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Fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico numa pesquisa de ensino em enfermagem

Fenomenología-hermenéutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico en una investigación de enseñanza en enfermería

Resumos

Este artigo descreve as principais idéias compreensivo-hermenêuticas de Paul Ricoeur utilizadas como referencial teórico-metodológico na tese "Significados da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro/a no ensinar e aprender a ser e fazer enfermagem à luz da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty". A Pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica mostrou-se adequada, por desvelar os aspectos subjetivos, por meio das entrevistas. O olhar aberto, flexível e particular na intersubjetividade com os entrevistados criou as condições para formulação de categorias de análise possibilitando revelar os significados da sensibilidade. O texto mostra a importância desse referencial, numa pesquisa de ensino em enfermagem, por estar fundamentado na construção de uma ontologia sempre desafiante e criativa do pesquisador.

Filosofia; Pesquisa qualitativa; Educação; Enfermagem


Describir las principales ideas comprensivo-hermenéuticas de Paul Ricoeur utilizadas como referencial teórico-metodológico en la tesis "Significados de la sensibilidad para el ser-docente-enfermero/a en el enseñar y aprender a ser y hacer enfermería a la luz de la fenomenología de Maurice Merleau-Ponty". Se trata de una investigación cualitativa con abordaje fenomenológico que se mostró adecuada, por develar los aspectos subjetivos, por medio de las entrevistas. El mirar abierto, flexible y particular en la intersubjetividad con los entrevistados creó las condiciones para la formulación de categorías de análisis posibilitando revelar los significados de la sensibilidad. El texto muestra la importancia de ese referencial, en una investigación de enseñanza en enfermería, por estar fundamentado en la construcción de una ontología siempre desafiante y creativa del investigador.

Filosofía; Investigación cualitativa; Educación; Enfermería


To describe the use of Paul Rocoeur's Hermeneutic-Phenomenology Philosophy arguments to guide the thesis, entitled "Meanings of Awareness for Being a Nursing Faculty in Regards to the Teaching, Learning, and Practicing Nursing in light of Maurice Merleau-Ponty's phenomenology." A phenomenological approach was used to guide this qualitative study. This approach is appropriate to unveil subjective aspects of interest through interviews. The openness, flexibility, and subjectivity of the responses of the study's participants allowed the identification of categories that suggest meanings of awareness of being a nursing faculty. The findings of this educational nursing research suggest that this referential of awareness of being a nursing faculty is important because it was based on creative and challenging ontological approach of the researcher.

Philosophy; Qualitative research; Education; Nursing


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico numa pesquisa de ensino em enfermagem* * Extraído da tese de doutorado "Significados da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro(a) no ensinar e aprender a ser e fazer enfermagem à luz da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apoio bolsa PQI/CAPES, Florianópolis (SC), Brasil.

Fenomenología-hermenéutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico en una investigación de enseñanza en enfermería

Marlene Gomes TerraI; Lucia Hisako Takase GonçalvesII; Evangelia Kotzias Altherino dos SantosIII; Alacoque Lourenzini ErdmannIV

IDoutora, Professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM- Santa Maria (RS), Brasil

IIDoutora, Professora do Departamento de Enfermagem do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Florianópolis (SC), Brasil

IIIDoutora, Professora Associada do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC - Florianópolis (SC), Brasil

IVLivre-docente, Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina - – UFSC - Florianópolis (SC), Brasil

Autor Correspondente Autor Correspondente: Marlene Gomes Terra R. Felipe dos Santos, 97 Santa Maria - RS - CEP. 97070-340 E-mail: martesm@terra.com.br

RESUMO

Este artigo descreve as principais idéias compreensivo-hermenêuticas de Paul Ricoeur utilizadas como referencial teórico-metodológico na tese "Significados da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro/a no ensinar e aprender a ser e fazer enfermagem à luz da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty". A Pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica mostrou-se adequada, por desvelar os aspectos subjetivos, por meio das entrevistas. O olhar aberto, flexível e particular na intersubjetividade com os entrevistados criou as condições para formulação de categorias de análise possibilitando revelar os significados da sensibilidade. O texto mostra a importância desse referencial, numa pesquisa de ensino em enfermagem, por estar fundamentado na construção de uma ontologia sempre desafiante e criativa do pesquisador.

Descritores: Filosofia; Pesquisa qualitativa; Educação; Enfermagem/educação

RESUMEN

Describir las principales ideas comprensivo-hermenéuticas de Paul Ricoeur utilizadas como referencial teórico-metodológico en la tesis "Significados de la sensibilidad para el ser-docente-enfermero/a en el enseñar y aprender a ser y hacer enfermería a la luz de la fenomenología de Maurice Merleau-Ponty". Se trata de una investigación cualitativa con abordaje fenomenológico que se mostró adecuada, por develar los aspectos subjetivos, por medio de las entrevistas. El mirar abierto, flexible y particular en la intersubjetividad con los entrevistados creó las condiciones para la formulación de categorías de análisis posibilitando revelar los significados de la sensibilidad. El texto muestra la importancia de ese referencial, en una investigación de enseñanza en enfermería, por estar fundamentado en la construcción de una ontología siempre desafiante y creativa del investigador.

Descriptores: Filosofía; Investigación cualitativa; Educación; Enfermería/educación

INTRODUÇÃO

Neste artigo procuraremos descrever as principais idéias compreensivo-hermenêuticas de Paul Ricoeur que embasaram o caminho metodológico da tese de doutorado intitulada Significados da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro/a no ensinar e aprender a ser e fazer enfermagem à luz da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty(1).

Após a defesa de tese de doutorado, sentimos a necessidade de compartilhar a nossa vivência e experiência como pesquisadoras que estudam e adotam esse referencial metodológico. Essa necessidade nasceu a partir das leituras realizadas em diversos periódicos, da área de enfermagem, nos quais observamos que a pesquisa qualitativa tem sido utilizada em inúmeras abordagens pelos pesquisadores em seus estudos. Todavia, são poucos os que mostram as discussões epistemológicas e metodológicas das abordagens compreensivo-interpretativas.

A fim de desvelarmos o fenômeno, a partir das experiências do ser-docente-enfermeiro/a no ensinar e aprender a ser e fazer Enfermagem tendo em vista suas vivências cotidianas, apropriamo-nos da fenomenologia-hermenêutica, por entendermos que esse referencial nos possibilitaria a compreensão. Tal caminho estabeleceu um elo entre a fenomenologia e a análise contemporânea da linguagem por meio da teoria da metáfora. Esta conduz a novas possibilidades de articulação da realidade como uma rede de significados(2).

Ricoeur estudou e escreveu sobre a maneira como a realidade de uma pessoa é configurada por sua percepção de eventos no mundo. Uma das suas grandes contribuições à Filosofia foi o conceito da ação. Esta, inicialmente, acontece em pensamentos, exteriorizando-se por meio da gestualidade corporal que modifica algo quando o ser humano relaciona-se e interage com o outro no mundo da vida.

Acreditamos que pesquisar norteadas por essa metodologia envolve outros modelos para além dos tradicionais, tanto na busca de aprender como de ensinar, pois ela possibilita desvendar outros caminhos possíveis para o ensino da Enfermagem(3).

FENOMENOLOGIA-HERMENÊUTICA: CONTRIBUIÇÕES DE PAUL RICOEUR

Com base nas obras de Paul Ricoeur, mais especificamente O conflito das interpretações(4), Interpretação e Ideologias(5), Teoria da Interpretação(2), mostramos as contribuições do seu pensamento a partir da compreensão de alguns traços de seu discurso escrito.

Este autor faz cinco considerações sobre a hermenêutica. A primeira refere-se à hermenêutica como um enxerto, já que ela surgiu antes da fenomenologia de Husserl. A hermenêutica foi colocada, inicialmente, nos limites da exegese, isto é, em uma disciplina que tinha como finalidade compreender os textos sagrados(4).

Na segunda consideração, a hermenêutica é definida como a ciência de toda a compreensão lingüística que serve de base para a concepção de todos os tipos de interpretação de textos. Esse entendimento marca o começo da hermenêutica não disciplinar e define-se a si mesma como estudo da sua própria compreensão. A palavra hermenêutica tem origem no verbo grego hermeneuin, que significa interpretar, e também do substantivo hermeneia, que denota interpretação. Ela está ligada ao deus-mensageiro-alado Hermes, da mitologia grega, que está associado à função de tornar compreensível, principalmente quando envolve a linguagem, ou seja, tudo que possa ir além da compreensão humana de uma maneira que a inteligência possa compreender. No entanto, há outra orientação da palavra hermenêutica: ela está voltada para explicar. Nesse sentido, ela destaca o discurso da compreensão, pois as palavras vão além do dizer. Elas explicam, racionalizam e clarificam algo. O significado, portanto, está relacionado a alguém e ao contexto. É esse liame que estabelece o significado(4).

Na terceira, a hermenêutica também é considerada como base metodológica dos Geisteswissenschaften, referindo-se ao projeto de Wilhelm Dilthey. Esse filósofo percebeu que a hermenêutica poderia servir de alicerce a todas as disciplinas que estivessem centradas na compreensão da arte, no comportamento e na escrita do homem. Ele defendia a interpretação das expressões essenciais (leis, a literatura, as Sagradas Escrituras) da vida humana, pois são plausíveis de uma compreensão histórica, porém diferentemente da quantificação e da cientificidade do mundo natural. Dilthey encontrou na hermenêutica uma metodologia humanística(4).

A quarta consideração refere-se à fenomenologia do Dasein (existência) e da compreensão existencial. Martin Heidegger, ao empreender seu estudo sobre a presença cotidiana do ser humano no mundo, chamou para análise, em sua obra Ser e Tempo, uma hermenêutica do Dasein. Nesse âmbito, a hermenêutica é considerada como uma explicação fenomenológica da existência humana e não uma ciência ou regras de interpretação de textos, tampouco uma metodologia para as Geisteswissenschaften. O filósofo realiza, na hermenêutica, uma relação com as dimensões ontológicas da compreensão e, conseqüentemente, com a sua fenomenologia. Após Heidegger, Hans-Georg Gadamer delineia minuciosamente o desenvolvimento da hermenêutica, desde os estudos iniciais para despertar a consciência filosófica das Geisteswissenschaften. Para ele, a compreensão é relacionada à experiência estética e ao conhecimento histórico na hermenêutica. Isso significa que a compreensão precisa estar inserida num contexto no qual haja uma fusão constante do passado e do presente; portanto, a compreensão não deve ser vista como uma ação da subjetividade de uma pessoa porque é no encontro do ser por meio da linguagem que acontece a hermenêutica(4).

Por fim, na quinta cosideração, como um sistema de interpretação, a hermenêutica é compreendida como um processo que interpreta um conteúdo e um significado manifesto ou escondido. O objeto de interpretação, então, é o texto, que pode ser composto pelos símbolos de um sonho e símbolos sociais. Nesse sentido, o autor(4) contribui, significativamente, quando refere que a hermenêutica é o processo pelo qual o significado é desvelado para além do conteúdo manifesto(4). Entretanto, Freud, ao buscar um sentido oculto em sonhos e em lapsos de linguagem, observa uma suspeita na superfície ou realidade manifesta. Ele procurou tornar-nos desconfiados do próprio conhecimento consciente, embora terminássemos com as ilusões e as crenças religiosas. Com isso, Ricoeur aponta como desmitificadores da hermenêutica Marx, Nietzsche e Freud, referindo que eles, individualmente, interpretaram a superfície da realidade como falsa. Condenaram a religião, consideraram duvidoso o pensamento verdadeiro, colocaram sob suspeita a confiança piedosa que o ser humano assentava na realidade, nas suas crenças e motivações, propagaram uma nova hermenêutica. Com esse entendimento, sinaliza que se opõe às regras universais para a exegese, apenas como teorias separadas e opostas, referentes às regras de interpretação. Resgata e interpreta o significado de Freud de modo inovador para o momento atual considerando tanto a racionalidade da dúvida quanto a fé de uma interpretação passada por meio da filosofia que aceita o desafio hermenêutico do símbolo. Pode-se dizer que, hoje, a hermenêutica está pautada na linguagem. Todavia, o desafio é realizá-la criativamente(4).

Este autor (4) traz um pensamento com delineamentos novos, o qual só é possível ser compreendido a partir do contexto da história da sua vida e das reflexões realizadas das inúmeras correntes filosóficas, tanto afins como contrárias. Nas leituras de suas obras, percebemos o diálogo que manteve com as diferentes correntes da filosofia. Procurou trilhar o seu próprio caminho filosófico: instigante, aberto, buscando um diálogo com outras posições filosóficas, em cuja mediação é possível compreender a sua postura. Esse filósofo contribui significativamente com uma teoria da interpretação alicerçada na dialética entre explicação e compreensão, mediada pela interpretação; segue um método reflexivo que faz uma aliança com o vivido. Considera importante compreender a existência e, por isso, busca "redescobrir a autenticidade do sentido" por meio da verdade(5).

Nessa perspectiva, observamos que a trajetória do filósofo manifesta-se como um esforço contínuo visando compreensão da dimensão do ser humano na sua totalidade. Para tanto, foi necessário fazer emergir a vontade que está na base de toda ação e facticidade, revelando a dialética entre elas, sem, no entanto, distanciar-se do concreto como ser no mundo da vida, impregnado por suas condições históricas e culturais. Por isso, propõe uma hermenêutica fenomenológica com pensamento original e método próprio porque assinala o mundo da vida e procura a verdade polissêmica do fenômeno nos níveis em que o compreender acontece(4). É fundamentada em três níveis: o da vida cotidiana ou do vivido (pessoa ou situação em si-mesma – Fenomenologia), o da vida científica (dados, posições, teorias, conceitos – Ciência) e o nível propriamente reflexivo (o dizer do fazer à luz de uma ética das ações – Filosofia da Linguagem).

Nos convida a esclarecer a existência humana pela compreensão do comportamento simbólico do ser humano: "o sentido oculto no sentido aparente", por meio do registro escrito das suas falas, gestualidades e sentimentos. Ele propõe a dialética da complementaridade para poder resolver a questão do dualismo entre explicação e compreensão(5) buscando uma maneira de conciliar a objetividade do discurso científico com o do fenomenológico e enfatizando a subjetividade da reflexão.

Assim, a hermenêutica trata de uma corrente que propõe reflexões sobre a experiência estética e sobre a linguagem humana. É a interpretação do sentido do não dito ou mostrado ao fazer-se algo. É uma tentativa de especificar o significado que é essencial na descrição da experiência. O objetivo é alcançar uma teoria da interpretação do ser. Por isso, Paul Ricoeur busca um "método reflexivo" que esclareça a existência e elucide "seu sentido"(5).

Cabe ressaltar que não existe desvelamento do fenômeno sem discurso. Logo, a tarefa da fenomenologia é colocar em evidência o sentido do fenômeno-discurso. Este é compreendido como significação, pois significar é o que a pessoa quer expor. As pessoas falam umas às outras e alguma coisa acontece. O discurso surge como uma maneira de superar individualmente a solidão do ser humano(5). Há uma passagem de lingüística de código à outra de mensagem, isto é, existe uma diferença entre língua e fala. A unidade de base da língua é o signo, do mesmo modo que a unidade de base do discurso escrito ou texto é a frase(5). Dessa forma, a hermenêutica vai examinar e explicitar o sentido do discurso o qual tem um traço primitivo de distanciamento, conhecido como dialética do evento e de significação. A hermenêutica é compreendida como a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos, porque interpretar é tentar des-velar a própria descrição, ou seja, perceber sentido na existência humana(5).

O discurso é evento porque é realizado pelo ser humano numa situação temporal (no presente). Já a língua é atemporal e impessoal, cujos signos só remetem a outros signos no interior do mesmo sistema, o qual tem o fim em si mesmo. O discurso emprega os signos para estabelecer a linguagem e, por meio dela, o ser humano abre-se para o diálogo com o outro. Assim, no discurso, existe uma intencionalidade e um significado que é revelado pela linguagem(5).

Nesse sentido, Ricoeur busca, com sua hermenêutica, compreender a existência humana a partir da descoberta do sentido do discurso. Ele busca o sentido sob as palavras, de maneira que o real seja percebido em sua totalidade. Então, para o filósofo, compreender é entender e fundamenta-se numa intenção presente do texto a ser interpretado.

Continuando, Ricoeur revela que a análise e a interpretação do discurso na hermenêutica podem ser descritas em fases: leitura inicial do texto, leitura crítica e apropriação(4).

A leitura inicial do texto tem como objetivo compreendê-lo de maneira superficial, por meio da percepção dos primeiros significados. A leitura precisa ser realizada várias vezes e sem julgamentos, de modo que o pesquisador consiga apreender os significados e organizá-los. A leitura crítica acontece quando se realiza uma releitura profunda, com a finalidade de interpretar e compreender os prováveis significados imbuídos no texto. A apropriação é aquela que atinge seu apogeu com a compreensão e assimilação da mensagem desvelada.

Com esse entendimento, no momento em que o leitor examina um texto de uma determinada obra, a sua interpretação pode ser completamente diferente da intenção do autor. Por isso, é possível perceber a experiência de forma individual, mas que passa de uma "esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua significação"(2). Por isso, a "experiência experienciada", como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação torna-se pública"(5). Para Ricoeur, por estar no mundo, somos afetados por situações, a partir das quais adquirimos compreensão e precisamos contar sobre isso a outra pessoa, ou seja, temos a experiência para trazer a linguagem.

A noção de texto eleva a palavra, revive o discurso e propicia que ele fale. O discurso se completa quando o leitor lê. É importante ressaltar que, no discurso falado, isto é, a linguagem direta, o autor pode mostrar-se e expor-se. Contudo, no discurso escrito não existe presença do autor, pois não se têm as ações e expressões dos gestos, do olhar. O significado de um texto abre-se para diversos leitores e, conseqüentemente, a muitas interpretações.

Assim, a escrita em relação à fala mostra sempre um distanciamento e revela algo que, na fala, é inicial. Como diz Ricoeur, a escrita "toma lugar da fala", porque procura fixar o discurso. Desse modo, é o discurso que precisa emergir numa forma gráfica, não apenas uma gramática(2). Procura-se firmar a relação entre o acontecimento e a significação que ele traz. Do ponto de vista do filósofo, para se observar o fenômeno tal como ele se revela, é essencial o paradigma do distanciamento na comunicação, isto é, a própria "historicidade da experiência humana(5).

À luz dessa visão, compreender não é somente repetir o discurso por intermédio de outro, mas gerar um novo acontecimento que principia com o texto. Já a interpretação é um episódio especial da compreensão aplicada às expressões escritas da vida. Assim, a interpretação abarca a explicação e a compreensão(5).

DESCRIÇÃO DE UMA PESQUISA DE ENSINO EM ENFERMAGEM FUNDAMENTADA NA FENOMENOLOGIA-HERMENÊUTICA DE PAUL RICOEUR COMO REFERENCIAL METODOLÓGICO

A pesquisa na qual utilizamos a fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico foi realizada em uma Instituição Pública de Ensino Superior no Estado de Santa Catarina. Para obter as descrições experienciais do estudo, optamos pela entrevista gravada, na qual buscamos captar a realidade vivida por meio da fala de 19 docentes-enfermeiros/as do quadro efetivo do Departamento de Enfermagem, de ambos os sexos, envolvidos com discentes em disciplinas teórico-práticas, em todos os semestres do curso e que desejaram participar. Por tratar-se de pesquisa que envolve seres humanos, os docentes-enfermeiros assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com os aspectos éticos instituídos na Resolução n.º 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(6). O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Parecer n.º 241/2006 do Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina.

Importante destacar que, nessa metodologia, a entrevista precisa ser acompanhada da observação das ações dos docentes-enfermeiros, pois assim é possível ouvir para além das suas falas como um dos caminhos para a compreensão dos significados. A linguagem está inserida no corpo e, nesse sentido, supera a dicotomia sujeito-objeto. Observar, aqui, implica ser presença e estar junto ao outro. Nesse sentido, o pesquisador consegue apreender a sua subjetividade e estabelecer com o outro uma relação de proximidade, porque observando o movimento de alguém, não o vejo como um movimento mecânico, mas como um gesto expressivo que nunca é apenas corporal. O gesto fala algo e remete-nos imediatamente à interioridade do sujeito(7). A entrevista possibilita melhor interação com o outro, permitindo abordagens pessoais, a fim de observar um dos caminhos para resgatar o real das vivências do ser humano, uma vez que o pesquisador toma emprestadas as descrições experienciais do entrevistado e reflete sobre elas. Na entrevista foi apresentada uma questão norteadora: o que significa para você a sensibilidade no ensinar e aprender a ser e fazer enfermagem? As entrevistas constituíram-se em exercício de escuta sensível das falas dos entrevistados.

Os entrevistados discorriam livremente sobre essa questão, mas, no decorrer da entrevista, caso fossem necessárias, outras perguntas eram realizadas para clarear o entendimento. Essa maneira possibilitou-nos maior relação e interação com eles e permitiu-nos uma aproximação e a visão mais aberta deste sobre o fenômeno pesquisado em seu próprio local onde se desenvolve o ensino da Enfermagem. Como pesquisadoras, conseguimos aprofundar-nos no mundo vivido permeado de significações das ações, das expressões das relações e interações humanas. Nós apreendemos o outro nele mesmo pela experiência de vê-lo, tocá-lo, ouví-lo e percebê-lo(4).

Para garantir o anonimato, os entrevistados foram identificados pela metáfora de rio. Este é formado pelas águas, nesse caso, elas são as palavras, o discurso, o texto.

O número de docentes-enfermeiros/as que constituíram os sujeitos significativos do estudo foi decidido no transcorrer da coleta de dados, de acordo com o critério de repetição das informações, tendo em vista que essa modalidade não está embasada no quantitativo para garantir sua representatividade. Assim, é difícil estipular previamente quantos sujeitos participarão da pesquisa. Enquanto o pesquisador está realizando o estudo, pode ser que outros sujeitos sejam incluídos(8).

Seguindo o caminho, procuramos manter-nos coerentes com a metodologia que fundamentava a pesquisa, pois observamos que poderíamos organizar as descrições vivenciais. Para tanto, foi necessário revisar os dados empíricos de acordo com a vivência adquirida nas observações do mundo vivido da entrevistadora do estudo. Entretanto, o desafio foi realizá-la criativamente.

Consideramos inicialmente dois momentos: a construção do texto oral e a construção do texto escrito.

Com relação à construção do texto oral, observamos que o ser-docente-enfermeiro/a é consciência de um ser-no-mundo que está cotidianamente aprendendo. Ele observa, pensa, sente, aprende e intenciona compartilhar com o outro a sua vivência em relação ao mundo em que vive, bem como sua maneira de existir. Nesta pesquisa, o diálogo foi viabilizado pela entrevista, o que abriu a possibilidade de chegarmos mais próximas do outro para conhecer a sua vivência. no ensinar e aprender a ser e fazer Enfermagem e os significados da sensibilidade. Além de ouvirmos a fala falante do ser-docente-enfermeiro/a, compreendemos que o fenômeno pode ser observado por suas ações manifestadas em seus gestos e suas expressões. É importante assinalar que, para a entrevista fluir, foi necessário buscar um ambiente no qual o outro se sentisse familiarizado, acolhido e a vontade. O uso do gravador durante toda a entrevista foi imprescindível, pois assim a entrevistadora ficou livre para observar, ouvir e, quando preciso, fazer algumas anotações das observações. Compreendemos que percebemos o fenômeno em perspectivas, por isso não é possível fazê-lo na sua totalidade.

A passagem do texto oral para o escrito faz com que o contexto desapareça. Para evitar o empobrecimento dessa transferência, foi necessário realizarem-se as transcrições das entrevistas, uma por uma. Além disso, após cada transcrição, foram anotadas, na seqüência, as observações realizadas juntamente com as reflexões pessoais após o término das entrevistas. Em seguida, foi preciso ler o texto ouvindo a fala do docente-enfermeiro/a, pois sempre relembramos os seus gestos e as suas expressões.

Na nossa concepção, o que acontece é uma aproximação muito estreita do pesquisador com o texto, para refletir sobre as situações existenciais que emergiram no vivido do outro e, com isso, buscar a compreensão e interpretação do que se esconde na sua experiência.

Após passar o texto oral para o escrito, realizamos os procedimentos da leitura, a identificação dos possíveis sentidos e, por fim, a sensibilidade manifestada.

Procedimentos da leitura

Após a construção do texto escrito, é necessário relacionar a compreensão com as significações. As primeiras impressões podem ser avaliadas, alteradas e aprofundadas com base na estrutura objetiva do texto. Assim, como pesquisadoras, interpretamos os possíveis significados do texto. Mas é importante lembrar que a fenomenologia volta-se à descrição das vivências do entrevistado, e sem preocupação em ter uma explicação para elas. Esse é o momento de organizar o texto, ler atentamente e tantas vezes quantas forem necessárias para depreender os discursos. Assim, é preciso manter uma aproximação do texto para que, como pesquisadoras, seja possível realizar as reflexões acerca das situações existenciais e também para buscar os significados, ou seja, a essência do vivido do outro.

A hermenêutica considera a frase como unidade de análise(5). Por isso, iniciamos a leitura pela frase seguida do parágrafo e, após, o texto como um todo. O significado é constituído em unidades de sentença. Sublinham-se as idéias que estão ligadas de certa forma a uma fundamentação teórica. A leitura do texto é o momento existencial, no qual o pesquisador procura reavivar, tematizar e compreender os significados que o habitam. Durante a leitura, o pesquisador vivencia a sua experiência e nela observa o corpo vivido na intersubjetividade. Esta se mostra nas relações e interações com o outro, pois a ação de cada entrevistado desperta uma reação do outro em determinada situação, a qual cada um vivencia segundo a perspectiva do outro, e reciprocamente.

Identificação dos possíveis sentidos

A busca dos sentidos acontece pela compreensão do texto com a finalidade de nortear o pesquisador. Porém, é necessário perceber a sua visibilidade para encontrar os caminhos, a fim de que possa chegar à compreensão e interpretação do texto. A interpretação hermenêutica é um discurso dialogado entre o texto em sua progressão, o significado e a referência contextual da pesquisa. Por isso, ela só é viável após um aprofundamento da semântica(5). Na pesquisa, é necessário optar por um referencial teórico-filosófico para compreender os significados das falas. A nossa opção foi o referencial existencial de Maurice Merleau-Ponty(7).

A sensibilidade manifesta

Esse momento foi considerado como a última fase da hermenêutica. É um instante no qual o pesquisador necessita ter habilidade para a compreensão do sentido e das imagens projetadas diante do texto ou, como diz Ricoeur, a metáfora. Esta mostra "algo de novo acerca da realidade" atingindo a sua essência e conduzindo a novas possibilidades de articulação como uma rede de significados(2). Então, a sensibilidade manifesta é tornar seu o que antes era desconhecido. Descrever acontece a partir da compreensão das situações da realidade apreendida do vivido do outro.

Da descrição da rede de significados fundamentada na fenomenologia-hermenêutica emergiram três grandes categorias: A primeira, a compreensão do ser-docente-enfermeiro/a acerca da sensibilidade do ser humano e as sub-categorias: percepção de si mesmo como ser-docente-enfermeiro/a; percepção sensível do outro. A segunda, compreensão do ser-docente-enfermeiro/a acerca da sensibilidade nas situações vivenciadas e as sub-categorias: relação docente-discente; relação ser-docente/ser-docente; relação docente-família; relação discente-família; relação docente-enfermeiro/a assistencial. E a terceira, a compreensão do ser-docente-enfermeiro/a acerca da sensibilidade expressa nos Sentimentos e suas categorias: proxemia; distanciamento; ambigüidade.

A pesquisa fundamentada nessas três categorias e suas sub-categorias não apresentaram uma categoria principal ou ordem de prioridade, pois todas foram igualmente consideradas como momentos importantes para se compreender o fenômeno do estudo.

A pesquisa fundamentada no referencial teórico-filosófico-metodológico de Paul Ricoeur acrescenta conhecimentos investigativos nos diversos campos de inserção dos profissionais da enfermagem: no ensino, na pesquisa, na extensão e na assistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa relatada, ao buscar compreender os significados da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro/a no ensinar e aprender a ser e fazer Enfermagem, desenvolve uma hermenêutica fundada na fenomenologia concebendo a ação humana como um dos eixos principais de sua reflexão. A fenomenologia-hermenêutica tem possibilitado compreender os significados que o ser humano atribui à sua existência no mundo da vida e, por meio de sua linguagem, em discursos, chegar à compreensão de suas ações.

O ser humano, ao falar, imprime uma forma de ação porque ele sempre está se referindo ao outro e às coisas do mundo e, para isso, utiliza o contexto. Quando o ser humano fala com o outro produz os discursos. Estes têm sempre uma finalidade e uma orientação social.

O discurso dos entrevistados ao passar do oral ao escrito produziu um texto o qual trouxe um mundo e um modo possível de um ser humano situar-se e orientar-se desvelando a realidade. O pesquisador, pela interpretação do discurso, chega aos aspectos significativos essenciais para a compreensão do ser. Logo, o discurso pode ser um elemento mediador que permite essa compreensão/interpretação, tanto dos processos cognitivos pessoais, quanto dos aspectos sociais e culturais.

O fenômeno da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro/a no ensinar e aprender a ser e fazer Enfermagem pode ser observado como uma pesquisa pautada na fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur. Nessa perspectiva, a metodologia possui caminhos possíveis de aplicação em outras circunstâncias, uma vez que é capaz de elucidar e explicitar o mundo da Enfermagem. Assinalamos que essa metodologia não prescinde de pressupostos teóricos e de um caminho rigoroso para buscar a polissemia da verdade. Adotá-la nas pesquisas de enfermagem de natureza interpretativas, representa a possibilidade para que os pesquisadores/as enfermeiros/as analisem fenômenos no cotidiano do ensino e da saúde, a partir do olhar de quem vivencia. A pesquisa só apresenta relevância no momento em que contribui com outras maneiras de ensinar, de aprender, de pesquisar e de assistir em Enfermagem, como também para fundamentar a responsabilidade social do pesquisador.

Ao mergulharmos no mundo da pesquisa, não poderíamos concluir sem revelar, aqui, o nosso encantamento pela fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur. O pesquisador, ao percorrer o caminho a partir de sua experiência, utilizando esse referencial metodológico, realiza uma reflexão do seu próprio conhecimento e do objeto, estabelecendo uma relação entre eles, pois a vivência é única e se estabelece no diálogo com o outro nas relações e interações. Por isso, o filósofo salienta que o pesquisador precisa ter criatividade.

Artigo recebido em 11/02/2008 e aprovado em 29/08/2008

  • 1. Terra MG. Significados da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro/a no ensinar e aprender a ser e fazer enfermagem à luz da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2007.
  • 2. Ricoeur P. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70; 1976.
  • 3. Lucchese R, Barros S. Pedagogia das competências - um referencial para a transição paradigmática no ensino de enfermagem - uma revisão de literatura. Acta Paul Enferm. 2006;19(1):92-9.
  • 4. Ricoeur P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago; 1978.
  • 5. Ricoeur P. Interpretação e ideologias. 4a. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990.
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  • 8. Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 2003.
  • Autor Correspondente:
    Marlene Gomes Terra
    R. Felipe dos Santos, 97
    Santa Maria - RS - CEP. 97070-340
    E-mail:
  • *
    Extraído da tese de doutorado "Significados da sensibilidade para o ser-docente-enfermeiro(a) no ensinar e aprender a ser e fazer enfermagem à luz da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apoio bolsa PQI/CAPES, Florianópolis (SC), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 2009

    Histórico

    • Recebido
      11 Fev 2008
    • Aceito
      29 Ago 2008
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