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CURT NIMUENDAJÚ E HERBERT BALDUS: TROCAS INTELECTUAIS

Welper, Elena. (org.). (2019). Chamado da Selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books. 229 p.

Após sete anos trocando correspondências, Curt Nimuendajú (1883-1945) e Herbert Baldus (1899-1970) alteraram, muito organicamente, suas frases de despedida de “com comprimidos cordiais” ou “sinceramente seu” para “com um abraço afetuoso”, “creia-me seu amigo afetuoso e agradecido”, “sempre seu velho amigo”, e outros dizeres desta sorte. As crescentes demonstrações de amizade sincera não são apenas consequência da passagem do tempo, mas revelam um aprofundamento das relações sociais entre eles, que podem ser averiguadas nas 89 cartas que compõem a obra Chamado da Selva: correspondência entre Curt Nimuendaju e Herbert Baldus, organizada pela antropóloga Elena Welper e traduzida com muita competência por Peter Welper. Mais do que provas de amizade, afeto e lealdades, e de alguns mal-entendidos, as cartas são demonstrações dos valores atribuídos por eles à etnologia, sobretudo no que tange à defesa intransigente dos povos indígenas e no poder de comunicação da ciência para atentar a esfera pública aos povos nativos do Brasil. Essas cartas, que eram guardadas no arquivo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foram reunidas, digitalizadas e agora publicadas por Welper, que também é autora de um ensaio introdutório para situar as pesquisas de Nimuendajú e Baldus. Há também dois pequenos textos escritos por Roberto DaMatta e Carlos Fausto, e a orelha é assinada por Eduardo Viveiros de Castro.

Curt Nimuendajú mudou-se em 1904 para o Brasil; Herbert Baldus veio em definitivo em 1933. Ambos estiveram de alguma maneira relacionados aos etnólogos americanistas alemães da virada do século (Welper, 2002Welper, Elena Monteiro. (2002). Curt Nimuendajú: um capítulo alemão na tradução etnográfica brasileira. Dissertação de mestrado. Museu Nacional/UFRJ.). Embora Nimuendajú carecesse de formação universitária, o impacto de suas publicações foi tamanho que ele obteve o respeito e a admiração dos grandes nomes da etnologia indígena alemã, como Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e Max Schmidt (1874-1950). Embora Baldus tivesse estudado com o sociólogo Richard Thurnwald (1869-1954), ele se considerava sucessor da linhagem etnológica iniciada por Karl von den Steinen (1855-1929) em fins do século retrasado, e assim, seria o elo de transmissão da tradição alemã à universidade brasileira.

A obra é, obviamente, polifônica, uma vez que as perspectivas de dois sujeitos são apresentadas. Todavia, ela é também polissemântica, eis que, dada a amplitude e a riqueza do material, ao menos três tipos de leitura são possíveis. A primeira delas, a mais evidente, é considerar a troca de cartas como documento para a compreensão de aspectos biográficos de Nimuendajú e Baldus, bem como para a história da antropologia no Brasil. Esta categoria, a de documento, deve ser compreendida segundo seus múltiplos aspectos, elencados por Ulpiano Bezerra de Meneses: enquanto suporte de informação, como fonte historiográfica, como conector entre sujeitos - inclusive seus contextos de produção pretérita e seus leitores futuros - e como objeto de valor histórico (Meneses, 1980Meneses, Ulpiano Bezerra de. (1980). O objeto material como documento. IAB/CONDEPHAAT.). Dessa maneira, a troca de cartas entre os dois etnólogos é uma importante matriz para compreender o desenvolvimento da etnologia no país nas décadas de 1930 e 1940, além daquilo que orbita em torno da disciplina propriamente dita, como a história do Serviço de Proteção ao Índio, do Museu Paulista ou da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Ilumina-se também a relação dos dois com importante figuras da etnologia e da antropologia, como Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e Heloísa Alberto Torres (1895-1977), assim como suas interpretações e opiniões sobre muitos autores relacionados aos povos indígenas, desde os cronistas quinhentistas até intelectuais que lhes eram contemporâneos, como, por exemplo, Čestmír Loukotka (1895-1966), Paul Rivet (1867-1958) e Emil Heinrich Snethlage (1897-1939). A obra Chamado da Selva, enquanto signo materializado, carrega consigo as marcas do trânsito das cartas e as expõe aos leitores: de mão em mão, de lugar a lugar e, por fim, nas chamas que devoraram o Museu Nacional em 2018. Graças à organizadora do volume, Elena Welper, seu conteúdo ganhou uma segunda vida (Clifford, 2013Clifford, James. (2013). Returns: Becoming Indigenous in the Twenty-First Century. Cambrigde: Harvard University Press.).

Uma segunda leitura possível é, de certa forma, um desdobramento da primeira, que se quer fonte para a história social e a história disciplinar, pois por meio das cartas é possível reconstituir a trajetória de determinadas asseverações tacitamente acordadas pela comunidade etnológica. Assim, ao considerar-se que o conhecimento etnológico é historicamente construído e baseado em constituições, exclusões e reinterpretações de dados, análises e acepções, em consonância com a elaboração de fatos científicos, cuja validação necessariamente é ancorada na legitimação dos pares, como afirmam Latour e Woolgar (1979Latour, Bruno & Woolgar, Steve. (1979). Laboratory Life: The construction of scientific facts. Princeton: Princeton University Press.), então a obra Chamado da Selva contém fontes para uma história internalista da ciência. Esse tipo de abordagem, que se contrapõe precisamente à primeira leitura possível da obra, a qual privilegia os contextos e as conexões, reconstitui o desenvolvimento de conceitos e a trajetória dos elementos constitutivos daquilo aceito como fato científico. Confrontar as missivas com as obras produzidas por esses etnólogos viabilizaria, portanto, vislumbrar a constituição de determinadas afirmações etnológicas. Essa leitura é possibilitada pelo teor das cartas, que, embora contenham passagens sobre a vida privada dos correspondentes, tratam sobretudo de etnologia, etnografia e história dos povos indígenas. Os detalhes etnográficos de dezenas de povos indígenas, bem como indicações de bibliografia e fontes históricas oferecidas por Nimuendajú, impressionam tanto quanto a insaciável vontade de saber de Baldus.

A terceira possibilidade de leitura proporcionada pelo livro assemelha-o a um romance epistolar. Romances epistolares são compostos por estratégias narrativas que dispõem de cartas escritas por apenas um narrador, como em Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe (1774Goethe, Johann Wolfgang von. (1774). Die Leiden des jungen Werther. Leipzig: Weygand.), dois correspondentes, tais quais Varvara Dobroselova e Makar Devushkin em Gente Pobre, de Fiódor Dostoiévski (2009Dostoiévski, Fiódor. (2009 [1846]). Gente Pobre. São Paulo: Editora 34. [1846]), ou ainda múltiplas personagens - e também variadas fontes -, como executado por Bram Stoker em seu Drácula (1897Stoker, Bram. (1897). Dracula. London: Constable & Robinson.). Justamente a coerência do conjunto de cartas e a ausência de intervalos demasiado longos entre elas conferem-lhe um caráter literário e, se as listas de palavras e os anexos são somados, tratar-se-ia de um romance polilógico. É de fato notável que, apesar das viagens de campo e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Nimuendajú e Baldus, que jamais conheceram-se pessoalmente, não silenciaram por mais do que alguns meses. As missivas trocas por Nimuendajú e outro grande etnólogo, Theodor Koch-Grünberg, foram interrompidas por um período de cinco anos, por exemplo. Além disso, o que torna o conjunto tão coerente é o interesse recíproco que um nutria pelo outro. Decerto as informações etnográficas fluíam de Nimuendajú para Baldus, que se nutria da generosidade e da expertise dele, no entanto, Nimuendajú tinha grande interesse pela carreira de Baldus, pelas suas atividades docentes e suas publicações. O próprio Nimuendajú notou, estupefato, que “é notável como nós dois sempre temos de perguntar alguma coisa um ao outro” (Welper, 2019: 202).

Uma legítima autoridade intelectual emanava naturalmente de Curt Nimuendajú, que possuía um conhecimento extraordinário e impressionante dos povos indígenas do Brasil, mas que era enturvada por uma profunda humildade: sua pessoa era menor e mais efêmera do que seu trabalho. Última e não menos importante característica que possibilita uma leitura mais descontraída é a beleza da escrita dos correspondentes, ora graciosa e espirituosa, ora melancólica, porém resiliente. Eles comunicavam-se em alemão até 1942, e depois disso, por causa da censura policial, Baldus escrevia em seu “português macarronizado” e Nimuendajú no seu “belo português de nortista letrado” (Welper, 2019: 134). Ambos costumavam escrever sistematicamente cartas - de fato, as cartas de Nimuendajú ao antropólogo norte-americano Robert Lowie (1883-1957) são bastante conhecidas na historiografia da antropologia pela sua densidade etnográfica -, e é notória a disposição de tempo para manter a fluidez das trocas e a qualidade das mensagens.

Chamado da Selva não se destina apenas a estudantes de história da antropologia ou das instituições, a etnólogos, historiadores da ciência, ou a historiadores devotados aos valores epistemológicos das epístolas, mas a quaisquer leitores interessados em imergir nas mentes de dois etnólogos através de uma pequena brecha.

BIBLIOGRAFIA

  • Clifford, James. (2013). Returns: Becoming Indigenous in the Twenty-First Century. Cambrigde: Harvard University Press.
  • Dostoiévski, Fiódor. (2009 [1846]). Gente Pobre. São Paulo: Editora 34.
  • Goethe, Johann Wolfgang von. (1774). Die Leiden des jungen Werther. Leipzig: Weygand.
  • Latour, Bruno & Woolgar, Steve. (1979). Laboratory Life: The construction of scientific facts. Princeton: Princeton University Press.
  • Meneses, Ulpiano Bezerra de. (1980). O objeto material como documento. IAB/CONDEPHAAT.
  • Stoker, Bram. (1897). Dracula. London: Constable & Robinson.
  • Welper, Elena Monteiro. (2002). Curt Nimuendajú: um capítulo alemão na tradução etnográfica brasileira. Dissertação de mestrado. Museu Nacional/UFRJ.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
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