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A adoção de crianças por gays

Adoption of children by gay people

Resumos

Investigou-se, utilizando uma entrevista semiestruturada, a experiência de três homens que se assumem como gays¹ e têm filhos adotivos. Todos possuem nível superior de escolaridade. As entrevistas foram transcritas literalmente e submetidas à Análise de Conteúdo, resultando em três temas: desejo de se tornar pai; construção do sentimento de paternidade; segredos e revelações. Os resultados mostram que desejar ter um filho, ser capaz de amá-lo e se responsabilizar por ele não estão sujeitos a nenhuma orientação sexual, nem se restringem a um desejo de normalização. A construção do sentimento de paternidade tanto pode acontecer no contato diário com a criança, quanto desde o primeiro momento em que a veem. O relacionamento com o filho sofre influência da relação que eles possuem com a própria sexualidade, omitindo sua orientação sexual ou revelando-a.

sexualidade; gênero; adoção de crianças por homossexuais masculinos


The experience of three highly educated men who have adoptive children and identify themselves as gays was investigated using semi-structured interviews, which were literally transcribed and submitted to content analysis, resulting in three themes: the wish to become a parent; the construction of a parenthood feeling; secrets and revelations. Results show that wishing to have a child, being able to love it and taking responsibility over it is not related to sexual orientation, nor is restricted to normalization desire; the construction of a parenthood feeling may happen in the daily interaction with the child or since the first moment in which they see it; the relationship with the infant is influenced by the relation with their own sexuality, whether omitting or revealing their sexual orientation.

sexuality; gender; adoption of children by gay men


ARTIGOS

A adoção de crianças por gays

Adoption of children by gay people

Maria Cristina Lopes de Almeida Amazonas; Hugo Vasconcelos Veríssimo; Gilclécia Oliveira Lourenço

Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Brasil

RESUMO

Investigou-se, utilizando uma entrevista semiestruturada, a experiência de três homens que se assumem como gays1 1 Embora, algumas vezes, a palavra gay seja usada igualmente para se referir a homens e mulheres homossexuais e bissexuais, tal uso tem sido constantemente criticado por implicar a invisibilidade ante a lesbianidade e a bissexualidade. Desta maneira, boa parte dos autores que se dedicam a essa temática têm preferido usar o termo gay para se referir aos homens homossexuais e lésbicas para tratar de mulheres homossexuais (Mello, 2006; Tarnovsky, 2011). Assim, neste trabalho, o termo gay será usado para se referir a homossexuais masculinos. e têm filhos adotivos. Todos possuem nível superior de escolaridade. As entrevistas foram transcritas literalmente e submetidas à Análise de Conteúdo, resultando em três temas: desejo de se tornar pai; construção do sentimento de paternidade; segredos e revelações. Os resultados mostram que desejar ter um filho, ser capaz de amá-lo e se responsabilizar por ele não estão sujeitos a nenhuma orientação sexual, nem se restringem a um desejo de normalização. A construção do sentimento de paternidade tanto pode acontecer no contato diário com a criança, quanto desde o primeiro momento em que a veem. O relacionamento com o filho sofre influência da relação que eles possuem com a própria sexualidade, omitindo sua orientação sexual ou revelando-a.

Palavras-chave: sexualidade; gênero; adoção de crianças por homossexuais masculinos.

ABSTRACT

The experience of three highly educated men who have adoptive children and identify themselves as gays was investigated using semi-structured interviews, which were literally transcribed and submitted to content analysis, resulting in three themes: the wish to become a parent; the construction of a parenthood feeling; secrets and revelations. Results show that wishing to have a child, being able to love it and taking responsibility over it is not related to sexual orientation, nor is restricted to normalization desire; the construction of a parenthood feeling may happen in the daily interaction with the child or since the first moment in which they see it; the relationship with the infant is influenced by the relation with their own sexuality, whether omitting or revealing their sexual orientation.

Keywords: sexuality; gender; adoption of children by gay men.

Neste trabalho, são apresentados os resultados de uma pesquisa sobre adoção de crianças por homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens. Mais especificamente, investiga-se como surgiram nesses homens o desejo de se tornar pai; a construção do sentimento de paternidade; e os segredos e as revelações.

A discussão em torno desse modelo de família já tomou conta de nosso cotidiano e, inclusive, invadiu a mídia. Os estudos a respeito do tema são controversos. Roudinesco (2003) considera que o desejo de filhos por parte dos homossexuais pode ser interpretado como um desejo de normalização que os possibilitaria incluir-se no laço social.

Bourdieu (2002) vê neste desejo uma submissão à norma dominante e um risco de retorno a uma invisibilidade social da homossexualidade. Obtendo pequenas concessões, tais como: o direito à parceria civil, a adoção de crianças, entre outras, as pessoas homo orientadas estariam pagando o preço "para ‘retornar à ordem’e obter o direito à visibilidade invisível do bom… cidadão, do bom cônjuge" (p. 72). Enfim, adquirindo uma pequena parte do direito que é concedido a toda a comunidade, essa população poderia ser desmobilizada e deixar de explorar seu potencial de ruptura diante dos agenciamentos afetivo-sexuais, binaristas e heterossexistas.

Baumann (1998, citado por Paiva, 2007) pensa que essas reivindicações são reflexos de uma disputa no interior das homossexualidades que busca tornar hegemônico o modelo de casal homossexual monogâmico, branco, de classe média urbana, psicologizado, que adota a ética da reserva e do invisível, isto é, aquele que, integrado à normatividade, torna-se menos visível, relegando os demais casais homossexuais que não se enquadrem nesse modelo à marginalidade e à exclusão.

Miskolci (2007) atribui ao surgimento da Aids a nova organização desses grupos em torno da defesa de direitos civis, tais como casamento gay e parentalidade, e a aceitação de certa "essencialização identitária estratégica" em função de objetivos assimilacionistas. Esse autor afirma que simultaneamente a essa reorganização surgiram vozes dissonantes, principalmente vindas da academia, inclusive a da filósofa norte-americana Judith Butler, as quais viam a possibilidade de esse movimento revelar uma armadilha, significando um enredamento desses sujeitos na heteronormatividade.

Assim, ainda que se relacionassem, afetiva e sexualmente, com pessoas do mesmo sexo, organizariam suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e natural da heterossexualidade. Operariam "a partir das representações sociais vigentes" e expressariam "a demanda de sujeitos por reconhecimento" (Miskolci, 2009, p.152). Isso poderia implicar uma despolitização desses grupos.

Acrescenta ainda que, no que diz respeito ao direito à parentalidade por parte desses casais, o casamento poderia atenuar o temor coletivo da pedofilia, uma vez que implicaria a inclusão desses sujeitos na norma social que os afastaria de uma suposta promiscuidade, ainda que não afastasse, em definitivo, o temor da pedofilia (Miskolci, 2007).

Por outro lado, é Butler (2003, p.57) quem pergunta: "mesmo que construtos heterossexistas circulem como lugares praticáveis de poder/discurso a partir dos quais se faz o gênero, persiste a pergunta: que possibilidades existem de recirculação?" A essa pergunta, a autora parece responder: "Se as ficções reguladoras do sexo e do gênero são, elas próprias, lugares de significado multiplamente contestado, então a própria multiplicidade de sua construção oferece a possibilidade de uma ruptura de sua postulação unívoca" (p.58). Preciado (2002, p. 25), tomando por base os estudos de Butler, diz: "Paradójicamente, esta plataforma de repetición y reiteración es, al mismo tiempo, el lugar de formación compulsiva del sujeto heterosexual y el espacio donde tiene lugar toda subversión posible."

É isso que se quer salientar. A luta por direitos civis é uma causa justa, embora não se possa ignorar que ela tenda a acontecer dentro de um modelo de família hegemônico, em que filhos se inserem apenas dentro do casamento. No entanto, isso não significa necessariamente uma busca por normalização e, ainda que assim seja, essa repetição oferece a possibilidade de ruptura, uma vez que ela é constituída por atos descontínuos e estilizados. Nas diferentes maneiras possíveis de repetição, na ruptura ou na repetição subversiva desse estilo se encontram as possibilidades de transformação (Butler, 1990).

Neste momento, porém, a preocupação maior não é com as questões políticas que envolvem os cidadãos homo orientados, embora consideradas legítimas. O principal interesse dirige-se para a experiência desses homens que têm filhos através da adoção.

A escolha da terminologia a ser adotada

Realçar a existência de realidades afetivo-sexuais distintas das heterossexuais é um trabalho árduo, desde a escolha da nomenclatura que propicie o sentido que se deseja alcançar, até a busca de literatura científica que relacione essa população a conceitos, como paternidade e adoção. Alguns termos que aparecem frequentemente na literatura sobre essa temática, tais como homoparentalidade e homoafetividade, podem gerar diferentes concepções, e ter, por trás de seu uso, justificativas distintas. Diante disso, decidiu-se introduzir essa temática, problematizando tais termos de modo a justificar a nomenclatura a ser usada neste trabalho.

Nomeia-se homoparentalidade quando, no exercício da parentalidade, pelo menos um dos pais considera-se homossexual. O termo surgiu do francês homoparentalité, criado em 1997 pela Association des Parents et Futurs Parents Gays et Lesbiennes (APGL), fundada em 1986, na França. Segundo Uziel, Mello e Grossi (2006), a escolha desse termo se constitui numa espécie de armadilha para o pensamento, destacando a ideia de que existe algo de específico no exercício parental, marcado pela orientação sexual dos pais.

Seu uso pode ser arriscado, caso contribua para fortalecer a diferença entre os tipos das relações parentais, tendo por base o critério das sexualidades. Mesmo abrindo margem ao antagonismo, a sustentação do uso desse termo tornou-se interessante politicamente, por dar visibilidade a um tipo de vínculo afetivo, até então, sem vez e sem voz.

Quanto ao uso do termo homoafetividade, difundido na literatura por Dias (2003), pode-se pensar que seu uso, ao enfatizar os aspectos afetivos das relações entre indivíduos do mesmo sexo, atua como uma estratégia política e ajuda a minimizar o preconceito diante de questões que se relacionam com a sexualidade. No entanto, esse termo também não escapa a críticas, pois, ao excluir a sexualidade da terminologia adotada, poder-se-ia estar procedendo a uma espécie de higienização das relações entre parceiros do mesmo sexo.2 2 Essa ideia foi suscitada por Luiz Mello de Almeida Neto, quando participou de uma banca de defesa pública de dissertação de mestrado em 2010, de um dos autores deste artigo. No entanto, segundo ele próprio, a ideia ainda não está registrada em nenhuma publicação e ainda carece de um maior desenvolvimento.

Como se pode ver, qualquer que seja a terminologia adotada não estará isenta de controvérsias. Por essa razão, decidiu-se neste estudo lançar mão da terminologia "homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens" ou, ainda, "pessoas que se relacionam afetiva e sexualmente com outras do mesmo sexo" ou, simplesmente, gays.

A palavra gay, embora tenha sido adotada contemporaneamente a partir do inglês, tem sua origem no latim tardio (gaiu) de onde migrou para o francês arcaico (gui), com os significados de alegre, jovial e entusiasta. Originariamente, a palavra não tinha conotação sexual e isso pode ser observado na literatura americana, principalmente na anterior a 1920. Foi inicialmente nos EUA que esse termo adquiriu o significado que tem hoje. Ao ser difundido do inglês para os países lusófonos, foi utilizado de forma pejorativa contra homens gays. Os próprios homossexuais, porém, apropriaram-se da palavra para se autodenominarem na busca de retirar a conotação negativa e insultuosa que lhes era atribuída.

Segundo Miskolci (2007, p. 106), "o termo gay se opunha ao psiquiátrico homossexual de forma irreverente, pois gay (alegre) aludia à moral duvidosa que a sociedade atribuía a mulheres independentes, particularmente as viúvas." Ao se autodenominarem dessa forma, os homossexuais ressaltavam o estigma social em torno daqueles que viviam fora da ordem sexual vigente.

O uso dessas terminologias, neste trabalho, tem a finalidade de tornar a escrita mais econômica, menos repetitiva, sem com isso desconsiderar que pode haver aspectos positivos e negativos nessa escolha. Mas, não é apenas essa a razão: tem também a finalidade de marcar uma posição política e teórica sobre a temática. Fala-se aqui a partir de autores, tais como Foucault, Butler e outros que se aproximam de seus pensamentos e que tomam as questões de identidades permeadas pelas relações de poder.

Outra questão a ser discutida é o que significa o termo adoção de crianças, principalmente a adoção por pessoas que mantêm relacionamentos afetivo-sexuais, com outras do mesmo sexo.

Etimologicamente, a palavra adotar, do latim adoptare, significa considerar, escolher, cuidar. Conservando a essência do termo, a adoção é uma forma de oferecer a uma criança, que não pôde ser criada pelos pais biológicos, a oportunidade de possuir uma família, sendo desejada e cuidada (Lenvinzon, 2004). É perfeitamente possível a vivência satisfatória da adoção, em que o filho adotivo poderá sentir-se o filho da história afetiva de seus pais adotantes (Diniz, 2001).

A adoção por pessoas homo orientadas ainda é um tema bastante polêmico e a grande maioria dos livros que abordam o tema da adoção ainda parte da experiência de famílias heterossexuais (Farias & Maia, 2009). De acordo com Poisson (2001, p. 65), a família é caracterizada pela sua capacidade de transformação ao longo da história. Desse modo, sobre a família candidata à adoção, o autor sugere que os profissionais de justiça avaliadores aceitem a incerteza de que determinado modelo familiar venha a ser o melhor na criação de um filho adotivo. Diz:

Uma família muito previsível não seria necessariamente a melhor família adotiva, porque uma boa parte do sucesso de uma vida familiar é feita de imprevistos, de oportunidades que surgem ao acaso e que precisam ser aproveitadas. Mesmo aquilo que poderia parecer uma dificuldade, pode se transformar numa oportunidade de preparar um novo desenvolvimento.

Os estudos sobre crianças adotadas por gays ou lésbicas ainda são escassos, mas os que existem possuem diversos vieses, concentrando-se nas possibilidades de interação com esse novo tipo de família, ou apontando as possíveis dificuldades que estas acarretariam na criação de um filho. Os questionamentos se dão, em geral, em torno das possibilidades de essas crianças virem, também, a se tornar homossexuais por influência dos pais, de sofrerem preconceitos por parte da sociedade, de experimentarem crises de identidade de gênero, não conseguindo diferenciar o masculino do feminino por não conviverem com o sexo oposto ao dos pais ou mães (Uziel, 2004).

Fernández e Vilar (2004) dizem que essas crianças podem vir a sofrer discriminação social, dizem que se trata de um efeito secundário que não decorre diretamente da orientação sexual dos adotantes e que se essas adoções não acontecerem, jamais diminuirá essa discriminação. Ainda acrescentam que a Associação Americana de Psiquiatria insiste, no documento Position Statement de novembro de 2002, em que "está consistentemente comprovado que as crianças criadas por pais homossexuais apresentam o mesmo patamar de desenvolvimento psicossocial, sexual e cognitivo que aquelas criadas por casais heterossexuais" (p.5).

Os mesmos autores afirmam que a Associação Americana de Psicologia, em junho de 2004, assinalou que estudos apontam a mesma probabilidade de proporcionar ambientes saudáveis e protetores às crianças, tanto para os pais heterossexuais, quanto para pais gays e mães lésbicas. Esses mesmos estudos mostram poucas diferenças no desenvolvimento infantil, entre essas crianças, em aspectos como personalidade, autoconceito, comportamento e identidade sexual (Fernández & Vilar, 2004).

Alertam, porém, que os dados de pesquisas disponíveis sobre essas dimensões para filhos de pais gays são limitados. Acrescentam que os testes sugerem que os filhos de pais gays e mães lésbicas têm relações sociais normais com companheiros adultos e o receio de que essas crianças venham a sofrer abuso sexual por adultos, sejam condenados ao ostracismo pelos companheiros ou isolados em comunidades exclusivas de gays e lésbicas não tem nenhum apoio científico, até este momento.

Metodologia

Participantes

Participaram três homens que se consideram gays e têm filhos adotivos. Segundo Denzin e Lincoln (2006), no início das investigações da vida dos homossexuais no começo do século, os pesquisadores tinham dificuldade para encontrar participantes nessa categoria que estivessem dispostos a revelar seus segredos, temendo a estigmatização e punições sociais daquela época. Ainda hoje essa dificuldade pôde ser sentida e, devido a isso, adotou-se como critério de inclusão apenas ser pai, legal ou socioafetivo, de um filho adotivo e considerar-se gay, independentemente da idade, condição econômica ou tempo da adoção. Zambrano (2006) afirma, com base em uma pesquisa realizada na cidade de Porto Alegre, que a forma de acesso ao projeto parental preferida pelos homens gays é a parentalidade social e que na maioria dos casos a adoção acontece informalmente. Diz ainda "que parentalidade não é sinônimo de parentesco e filiação e pode ser exercida por pessoa sem vínculo legal ou de consanguinidade com a criança como ocorre… nas famílias recompostas" (p.126).

Nesta pesquisa, chegou-se ao total de três participantes, com idades de 47, 48 e 51 anos, nível de escolaridade superior, profissionais liberais. Dois eram companheiros na ocasião da adoção, porém a criança foi adotada legalmente apenas no nome de um deles. O segundo foi denominado por nós como pai socioafetivo. O terceiro era solteiro na ocasião da adoção e realizou o que se chama adoção à brasileira, isto é, registrou a criança como se fosse seu filho biológico. Em todos os casos as crianças foram adotadas antes que completassem um ano de vida. Os nomes trazidos neste trabalho são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.

Maurício é biblioteconomista, tem 47 anos e estava solteiro no período da entrevista. Conheceu a criança recém-nascida e optou pela adoção legal. Sofreu discriminação na forma de desconfiança dos operadores de Direito acerca dos motivos que o levavam a adotar uma criança, tendo em vista sua orientação afetivo-sexual. Hoje, seu filho tem 12 anos e eles moram juntos com uma terceira pessoa, Kácio, também participante desta pesquisa, companheiro de Maurício na época da adoção.

Kácio é cientista contábil, tem 51 anos e convive amigavelmente com Maurício. Também estava solteiro no período da entrevista. Apesar de não ser reconhecido legalmente como pai, é considerado assim pelo filho, estabelecendo uma relação próxima e amistosa com ele. Na época em que o companheiro decidiu adotar, Kácio não desejava a adoção, concordando apenas em apoiar o companheiro. No entanto, a partir do convívio, afeiçoou-se ao menino e abraçou a paternidade. Sua adoção foi definida como socioafetiva, em referência ao que propôs Carbonera (1988, citado por Futino & Martins, 2006) a respeito da paternidade socioafetiva. Este autor diz:

O aspecto socioafetivo do estabelecimento da filiação, baseado no comportamento das pessoas que a integram, revela que talvez o aspecto aparentemente mais incerto, o afeto, em muitos casos é o mais hábil para revelar quem efetivamente são os pais. … Ademais, a verdadeira paternidade decorre mais de amar e servir do que de fornecer material genético. (p. 154)

Rodrigo, de 48 anos, é formado em Letras e atua como professor de inglês. Ele tinha um relacionamento com outro homem no período da entrevista. Adotou, há 10 anos, uma criança recém-nascida de um abrigo clandestino. Contou que sempre quis ter um filho, mas a decisão foi tomada quando, em viagem pela Europa, notou a quantidade de crianças adotadas que havia por lá. Chegando ao Brasil, buscou maneiras de adotar ilegalmente uma criança, ao mesmo tempo em que contava para as pessoas mais próximas que havia engravidado uma mulher e que logo seria pai. A busca incessante pela criança excedeu o suposto período gestacional que havia criado e teve que contar a todos que a futura mãe abortou o seu filho. Depois disso, enfim, conseguiu encontrar uma criança e realizou o que se denomina, no Brasil, adoção à brasileira, isto é, registrou-a como seu filho biológico.

Instrumento

Trata-se de um estudo qualitativo, com entrevistas semidirigidas individuais, permitindo aos participantes discorrer livremente sobre o assunto, sem se desviar do tema original. A pesquisa qualitativa preocupa-se com níveis da realidade que não podem ser quantificados. Segundo Denzin e Lincoln (2006), os estudos sobre as sexualidades, e especificamente a homoafetividade, encontram-se estreitamente ligados a essa escolha metodológica, pois ela privilegia a experiência dos participantes, dentro do recorte social e do campo em que vivem, dando espaço às vozes que neles possam estar suprimidas por esse contexto.

Nesta investigação, não se busca exprimir raízes ou causas para fundamentar ou reforçar dicotomias do tipo homossexual/heterossexual, e sim compreender como os sujeitos que se consideram gays vivenciam o desejo pela adoção de crianças, no registro da atualidade, a partir de seus discursos.

Procedimento de coleta de dados

Antes de iniciar a coleta dos dados, o projeto foi submetido e aprovado por um Comitê de Ética sob o parecer nº. 076/2009. Recorreu-se à amostragem não probabilística acidental, por dificuldades de encontrar homens assumidamente gays com filhos adotivos. O primeiro participante foi indicado por um pesquisador da área que tomou conhecimento desta pesquisa. O participante foi contatado e depois de sua entrevista indicou os outros dois participantes. As entrevistas foram realizadas em ambiente privado, com duração média de duas horas cada. Antes delas, os entrevistados leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após essa etapa, todos concordaram em continuar o processo, iniciando-se as entrevistas.

Procedimento de análise de dados

O material coletado nas entrevistas e gravado em áudio foi transcrito a fim de ser analisado pelo método da Análise de Conteúdo. Segundo Franco (2005), a mensagem é o ponto de partida para esse tipo de análise, devendo ser consideradas as condições contextuais dos entrevistados, exercitando a concepção crítica e dinâmica da linguagem. De posse desse conhecimento, foram realizadas as seguintes fases:

1. Fase de pré-exploração do material ou de leituras flutuantes do corpus das entrevistas.

Destina-se às leituras flutuantes de todo o material das entrevistas, a fim de apreender e organizar de maneira não estruturada os aspectos importantes para as próximas fases da análise. Na leitura flutuante, entra-se em contato com os documentos a serem analisados, conhecendo o contexto e deixando fluir impressões e orientações (Bardin, 2006).

2. Seleção das unidades de significado.

As unidades de significado são palavras, sentenças, frases, parágrafos ou mesmo um texto completo de entrevistas, que clarifiquem o propósito daquele estudo, ajudando na compreensão do pesquisador sobre o assunto, para a criação de temas (análise temática).

3. Escolhas dos temas.

Os temas são escolhas do pesquisador, tendo como base os objetivos do próprio trabalho e indícios levantados a partir de seu estudo. Três temáticas foram escolhidas para serem trabalhadas a partir dos dados das entrevistas: (a) o desejo de se tornar pai; (b) a construção do sentimento de paternidade; e (c) os segredos e as revelações.

4. Análise e interpretação dos resultados obtidos.

Os discursos dos participantes agrupados em torno dessas temáticas foram analisados e interpretados a partir da linha teórica escolhida pelos pesquisadores.

Análise e discussão dos dados

O desejo de se tornar pai

Segundo Tarnovsky (2004), a conjugalidade homossexual e o desejo desses casais de terem filhos parecem concentrar as tendências presentes em contextos marcados pelas mudanças sociais nos processos de modernização. A época atual presencia transformações que põem em cheque as tradicionais divisões de sexo, de gênero e de desejo. À concepção binarista: masculino/feminino, homem/mulher, hetero/homo, sustentada em uma noção metafísica da substância, opõem-se concepções de gênero constituídas por traços acidentais e não essenciais (Butler, 2003).

Se é possível falar de um "homem" com um atributo masculino e compreender esse atributo como um traço feliz, mas acidental desse homem, também é possível falar de um "homem" com um atributo feminino, qualquer que seja, mas continuar a preservar a integridade do gênero. (Butler, 2003, p. 47)

Desse modo, pode-se pensar que desejar ter um filho, ser capaz de amá-lo e se responsabilizar por ele não estão sujeitos a nenhuma orientação sexual. A esse respeito, questionado sobre o que o levou a desejar ter um filho, um de nossos entrevistados diz: "é o motivo que deseja qualquer ser humano... de ser pai e ser mãe. O desejo de... sentir o prazer de ouvir alguém te chamar de pai, te chamar de mãe" (Maurício).

Ainda que esses motivos não possam ser considerados inatos nem naturais, menos ainda, universais, não é possível ignorar que são possibilidades que se abrem para as pessoas LGBT, impensáveis até pouco tempo. Se antes a criminalização e a psiquiatrização da homossexualidade negavam a esses sujeitos a paternidade, hoje, graças às reivindicações de igualdade de direitos ao reconhecimento jurídico, social e simbólico, nota-se o deslocamento dos pilares nos quais repousava a norma social baseada na diferenciação sexual, ampliando as possibilidades de vida e a experimentação de sentimentos, antes dificilmente alcançadas (Arán, 2010).

Maurício ainda relata o momento em que se deparou com a criança que viria a adotar: "a criança começou a olhar para mi ... e ..., a partir daquele momento, eu senti que algo de muito especial estava acontecendo na minha vida. ...de quarta-feira para o sábado eu tive que engravidar ... Eu vou ser pai. ... Ouvi o que minha mãe tinha me dito, que um presente desse não se ganha e fui" (Maurício).

Segundo Butler (2001), o sexo, ao mesmo tempo em que produz a norma, abriga sua instabilidade, no fluxo da sua reiteração. Desconstruindo binarismos, sabe-se que não se pode falar de sentimentos tipicamente maternos ou paternos, masculinos ou femininos, numa relação linear com a constituição anatômica dos sujeitos, e algumas sensações ainda podem ser descritas atravessando a fronteira dos sexos, como "engravidar" que, para Maurício, significou a ideia de gestar o projeto de se tornar pai.

O desejo de paternidade também divide espaço com inúmeros dispositivos de poder, no movimento inconstante das produções subjetivas, articulando-se dentro de campos infindáveis de possibilidades de ser. Adotar legalmente uma criança foi um desejo que partiu do companheiro de Kácio, que desenvolveu um novo modo de ver a paternidade, não excluindo um modo de existir pela existência de outro, mas integrando-os, estabelecendo vínculos afetivos cada vez mais fortes com a criança.

As relações de poder se percebem na medida em que a norma social, baseada na regulação dos sexos, persiste em existir e se conservar ao longo do tempo. Desse modo, o processo de construção, pelos quais novos sujeitos e atos vêm a aparecer, é um processo temporal, que atua a partir da reiteração da norma, graças ao seu afastamento de um modelo original (Butler, 2001).

eu não tinha motivação nenhuma para cuidar de criança. A minha condição homossexual ... na minha percepção, acho que Deus me fez homossexual justamente para não ter um filho, uma filha, o trabalho de criança, de ter aquela rotina diária de escola, de comida, de orientar ... E eu topei o desafio, mas ainda meio recuado, com o pé atrás. Com o passar do tempo, fui me apaixonando, ... e hoje é a coisa mais importante que temos em nossas vidas. (Kácio, companheiro de Maurício na época da adoção)

O vínculo desse pai com o filho parece ter sua origem no exercício da função parental que, segundo Zambrano (2006) implica, entre outras coisas, nos cuidados que se tecem no cotidiano em torno da criança. Nada indica um desejo de adequação e/ou inserção social por parte desse pai. As normas indicariam que por ser gay não lhe cabia ter filhos, a "decisão" de se tornar pai aconteceu por contingências da vida, o afeto pelo companheiro fez com que acordasse em atender ao seu desejo. Contudo, não se pode negar a influência da norma nas escolhas e no próprio desejo de pais gays na adoção de seus filhos. Não há esse sujeito voluntarista que possa existir separado da norma regulatória que transgride. Pois, se o sujeito generificado é construído, "ele não é necessariamente construído por um ‘eu’ ou um ‘nós’ que se coloca antes daquela construção em qualquer sentido espacial ou temporal de ‘antes’" (Butler, 2001, p.160), embora isso não signifique descartar o sujeito, mas perguntar pelas condições de sua emergência e performances. A situação de Kácio é exemplar. O desejo não era seu, mas do companheiro. Encontrava-se entre imperativos discordantes, ser um "típico gay" e não ter filhos ou atender ao chamado de ser um "bom companheiro" e abrir-se à possibilidade de experimentar sentimentos paternais. Segundo Butler (2001), o paradoxo da subjetivação reside no fato de que o sujeito, resistente à norma, é produzido e possibilitado por essa norma. Em outras palavras, o sujeito agente se localiza numa prática reiterativa ou rearticulatória imanente ao poder, à lei e à norma, não podendo se opor àquilo que integra a si próprio.

A construção do sentimento de paternidade

Para Kácio, que afirma nunca se ter visto como pai, não houve um plano de vida que incluísse a paternidade, mas os laços afetivos com a criança foram sendo fortalecidos a partir da convivência diária com o filho. Desse modo, Kácio pôde construir paulatinamente uma relação afetiva com seu filho, junto à adoção legal do companheiro, como destacado num trecho de sua entrevista:

Eu nunca me vi sendo pai. Primeiro, que eu gosto de liberdade, não gosto de compromisso, e criança tem muito esse lado. Com a chegada de Pedro, meio forçadamente, para atender ao pedido de Maurício, meu companheiro, minha vida foi mudando totalmente. ...foi criando aquele vínculo afetivo, e você começa a se ver envolvido de tal forma que só em você o ver correndo pela casa, de fralda, e a gente correndo atrás, segurando, o amor vai sendo criado, automaticamente. ...Uma criança que é doada pelos pais biológicos para a adoção pode estar lá porque os pais não tiveram condições de criar, de manter, outros podem ser por falta de amor pelo filho. ...E a gente vai com o intuito de pegar essa criança e dar o amor que ela está precisando e não tem dos pais biológicos.

Logo, a experiência de uma identidade excluída da paternidade é atualizada e possibilita novos modos de subjetivação, desconstruindo as identificações que Kácio possuía com uma orientação afetivo-sexual estigmatizada e com os lugares sociais que lhes eram permitidos ou impedidos, ocupar.

Acho que, às vezes, os casais homossexuais dão muito mais amor a uma criança do que muitos casais que existem por aí. Há tantos casos que a gente vê na televisão de crianças sendo espancadas, postas nas ruas para trabalhar com drogas, vender drogas, essas coisas todas. Não que isso não pode acontecer com um casal homossexual, mas eu não vejo dessa forma. (Kácio)

Sobre seu filho adotivo, Maurício revelou: "A vida me deu esse presente, e eu vou abraçar esse presente".

"Esse presente", que a vida deu a Maurício, foi posto por ele acima das expectativas sociais, da disposição biológica de ter filhos e dos preconceitos existentes. O desejo de se tornar pai venceu todos esses obstáculos, permitindo-o vivenciar um modo de relacionamento familiar distinto do modelo de família heterossexual, um ideal social que é apenas mais um modelo dentro da diversidade das configurações familiares contemporâneas.

Em resumo, não basta pensar essa forma de paternidade como a transgressão ou a repetição compulsória a uma norma, mas como mais uma forma de relacionamento parental num mundo ocidental que, hoje, consegue enxergar a sexualidade, a paternidade e a adoção de crianças sob as lentes do afeto, do cuidado e das novas possibilidades de laços familiares com que a contemporaneidade nos brinda.

Assim, não se pode atribuir nenhum comportamento eventualmente assumido nesses relacionamentos, que se assemelhem aos papéis heterossexuais, a uma adesão às convenções sociais heteronormativas. Butler (2003, pp. 56-57) diz: "a repetição de construtos heterossexuais nas culturas sexuais gay e hetero bem pode representar o lugar inevitável da desnaturalização e mobilização das categorias de gênero".

Que presente era esse que eu estava ganhando? ... As feridas que ele estava apresentando era sífilis, ele tava com o mais alto grau de desnutrição ... Ele estava com anemia do mais alto grau, ele era soropositivo ... E cada exame que vinha, a gente tava preparado para o pior ... Mas em nenhum momento era motivo para a gente desanimar. Pelo contrário. E a pediatra disse: "olha, ... o que é que vocês vão fazer?" A gente vai cuidar dele, porque ele é nosso filho. (Maurício)

Farias e Maia (2009) apontam o quanto é comum os profissionais que trabalham nos fóruns de adoção de crianças se inclinarem a dar um parecer favorável no caso de candidatos à adoção homo orientados, quando a criança em questão apresenta algum problema de saúde e com isso tem chances menores de vir a ser adotada por outra família. Até recentemente, a lógica adotada não era o de haver critérios favoráveis em relação a essa população de possíveis adotantes, mas sim de não haver suficientes indícios que os levassem a dar um parecer desfavorável, ou mesmo não terem à mão uma melhor opção.

Na adoção por casais do mesmo sexo, o companheiro do adotante pode vir a ocupar um lugar parental cuidando e estabelecendo laços afetivos com a criança, podendo ser chamado de pai, ou segundo pai, ou pai dois, ou "painho", como no caso de Kácio, um diminutivo carinhoso associado ao seu modo mais afetuoso e permissivo na criação do filho.

Ele é mais apegado comigo ... Eu sou painho e Maurício é pai. Pai e painho. Maurício é mais rígido, eu sou mais de passar a mão na cabeça dele. Ter que brigar me dói muito. Quando eu brigo com ele, fico triste. Quando ele quer alguma coisa, pede a mim. (Kácio)

O investimento afetivo é imprescindível para uma boa relação entre pais e filhos. Entretanto, além da afetividade, percebe-se que o exercício da paternidade é pautado por três outras dimensões, indispensáveis para a manutenção da própria vida. São elas: a educação, os cuidados corporais e a preservação da integridade da criança (Bustamante & Bonfim, 2005). Nas entrevistas, todos os participantes desta pesquisa afirmaram ser capazes de exercer essas dimensões.

Os segredos e as revelações

Sobre a revelação da orientação afetivo-sexual, nota-se que para alguns pais esta conserva uma parcela de "segredo", temendo a exposição pública e evitando a discriminação e o preconceito. A esse respeito, Sedgwick (2007, p.22) diz:

Mesmo num nível individual, até as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas. … O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora.

Em geral, os homens gays buscam se poupar de explicações constrangedoras sobre sua vida afetivo-sexual, evitando a conversa direta sobre o assunto com seus familiares (Tarnovsky, 2004). Segundo Sant’Anna e Daspett (2007, p.171), "durante muito tempo foi discutido o incômodo de filhos para revelarem sua orientação para os pais. O que vemos hoje é este mesmo incômodo, aparecendo nos pais que desejam revelar sua homossexualidade aos filhos". A esse respeito, um dos participantes diz:

Ele ainda tem a esperança que eu me case. ... um dia, acho que faz uns dois anos, ele fez: "Pai, o que é que você iria fazer se eu fosse gay?" Aí eu disse: o meu amor por você é maior do que qualquer coisa. Aí ele olhou para mim e fez: "eu também não ia fazer nada se você fosse gay." Aí eu acho que nessa hora eu deveria ter dito, mas foi tão de surpresa ... que eu não consegui. (Rodrigo)

Segundo Sedgwick (2007, p.39), "viver no armário, e … sair dele, nunca são questões puramente herméticas. As geografias pessoais e políticas são, antes, as mais imponderáveis e convulsivas do segredo aberto". A autora ainda argumenta que mudanças importantes ocorreram nas últimas décadas para as pessoas gays, abrindo possibilidades em torno e fora do armário, mas ainda assim, o que ela denomina como "epistemologia do armário" deu uma consistência abrangente à cultura e à identidade, não apenas gays, mas do ocidente como um todo, ao longo do século XX. Essa epistemologia se baseia em uma compreensão equivocada da privacidade oferecida pelo armário, que produz a ilusão de proteção.

Paiva (2007) aponta que se revelar gay dá-se de forma progressiva,

explorando as possibilidades [da] dissimetria entre palavra e evidência (o que se diz e o que se vê). … A administração desse silêncio que vê, ou dessa evidência muda … nos obriga a pensar para além do dualismo assumido/não-assumido, dentro/fora do armário. (p. 29)

De acordo com Moris (2008), o segredo conservado pelos pais homossexuais pode mantê-los prisioneiros e impossibilitados de ampliar seus vínculos com os filhos. O medo de possíveis repercussões no seu relacionamento parental é acrescido da preocupação com os estereótipos negativos, vinculados à homo orientação, na educação dos filhos.

Para Perelson (2006), o processo de revelação envolve estágios que dizem respeito às vivências singulares de cada indivíduo, como se assumir, autorreconhecer-se como homossexual, abrir essa identidade para outros, socializar-se com grupos semelhantes, identificar-se positivamente e a capacidade de integração e aceitação do eu. No entanto, é preciso ficar atento para essa questão. Nenhum pai ou mãe revela para seu filho que é heterossexual. Essa revelação se dá no cotidiano, através das diversas performances dos pais.

Embora muitas vezes conflituosa, a experiência dos pais homossexuais com seus filhos nem sempre se baseia no segredo e na dificuldade em integrar duas realidades aparentemente contrárias, não sendo, necessariamente, uma experiência dolorosa.

sabe que eu e Kácio, nós tínhamos uma relação, hoje nós não temos uma relação, nós apenas convivemos no mesmo espaço em nome do amor que a gente tem por ele [referindo-se ao filho]. ... ele sabe de toda história ... sabe normalmente. ... sabe que "fulana" namora com "fulana", "beltrana" namora com "beltrana" ... Respeita completamente. Sabe que existem casais homossexuais, existem casais heterossexuais, que existem numa boa, entendeu? Porque essa é a formação que a gente dá para ele, e que isso é o respeito que a gente tem que ter pelas pessoas. (Maurício)

Desse modo, a partir da fala de Maurício, percebe-se que o grau de compreensão e aceitação que a criança tem a respeito da homossexualidade dos pais, ou dos seus círculos de amizade, tem a ver com a forma de os pais lidarem com a própria orientação afetivo-sexual, influenciando no modo que constroem a educação de seu filho. Ao contrário de Rodrigo, Maurício não tratou a sua orientação sexual como um segredo. Desde antes da adoção, já havia assumido uma identidade gay para a família e amigos, também contando com essa rede social como apoio para a adoção.

Chama a atenção, também, o arranjo familiar que Maurício e Kácio construíram em torno da preservação dos laços parentais com o filho. Continuam coabitando ainda que os laços conjugais tenham sido desfeitos, afrontando assim, os padrões heteronormativos e o regime de separação conjugal tradicional.

Apesar da diferença entre os pais na maneira de lidar com a revelação da sua orientação sexual homo para os filhos, quando se trata do tema da adoção, percebe-se maior homogeneidade entre os entrevistados que, unanimemente, optaram por revelá-la desde cedo.

Quando ele começou a falar e a construir frases, dizia: "Me conta a história de novo." Aí, eu contava: porque sua mãe de barriga não pôde cuidar de você, aí confiou muito em mim e eu fiquei. Muita sorte a minha você ter entrado em minha vida. Ele se sente muito amado. ... sempre soube que era adotivo ... Aí, ele disse assim: "É engraçado ter duas mães, não é?" [referindo-se à mãe biológica, que não conhece, e à tia, que trata como mãe] ... Mas você é feliz aqui? ... Está fazendo falta? Porque se falta alguma coisa que eu não esteja proporcionando ... Você acha que eu presto atenção em você? Ele disse: "Até demais." Com o jeito dele, ele disse isso. (Rodrigo)

Os especialistas em adoção concordam que a criança deve saber que é adotada, desde cedo. A revelação, nesses casos, não deve aguardar por um momento específico, pois a dramaticidade contida nesse momento dificilmente é apaziguada nessa ou naquela ocasião. Segundo Hamad (2002), é interessante pensar num dispositivo que permita ao bebê a confrontação habitual com sua história. Nesse sentido, o autor sugere, por exemplo, fotos que simbolizem o momento do primeiro encontro entre os pais e o bebê, abrandando e transformando a revelação em algo processual e natural.

Sobre as origens do filho adotivo, Videla (2001) afirma que quando se adota uma criança se começa outra história na vida dela e dos pais. Entretanto, antes disso, a criança teve uma pré-história, de sangue, que não pode ser negada e evitada. Para a autora, a gravidade do ocultamento da verdade sobre as origens compara-se a um sequestro, um delito na sua forma afetiva.

Desde o começo, Rodrigo conta a história da origem de seu filho nos momentos em que estão sós. Esse momento foi transformado no preferido da criança, no qual se defronta com a verdade de sua existência e com chegada a essa família, exercitando o vínculo de confiança e afetividade com o pai adotante. No entanto, a insegurança ainda ronda o imaginário de Rodrigo, que teme dividir o amor do filho com a família biológica, caso ele queira conhecê-la.

Destarte, o direito de saber a verdade sobre a adoção deve ser admitido e reconhecido (Hamad, 2002). Entretanto, é perfeitamente compreensível o medo de alguns pais de revelar a adoção para seus filhos. A essa defesa, acrescentem-se os estudos de Andrei (2001) sobre a existência de uma "norma" que carrega certo peso na cultura ocidental. Segundo a autora, essa norma determina que o filho de verdade é aquele gerado na barriga da mãe, através de uma relação monogâmica. Desse modo, restringe-se à família normal, nuclear, o direito de veracidade nas relações parentais, excluindo qualquer outra forma de parentalidade.

Percebe-se que a heteronormatividade também lança seus tentáculos no instituto da adoção, e no entendimento cultural que se tem dele. A norma, trazida por Andrei (2001), possui a mesma natureza da norma sexista, que visa na reprodução do casal heterossexual as chances de felicidade para uma dada sociedade, em certo período histórico e cultural. Contudo, a norma, que rege os desejos e os relacionamentos parentais com base na família heterossexual, pode ser contestada, diante das modificações sofridas pelas demandas da sociedade contemporânea. A inscrição de uma família inédita na história ocidental encontra, na adoção, na afetividade masculina e nas relações com os filhos adotivos, novos modos de subjetivação, abrindo campo visual para novos prismas e posicionamentos teóricos do mesmo modo originais sobre a família, os relacionamentos familiares e as sexualidades homo orientadas.

Considerações finais

Note-se que a forma como os pais trazem os assuntos relacionados à sexualidade para sua relação com o filho depende de como eles próprios experienciam e lidam com ela. Segundo Moris (2008), aceitar-se fora dos padrões heteronormativos requer primeiramente a abertura desse segredo/revelação para si mesmo. Desse modo, lidando com a própria homofobia, paulatinamente, o sujeito poderá revelar sua sexualidade divergente da norma social. Assumir-se gay e pai é ainda mais complexo, uma vez que requer a integração de dois aspectos que culturalmente foram tidos como antagônicos. A "saída do armário" tem um grande potencial transformador na vida das pessoas, ainda que a revelação individual seja bastante limitada em termos de exercer influência "sobre opressões em escala coletiva e institucionalmente corporificadas" (Sedwick, 2007, p. 36).

No que tange à revelação da adoção, todos os pais desta pesquisa já revelaram sem maiores conflitos a origem de seus filhos para eles. Essa revelação foi gradual e parece não ter sido traumática em nenhum dos casos.

Foucault (1988) afirma que não se escapa ao poder, e que este sempre está onde menos se imagina, onde menos se espera encontrar, constituindo até aquilo que tenta se opor a ele. No caso dos participantes deste estudo, pode-se observar que, para além do desejo de normalização e de aquisição de direitos de cidadão, havia um desejo legítimo de exercerem a parentalidade. Tem-se que concordar com Butler na ideia de que esse modelo de família pode, sim, significar uma ruptura com as normas, ainda que nem sempre seja assim.

Para alcançar a parentalidade, as estratégias utilizadas pelos participantes variaram desde o enfrentamento das dificuldades, assumindo sua orientação afetivo-sexual, ao ocultamento desta, a fim de atenuar conflitos na vida familiar e social.

O desejo de ter um filho surgiu distintamente em cada pai. Kácio, devido a uma condição homossexual, inicialmente considera que não poderia ter filhos. Esse argumento normatizador perdeu sua força quando estabeleceu vínculos afetivos com o filho, desconstruindo o critério do sexo e ampliando a visão que se tem da paternidade ligada à orientação sexual para as condições afetivas e emocionais de se tornar pai.

Um dos pais expressou o temor de que seu filho futuramente venha a desejar conhecer a mãe biológica, disputando desde já a atenção do filho e o reconhecimento do carinho que direciona a ele. Contudo, o medo dos pais da procura das origens pelos seus filhos adotivos é um fenômeno comum nas relações parentais, não sendo exclusivo dos filhos de casais homo orientados (Videla, 2001).

Por fim, percebe-se que os participantes são próximos e amistosos com seus filhos, sabendo a importância da revelação da adoção, contando a história de suas vidas e suas origens.

A experiência da adoção acionou muitos elementos novos nas vidas desses pais que, em busca da conservação de suas novas famílias, mantêm um forte vínculo afetivo com seus filhos adotivos que foram desejados, amados e, dia após dia, conquistados, não vendo na discriminação sexista empecilhos suficientes para atenuar o amor que cultivam na relação com eles.

Notas

Recebido em: 21/02/2013

Revisão em: 2013-07-15

Aceite em: 2013-08-17

Maria Cristina Lopes de Almeida Amazonas é Profa Dra do Programa de Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco, Recife/PE. Endereço: Estrada do Encanamento, 608, apto 1303, Casa Forte, Recife/PE, Brasil. CEP 52070-000 E-mail: crisamaz@gmail.com

Hugo Vasconcelos Veríssimo é Psicólogo (UNICAP), mestre em Psicologia Clínica (UNICAP), psicoterapeuta e psicopedagogo institucional (UNIVERSO). E-mail: hugovverissimo@gmail.com

Gilclécia Oliveira Lourenço é Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco (2010). Psicóloga no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) no município de Lagoa do Carro/PE. E-mail: gilcleciaoliveira@yahoo.com.br

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  • 1
    Embora, algumas vezes, a palavra
    gay seja usada igualmente para se referir a homens e mulheres homossexuais e
    bissexuais, tal uso tem sido constantemente criticado por implicar a invisibilidade ante a lesbianidade e a bissexualidade. Desta maneira, boa parte dos autores que se dedicam a essa temática têm preferido usar o termo gay para se referir aos homens homossexuais e lésbicas para tratar de mulheres homossexuais (Mello, 2006; Tarnovsky, 2011). Assim, neste trabalho, o termo
    gay será usado para se referir a homossexuais masculinos.
  • 2
    Essa ideia foi suscitada por Luiz Mello de Almeida Neto, quando participou de uma banca de defesa pública de dissertação de mestrado em 2010, de um dos autores deste artigo. No entanto, segundo ele próprio, a ideia ainda não está registrada em nenhuma publicação e ainda carece de um maior desenvolvimento.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      21 Fev 2013
    • Aceito
      17 Ago 2013
    • Revisado
      15 Jul 2013
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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