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O mercado informal de moradia na Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, Rio de Janeiro

The informal housing market in Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, Rio de Janeiro

Resumo

Diante da crescente urbanização e expansão da fronteira urbano-imobiliária sobre o território das metrópoles, este trabalho analisa o mercado informal de moradia na Colônia Juliano Moreira, bairro localizado na região de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. Investigam-se as características desse mercado quanto à sua estrutura, aos bens transacionados, às instituições atuantes e aos agentes participantes. Essa análise utiliza dados de anúncios de imóveis e entrevistas semiestruturadas com agentes-chave locais. A partir das entrevistas realizadas, nota-se que a falta de segurança nos contratos firmados é uma característica fundamental do mercado analisado. Há uma estrutura oligopólica e alta demanda pelos imóveis ofertados, conferindo enorme poder de mercado aos ofertantes. A população vulnerável que demanda moradia nessa área depende sobremaneira de laços de lealdade e confiança, que surgem como instituições importantes para o funcionamento da dinâmica imobiliária local. Três instituições mostram-se particularmente relevantes: a associação dos moradores, a milícia e a relação de confiança e lealdade presente nos acordos mercantis.

Palavras-chave:
Mercado informal do solo; Informalidade urbana; Favela. Rio de Janeiro

Abstract

Given the increasing urbanization and expansion of the urban-real estate frontier over the territory of the metropolises, this paper analyzes the informal housing market in the Colônia Juliano Moreira neighborhood of the Jacarepaguá region, west of Rio de Janeiro. We investigated the characteristics of this market as to its structure, the transacted properties, the participating institutions, and the participating agents. This analysis uses real estate listing data and semi-structured interviews with local key agents. From the conducted interviews, we noted that the lack of security in the contracts is a fundamental characteristic of the analyzed market. There is an oligopolist structure and high demand for the properties offered, conferring enormous market power to the developers. The vulnerable population that demands housing in this area depends heavily on ties of loyalty and trust, which emerged as central institutions for the local real estate market. Three institutions are particularly relevant: the neighborhood association, the ‘milícia’, and the relationship of trust and loyalty present in the market agreements.

Keywords:
Informal land market; Urban informality; Favela. Rio de Janeiro

Introdução

A informalidade do solo urbano se apresenta como um tema desafiador à pesquisa, seja pela complexidade em se definir o que é exatamente informal em contraste com o que é formal, já que ambos estão intimamente ligados, seja pelas dificuldades associadas ao próprio levantamento de dados para a análise. Se tomarmos como definição a informalidade como aquilo que está fora do marco regulatório do Estado de Direito Moderno, seguindo Abramo (2012)Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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, teremos o mercado informal de solo urbano como o ambiente econômico em que os agentes transacionam bens à margem dessa esfera. O autor destaca que, no caso do mercado informal de solo, as irregularidades pertencem a dois âmbitos: urbano e econômico.

Segundo Alegria (2005)Alegria, T. (2005). Legalizando la ciudad: Asentamientos informales y procesos de regularización en Tijuana. Tijuana: Colegio de La Frontera., a ocupação irregular da terra, além de propiciar a formação de mercados imobiliários informais, leva a população que habita tais terras a não ter serviços de infraestrutura adequados1 1 Alegria (2005) delimitou seu estudo à cidade de Tijuana, no México. Segundo esclarece, o acelerado crescimento econômico local superou a capacidade do governo, o que, somado às características que dificultavam a construção de habitações populares, induziu o crescimento a se sustentar em formas irregulares de propriedade. . Há baixa arrecadação do Estado em relação à taxação da terra e transações imobiliárias, grandes pressões sociais que demandam serviços de infraestrutura, e se pagam altos custos para implantação dos serviços relacionados à urbanização (Smolka, 2002Smolka, M. (2002). Regularização da ocupação do solo urbano: a solução que é parte do problema, o problema que é parte da solução. In: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cadernos IPPUR/UFRJ (ano 1, n. 1, jan./abr. 1986). Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR.). No caso das irregularidades no âmbito econômico, pode-se inferir as relativas aos contratos de mercado que regulam as transações mercantis (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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). Como detalhado à frente, essas proposições servem de base teórica para a abordagem da informalidade relacionada ao mercado de solo urbano no presente trabalho.

A habitação informal na cidade do Rio de Janeiro é uma característica crucial na vida da cidade, assim como em outras cidades brasileiras, mesmo antes do surgimento das tão conhecidas favelas. Analisar o contexto histórico torna-se necessário para entender as particularidades desse assunto. Desde as reformas higienistas (Monte-Mór, 2006aMonte-Mór, R. L. M. (2006a). As teorias urbanas e o planejamento urbano no Brasil. In C. Campolina & M. Crocco (Eds). Economia Regional e Urbana: contribuições teóricas recentes (1a ed., pp. 61-73). Belo Horizonte: Editora UFMG.) que atuaram no combate do Estado aos cortiços na região central da capital fluminense, no primeiro quarto do século XX, as favelas fazem parte da paisagem carioca (Vaz, 1994Vaz, L. (1994). Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos: a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Analise Social, 29(127), 581-597.). Essas reformas, entre outros fatores, expulsaram parcelas da população da área central. Ao longo do processo de urbanização, que estendeu o tecido urbano fluminense e nacional durante o século XX, áreas periféricas cada vez mais distantes foram sendo incorporadas à metrópole em formação. Esse processo foi marcado pela extensão das condições gerais de produção, como grandes corredores de transporte, energia elétrica e comunicações, fazendo a indústria “explodir” a escala da cidade e espalhar estilhaços do urbano a periferias distantes (Castriota & Tonucci, 2018Castriota, R., & Tonucci, J. (2018). Extended urbanization in and from Brazil. Environment and Planning. D, Society & Space, 36(3), 512-528. http://dx.doi.org/10.1177/0263775818775426.
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; Lefebvre, 1999Lefebvre, H. (1999). A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG., 2001Lefebvre, H. (2001). A Cidade do Capital (2a ed.). Rio de Janeiro: DP&A.; Monte-Mór, 2006bMonte-Mór, R. L. M. (2006b). O que é o urbano, no mundo contemporâneo (Texto para discussão; No. 281). Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar. Recuperado em 16 de agosto de 2021, de http://www.dpi.inpe.br/urbisAmazonia/lib/exe/fetch.php?media=urbis:biblioteca_compartilhada:monte_mor-urbano_cedeplar_2006.pdf
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; Randolph, 2020Randolph, R. (2020). Expansão, implosão e explosão urbana nas fronteiras das metrópoles. Em busca de características particulares da sociedade urbana. InD. Maia, A. Rodrigues & W. Silva (Eds.), Expansão Urbana: Despossessão, conflitos, diversidade na produção e consumo do espaço (pp. 15-63). João Pessoa: Editora UFPB.). No Rio de Janeiro, o adensamento da Baixada Fluminense e de toda a Baía da Guanabara bem como o crescente espraiamento pelas rodovias que a ligam com São Paulo, principalmente, mas também com a Zona da Mata Mineira e o Espírito Santo, marcam esse processo (IBGE, 2020Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2020). Regiões de influência das cidades 2020 - REGIC. Recuperado em 6 de agosto de 2022, de https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101728
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).

Um século após o surgimento das primeiras favelas, a maneira de atuação do Estado em relação ao planejamento urbano e à habitação se transformou consideravelmente, sobretudo a partir da década de 1990. A partir dessa década, a prefeitura carioca, como tantas outras, adotou uma política mais liberal na maneira de gerir a cidade, apostando na criatividade empresarial e planejando transformar o Rio de Janeiro em palco de grandes eventos, buscando captar a demanda por turismo e negócios. Os efeitos do novo modelo começaram a ser sentidos a partir do início dos anos 2000 (Sampaio, 2014Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.). A região de Jacarepaguá, localizada na zona oeste da cidade, teve suas características transformadas recentemente. Sua proximidade com a área da Barra da Tijuca, vista como a nova fronteira de expansão da cidade (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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), faz com que a região tenha um crescimento populacional significativo. A Colônia Juliano Moreira, objeto de análise no presente estudo, pertence à região de Jacarepaguá e se inclui nas mudanças citadas.

Partindo do pressuposto de que não há constituição de um mercado sem que haja instituições (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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), nota-se a necessidade de estar ciente das instituições necessárias para o funcionamento do mercado que opera fora do marco regulatório que rege as relações formais. Entre elas podemos citar as organizações que garantem o cumprimento dos contratos sem que haja rompimento unilateral de uma das partes, ou mesmo as relações de confiança entre as partes fortalecidas por laços de amizade ou de parentesco. Como sugere a pesquisa de campo realizada, esses aspectos são essenciais para o entendimento da dinâmica imobiliária local. De acordo com o relatório produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) em parceria com o Observatório das Metrópoles (Ippur/UFRJ) (2020), a atuação ilegal na área imobiliária tem sido uma das principais, se não a principal, fonte de renda das milícias na cidade do Rio de Janeiro. A expansão da fronteira urbano-imobiliária na zona oeste da cidade é uma das razões.

A complexidade do assunto abordado neste trabalho é potencializada pela reduzida literatura e dificuldade de levantamento de dados, seja por se tratar de um mercado que está à margem dos marcos regulatórios, não sendo objeto de análise das organizações formais reconhecidas pelo Estado, seja pela forma violenta de atuação dos grupos que operam como instituições controlando o fluxo de informação. Dessa forma, pode-se destacar a relevância deste estudo para o entendimento do tema, ressaltando-se que não há literatura disponível para a área aqui delimitada e que existem barreiras sociais (de segurança, inclusive) que dificultam a penetração na teia de relações na área de estudo.

Diante deste panorama, este trabalho buscou elucidar questões a respeito do mercado informal imobiliário na Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, zona oeste do município do Rio de Janeiro. São elas: tipo de concorrência, agentes participantes e instituições que regulam esse mercado. Apesar de o foco do trabalho ser a parte informal do mercado de solo, deparou-se com imóveis formais ao longo da pesquisa. Contudo, como esses casos foram minoritários, optou-se por manter o foco na informalidade.

Além desta introdução, o artigo é dividido em cinco seções. A segunda seção faz uma revisão de literatura sobre o tema, com foco nas características e no funcionamento dos mercados informais de solo. A terceira seção contextualiza a área de estudo, trazendo aspectos geo-históricos e mostrando as transformações do mercado imobiliário, descrevendo a atuação do Estado nas políticas de habitação e explicitando o poder das milícias. As quarta, quinta e sexta seções apresentam, respectivamente, a metodologia, a apresentação dos resultados e as considerações finais.

Os mercados informais do solo urbano

O processo de ocupação popular da terra urbana se intensificou a partir dos anos 1950 em toda a América Latina, tornando-se a principal fonte de acesso dos pobres à cidade. Em alguns países, o Estado promoveu a produção de moradias, diante do modelo excludente de industrialização fordista periférica. Dessa forma, tem-se um padrão de solo urbano popular com dois vetores: a ocupação popular e a produção de moradias em conjuntos habitacionais ou lotes urbanizados (Duhau, 2001Duhau, E. (2001). Impactos de los programas de regularización: Notas a partir de la experiencia mexicana. In Lincoln Institute workshop on Informal Land Markets: Land Tenure Regularization and Urban Upgrading Programs. Cambrigde: Lincoln Institute of Land Policy.; Lipietz, 1988Lipietz, A. (1988). Miragens e milagres: problemas da industrialização no Terceiro Mundo. São Paulo: Nobel. apud Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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).

Na avaliação de Calderón Cockburn (1999)Calderón Cockburn, J. (1999). Algunas consideraciones sobre los mercados ilegales e informales de suelo urbano en América Latina (Reporte de investigación LP99Z16). Cambridge, Massachusetts: Lincoln Institute of Land Policy (LILP)., Abramo (2012)Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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e Jaramillo (2008)Jaramillo, S. (2008). Reflexiones sobre la “informalidad” fundiaria como peculiaridad de los mercados del suelo en las ciudades de América Latina. Territorios, 18-19, 11-53. Recuperado em 16 de agosto de 2021, de https://revistas.urosario.edu.co/index.php/territorios/article/view/826
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, nas últimas décadas os mercados informais do solo urbano transformaram-se no mais importante mecanismo de provisão de solo e moradia para os setores populares na América Latina. Esse mercado, diverso do mercado formal voltado às camadas médias e altas, tem grande peso quantitativo e, em determinadas situações, pode suportar processos de acumulação de capital bastante consideráveis por parte de agentes informais. A despeito da importância dos mercados informais do solo na urbanização latino-americana, a literatura sobre o tema, além de exígua, concentra-se nos aspectos urbanísticos e jurídicos do fenômeno, sendo insuficiente a compreensão dos agentes e lógicas econômicas que estruturam esses mercados.

Segundo Cockburn (1999), o campo dos mercados informais do solo urbano estuda a troca de um bem cuja transação ocorre por fora do marco legal estabelecido, admitindo uma dupla dimensão: econômica e jurídica. Quanto às taxonomias adotadas, o autor considera que a investigação urbana latino-americana usa de modo indistinto e, quase sem precisões, os termos informal, ilegal, irregular e clandestino.Biderman & Smolka (2011)Biderman, C., & Smolka, M. (2011). Housing Informality: An Economist’s Perspective on Urban Planning. In N. Brooks, K. Donaghy & G.-J. Knaap (Eds), The Oxford Handbook of Urban Economics and Planning (pp. 814-833). New York, United States: Oxford University Press Inc. definem que a informalidade na moradia e na ocupação do solo se refere a atividades ilegais (ausência de direitos adequados de propriedade), irregulares (descumprimento das normas urbanas) e/ou clandestinas (não permitidas). O termo, se visto como descritivo, ou seja, de natureza pré-analítica, é polifônico e serve para descrever fenômenos em diversas disciplinas e situações concretas da vida social (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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). Uma dificuldade em buscar uma definição é que os elementos informais e formais estão profundamente imbricados, cabendo à pesquisa enfocar a relação entre o formal e o informal nas estruturas reais de ação.

A delimitação proposta por Abramo (2012)Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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, adotada neste trabalho, considera como mercado informal aquele em que há troca de bens (materiais ou imateriais) à margem do marco regulatório do Estado de Direito Moderno na esfera jurídico-política. Assim, o autor considera que a informalidade urbana constituiria um conjunto de irregularidades em relação aos direitos urbanísticos, construtivos e de propriedade. Dada essa aproximação, a informalidade do solo urbano seria um conjunto de irregularidades urbanas, incluindo as irregularidades urbanísticas, construtivas e as referentes ao direito de propriedade da terra, acrescidas da irregularidade econômica relativa aos contratos de mercado.

No mercado informal do solo, outras formas de garantia da confiança se desenvolvem para estabelecer a relação contratual; caso contrário, não há base para a relação de troca, tendo em vista a possibilidade de rompimento unilateral do contrato informal por alguma das partes envolvidas. Por exemplo, há possibilidade de um locador poder expulsar sumariamente um locatário ou então um locatário não realizar o pagamento do aluguel ou outros encargos e “desaparecer”. Essas possibilidades de rompimento ameaçam o funcionamento do mercado. Nesse tipo de contexto, “autoridades” locais que dispõem de meios coercitivos, caso a mediação pacífica seja malsucedida, atuam como instituições mediadoras de conflitos e garantem que os contratos sejam cumpridos (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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).

Pode-se afirmar que não há constituição de um mercado sem que haja instituições que garantam e estejam responsáveis pela mediação interpessoal das relações mercantis (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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). Destaca-se que uma instituição não se refere somente a um conjunto de pessoas que formam uma organização com objetivos específicos, como é o caso de um banco ou uma escola, mas também a um padrão organizado de comportamento em grupo, bem estabelecido e aceito como parte fundamental da cultura (Brue, 2005Brue, S. (2005). História do pensamento econômico (6a ed.). São Paulo: Thomson.).

No mercado informal, há necessidade de que seja mantida a confiança nos contratos informais; dessa forma, as relações de amizade e/ou parentesco entre as partes garantem em alguma medida uma segurança na relação mercantil firmada. A “autoridade” local serve como fiador em termos intertemporais e intergeracionais. A legitimidade de uma autoridade local é dada por uma infinidade de processos sociais legitimadores que ocorrem durante desdobramento dos processos históricos de formação de uma comunidade. Tal legitimidade pode ter inúmeras origens, tais como religiosa, política, étnica, cultural ou no uso da violência e controle pela força, o que se constata com frequência quando se trata de mercado informal do solo na América Latina (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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).

Segundo Abramo (2012)Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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, tradicionalmente a literatura de economia de uso do solo utiliza como critério para definir submercados de solos urbanos a “substitutibilidade” dos bens imobiliários/fundiários. Para abordar o tema no caso do mercado informal de solo, de maneira análoga, o autor usa a “insubstitutibilidade” como variável-chave. Elegendo os seguintes elementos como determinantes para identificar as diferenças substantivas entre o mercado informal e o formal, o autor chegou a uma aproximação da definição de submercados informais: características da oferta e da demanda de solo; poder de mercado dos agentes econômicos (estrutura de mercado); características informacionais do mercado (assimetrias e transparências de informação); características dos produtos (homogêneos ou heterogêneos); externalidades (exógenas e endógenas); racionalidades dos agentes (paramétrica, estratégica etc.) e ambiente da tomada de decisão (risco probabilístico ou incerteza radical). Dessa forma, o mercado informal de solo pôde ser dividido em dois grandes submercados: submercado de loteamentos e submercado de assentamentos populares informais (APIs) consolidados. As características de cada um desses submercados estão no Quadro 1. Os loteamentos geralmente se dão sobre a terra nua, localizada nas bordas ou franjas de uma área urbanizada, e são conduzidos por um empreendedor – o loteador – que efetiva o parcelamento de uma gleba em lotes. Já os APIs são aglomerações urbanas densas, por vezes chamados de favelas ou aglomerados subnormais, com localizações geralmente inseridas nas manchas urbanas e com proximidade relativa a áreas formais, onde há posse rarefeita das moradias.

Quadro 1
- Marco comparativo das características do mercado informal

Cabe ressaltar alguns pontos principais do Quadro 1. Em termos de estrutura de mercado, geralmente são poucos loteadores informais em dada região, enquanto nos APIs há famílias interessadas na venda (“saintes” daquela comunidade) e outras interessadas na compra (“entrantes” naquela comunidade), com a oferta limitada pelo estoque de imóveis existentes e pela capacidade física de expansão do APIs. Enquanto o loteador possui capacidade para ter margens sobre a venda dos lotes em relação ao seu custo de loteamento (mark-up), nos APIs há uma negociação entre compradores e vendedores. O loteador vende um produto relativamente homogêneo (lotes), que possui certas características físicas e topográficas e uma localização em relação à centralidade local, ao passo que nos APIs os produtos são heterogêneos entre si, e a comunidade já possui um conjunto de características próprias dela (endógenas). Tanto o loteador quanto o comprador do lote não sabem qual será o futuro urbano daquela parcela – infraestrutura, linhas de ônibus, outros loteamentos vizinhos irão chegar? Nos APIs, há uma pluralidade de razões e possibilidades futuras, que acontecerão sobre uma estrutura já existente. A priori, não se sabia antes da pesquisa de campo quais situações seriam encontradas em Jacarepaguá. Ao longo dela, notou-se a presença de ambas as formas de submercados informais na região: tanto loteamentos quanto assentamentos consolidados.

Contextualizando Jacarepaguá e Colônia Juliano Moreira

Formação histórica

No período entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, mudanças significativas ocorreram na cidade do Rio de Janeiro. Como destaca Vaz (1994)Vaz, L. (1994). Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos: a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Analise Social, 29(127), 581-597., essas mudanças estruturais deram uma nova configuração ao lugar, que antes era uma cidade comercial com feições coloniais. A partir de então, ganhou moldes de cidade industrial com características de uma grande metrópole capitalista. Com a substituição da mão de obra escrava pela mão de obra assalariada, novos mercados surgiram, como o de moradia e trabalho (Vaz, 1994Vaz, L. (1994). Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos: a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Analise Social, 29(127), 581-597.).

À medida que se aumentava o contingente de trabalhadores, com escravos libertos e imigrantes, essas pessoas buscavam meios de sobrevivência, alocando-se principalmente na região central da cidade. Uma resposta a essa demanda foi a criação de habitações coletivas. Lotes e casas eram encortiçados e transformados em casas de cômodos e estalagens. Com o aumento das aglomerações, diminuíam-se as condições de higiene nessas habitações. Por outro lado, surgiam os empresários do ramo imobiliário, introduzindo um padrão novo nas edificações da cidade do Rio de Janeiro (Vaz, 1994Vaz, L. (1994). Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos: a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Analise Social, 29(127), 581-597.). O incentivo a habitações mais higiênicas, com padrões europeus e de alto custo (Monte-Mór, 2006aMonte-Mór, R. L. M. (2006a). As teorias urbanas e o planejamento urbano no Brasil. In C. Campolina & M. Crocco (Eds). Economia Regional e Urbana: contribuições teóricas recentes (1a ed., pp. 61-73). Belo Horizonte: Editora UFMG.), deu novas características à região central. Ainda segundo Vaz (1994)Vaz, L. (1994). Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos: a modernização da moradia no Rio de Janeiro. Analise Social, 29(127), 581-597., o valor elevado das novas instalações era incompatível com a realidade dos moradores dos antigos cortiços. Assim, excluíam-se os benefícios da modernização das moradias de seus supostos beneficiários.

A Baixada de Jacarepaguá, no início de sua urbanização, em meados do século XVI, era denominada Planície dos Onze Engenhos. Com a Lei das Terras de 1850, doações de terra passaram a ser proibidas e as sesmarias que não estavam habitadas ou não cumpriam suas obrigações com o fisco eram vendidas. Dessa forma, houve uma transformação no uso do solo, que passou do modelo de sesmarias para um em que o solo passou a ser uma mercadoria, e o Estado brasileiro passou a se adequar à nova lógica do capitalismo vigente (Sampaio, 2014Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.).

Com essa mudança, teve início um processo de urbanização nas freguesias rurais do Rio de Janeiro. Contudo, o caráter relativamente isolado da região da Baixada de Jacarepaguá manteve a região com densidade mais baixa até meados do século XX (Sampaio, 2014Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.). Essa característica também contribuiu para que a área fosse escolhida para abrigar instituições psiquiátricas no século XX, entre as quais a antiga Colônia Juliano Moreira.

Posteriormente, a área recebeu seu primeiro loteamento residencial de edificações unifamiliares, de propriedade da Imobiliária da Curicica, denominado “Loteamento Parque da Curicica”, no ano de 1959. Ao longo das décadas de 1950 e 1980, a metrópole fluminense se estendeu em vários vetores de crescimento, inclusive rumo a oeste, ocupando e adensando a Baixada de Jacarepaguá. Vários centros populares se consolidaram pelos subúrbios (Villaça, 2001Villaça, F. (2001). Espaço intra-urbano no Brasil (2a ed.). São Paulo: Nobel/LILP.), a metrópole se estendeu enormemente ao longo de eixos de grandes rodovias (BR-101, BR-116, BR-040 e outras) (Rocha & Ribeiro, 2020Rocha, A. C., & Ribeiro, M. Â. C. (2020). A expansão da metrópole do Rio de Janeiro e a formação da franja periurbana e perimetropolitana. Revista Continentes, 9(16), 380-411.), bem como uma ocupação de alta renda e alta densidade se consolidou na Barra da Tijuca (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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). Hoje, Jacarepaguá se situa na região administrativa denominada AP-4 (Área de Planejamento 4). Sua localização no município do Rio de Janeiro pode ser vista na Figura 1.

Figura 1
- Mapa da cidade do Rio de Janeiro, separada por regiões administrativas, com destaque para Jacarepaguá (contorno vermelho) e Colônia Juliano Moreira (ponto azul). Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (2021)Rio de Janeiro. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. (2021). Mapa da Cidade do Rio de Janeiro, separado por regiões administrativas. Recuperado em 12 de julho de 2021, de https://pcrj.maps.arcgis.com/apps/mapviewer/index.html
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.

Estado e mudanças recentes

Houve uma mudança do paradigma nas políticas urbanas no Rio de Janeiro a partir dos anos 1990, incluindo as políticas relacionadas à moradia e às favelas (Sampaio, 2014Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.). A mudança do sistema de gestão, que ocorreu em um período de ascensão do pensamento neoliberal aplicado ao urbanismo (Peck et al., 2009Peck, J., Theodore, N., & Brenner, N. (2009). Neoliberal urbanism: models, moments, mutations. The Review of International Affairs, 29(1), 49-66. http://dx.doi.org/10.1353/sais.0.0028.
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), passou a pregar que se aplicasse a eficiência e a criatividade empresarial como maneira de gestão municipal, com a estratégia de inserir a capital fluminense na demanda mundial por turismo e negócios. Os resultados esperados começaram a ser notados a partir dos anos 2000, com a cidade sediando os Jogos Pan-Americanos de 2007 e posteriormente sendo escolhida para sediar a Copa das Confederações de 2013, os jogos da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Além desses, houve também os Jogos Militares em 2011, Rio + 20 em 2012, Cúpula dos Povos em 2012 e o Rock in Rio (Sampaio, 2014Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.).

Em 2004, foi lançado o plano denominado “As Cidades da Cidade”, plano estratégico que buscou o estabelecimento de identidades e vocações para setores específicos da cidade. Nesse contexto, o bairro da Barra da Tijuca, na zona oeste, é apresentado como a “fronteira de expansão da cidade”. Nesse momento, segundo Sampaio (2014)Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro., houve um processo de favelização no entorno que não foi mencionado no discurso oficial. Em 2012, foi lançado o “Programa Morar Carioca”, que buscava tratar de maneira efetiva os “assentamentos informais precários” no município, mesma proposta de seu antecessor Favela-Bairro, de 1993.

A região de Jacarepaguá teve suas características intensamente modificadas nesse período. Sua proximidade com a área da Barra da Tijuca, vista como a nova fronteira de expansão da cidade (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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), fez com que a região tivesse um crescimento populacional importante. Houve ainda uma nova rodada de transformações com a notícia de que o Rio de Janeiro iria sediar as Olimpíadas do ano de 2016, alterando o local para um subproduto da “cidade global” que a capital fluminense almejava se tornar. A Colônia Juliano Moreira foi incluída nas mudanças citadas. Um fator que se pode destacar para exemplificar a nova configuração das características do local é a criação de duas vias expressas (Transolímpica e Transcarioca), que, como destaca Sampaio (2014)Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro., acabaram por obrigar os moradores a se relacionarem de uma maneira inédita com a região, como ilustra a Figura 2.

Figura 2
- Locais que receberam via expressa em Curicica. Fonte: Sampaio (2014)Sampaio, L. (2014). Curicica, de “fim do mundo” a “Barra Olímpica” (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro..

Milícias

Segundo o relatório do GENI (2020)Grupo de Estudos Novos Ilegalismos – GENI. (2020). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Recuperado em 16 de janeiro de 2021, de https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/12/Relatorio-Parcial_A-expansao-das-milicias-no-Rio-de-Janeiro_FINAL.pdf
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, grupos armados, denominados milícias, vêm expandindo seu poder na cidade do Rio de Janeiro. Essa expansão é tão significativa, que chega a alterar antigas configurações entre conflitos territoriais na cidade (antes esses confrontos eram caracterizados principalmente por grupos ligados ao tráfico de drogas). Esses grupos agem de maneira violenta e têm entre suas atividades principais a prática de extorsão sobre os residentes, além de ativa participação no mercado imobiliário.

A partir de dados obtidos por meio do cruzamento do mapa dos grupos armados com a base de operações policiais, realizado pelo GENI (2020)Grupo de Estudos Novos Ilegalismos – GENI. (2020). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Recuperado em 16 de janeiro de 2021, de https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/12/Relatorio-Parcial_A-expansao-das-milicias-no-Rio-de-Janeiro_FINAL.pdf
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, notou-se que os bairros onde ocorreram menos operações policiais na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2019 foram os bairros de Campo Grande e Barra da Tijuca, locais de predominância das milícias, o que indica vantagem política das milícias em relação aos demais grupos armados. Outro indicativo de alto poder político, inclusive envolvendo parlamentares, é que há indícios de políticos ligados às milícias envolvidas no assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes. A motivação para o crime pode estar associada à atuação da vereadora contra as práticas dos grupos no mercado imobiliário (GENI, 2020Grupo de Estudos Novos Ilegalismos – GENI. (2020). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Recuperado em 16 de janeiro de 2021, de https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/12/Relatorio-Parcial_A-expansao-das-milicias-no-Rio-de-Janeiro_FINAL.pdf
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).

Na estrutura e no funcionamento do mercado informal do solo em Jacarepaguá e, mais especificamente, na Colônia Juliano Silva, convergem elementos da formação histórica mencionada, das transformações recentes de reestruturação da metrópole fluminense, assim como da expansão das novas formas de ilegalismo, como as milícias. Antes de avançarmos na caracterização do perfil desse mercado na região, cabe apresentar os métodos de pesquisa empregados e as fontes de informações aqui utilizadas.

Metodologia e dados

O presente trabalho buscou elucidar questões a respeito do mercado informal imobiliário na área da Colônia Juliano Moreira, especificamente: qual o tipo de concorrência, quais agentes participam e quais instituições regulam esse mercado. Entrevistas semiestruturadas aplicadas às questões espaciais são uma maneira de interação com objetos de pesquisa que não seriam alcançáveis de outras maneiras (Kapp, 2020Kapp, S. (2020). Entrevistas na pesquisa sócio-espacial. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 22, e202006. https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202006
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). Diante desse objetivo, optou-se por uma abordagem que associa os dados da pesquisa de campo aos dados secundários coletados em fontes diversas, como explicado a seguir.

É necessário contextualizar que um dos autores deste trabalho residiu na área durante 23 anos e ainda possui familiares lá, realizando visitas periódicas. Tal fato influencia positivamente para que os pontos discutidos sejam representativos para o entendimento do problema aqui abordado.

As entrevistas foram realizadas em 2021. Como de praxe nas entrevistas semiestruturadas, as respostas foram livres e as perguntas foram feitas a partir do mesmo roteiro. Essas entrevistas foram feitas com os seguintes informantes-chave na área de estudo:

  • Entrevistado 1: Corretores imobiliários que atuam na área de estudo.

  • Entrevistado 2: Líder de associação dos moradores ou similar.

  • Entrevistado 3: Morador local.

  • Entrevistado 4: Proprietário locador e morador local.

  • Entrevistado 5: Morador de aluguel (locatário).

Destaca-se que as características do local e as circunstâncias do período da pesquisa impactaram negativamente no levantamento de dados por meio das entrevistas, tendo em vista que se trata de uma área sob o domínio de milicianos, e as entrevistas foram realizadas no período de ocorrência da pandemia de Covid-19. Dessa forma, a abordagem aqui adotada visou colocar em discussão pontos estratégicos para a análise em questão, como apontado pela literatura.

Além das entrevistas semiestruturadas, também foi feito um levantamento de dados quantitativos a partir de informações disponíveis em sites de anúncios imobiliários. Esses dados possibilitaram a análise de aspectos dos bens imobiliários no mercado (supostamente) formal da área e a comparação de suas características com as notadas no mercado informal a partir de informações fornecidas pelos entrevistados.

Outras metodologias utilizadas para o levantamento de dados relacionados ao setor imobiliário, como dados retirados de jornais de balcão, parecem inadequadas atualmente pelo baixo número de observações e dificuldades de tratamento e verificação dos dados. Além disso, destaca-se a considerável relevância crescente dos meios eletrônicos nesses tipos de anúncio. Outros aspectos positivos a serem considerados são a fácil verificação dos dados, tendo em vista a disponibilidade de fotos e a rapidez com que se pode entrar em contato com o anunciante; e que os anúncios são facilmente atualizados (Almeida et al., 2017Almeida, R., Monte-Mór, R., & Amaral, P. (2017). Implosão e explosão na Exópolis: evidências a partir do mercado imobiliário da RMBH. Nova Economia, 27(2), 323-350. http://dx.doi.org/10.1590/0103-6351/3142.
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).

Neste trabalho, foram consultados os sites Casa Mineira, Vilhena Consultoria Imobiliária e AG Rio Imóveis, além de colhidos dados referentes à região da Colônia Juliano Moreira, assim como dos bairros Taquara e Curicica (bairros na vizinhança imediata da localidade objeto deste estudo). As informações escolhidas para análise tiveram como fonte o site AG Rio Imóveis e referem-se ao bairro denominado Taquara, que fica nas proximidades da Colônia Juliano Moreira. O levantamento de dados diretamente da área delimitada no presente estudo, no âmbito dos meios oficiais, mostrou-se extremamente difícil, por se tratar de uma localidade em que há predominância de produtos transacionados no âmbito não formal. Da mesma forma, o levantamento de dados do bairro Curicica nas fontes utilizadas mostrou-se com pouca relevância pelo pequeno número de observações contidas na amostra. Contudo, os dados referentes ao bairro Taquara têm relativa abundância, e cabe destacar que ambas as localidades são extremamente próximas e que em alguns casos se misturam, como pôde-se notar nos anúncios do site Casa Mineira, por exemplo, em que imóveis descritos com localização na Colônia Juliano Moreira tinham seu bairro de localização Taquara.

Resultados: produtos, instituições e caracterização do mercado

Os produtos

A partir das entrevistas realizadas com os participantes do mercado de solo, pode-se notar algumas características quanto aos produtos ofertados e demandados. Alguns pontos que colaboram para moldar as características deles merecem ser destacados, como a contribuição dos programas habitacionais recentes e a atuação de promotores locais com pouco capital.

Os programas oriundos de políticas habitacionais executadas pelo Estado mostraram grande contribuição para a atuação recente do mercado imobiliário na área analisada. Dois dos cinco entrevistados se inseriram como ofertantes ou demandantes de imóveis por meio deles, direta ou indiretamente. O entrevistado 1, que hoje atua como ofertante de pequenos apartamentos para a venda em terreno de sua propriedade, relata que a sua mãe “comprou [o terreno] quando ela foi beneficiada pela prefeitura. Teve aquela demolição de casas, na enchente, em 2009”. O terreno foi comprado em 2011 pelo valor de R$ 80 mil e deu origem a cinco imóveis. Três deles possuíam 31 m2 cada, com um quarto, uma sala, uma cozinha e um banheiro, e eram vendidos no valor de R$ 70 mil (aproximadamente R$ 2.258/m2), por unidade, à vista, e R$ 95 mil (aproximadamente R$ 3.065/m2) caso fosse parcelado. Ofertava também outros dois imóveis, com 40 m2 cada, dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro, e eram vendidos a R$ 160 mil (R$ 4.000/m2), por imóvel, à vista, e R$ 180 mil (R$ 4.500/m2) caso parcelado2 2 Imóveis com características muito semelhantes, no mercado formal, encontrados na pesquisa apresentada na Tabela 2, apresentam os seguintes valores por unidade: 31 m² por R$ 160 mil e 41 m² por R$ 180 mil. . Não havia garagem nos imóveis. Cabe ressaltar que o parcelamento dos débitos era feito por conta própria, com recebimento dos valores por meio de transferências bancárias, pois os imóveis não eram regularizados. Dessa forma, não possuíam a documentação necessária, inviabilizando a intermediação de instituições de crédito oficiais para obtenção de financiamento, conforme relato do ofertante, mas possibilitando acesso à moradia de compradores que provavelmente teriam o perfil negado em financiamentos imobiliários pelos bancos.

Tabela 2
- Preços no mercado formal

Ainda com base no relato do entrevistado 1, é possível realizar uma estimativa do tempo de pagamento e da taxa de juros cobrada. De acordo com o entrevistado, o valor das parcelas dos imóveis vendidos a prazo chegava a R$ 3.000, acima do cobrado pelo aluguel dos imóveis (por volta de R$ 1.200, no máximo). Ainda destaca que no ato da compra era pago um valor correspondente a 60% do valor total da venda como entrada. Com base nessas informações, foi possível elaborar a Tabela 1, que mostra que, de acordo com as informações disponibilizadas, há possibilidade de cobrança de juros extraordinários (chegando a mais de 30% ao ano).

Tabela 1
- Estimativa de taxa de juros cobrada

Estimativa de taxa de juros cobrada, com base nas informações disponibilizadas pelo Entrevistado 1. Fonte: elaboração própria.

Diante do exposto na Tabela 1, que mostra uma possível cobrança de taxa de juros bem acima do que foi constatado no mercado formal e com período de pagamento muito abaixo do que se costuma observar em financiamentos de imóveis, torna-se necessária a exposição um pouco mais detalhada das características dessa possível transação. Primeiramente, a relação de confiança e lealdade comum nas trocas no mercado analisado (que demonstra estimular um preço mais baixo, em alguma medida) parece menos presente, sendo a forma encontrada para o ofertante garantir alguma segurança na relação é registrar um contrato de compra e venda.

A gente não tem esse poder no banco de financiar, porque o imóvel não tem os documentos necessários, que é: o RGI, o Habite-se. De um local que nunca teve. Que é um terreno doado, né? Como dizem aí. Mas é feito no cartório, dependendo de como é a entrada, o valor. Se for de 50%, muita gente faz isso. Pega o dinheiro e financia no cartório, com cláusulas. [...] Essas questões aí [relacionadas a um possível não pagamento da parte demandante] a gente tem um ato no contrato, em que o advogado entra com uma ação que pega o apartamento de volta e devolve o que ela pagou. Sendo que as parcelas que ela tinha pagado não volta. Que ficasse como um aluguel. (Entrevistado 1).

Diante do risco de rompimento unilateral do contrato, o ofertante vê na cobrança de prestações em valores acima do que seria cobrado no caso de aluguel uma forma de prêmio de risco, já que, no caso de rompimento do contrato, o valor da entrada deve ser todo devolvido.

Uma análise foi feita usando como base as informações obtidas pelo site AG Rio Imóveis, com um total de 147 observações, todas de imóveis totalmente construídos para venda (mercado secundário), com área totalmente construída (sem terreno), características semelhantes aos citados na entrevista, utilizando como base o bairro vizinho da Taquara. As informações levantadas não indicam discrepâncias relevantes de preço entre os mercados formal e informal. A Tabela 2 expõe os resultados obtidos.

Outra entrevistada, que é moradora de um conjunto habitacional do MCMV, informou que seu apartamento possuía características comuns ao programa – apartamentos pequenos, em blocos de vários prédios, em áreas periféricas. Sua mudança para o bairro de Santa Cruz, local do apartamento recebido, a levou a alugar a casa que vivia anteriormente – uma casa de dois quartos, um banheiro e sem vaga, locada por R$ 600,00 mensais. Nessa locação, o vínculo de confiança teve grande contribuição, pois sua primeira locatária era sua comadre, e posteriormente para o ex-marido dessa inquilina. Hoje reside novamente na área objeto do presente estudo, em um imóvel fruto de uma permuta. A troca de apartamentos entre moradoras de Santa Cruz e da Colônia Juliano Moreira, ambos do mesmo programa habitacional, aconteceu de forma direta, por meio de um acordo verbal.

Assim como os programas habitacionais, os próprios moradores da região também têm contribuição na oferta de produtos imobiliários na localidade. Quando esses detêm terrenos mais amplos e em localizações melhores, como enfatiza o entrevistado 1, possuem certo poder de monopólio na venda do terreno: “[...] os terrenos que as pessoas têm, que já são moradores, já têm e vendem, são um pouquinho mais caros do que o normal de qualquer outro lugar que não tenha documentação”.

As instituições

Iniciamos a exposição a respeito das instituições a partir das respostas dadas por um por um ex-morador da região analisada (entrevistado 1), que possui diversos imóveis na área. Podemos destacar alguns pontos centrais na sua concepção quanto ao mercado imobiliário na Colônia Juliano Moreira. Entre as instituições citadas pelo ofertante entrevistado, podemos destacar duas principais: a associação dos moradores e a milícia, sendo que, respectivamente, uma recebe uma taxa de participação das vendas de imóveis realizadas (5% do valor total da venda), enquanto a outra recebe um valor fixo mensal (R$ 100) referente a cada imóvel (o valor passa a ser pago pelo inquilino, em caso de locação ou pelo novo proprietário, em caso de venda). Cabe frisar que ambas as organizações não ficam responsáveis por quaisquer resoluções de conflitos que possam surgir a partir da efetivação do ato de compra ou locação, ou até mesmo outros eventuais custos com manutenção necessária. Todo ônus que surja da transação fica a cargo do vendedor ou locador, garantido por contrato reconhecido em cartório (apesar de não ter ficado claro que tipo de contrato), como forma de dar ao demandante certa segurança para que a troca mercantil seja realizada, mostrando uma relação imbricada entre o formal e o informal. Dito isso, é relevante complementar que não ficou explícita a atuação das duas instituições citadas para que se justifique a cobrança das taxas, ficando subentendida a cobrança por imposição, sem clara contrapartida para a parte ofertante.

Como já enfatizado pela literatura (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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; Brue 2005Brue, S. (2005). História do pensamento econômico (6a ed.). São Paulo: Thomson.), instituição não se refere somente a um conjunto de pessoas que formam uma organização com objetivos específicos (como é o caso da milícia ou da associação dos moradores), mas também a um padrão organizado de comportamento em grupo, que pode ser fundamental para a sustentação no tempo de transações econômicas. Então, além das citadas anteriormente, pode-se destacar mais uma instituição relevante para o funcionamento do mercado informal em análise: a relação de confiança e lealdade, baseada em laços de amizade ou parentesco para se firmar o contrato mercantil para aquisição e venda de imóveis e terras. O Quadro 2 ilustra as relações estabelecidas entre cada entrevistado e as instituições citadas.

Quadro 2
- Relação dos entrevistados com as instituições informais

Diante do exposto no Quadro 2, torna-se necessário o acréscimo de algumas informações relevantes para a sua compreensão. Primeiramente, a participação do líder comunitário na associação dos moradores não o coloca necessariamente como agente do mercado imobiliário, e sua atuação não ficou clara, pois ele esboçou receio em abordar o assunto. Ademais, cabe ressaltar que a aparente falta de relação entre a maior parte dos agentes entrevistados com grupos de milicianos que têm ativa atuação no mercado imobiliário da região pode estar relacionada com a forma violenta de ação dessa instituição, inibindo a menção de sua atuação durante as entrevistas. Ressalta-se que a relação entre as instituições e os entrevistados foi levantada a partir de menção espontânea dos entrevistados, conforme os questionamentos. Os entrevistados não foram perguntados diretamente sobre esses vínculos.

O mercado

Ao analisar o funcionamento do mercado de solo na região, é importante dar destaque à força das instituições atuantes e seu papel. Entre as principais instituições abordadas no presente trabalho estão: as chamadas “milícias”, a associação dos moradores e as relações de confiança-lealdade. A maneira como essas corporações atuam e a importância dada às relações de amizade e parentesco mostram-se vitais para determinar as características presentes no mercado informal de solo, como também apontado por Cockburn (1999).

Diferentemente da extorsão (prática característica do grupo), que em grande medida deixa de ser representada nas estatísticas oficiais, a atividade imobiliária possui dados oficiais na Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU), facilitando o entendimento da acumulação de recursos econômicos por milicianos. Entre as entrevistas realizadas para a obtenção de informações da presente pesquisa, há pouca menção à atuação de grupos armados, indicando uma possível e equivocada sensação de que há pouca relação do grupo na oferta de imóveis e terrenos na localidade, em que a organização somente é citada na cobrança de taxas, sem nenhuma contrapartida que justifique tal cobrança, indicando prática de extorsão. Contudo, a atuação violenta da instituição e a cautela demonstrada pelos entrevistados ao citá-la indicam a insegurança como a provável causa da omissão do tema. Essas informações são necessárias para o entendimento do nível de concorrência observado por eles, os quais desconsideraram a atuação de milicianos ao formular suas respostas.

O Entrevistado 1 supôs baixa concorrência, indicando um oligopólio. Por ser um corretor de imóveis no local, disse ter conhecimento de apenas mais três pessoas atuando na compra, venda e aluguel de casas e terrenos. Já o Entrevistado 2 supôs uma alta concorrência, por haver um aumento da população nos últimos anos. Os demais não souberam opinar.

Cabe ressaltar que os entrevistados são agentes do mercado, e não especialistas, o que justifica até mesmo alguns equívocos, como a resposta do Entrevistado 2, que supôs uma grande oferta simplesmente por haver uma alta procura. Contudo, não se descarta a importância de sua concepção como indivíduo inserido no meio social objeto do estudo. Diante da característica de informalidade, aqui entendida como um termo pré-analítico que supõe a não inserção do objeto analisado no Estado de Direito Moderno (Abramo, 2012Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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), indica-se uma improbabilidade de inserção dos dados necessários nos meios oficiais de análise estatística.

Quanto aos preços cobrados na venda final das habitações (geralmente apartamentos), pôde-se notar que a falta de segurança jurídica, muitas vezes compensada com uma relação de confiança entre as partes para garantir que o acordo mercantil seja firmado, acaba forçando em alguma medida os preços para baixo. Da mesma forma, os produtos não regulamentados, sem a documentação necessária, inviabilizam a intermediação de instituições financeiras que poderiam ceder crédito, cabendo ao ofertante a necessidade de avaliar os riscos e a capacidade de pagamento da futura dívida por parte dos demandantes. Como se trata de pessoas com baixa renda e, dessa forma, baixo poder de compra, preços mais altos provavelmente seriam uma barreira para o acesso, levando-os a buscar imóveis em outras regiões (mais periféricas) ou possivelmente mais densos (imóveis piores em favelas mais bem localizadas). Isso também estimula que os preços sejam em alguma medida mais baixos nesse mercado, ainda que não necessariamente baratos, como apontado por Biderman & Smolka (2011)Biderman, C., & Smolka, M. (2011). Housing Informality: An Economist’s Perspective on Urban Planning. In N. Brooks, K. Donaghy & G.-J. Knaap (Eds), The Oxford Handbook of Urban Economics and Planning (pp. 814-833). New York, United States: Oxford University Press Inc..

Por outro lado, no mercado informal do solo urbano, há o difícil acesso a terrenos para construção. Isso também pode ser potencializado por cobranças de taxas impostas por instituições não oficiais. Em outras palavras, os poucos ofertantes de imóveis (moradores muito antigos ou milícias) na área possuem um poder assimétrico e maior em relação à grande população de baixa renda.

Com base nas características dos submercados apontadas por Abramo (2012)Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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destacadas no Quadro1, pode-se avaliar os traços encontrados no mercado informal da área aqui analisada, no Quadro3. Como descrito no quadro, observa-se um oligopólio com limitação do poder dos ofertantes, tendo em vista que valores elevados representariam barreira aos demandantes. Além disso, os produtos ofertados não são homogêneos, o que foi mencionado no tópico 5.1 (que também apresenta as externalidades descritas), e há informação imperfeita.

Quadro 3
- Características do mercado de solo na área de estudo

Considerações finais

A atuação excludente do Estado e do mercado na cidade do Rio de Janeiro teve grande contribuição para o crescimento da população que hoje habita terrenos irregulares na capital fluminense, tendo em vista que, desde o surgimento dos primeiros cortiços na região central da cidade, as políticas públicas não foram capazes de controlar o alto custo da terra, impossibilitando o acesso à população de baixa renda. Hoje as favelas cariocas fazem parte da paisagem da metrópole, inclusive na região de Jacarepaguá.

A expansão da fronteira imobiliária ocorrida na localidade tem relação com o crescimento de grupos armados organizados denominados “milícias”, que tem na produção, compra, venda e aluguel de terrenos e imóveis uma das suas principais fontes de renda (GENI, 2020Grupo de Estudos Novos Ilegalismos – GENI. (2020). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados. Recuperado em 16 de janeiro de 2021, de https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/12/Relatorio-Parcial_A-expansao-das-milicias-no-Rio-de-Janeiro_FINAL.pdf
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). Essa instituição, que tem representação nas estruturas do Estado, age de maneira violenta e hoje é uma instituição que tem representação na área delimitada para a análise do presente estudo. Sua prática de formalizar imóveis irregulares e a atuação em transações envolvendo imóveis do Programa MCMV movimentam o mercado informal de solo na cidade, assim como na Colônia Juliano Moreira, local deste estudo. Contudo, em levantamento de dados feito a partir de entrevista com agentes do mercado e líderes do local, notou-se grande cautela por parte dos entrevistados quando o assunto se relacionava com os grupos de milicianos, mesmo com o anonimato garantido previamente. Todavia, mesmo diante dessas circunstâncias, houve relato de extorsão, prática amplamente conhecida nas ações destes grupos.

Diante das entrevistas realizadas, foi possível avaliar a concepção dos agentes entrevistados em relação ao mercado imobiliário primário e secundário na região, as instituições atuantes, a estrutura e os produtos comercializados. Desta maneira, seguindo Abramo (2012)Abramo, P. (2012). La ciudad com-fusa: mercado y producción de la estructura urbana en las grandes metrópolis latinoamericanas. EURE, 38(114), 35-69. http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612012000200002.
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, é possível dizer que há três instituições fundamentais para entender o mercado analisado: a relação de confiança e lealdade, que, como descrito na literatura citada, é necessária para manter a segurança dos contratos informais; a milícia (autoridade local); e a associação dos moradores. A estrutura de mercado, aparentemente oligopólica, apresenta algumas particularidades que indicam um desequilíbrio entre oferta e demanda dos bens transacionados, tendo em vista que há alta demanda pelos produtos, mas não é possível expandir a oferta pelo cerceamento ao acesso de lotes. Por outro lado, os preços não podem subir para além da capacidade de pagamento da população local. Ademais, o laço de lealdade e confiança que surge como instituição importante para o funcionamento do mercado tende a forçar os preços para baixo.

Em comparação feita entre informações de imóveis informais ofertados na área, obtidas nas entrevistas realizadas, e imóveis formais em regiões próximas, com informações extraídas de sites de anúncios imobiliários, não se observou uma distinção expressiva entre os preços. Dessa maneira, não se pode confirmar, com base nas informações disponíveis, a hipótese de a lucratividade no mercado informal ser acima do mercado formal de solo.

Por fim, pôde-se notar que, diferentemente do que foi apresentado pela teoria mencionada em tópicos anteriores, na área delimitada, a autoridade local não atua como fiador, cobrando taxas sem que haja uma contrapartida clara para isso, porém verifica-se uso da força como forma de legitimar sua atuação. Percebe-se certo descontentamento com as instituições atuantes e os programas do Estado direcionados à resolução de problemas correlatos ao tema aqui estudado. Dessa forma, futuras pesquisas podem contribuir para a elaboração de políticas urbanas e habitacionais mais compatíveis com as características da região, seja por meio da regulação do solo ou diversificação da oferta de terra urbanizada e moradia de qualidade (Jaramillo, 2008Jaramillo, S. (2008). Reflexiones sobre la “informalidad” fundiaria como peculiaridad de los mercados del suelo en las ciudades de América Latina. Territorios, 18-19, 11-53. Recuperado em 16 de agosto de 2021, de https://revistas.urosario.edu.co/index.php/territorios/article/view/826
https://revistas.urosario.edu.co/index.p...
), contribuindo para elevação do bem-estar da população residente.

  • 1
    Alegria (2005)Alegria, T. (2005). Legalizando la ciudad: Asentamientos informales y procesos de regularización en Tijuana. Tijuana: Colegio de La Frontera. delimitou seu estudo à cidade de Tijuana, no México. Segundo esclarece, o acelerado crescimento econômico local superou a capacidade do governo, o que, somado às características que dificultavam a construção de habitações populares, induziu o crescimento a se sustentar em formas irregulares de propriedade.
  • 2
    Imóveis com características muito semelhantes, no mercado formal, encontrados na pesquisa apresentada na Tabela 2, apresentam os seguintes valores por unidade: 31 m² por R$ 160 mil e 41 m² por R$ 180 mil.
  • Como citar: Gomes, F. G., Tonucci, J., & Almeida, R. P. (2022). O mercado informal de moradia na Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, Rio de Janeiro. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v.14, e20210283. https://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210283
  • Declaração de disponibilidade de dados

    O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.3CSJNX.

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Editado por

Editores convidados: Vasco Barbosa, Lakshmi Rajendran e Mónica Suárez
Seção Temática: Informalidade em áreas urbanas periféricas (Editores convidados: Vasco Barbosa, Lakshmi Rajendran e Mónica Suárez)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2021
  • Aceito
    01 Jul 2022
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