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Comitês de Ética em Pesquisa nas Universidades - o Desafio de Educar

Research Ethics Committees in Universities - the Challenge of Education

A história do desenvolvimento da clínica é marcada pela aquisição de conhecimentos adquiridos por meio da experiência clínica e de pesquisas cientificas. Tais pesquisas, como não poderia deixar de ser, eram realizadas, em sua grande maioria, com seres humanos. No século XX, até a década de 40, os seres humanos que participavam da maioria dessas pesquisas se beneficiariam diretamente com tais investigações, ou seja, com experimentos terapêuticos realizados com doentes acometidos das doenças em estudo.

Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, os médicos na Alemanha - único país que então possuía um regulamento que estabelecia normas e procedimentos para a realização de pesquisas em seres humanos -, ignorando a legislação daquele país, passaram a realizar pesquisas como parte do esforço de guerra, utilizando-se de populações encarceradas. Tais pesquisas buscavam, por exemplo, estudar o efeito da exposição do homem a ambientes intensamente frios, ou com baixa concentração de oxigênio ou, ainda, com elevada pressão atmosférica. Essas pesquisas podem ser facilmente relacionadas com atividades militares aéreas e subaquáticas. Realizá-las, desprezando a regulamentação que protegia humanos contra abusos em experiências médicas, significava negar a condição humana à população que se encontrava encarcerada por questões étnicas, religiosas ou políticas.

Tais abusos, em nome do esforço de guerra, não ocorreram apenas nos países derrotados. Também nos Estados Unidos, por exemplo, generalizou-se a utilização de humanos em pesquisas que, além de não trazerem benefício direto a eles, em alguns casos os expunham a riscos inaceitáveis. Outros exemplos são as pesquisas realizadas para avaliar a toxicidade da sulfa e para testar alternativas terapêuticas no tratamento da malária. Neste último caso, como não havia malária nos Estados Unidos, os médicos provocaram a doença em pacientes psicóticos asilados, a fim de poderem investigar a eficácia da terapêutica proposta31. Rothman DJ. Strangers at the Bedside. New York, Basic Books. 1991.. Tendo como referênncia pesquisas desse tipo, Morin afirmou recentemente que "a ciência moderna só se pôde desenvolver em se livrando de qualquer julgamento de valor, obedecendo a uma única ética, a do conhecimento”42. Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. p. 10..

A partir da denúncia dessas atrocidades, o tribunal de Nuremberg, em 1947, estabeleceu alguns princípios que deveriam ser respeitados para que se pudesse realizar pesquisas em seres humanos. Em 1964, a Associação Médica Mundial estabeleceu normas para garantir a eticidade das pesquisas biomédicas realizadas em todo o mundo, tendo aprovado diretrizes que ficaram conhecidas como Declaração de Helsinque. Esses dois documentos são hoje as principais balizas da pesquisa internacional. O Código de Nuremberg, que estabeleceu a obrigatoriedade do consentimento do pesquisado, livremente expresso, para a realização de pesquisa em humanos, e a Declaração de Helsinque, em sua revisão de 1975, estabeleceram a obrigatoriedade de aprovação do protocolo por Comitê de Ética constituído especialmente para este fim.

No Brasil. a Resolução196/96 do Conselho Nacional de Saúde estabeleceu as diretrizes e normas éticas da pesquisa que envolve seres humanos. Ela se insere na tradição - que vem desde Nuremberg - de proteção aos sujeitos da pesquisa, de respeito à dignidade dos seres humanos. Uma das questões-chave que ela aborda é a necessidade de aprovação prévia do protocolo de pesquisa por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). A resolução obriga que cada instituição onde se realiza pesquisa crie seu CEP defina sua composição e atribuições, lance as bases para a criação e desenvolvimento de um sistema de acompanhamento de pesquisas.

Esse sistema é visto, às vezes, como controle, cerceamento ou “mais uma burocracia que atrapalha o desenvolvimento das instituições de pesquisa no Brasil”. A resistência, talvez até mundial, entre pesquisadores médicos e cientistas em serem submetidos a este tipo de análise talvez tenha sua origem na própria fundamentação filosófica expressa na ética profissional: a deontologia. Esta enfatiza a análise moral do agente, e o código de ética médica estabelece como o médico deve se conduzir em seu exercício profissional. O médico só é julgado quando comete uma falta, quando sua conduta fere o código. Esse julgamento é feito pelos pares, e é sua identidade que está em jogo. O código de ética expressa a conduta esperada do médico, a conduta que o identifica como médico. Assim, para um pesquisador que se julga bem-intencionado, preocupado com o próximo e com a cientificidade de seu projeto, submeter sua pesquisa à apreciação para pareceres éticos equivale a submeter-se a si próprio a uma análise deste tipo. Mas é justamente o projeto e suas consequências que são analisados pelo CEP. Este comitê torna-se parceiro do pesquisador na tentativa de melhor proteger a dignidade dos sujeitos participantes da pesquisa.

O CEP, por sua característica multiprofissional, composto por pessoas das mais variadas origens, e com o exercício continuado de reflexão acerca dos aspectos éticos envolvidos nas pesquisas, acaba por desenvolver uma competência específica tanto na identificação desses aspectos quanto na forma de raciocínio e na busca do consenso na discussão caso a caso.

Do ponto de vista do pesquisador, para que ele possa desfrutar dessa parceria, duas condições precisam ser satisfeitas. A primeira ê entender que os sujeitos da pesquisa são pessoas autônomas e podem tomar decisões diferentes daquelas que o pesquisador tomaria se estivesse em seu lugar. A segunda é acreditar que, para ele, porque está envolvido com o processo de pesquisa, pode ser difícil pensar nas consequências da investigação que propõe. Satisfeitas estas duas condições, o pesquisador poderá ter o CEP como parceiro e vê-lo como um grupo que poderá ajudá-lo a aprimorar o processo de investigação. E justamente pensar nessa interação CEP-pesquisador como um processo educativo é o que pretendemos explorar aqui.

Na prática, em particular nas faculdades de medicina, os CEPs assumirem o papel educativo que lhes é conferido pela Resolução significa romper com a inércia e enfrentar, para além de seus limites, a divulgação da reflexão ética. Em outros termos, divulgar a Resolução 196/96 com competência significa, compreendê-la em toda a sua extensão. Para isso, é necessário ir a seus fundamentos, ter acesso à produção teórica da bioética, o que pode ser facilitado com a inclusão, na composição do CEP de profissionais de áreas não diretamente relacionadas com a saúde, como a filosofia, sociologia, antropologia e direito, além da representação de usuários. Note-se que esta composição ressalta o papel do CEP: analisar os aspectos éticos da pesquisa, não a sua cientificidade. Esta deve ser avaliada em outros fóruns ou instâncias institucionais, não no CEP.

Cabe especialmente aos membros de CEP estabelecidos em faculdades de medicina e hospitais universitários refletir sobre a importância de seu papel na formação dos futuros profissionais. A eles cabe explicar de forma simplificada os cuidados necessários na elaboração de um projeto de pesquisa. Compete a eles, em seus pareceres, a minúcia da explicação dos fundamentos usados na argumentação. Compete a eles o desafio de incorporar estudantes, da graduação e da pós, não na condição de alunos que participarão das reuniões como observadores privilegiados, mas como membros de pleno direito e deveres. Precisamos formar uma nova geração de pesquisadores, à luz das exigências éticas contemporâneas. Uma geração que não use a conquista do conhecimento como uma desculpa para justificar a exposição de indivíduos a riscos e a sofrimento. Uma geração que a atual geração de pesquisadores formará e que conquistará o respeita da comunidade científica internacional pelo cuidado e respeito ao ser humano.

A Revista Brasileira de Educação Médica foi uma das pioneiras na inclusão, em suas normas para publicação, da exigência de aprovação, pelo CEP da instituição do autor, da pesquisa que originou o artigo cientifico. Queremos ser um exemplo de publicação rigorosa na análise cientifica dos artigos recebidos para divulgação e, ao mesmo tempo, estimular e promover o desenvolvimento da consciência crítica e da autonomia dos indivíduos. Como Edgar Morin afirmou, “ciência sem consciência é apenas a ruína do homem”53. Morin E. op. cit. p.11..

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Rothman DJ. Strangers at the Bedside. New York, Basic Books. 1991.
  • 2
    Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. p. 10.
  • 3
    Morin E. op. cit. p.11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2001
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