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Apresentação: quando espaços e tempos revelam cidades

Não são novos os investimentos das ciências sociais, sobretudo da sociologia e da antropologia, na produção de um olhar analítico sobre as cidades. Desde, pelo menos, os trabalhos da assim chamada Escola de Chicago, nos primeiros anos do século XX, o fenômeno urbano vem abrigando variadas propostas de sistematização teórica e metodológica, num esforço contínuo de produção de análises e modelos explicativos. O acúmulo de trabalhos sobre as dimensões social e/ou cultural de estruturas e processos sociais ligados ao crescimento ou encolhimento dessas formas específicas de povoamento humano que são as chamadas cidades, nos quatro cantos do mundo, nos permite afirmar sem pestanejar, neste fim de segunda década do século XXI, tratar-se de um campo de estudos plenamente consolidado em torno de diferentes autores e linhas de pensamento. Temas como moradia, sociabilidade, violência, pobreza e mobilidade são hoje amplamente trabalhados dentro do grande campo dos estudos urbanos, que constituem uma relativamente indefinida, porque ampla e diversificada, área de conhecimento em permanente diálogo e renovação.

Em particular no Brasil, a força do estudo das cidades na sociologia e na antropologia vem acompanhada do enfoque privilegiado do campo em grandes eixos temáticos relativos à vida na cidade, conforme uma de nós pôde constatar no âmbito de uma revisão bibliográfica abrangente de como o espaço urbano no Brasil foi conceitualmente abordado por cientistas sociais com o auxílio de definições de cidade publicizadas como “sociológicas” entre 1998 e 2008 (Frehse e Leite, 2010FREHSE, Fraya & LEITE, Rogerio Proença. (2010), “Espaço urbano no Brasil”. In: MARTINS, Heloisa H. T. de S. (org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: Sociologia . São Paulo, Anpocs, pp. 203-251.). Para os fins deste Dossiê interessa que, no bojo dessa tendência, as disciplinas acabam por abrir, muitas vezes, mão de fazer a própria cidade um objeto de conhecimento. Tal esforço comum a autores pioneiros como Georg Simmel ([1903] 2013SIMMEL, Georg. ([1903] 2013), “As grandes cidades e a vida do espírito”. Tradução de L. Waizbort. In: BOTELHO, André (org.). Sociologia: Essencial . São Paulo, Penguin/Companhia das Letras, pp. 311-329.) e Max Weber ([1920] 2004)WEBER, Max. ([1921] 2004), Economia e sociedade [“A cidade do Ocidente”], vol. 2. Tradução de R. Barbosa & K. Elsabe Barbosa. Revisão técnica de G. Cohn. Brasília/São Paulo, Editora UnB/Imprensa Oficial, pp. 408-445. condensou muitos dos aspectos que permearam suas próprias reflexões sobre a modernidade europeia. Pouco mais tarde, sob a liderança de Robert Park (ver, em especial, Park, 1967PARK, Robert E. et al. ([1925] 1967), The city. Chicago/Londres, The University of Chicago Press, pp. 47-62.), pesquisadores do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago retomaram aquelas indagações em prol de uma explanação mais sistemática do fenômeno urbano, acrescida de um forte componente empírico. Afinal, como explicar o que chamamos “cidade”? E como chegar a respostas a tal questão por meio de pesquisa científica?

Este Dossiê nasce do reconhecimento de que tais perguntas se mantêm atuais não apenas para um conjunto variegado de cientistas sociais no Brasil interessados em pensar o espaço urbano no país (Frehse e Leite, 2010FREHSE, Fraya & LEITE, Rogerio Proença. (2010), “Espaço urbano no Brasil”. In: MARTINS, Heloisa H. T. de S. (org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: Sociologia . São Paulo, Anpocs, pp. 203-251., pp. 211-218), mas também para pesquisadores estrangeiros dispostos a subverter uma certa divisão internacional do trabalho intelectual. Segundo essa lógica, contextos acadêmicos como o latino-americano têm sido impelidos, também no campo dos estudos urbanos, a prover conhecimento empírico, mas não tanto teórico ou metodológico (Frehse, 2012FREHSE, Fraya. (2012), “A recent sociological utopia of urban space in Brazil”. Iberoamericana , 12 (45): 103-117., p. 104; Fortuna, 2012FORTUNA, Carlos. (2012), “In praise of other views: the world of cities and the social sciences”. Iberoamericana , Berlim, 12 (45): 137-153., p. 138). Se as razões para isso são variadas e em si motivos de debate (Frehse, 2012FREHSE, Fraya. (2012), “A recent sociological utopia of urban space in Brazil”. Iberoamericana , 12 (45): 103-117., passim), inclusive porque o fenômeno ocorre também em outros campos do conhecimento nas ciências sociais (ver, entre outros, Connell, 2007CONNELL, Raewyn. (2007), Southern theory . Cambridge, Polity.; Boatca et al ., 2010BOATCA, Manuela et al . (2010), Decolonising European sociology . Londres, Routledge.; Costa, 2010COSTA, Sérgio. (2010), “Teoria por adição”. In: MARTINS, Heloisa H. T. de S. (org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: Sociologia . São Paulo, Anpocs, pp. 25-51.), nossa intenção aqui é fomentar o debate crítico sobre as limitações e potencialidades conceituais da sociologia e da antropologia na articulação entre empiria e teoria por referência a características sociais e/ou culturais do fenômeno urbano, sobretudo mas não exclusivamente no Brasil, também mas não somente na atualidade.

Mas como realizar tal empreendimento nos limites de um dossiê como este, sendo o problema, em princípio, receptivo a todo e qualquer recorte de natureza metodológica? Sugerimos aos autores um diálogo direto, de um lado, com uma tendência internacional recente das ciências sociais sobre a cidade: o enfoque investigativo sobre a dimensão espacial das práticas sociais, que frequentemente tem adentrado os estudos urbanos internacionais sob o rótulo de spatial turn (ver, entre outros, Döring e Thielmann, 2008DÖRING, Jörg & THIELMANN, Tristan. (2008), Spatial turn. Bielefeld, Transcript.; Löw, 2013LÖW, Martina. (2013), “O spatial turn: para uma sociologia do espaço ”. Tradução de R. Domschke e F. Frehse. Tempo Social , 25 (2): 17-34. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702013000200002&lng=en&nrm=iso .
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). De outro lado, nossas próprias trajetórias de pesquisadoras nas áreas de antropologia e sociologia históricas (ver, em especial, Frehse, 2005FREHSE, Fraya. (2005), O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império . São Paulo, Edusp., 2011FREHSE, Fraya. (2011), Ô da Rua! O transeunte e o advento da modernidade em São Paulo . São Paulo, Edusp.; O’Donnell, 2008O’DONNELL, Julia G. (2008), De olho na rua: a cidade de João do Rio . Rio de Janeiro, Zahar., 2013O’DONNELL, Julia G. (2013), A invenção de Copacabana: culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Zahar.) não nos deixam esquecer que espaço, como conjunto de relações entre seres humanos e bens (i)materiais na lógica da simultaneidade, é indissociável de tempo, que remete a tais vínculos na lógica da sucessão (ver, entre outros, Lefebvre, [1974] 2000LEFEBVRE, Henri. ([1974] 2000), La production de l’espace . Paris, Anthropos., p. 87). De fato, preconizamos a atenção analítica simultânea ao espaço e ao tempo como via metodológica primordial de explanação conceitual do fenômeno urbano em diferentes momentos históricos. E foi ao enfrentamento analítico das duas categorias que incentivamos os autores cujas contribuições integram este Dossiê.

Tal ênfase vai ao encontro de tradições teóricas já consolidadas internacionalmente na reflexão sobre o espaço, em particular aquelas de Michel Foucault ([1967] 2013)FOUCAULT, Michel ([1967] 2013), “De espaços outros”. Tradução de A. C. A. Nasser; Revisão Técnica de F. Frehse. Estudos Avançados , São Paulo, 27 (79): 113-122. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000300008&lng=en&nrm=iso .
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e de Henri Lefebvre ([1985] 2013)LEFEBVRE, Henri. ([1985] 2013). “Prefácio: A produção do espaço”. Tradução de A. C. A. Nasser; Revisão Técnica de F. Frehse. Estudos Avançados , 27 (79): 123-132. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000300009&lng=en&nrm=iso .
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, e que têm assumido um protagonismo notável no âmbito e na esteira justamente do spatial turn (Frehse, 2013FREHSE, Fraya. (2013), “O espaço na vida social: uma introdução”. Estudos Avançados , 27 (79): 69-74. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000300006&lng=en&nrm=iso .
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). De fato, mais recentemente, representantes de uma vertente da sociologia alemã dedicada a explorar o caráter socialmente relacional do espaço, no âmbito de uma renovada sociologia fenomenológica do espaço, têm se dedicado a conceituar a interferência da historicidade biográfica (Weidenhaus, 2015WEIDENHAUS, Gunter. (2015), Soziale Raumzeit . Frankfurt a. M, Suhrkamp.) ou da temporalidade subjetiva (Steets, 2015STEETS, Silke. (2015), Der sinnhafte Aufbau der gebauten Welt . Frankfurt a. M., Suhrkamp.) no modo como o espaço é socialmente gerado – “produzido”, “construído”, “constituído” (os termos variam em dependência das respectivas perspectivas metodológicas). São tendências que, por vias teóricas e empíricas absolutamente outras, fazem par com uma preocupação empírica e teórica muito antiga do pensamento social brasileiro: como explicar o vigor presente de estruturas sociais historicamente muito antigas no processo de urbanização vigente no país a partir do século XIX? 1 1 . Para a bibliografia relativa, por exemplo, à urbanização de São Paulo em fins do século XIX, ver Frehse (2005); para o Rio de Janeiro, ver O’Donnell 2013. E o tema permanece em certas ciências sociais brasileiras da atualidade. Basta ter em conta abordagens que enfocam a realidade social passível de ser desvendada no Brasil urbano com base, por exemplo, em representações sobre o espaço e o tempo (DaMatta, [1985] 1997DAMATTA, Roberto ([1985] 1997), A casa & a rua . Rio de Janeiro, Rocco.); ou em lefebvrianas “datas históricas” que impregnam espacialmente as relações sociais e as regras de interação social em lugares como subúrbios, fronteiras, ruas (ver, entre outros, Martins, 1992, 1997; Frehse, 2011FREHSE, Fraya. (2011), Ô da Rua! O transeunte e o advento da modernidade em São Paulo . São Paulo, Edusp., 2017FREHSE, Fraya. (2017), “Relational space through historically relational time: in the bodies of São Paulo’s pedestrians”. Current Sociology Monograph , 65 (4): 511-532.).

Marcado por esse destaque metodológico a categorias espaciais e temporais como vias de apreensão conceitual do fenômeno urbano no passado ou no presente, este Dossiê dialoga de modo criativo com duas tendências recentes das ciências sociais nacionais devotadas ao estudo de características sociais e/ou culturais das cidades. A primeira congrega estudos que, partindo da empiria urbana, a transcendem, buscando explanar em termos conceituais características sociais e/ou culturais nos respectivos momentos temporais a que se referem os dados empíricos (Frehse e Leite, 2010FREHSE, Fraya & LEITE, Rogerio Proença. (2010), “Espaço urbano no Brasil”. In: MARTINS, Heloisa H. T. de S. (org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: Sociologia . São Paulo, Anpocs, pp. 203-251., pp. 211-218). São empenhos por estudar nas cidades para interpretar o que a vida social e/ou cultural empiricamente apreensível ali revela conceitualmente sobre a cidade.

Ao privilegiarmos exercícios intelectuais baseados em articulações diretas entre empiria e teoria, pretendemos recuperar, ademais, a nosso modo a preocupação central de um grupo de trabalho que a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) abrigou por seis anos (entre 2007 e 2012), e cujas raízes remontam a reuniões nacionais e sul-americanas de antropologia que, pontilhando a década de 2000, contaram com a nossa participação ativa 2 2 . Trata-se dos grupos ou seminários de trabalho (respectivamente, GTs e STs) intitulados respectivamente “Cidades, representações e experiência social” (GT na Reunião Brasileira de Antropologia de 2002, coordenado por Fernanda A. Peixoto e Heitor Frúgoli Jr.), “As múltiplas faces da cidade e do urbano” (GT na Reunião Brasileira de Antropologia de 2004, coordenado por Luciana T. de Andrade e Heitor Frúgoli Jr.), “As cidades e seus lugares” (GT na Reunião Brasileira de Antropologia de 2006, coordenado por Fraya Frehse e Rogerio P. Leite), “Cidades no mundo contemporâneo: caminhos e tensões entre o social e o cultural” (GT na Reunión de Antropología del Mercosur de 2007, coordenado por Mônica B. Lacarrieu e Laura G. Gomes), “Cidades: perspectivas e interlocuções nas ciências sociais” (ST no Encontro Anual da Anpocs de 2007, coordenado por Heitor Frúgoli Jr. e Laura G. Gomes), “A cidade nas ciências sociais: teoria, pesquisa e contexto” (GT nos encontros anuais da Anpocs em 2008 e 2009, coordenado por Heitor Frúgoli Jr. e Laura G. Gomes), “Cidades: dimensões, escalas e composições” (ST no encontro anual da Anpocs de 2010, coordenado por Cristina Patriota de Moura e Mariana Cavalcanti), “Dimensões do urbano: tempos e escalas em composição” (GT nos encontros anuais da Anpocs de 2011 e de 2012, coordenado por Cristina Patriota de Moura e Mariana Cavalcanti). . Com efeito, boa parte das contribuições aqui reunidas foram forjadas no âmbito de discussões travadas em dois grupos de trabalho e um seminário temático que coordenamos nos encontros anuais da Anpocs de 2014, 2015 e 2016 3 3 . Em suas duas edições, o GT teve como título “De cidades à cidade no Brasil: Tempos e/ou espaços”, e o ST foi intitulado “Pensar a cidade no Brasil: limitações, potencialidades e perspectivas”. . Nas ocasiões, imprimimos justamente a preocupação metodológica com as categorias de espaço e de tempo a uma reflexão de natureza essencialmente conceitual sobre o fenômeno urbano que já vinha sendo conduzida por esse grupo mais abrangente havia alguns anos. De fato, a segunda tendência do debate nacional ao qual o nosso Dossiê faz face se refere a uma dupla chave investigativa que tem permeado as reflexões de tal grupo desde o seu início, e que se evidencia de modo privilegiado nas publicações daí resultantes (Frúgoli Jr. et al. , 2006FRÚGOLI JR., Heitor et al . (2006), As cidades e seus agentes: práticas e representações . São Paulo/Belo Horizonte, Edusp/Editora PucMinas.; Frúgoli Jr. e Gomes, 2010FRÚGOLI JR., Heitor & GOMES, Laura Graziela. (2010), “Apresentação”. Antropolítica , 28: 11-18 (dossiê “Cidade, teoria, etnografia”).; Frehse e Leite, 2010FREHSE, Fraya & LEITE, Rogerio Proença. (2010), “Espaço urbano no Brasil”. In: MARTINS, Heloisa H. T. de S. (org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: Sociologia . São Paulo, Anpocs, pp. 203-251.; Moura, 2013MOURA, Cristina P. de. (2013). “Apresentação: O urbano e suas múltiplas dimensões”. Anuário Antropológico , 2013 (2): 9-15.). É a busca, de um lado, por compreender social e/ou culturalmente o fenômeno urbano; de outro lado, pelos modos como as ciências sociais têm investigado empiricamente a cidade/o urbano em termos socioculturais, o que se traduz, necessariamente, numa atenção especial a metodologias qualitativas de pesquisa. Em suma, a importância tanto da teoria quanto do método, quando interessa a cidade.

Já nos três grupos de trabalho dos quais resultou o presente Dossiê, a retomada dessa então jovem “tradição” se deu de modo original. Propusemos tais encontros por reconhecer que, graças aos eventos científicos prévios e a suas consequentes publicações, o grupo avançara sobremaneira no plano da reflexão metodológica, com destaque para avaliações das potencialidades da prática etnográfica na relativização de dicotomias “clássicas” mobilizadas pelas ciências sociais para conceituar a cidade/o urbano – em particular centro-periferia, mas também rural-urbano –, além de espaços historicamente referenciais no debate, como rua e bairro. Partindo dessa constatação, acreditávamos ter sido chegada a hora de voltar a olhar para o objetivo inicial do grupo de trabalho na Anpocs de 2007, a fim de avaliar as potencialidades conceituais contidas na reflexão metodológica já acumulada no ínterim, com vistas a ampliar a compreensão teórica do fenômeno urbano em particular no Brasil.

À luz de nossos próprios interesses prévios por espaço e tempo, e seu diálogo com certo debate internacional recente nas ciências sociais, além do próprio pensamento social brasileiro, nada melhor do que propor, nos grupos de trabalho, a sua articulação metodológica em prol de exercícios conceituais relativos à cidade no país. Já para os fins deste Dossiê, julgamos que o repertório reflexivo anterior, tributário sobretudo da sociologia e da antropologia brasileiras (respectivamente os trabalhos de Martins, Barreira e Freire-Medeiros, e de Frúgoli Jr., Macedo, Patriota de Moura e Januzzi), além da geografia nacional (Name), poderia ser enriquecido se complementado por olhares estrangeiros que, todos conhecedores da realidade urbana brasileira, se voltassem, a partir respectivamente da antropologia (Cordeiro), da sociologia (Fortuna) e de uma historiografia explicitamente devotada ao estudo de “práticas espaciais e temporais” (Dorsch), para o problema teórico da cidade (no Brasil) que tempos e espaços revelam.

Foi o que os autores aqui reunidos realizaram cada um a seu modo, com base em diálogos teóricos específicos – respectivamente com o Lefebvre pensador do urbano (Martins), da produção do espaço (Dorsch) e da ritmanálise (Barreira); com o Michel Agier do “fazer a cidade” (Frúgoli Jr. e Macedo, e Patriota de Moura e Januzzi); com o Bernard Lepetit das temporalidades urbanas (Cordeiro); enfim, com o Michel de Certeau do espaço praticado (Fortuna) e a Ananya Roy do urbanismo subalterno (Freire-Medeiros e Name). Essa variedade toda também se expressa nos cenários espaciais e temporais de referência empírica, que acabam por compor, em conjunto, uma geografia e uma cronologia insuspeitada. As páginas que seguem unem a São Paulo de fins do século XIX e das primeiras décadas do XX (Dorsch) a “toda e qualquer” cidade, “desnacionalizada”, nos tempos que correm (Fortuna), passando, respectivamente, pela Rio de Janeiro de Lima Barreto, no início do século XX; por crisálidas inventivas de cidade na Amazônia dos anos de 1970 e 1980 (Martins); pelo bairro lisboeta da Bica na década de 1990 e aqueles de classe média na Brasília das décadas de 2000 e 2010; enfim, pelos lugares públicos do centro de Fortaleza nos anos de 2010 (Barreira) e pela laje que encima tantas moradias nas favelas (cariocas) até hoje (Freire-Medeiros e Name).

Em meio a tanta diversidade teórica, espacial e temporal, o que há de comum é justamente a preocupação em conceituar as respectivas cidades com base em categorias espaciais e temporais. Sob esse prisma surgem mesmo combinações inesperadas. Há quem, por ângulos teóricos e metodológicos diversos, se preocupe com a presença de tempos variados no espaço – e o que de tais (des)encontros resulta, em termos de realidade social passível ou não de ser chamada de urbana. A cidade que assim se revela emerge ou das contradições de tempos históricos (Martins) ou da combinação dos tempos passados que se consegue/quer, estrategicamente, relembrar (Cordeiro).

Uma segunda tendência que atravessa este Dossiê é o enfoque analítico mais ou menos sistemático e explícito respectivamente em práticas e representações espaciais e temporais (Dorsch e Barreira), em busca do fenômeno urbano que elas revelam. Espaço e tempo evidenciam, assim, ser também poderosas mediações interpretativas do que significa conhecer cientificamente e intervir politicamente em uma cidade.

Já uma terceira e última vertente de natureza metodológica congrega textos que exploram em termos analíticos a multiplicidade de espaços que se apresentam ao olhar interpretativo em momentos históricos diversos, mas todos contemplados a partir da seara temporal da vida cotidiana. A perspectiva traz para o primeiro plano a variedade de lugares urbanos prenhes de simbolismo que resultam, respectivamente, de interações sociais em meio ao ir e vir pelas ruas e meios públicos de transporte (Frúgoli Jr. e Macedo); de processos de intervenção material e subjetivação em bairros (Patriota de Moura e Januzzi); de práticas informais nas ruas (Fortuna); dos múltiplos usos da laje em favelas (Freire-Medeiros).

O que importa para os propósitos deste Dossiê é justamente que dessas diferentes formas de pensar fundadas nos eixos metodológicos de espaço e tempo emergem apontamentos de natureza conceitual que permitem avançar em reflexões sobre a cidade – em particular no Brasil – como objeto de conhecimento sociológico e antropológico. Já distantes da ambição totalizante de autores que, nos primórdios das ciências sociais, buscavam desvendar “a cidade” ou “o urbano”, os autores aqui reunidos nos sugerem caminhos empíricos e diálogos teóricos a partir dos muitos espaços e tempos que compõem a vida urbana. Daí resulta, de um lado, um investimento coletivo no questionamento de dicotomias de natureza conceitual que marcam a história do campo dos estudos urbanos em geral, e que assumem características peculiares no Brasil, tais como rural/urbano, centro/periferia, público/privado, casa/rua, morro/asfalto, atraso/modernidade. De outro lado, tensionam-se categorias metodologicamente centrais à pesquisa qualitativa atual em meio urbano – novamente, em especial no Brasil –, tais como fronteiras, fluxos, materialidade, informalidade.

Empreendendo diferentes entrelaçamentos entre espaço e tempo, os oito artigos que compõem este Dossiê convergem, assim, no exercício de pensar conceitualmente sobre o fenômeno urbano por meio de um instigante panorama reflexivo. A materialidade da laje de uma favela carioca, as ruas e praças de São Paulo, do centro de Fortaleza ou da cidade sem pátria, mas também as invenções de cidades amazônicas ou de bairros inteiros nos revelam as muitas possibilidades de se definir espacialmente o urbano. Tais perspectivas se potencializam ainda mais se consideramos que, movendo-nos entre o tempo histórico, o tempo da memória e o tempo efêmero do cotidiano, somos apresentados às muitas camadas temporais que constituem as cidades e são, da mesma forma, constituídas por elas.

Acreditamos, por tudo isso, que mais do que contribuições específicas sobre os temas apresentados, ou sobre as múltiplas possibilidades de realização de pesquisa qualitativa em ambiente urbano, este Dossiê oferece uma atualização sui generis do debate mais amplo sobre a cidade como categoria analítica, como instrumento heurístico e objeto de conhecimento das ciências sociais. Esperamos que o leitor encontre aqui um estímulo simultaneamente espacial e temporal para aprimorar-se nessa discussão. Mas sempre lembrando que esta se renova e amplia pari passu com o desenvolvimento justamente de trabalhos empíricos nas cidades que estejam dispostos a investir conceitualmente naquilo que, assim, se revela sobre elas.

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  • WEIDENHAUS, Gunter. (2015), Soziale Raumzeit . Frankfurt a. M, Suhrkamp.
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    . Para a bibliografia relativa, por exemplo, à urbanização de São Paulo em fins do século XIX, ver Frehse (2005)FREHSE, Fraya. (2005), O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império . São Paulo, Edusp.; para o Rio de Janeiro, ver O’Donnell 2013O’DONNELL, Julia G. (2013), A invenção de Copacabana: culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Zahar..
  • 2
    . Trata-se dos grupos ou seminários de trabalho (respectivamente, GTs e STs) intitulados respectivamente “Cidades, representações e experiência social” (GT na Reunião Brasileira de Antropologia de 2002, coordenado por Fernanda A. Peixoto e Heitor Frúgoli Jr.), “As múltiplas faces da cidade e do urbano” (GT na Reunião Brasileira de Antropologia de 2004, coordenado por Luciana T. de Andrade e Heitor Frúgoli Jr.), “As cidades e seus lugares” (GT na Reunião Brasileira de Antropologia de 2006, coordenado por Fraya Frehse e Rogerio P. Leite), “Cidades no mundo contemporâneo: caminhos e tensões entre o social e o cultural” (GT na Reunión de Antropología del Mercosur de 2007, coordenado por Mônica B. Lacarrieu e Laura G. Gomes), “Cidades: perspectivas e interlocuções nas ciências sociais” (ST no Encontro Anual da Anpocs de 2007, coordenado por Heitor Frúgoli Jr. e Laura G. Gomes), “A cidade nas ciências sociais: teoria, pesquisa e contexto” (GT nos encontros anuais da Anpocs em 2008 e 2009, coordenado por Heitor Frúgoli Jr. e Laura G. Gomes), “Cidades: dimensões, escalas e composições” (ST no encontro anual da Anpocs de 2010, coordenado por Cristina Patriota de Moura e Mariana Cavalcanti), “Dimensões do urbano: tempos e escalas em composição” (GT nos encontros anuais da Anpocs de 2011 e de 2012, coordenado por Cristina Patriota de Moura e Mariana Cavalcanti).
  • 3
    . Em suas duas edições, o GT teve como título “De cidades à cidade no Brasil: Tempos e/ou espaços”, e o ST foi intitulado “Pensar a cidade no Brasil: limitações, potencialidades e perspectivas”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2018
  • Aceito
    7 Jan 2019
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