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A mágica do dr. Gustavo Franco, revisitada

The magic of Mr. Gustavo Franco, revisited

RESUMO

Após a introdução do Plano Real em 1994, o Brasil seguiu um caminho dinâmico que implicava: a) uma forte valorização da taxa de câmbio real, gerando uma deterioração significativa das Contas Correntes e Comercial e eb) um uso pesado de empréstimos estrangeiros manutenção de taxas de juros muito altas para atrair novos capitais, a fim de financiar esses déficits. Dados os números envolvidos no experimento brasileiro, esse caminho não é sustentável a longo prazo, pois a dívida externa cresce de forma explosiva, implicando que, mais cedo ou mais tarde, precisará ser corrigida. Este artigo apresenta algumas simulações mostrando algumas restrições que um caminho de equilíbrio deve satisfazer.

PALAVRAS-CHAVE:
Estabilização; crise do balanço de pagamentos; crise cambial

ABSTRACT

After the introduction of the Real Plan in 1994 Brazil has been following a dynamic path which implied a) a strong appreciation of the real exchange rate, generating a significant deterioration of the Trade and Current Accounts and b) a heavy use of foreign loans requiring the maintenance of very high interest rates to attract new capital, in order to finance these deficits. Given the numbers involved in the Brazilian experiment, this path is not sustainable in the long run, since the foreign debt grows explosively, implying that, sooner or later, it will need to be corrected. This paper presents some simulations showing some restrictions that an equilibrium path must satisfy.

KEYWORDS:
Stabilization; balance of payments crisis; currency crisis

Há momentos em que servem e outros em que com a evolução do mundo saem de moda e devem ser abandonados. Michel Camdessus-Sobre o modelo de desenvolvimento dos tigres asiáticos.

Folha de S. Paulo 03/12/97

Esta história (e a do México) se parece com a do burro do português. Quando estava aprendendo a viver sem comer.... morreu!

Do folclore brasileiro

E para contrariar os que acreditam que investimentos diretos não tem custos: “Remessa de lucros sobe 69% e é recorde”.

Celso Pinto, Folha de São Paulo 24/02/98

INTRODUÇÃO

Trabalho com o mesmo título, publicado na Revista Informações FIPE, de janeiro de 1997, discutiu as implicações para a dívida externa brasileira da ideia defendida pelo então diretor da área externa do Banco Central, e hoje, seu presidente, Gustavo Franco. A conclusão ali foi a de que um déficit em transações correntes da ordem de 3% do produto interno, como defendido pelo governo, gerava uma trajetória temporal explosiva e, portanto, insustentável para a dívida externa, ou seja, um resultado oposto àquele utilizado no argumento oficial.

De lá para cá as coisas pioraram em dois sentidos: i) o déficit em transações correntes cresceu rapidamente e hoje se aproxima de 5% do produto e ii) estourou a crise cambial na Ásia, implicando fortes desvalorizações de várias moedas (incluindo não apenas as dos países asiáticos, mas também as de México, Chile e diversos países europeus), e agravou ainda mais o desalinhamento cambial do Real. Impõe-se, portanto, reexaminar essa questão à luz dos novos acontecimentos.

Este trabalho pretende inicialmente mostrar quais seriam trajetórias possíveis para o déficit em transações correntes e suas implicações para o saldo da balança comercial. O ponto fundamental a ser demonstrado é o de que, dados uma taxa de crescimento da renda doméstica, uma taxa de juros a ser paga sobre a dívida externa (que, em equilíbrio, deve guardar uma certa relação com a taxa de retorno das outras formas de investimento estrangeiros - diretos e de portfólio), e um nível de endividamento externo inicial, é possível definir uma trajetória para o déficit em transações correntes e valores compatíveis para o saldo da balança comercial. As diversas simulações apresentadas mostram que os limites dentro dos quais o déficit em transações correntes pode evoluir sem engendrar uma trajetória explosiva do endividamento externo, são muito estreitos e que o Brasil se encontra atualmente fora dessa trajetória.

1. O MODELO

O saldo em transações correntes do balanço de pagamentos (TC) tem dois componentes principais: a) a balança comercial e b) a balança de serviços. O saldo da balança comercial (BC) depende principalmente do nível de preços no Brasil em relação ao resto do mundo (os preços relativos que são fortemente afetados pela taxa de câmbio) e do nível de atividade econômica. Já existem, dentro da balança de serviços, componentes como gastos com turismo, seguros e fretes, que também são afetados pelos preços relativos e o nível de atividade e os serviços financeiros, como os juros sobre a dívida externa e a remuneração das outras formas de capital de propriedade dos estrangeiros (como os lucros, dividendos, royalties etc.) que, em equilíbrio, dependem fundamentalmente da taxa de juros.

Por razões didáticas vamos reagrupar os fluxos internacionais de forma que todos os bens e serviços que dependem dos preços relativos e do nível de atividade estejam dentro da balança comercial e todos os fluxos que dependem da taxa de juros, dentro da balança de serviços. Portanto:

T C = r D + B C (1)

Em que D é a dívida externa ampliada1 1 O conceito usual apenas considera o endividamento externo, negligenciando a necessidade de pagar lucros, dividendos, royalties etc. Portanto D=D* + Ke + Ae + Te onde D* é a dívida externa propriamente dita, Ke o valor acumulado dos investimentos diretos, Ae idem em investimentos de portfolio e Te a tecnologia comprada dos estrangeiros. Como em geral Ke, Ae e Te envolvem maior risco que D*, podemos esperar que, em equilíbrio, rD ≤ rD* + λKe + d Ae + j Te, onde r, λ, d e j são as taxas de remuneração específicas para cada tipo de capital estrangeiro. e inclui todas as formas de propriedade dos estrangeiros que geram obrigações de remeter renda ao exterior.

Para tornar estes valores comparáveis, no tempo e entre países, divide-se a expressão (1) pelo produto interno bruto do país (y), ou seja:

T C / y = r D / y + B C / y (2)

Gustavo Franco defende que -TC/y = 3% é uma meta factível e sustentável, pelo menos no horizonte de tempo do governo Fernando Henrique Cardoso (inclusive com um segundo mandato) e que com este valor não será necessário produzir nenhuma descontinuidade na política econômica (leia-se desvalorizar abruptamente o Real). As simulações apresentadas no artigo anterior mostraram que dados os juros que o Brasil paga sobre sua dívida externa (mínimo de 10% ao ano), -TC/y = 3%, não seria sustentável porque a dívida externa cresceria muito rapidamente e tornar-se-ia explosiva.

Este trabalho pretende demonstrar que mesmo na hipótese desse número ser factível ele não seria alcançável porque implica que o saldo da balança comercial deveria apresentar valores muito diferentes dos observados. Vejamos como se chega a esta conclusão. Para que a relação D/y permaneça constante, a dívida deve crescer à mesma taxa que y, ou seja: D/y constante implica D^=y^, onde uma variável com “A” indica a taxa de variação proporcional da variável original (i é: X^=Δx/x).

Como o crescimento da dívida externa ampliada é, por definição, igual ao -TC, temos que:

D ^ = - T C / D = - T C / y . y / D (3)

Isto é: a taxa de variação da dívida ampliada é igual à relação -TC/y multiplicada pela relação y/D.

E, utilizando as expressões (2) e (3), chega-se a

B C / y = - ( r - y ^ ) D / y (4)

A tabela 1, a seguir, apresenta os TC/y e BC/y para diferentes valores da relação D/y e compatíveis com D^=y^.

Tabela 1
TC/y e BC/y Compatíveis com Valores Constantes para D/y, Supondo r=10% a.a.

Observe-se que para casos como o do Brasil, com crescimento do produto de 4% a.a. e dívida ampliada não superior a 50% do produto, o déficit em transações correntes deve ser inferior a 2% do produto. Observe-se também que dada a taxa de juros, a balança comercial deve ser superavitária e para o mesmo nível de dívida, o superávit deve ser de 3% do produto. De forma similar, a segunda parte da tabela 1 mostra qual seria a situação para um país que mantivesse um crescimento anual do produto de 8% a.a. (como Coreia do Sul, por exemplo).

Durante o período de transição, que acontece enquanto a relação D/y muda de um nível para outro, as restrições para -TC/y são outras e devem levar em consideração a velocidade com a qual se processa a mudança. Por exemplo, o país poderá passar de um D/y = 40% para D/y = 50% rapidamente; num ano por exemplo, se o endividamento crescer 10% acima do crescimento do produto nesse período ou, em cinco anos, se ele crescer apenas 2% a.a. acima do crescimento do produto. A tabela 2 apresenta esta segunda situação.

Tabela 2
TC/y e BC/y Compatíveis com a Transição para D^-y^=α=2%a.a.

Note-se que se a relação D/y está crescendo, o déficit em transações correntes poderá ser maior e o superávit comercial ser menor do que quando se exigia que D/y permanecesse constante. Observe-se também que, quanto maior o crescimento do produto, maior o déficit em transações correntes e menor o superávit comercial exigido na trajetória de equilíbrio. A tabela 3 repete o caso anterior, mas agora, com crescimento da relação D/y de 4% a.a. (o que implica que a cada 2,5 anos ela cresce mais de 10%), provavelmente um valor já muito elevado.

Tabela 3
TC/y e BC/y Compatíveis com a Transição para D^-y^=α=4%a.a.

CONCLUSÕES

Em termos gerais, uma análise das tabelas 1-3 nos permite tirar as seguintes conclusões:

  • 1. uma relação D/y superior a 50% torna a economia extremamente vulnerável;

  • 2. quanto menores sejam D/y e r e maior seja ŷ, maior poderá ser o a (a taxa de crescimento da razão D/y) compatível com uma trajetória de equilíbrio;

  • 3. para D/y entre 0,30 e 0,50, r > 10% e ŷ < 4%, como é provavelmente o caso brasileiro:

  • a) o déficit em transações correntes não deveria exceder os 2% se D/y estiver próximo dos 0,50 (com a = O) ou os 2,4% se D/y estiver próximo dos 0,30 (com a= 4%),

  • b) a balança comercial deveria necessariamente apresentar saldo positivo, sendo que o superávit não deveria ser inferior a 3% se D/y estiver próximo dos 0,50 (com α = O) e 0,60% se D/y estiver próximo dos 0,30 (com a = 4%).

  • 4. Como se encaixa o Brasil pós-Real neste quadro? Não existe uma estimativa para o valor da dívida ampliada do Brasil. No entanto, desde 1994, com a introdução do Plano Real, a política econômica se baseou em duas ideias principais:

  • i) brecou-se o ritmo das desvalorizações cambiais para reduzir a inflação e

  • ii) elevou-se a taxa de juros para conter a demanda agregada e incentivar a entrada de recursos externos.

  • Como resultado desse processo:

  • a) entre 1994 e 1997 foi acumulada uma dívida ampliada de US$ 77,5 bilhões, de forma que, se em fins de 1993 a dívida ampliada tivesse representado 30% do produto (aproximadamente US$ 196 bilhões), ela teria crescido 39,5% nos quatro anos, ou a uma média de 8,69% ao ano atingindo, em fins de 1997, 37% do produto e dando um a anual médio de 5,63%.

  • b) o saldo da balança comercial tende para um déficit próximo de 1,5% do produto2 2 Ver ALMONACID, R. & SCRIMINI, G. “Preços relativos e competitividade externa”. Revista de Economia Política, vol. 17, nº 2 (66), abril-junho/97. e o saldo em transações correntes para um déficit próximo a 5% do produto.

  • Estes números seriam piores ainda se o déficit comercial não tivesse sido contido com diversas medidas para reduzir o crescimento das importações e aumentar o das exportações, tomadas no decorrer do segundo semestre de 97, e se a atividade econômica não tivesse sido freada;

  • 5. a) um aumento dos juros internos melhora o saldo da balança comercial, somente na medida em que reduz a atividade econômica, b) um aumento nos juros pagos aos investidores externos, por outro lado, aumenta o fluxo de recursos externos, o que permite um aumento mais rápido da relação D/y (aumento de a) mas, dependendo da relação entre o aumento de r e a, o superávit comercial necessário pode até crescer e, com um maior endividamento externo acumulado, certamente, acabará crescendo; c) as mini-desvalorizações do Real, ao ritmo de 0,6% ao mês, conseguem melhorar o câmbio real em apenas 3% a 4% ao ano, dependendo da inflação interna e a do resto do mundo, o que é muito pouco, dado o tamanho do desequilíbrio atual. Finalmente,

  • 6. como o valor a ser corrigido no saldo da balança comercial é de, no mínimo, 2,1% do produto (1,5% do déficit atual mais 0,60%, mínimo de saldo positivo necessário para manter a dívida externa numa trajetória de equilíbrio), nem o aumento dos juros externos nem as mini-desvalorizações reais da moeda seriam suficientes para corrigi-los. Em particular, porque a crise asiática veio piorar a situação em vários sentidos; assim:

  • a) os juros para os países emergentes e as condições gerais de captação de recursos pioraram;

  • f) a onda de desvalorizações cambiais piorou a competitividade do Real entre 6 e 7%3 3 Chega-se a este valor calculando a taxa real de câmbio contra uma cesta de moedas que inclua todas as moedas que foram desvalorizadas, ponderando cada uma delas pelo peso que cada país tem no comércio exterior do Brasil. , neutralizou o efeito das mini-desvalorizações, que aconteceriam num período de 2 anos, e tornou mais difícil conter o déficit na balança comercial;

  • g) não será possível aumentar os juros internos para brecar a economia, ainda mais, em virtude de:

  • i) o nível de desemprego e inadimplência já estarem muito elevados,

  • ii) o nível de atividade e o crescimento econômicos já estarem muito baixos;

  • iii) os juros reais já estarem muito elevados e aumentá-los implicaria inviabilizar o setor real e pôr em risco o setor financeiro.

  • 1
    O conceito usual apenas considera o endividamento externo, negligenciando a necessidade de pagar lucros, dividendos, royalties etc. Portanto D=D* + Ke + Ae + Te onde D* é a dívida externa propriamente dita, Ke o valor acumulado dos investimentos diretos, Ae idem em investimentos de portfolio e Te a tecnologia comprada dos estrangeiros. Como em geral Ke, Ae e Te envolvem maior risco que D*, podemos esperar que, em equilíbrio, rD ≤ rD* + λKe + d Ae + j Te, onde r, λ, d e j são as taxas de remuneração específicas para cada tipo de capital estrangeiro.
  • 2
    Ver ALMONACID, R. & SCRIMINI, G. “Preços relativos e competitividade externa”. Revista de Economia Política, vol. 17, nº 2 (66), abril-junho/97.
  • 3
    Chega-se a este valor calculando a taxa real de câmbio contra uma cesta de moedas que inclua todas as moedas que foram desvalorizadas, ponderando cada uma delas pelo peso que cada país tem no comércio exterior do Brasil.
  • 4
    JEL Classification: E52; F32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1998
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