnologias recentes.

Além disso, alguns dos mecanismos de contágio também mudaram. Comparando-se com a crise de 1998, percebe-se que esta teve seu alastramento e, portanto, seus impactos restritos em certa medida, permitindo que um grupo de bancos pudesse lidar com ela. Dado o alto grau de securitização e o shadow banking system, que ampliara a interconexão entre o sistema financeiro da Europa e dos Estados Unidos, a crise de 2008 teve alto grau de transmissão e exigiu maciça intervenção governamental. Aparentemente, as medidas do governo estadunidense atingiram o objetivo de estabilizar a economia, ao preço do FED ter transferido para o seu balanço uma grande quantidade de junk bonds. Já a Europa, devido ao desenho político-institucional da União Europeia, sofreu uma segunda rodada de crise bancária em 2010, permanece com a perspectiva de novas crises e teve que lidar com a questão da Espanha e da Grécia. Esta é, após a análise da situação europeia, tomada como um caso exemplar da primazia dos interesses financeiros: a maior parte da dívida grega foi transferida do setor privado para o público e apenas 11% do financiamento ao país foi usado para custear as operações do Estado grego (mais de 80% do montante dos auxílios foi para salvar o setor financeiro). Assim, “a intensidade das transações financeiras, a diversidade de ativos transacionados, os potenciais canais de contágio financeiro e as expressões da instabilidade financeira mundial endêmica são impressionantes” (p. 255).

Estagnação mundial e limites absolutos do capitalismo

A Conclusão inicia-se com uma necessária retomada dos objetivos do livro e de seus principais pontos, assim como das dificuldades de pesquisa e caminhos de investigação a serem trilhados. A intenção de abarcar aspectos históricos (de curto e de médio prazos), teóricos, institucionais/regulatórios, econômicos e políticos do capitalismo contemporâneo e da crise atual, somada à complexidade do fenômeno da financeirização, mostra que o caráter por vezes fragmentado dos capítulos, com algumas descontinuidades dos subitens, é uma quase-imposição do objeto. As constantes referências a outras partes do texto mostram a consciência do autor dessa dificuldade e sua preocupação em orientar o leitor.

Entre os principais pontos abordados na parte final figura o diagnóstico do momento atual: um regime de baixo crescimento sem final previsível, cujo fundamento seriam as oportunidades de investimento insuficientes devido ao estado da taxa de lucro e da dificuldade de realização da mais-valia. O período de uma economia mundial impulsionada pela China, que não escapou da desaceleração econômica, é considerado como terminado. Somente as grandes transnacionais teriam conseguido restaurar sua lucratividade, mas seus poderes de oligopólio as dispensariam da urgência em investir. Além disso, a massa de capital monetário com dificuldades de se valorizar financeiramente seria responsável pela instabilidade crônica dos mercados financeiros.

Levantam-se alguns mecanismos possíveis, embora nem todos prováveis, para a saída dessa situação. Se, diferentemente dos anos de 1930, as grandes potências não estão se preparando para uma grande guerra que levaria a uma destruição de capital necessária à retomada da acumulação, restam: a completa mercantilização dos serviços públicos e formas adicionais de acumulação por espoliação; o crescimento das “classes médias” de grandes países emergentes; e novas revoluções tecnológicas. Para Chesnais, contudo, nenhuma dessas soluções parece ser suficiente e há, ainda, o problema dos limites “absolutos” do capitalismo mundial (crise ecológica)28 28 Assunto que o autor já vem tratando há alguns anos em seus artigos. , que ameaçam não só a continuidade do sistema capitalista, mas da “sociedade civilizada” (p. 264). Assim, prevê-se que o fraco crescimento e a instabilidade financeira, somados ao caos político decorrente, vão convergir com os impactos sociais e políticos das mudanças climáticas. O aquecimento global e o esgotamento ecológico constituem-se, segundo o autor, em “barreiras imanentes” ao capital em sentido forte, que não poderão ser superadas (tal qual indicado por Marx no volume III d’O Capital) pela desvalorização periódica do capital existente, nem por meios que recriem essas barreiras em uma escala ainda maior. A financeirização é, pois, um mecanismo que tem dado sobrevida ao capitalismo, mas acirrando suas contradições. A questão é até quando, e o que sobrevirá. Embora sejam mencionadas as lutas sociais e ambientais em várias partes do mundo, a resposta fica no ar e não parece muito animadora.

Referências Bibliográficas

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    » http://unctad.org/en/pages/PressRelease.aspx?OriginalVersionid=113
  • 1
    Agradeço a Clarisse Coutinho Ribeiro pelos comentários ao texto, eximindo-a, contudo, da responsabilidade pelas imperfeições deste texto.
  • 2
    Levando em conta autoria e coautoria/organização: Chesnais (1996CHESNAIS, François. (1996), A mundialização do capital. São Paulo, Xamã., 1998aCHESNAIS, François. (1998a), A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo, Xamã. ), Chesnais et al. (2003CHESNAIS, François et al. (2003), Uma nova fase do capitalismo? São Paulo, Xamã. ), Chesnais (2005aCHESNAIS, François. (2005a), A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo, Boitempo. ) e Chesnais et al. (2010CHESNAIS, François et al. (2010), A finança capitalista. São Paulo, Alameda. ).
  • 3
    Mas também fora dele. Na mesma época, David Harvey (1993HARVEY, David. (1993), Condição pós-moderna. São Paulo, Loyola. ) assumidamente realiza uma análise regulacionista do capitalismo contemporâneo.
  • 5
    Ver, particularmente, o capítulo do autor em A finança capitalista (Chesnais et al., 2010CHESNAIS, François et al. (2010), A finança capitalista. São Paulo, Alameda. ).
  • 5
    Respeita-se neste texto a tradução consagrada em português do termo mondialisation empregado pelo autor. Os termos em francês mondialisation e globalisation muitas vezes são empregados como sinônimos. No campo crítico, no entanto, a preferência é pelo primeiro, de modo a se distanciar do caráter vago e mesmo apologético que o termo anglófono globalization por vezes possui - de um mundo que se integra mais e de culturas que compartilham mais entre si, obscurecendo a questão do capital.
  • 6
    Por uma questão de clareza, neste texto serão usadas aspas duplas para citações e aspas simples (fora das citações) para palavras com emprego não convencional, neologismos etc.
  • 7
    Conjunto de medidas liberalizantes colocadas em prática num curto espaço de tempo na praça financeira londrina que pressionou os mercados de outros países a também realizarem mudanças nesse sentido. Uma das consequências foi a concentração bancária que deu origem a grandes bancos de investimentos.
  • 8
    Setor paralelo aos bancos comerciais que combina o dinheiro como capital centralizado por, basicamente, fundos de investimento e de pensão.
  • 9
    As referências a Finance capital today serão indicadas apenas com o número da página e as citações são de tradução nossa.
  • 10
    O autor utiliza tanto o termo “emergente” quanto “em desenvolvimento” para designar países/economias não centrais. Aqui eles serão empregados em cada ocasião conforme o uso no livro.
  • 11
    Os livros anteriores se concentravam no sistema mundial e nos países centrais (Europa e Estados Unidos, praticamente). Pierre Salama, especialista em economias emergentes/periféricas, é que ficou a cargo do tratamento dessa questão em capítulos de obras coletivas.
  • 12
    Há um glossário de termos financeiros no final do livro.
  • 13
    Em A finança capitalista, Chesnais já mobiliza mais a obra de Harvey na argumentação, porém o recurso a ela em Finance Capital Today é sensivelmente maior. Os benefícios analíticos de explorar as relações entre a produção dos dois autores levaram-me a tratar do assunto (ver Lapyda, 2011LAPYDA, Ilan. (2011), A “financeirização” no capitalismo contemporâneo: uma discussão das teorias de François Chesnais e David Harvey. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.).
  • 14
    Husson (2017HUSSON, Michel. (2017), “Le capital financier et ses limites: autour du livre de François Chesnais”. Disponível em Disponível em http://alencontre.org/economie/le-capital-financier-et-ses-limites-autour-du-livre-de-francois-chesnais.html , consultado em 23/6/2017.
    http://alencontre.org/economie/le-capita...
    ) volta a insistir em sua tese com base em dados sobre o aumento da taxa de lucro e a estabilidade, ou mesmo queda, da taxa de acumulação.
  • 15
    Este último ponto leva Chesnais a discutir, no final do capítulo 6, a questão da superexploração da força de trabalho e do subimperialismo. A posição do autor é de que a internacionalização do “grau médio de habilidade e intensidade do trabalho” (produtividade do trabalhador), com a existência de diferenças salariais em cada país, explica a desindustrialização das economias centrais, assim como os lucros obtidos na periferia.
  • 16
    Das obras publicadas no Brasil, talvez a Finança Mundializada seja a que mais se prestou a mal-entendidos pela diversidade de termos empregados, à qual o próprio autor atenta: “O capital portador de juros (também designado “capital financeiro” ou simplesmente “finança”) não foi levado ao lugar que hoje ocupa por um movimento próprio” (p. 35). Para uma breve consideração sobre os termos empregados por Marx e por Chesnais, ver Lapyda (2011LAPYDA, Ilan. (2011), A “financeirização” no capitalismo contemporâneo: uma discussão das teorias de François Chesnais e David Harvey. São Paulo, dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo., Anexo II).
  • 17
    Em seu livro mais famoso, Das Finanzkapital (Capital financeiro, na tradução brasileira, Hilferding, 1985HILFERDING, R. ([1910] 1985), O capital financeiro. São Paulo, Nova Cultural. ).
  • 18
    Evidentemente, a configuração varia entre os países. Chesnais afirma que na Alemanha ainda são perceptíveis traços da posição privilegiada dos bancos (pp. 94-95). Também nessa questão, o autor diverge de Lapavitsas (2009LAPAVITSAS, Costas. (2009), “Financialised capitalism: crisis and financial expropriation”. Historical Materialism, 17 (2): 114-148. , p. 143 ss.), para quem a teoria do finance capital é incompatível com a situação atual.
  • 19
    O termo é emprestado de Lapavitsas, que passou a empregar a expressão mais sucinta de “expropriação financeira” (Lapavitsas, 2009LAPAVITSAS, Costas. (2009), “Financialised capitalism: crisis and financial expropriation”. Historical Materialism, 17 (2): 114-148. ; Lapavistas e Mendieta-Muñoz, 2016LAPAVITSAS, Costas & MENDIETA-MUÑOZ, Ivan. (2016), “The profits of financialization”. Monthly Review (on-line), 68 (3), jul. https://monthlyreview.org/2016/07/01/the-profits-of-financialization/.
    https://monthlyreview.org/2016/07/01/the...
    ).
  • 20
    Na Europa, a existência da União Europeia imporia às grandes empresas a necessidade econômica e política de buscar o apoio dos seus países-sede no jogo da concorrência, de modo que a interconexão dos conselhos de administração seria mais difícil e a formação de uma “classe capitalista transnacional”, ainda mais distante. Por outro lado, estudos recentes têm revelado um aumento das interconexões, e o setor financeiro é justamente aquele em que há maior transnacionalização (pp. 106-108).
  • 21
    O mesmo relatório da UNCTAD citado anteriormente mostra que 80% do comércio mundial ocorre nas cadeias globais de valor ligadas às transnacionais.
  • 22
    Detidos por Estados, sobretudo aqueles com grandes excedentes nas exportações, devido normalmente ao petróleo e outros recursos naturais.
  • 23
    É analisado o caso do Wal Mart, que se tornou modelo ao lograr um incrível rebaixamento de salários, além de impor condições draconianas a seus fornecedores.
  • 24
    Tal visão é agora criticada. Porém, o autor flertou com ela em textos mais antigos (ver Chesnais, 1998bCHESNAIS, François. (1998b), “Introdução”. In: CHESNAIS, François. (org.), A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo, Xamã, pp. 11-33. , 2005bCHESNAIS, François. (2005b), “O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos”. In: CHESNAIS, François. (org.), A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo, Boitempo, pp. 35-67. ), na forma como empregou os termos “punção da finança” e “atonia da produção”, por exemplo.
  • 25
    Tipo de fundo de investimentos menos regulado e, normalmente, de perfil mais agressivo.
  • 26
    A definição de securities é vaga e basicamente refere-se a títulos financeiros negociáveis. Sobretudo quando se trata de títulos de dívida, sua difusão pelo mercado, em tese, diminui os riscos de crédito.
  • 27
    Em outra ocasião, Chesnais (2010CHESNAIS, François. (2010), “Prefácio”. In: MARQUES, Rosa & FERREIRA, Mariana. (org.), O Brasil sob a nova ordem: a economia brasileira contemporânea: uma análise dos governos Collor a Lula. São Paulo, Saraiva, pp. IX-XV. , p. XIII) afirma ainda que, na década de 1920, “o chamado à realidade” da economia real em relação à bolha da bolsa foi rápido, ao passo que “desta vez não é uma bolha financeira a mais que explode. É uma imensa construção fictícia que está caindo, um mundo-fetiche que se esvai”.
  • 28
    Assunto que o autor já vem tratando há alguns anos em seus artigos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2017
  • Aceito
    26 Out 2017
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