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O futuro passado de uma experiência: o lulismo na encruzilhada

Se existe algum consenso sobre o avanço relativo (quando comparado aos governos anteriores), assim como sobre as contradições e limites do chamado “lulismo”, bem menor é o nível de convergência no campo das esquerdas políticas e/ou intelectuais no momento de determinar de forma mais precisa não apenas os contornos do que foi efetivamente feito pelos governos liderados pelo PT, mas sobretudo do que “poderia” ter sido (ou “seria desejável” que fosse) realizado - diagnóstico no qual se mesclam considerações analíticas e político-normativas, a análise do que se fez sendo orientada por uma perspectiva específica sobre aquilo que “deveria” ter sido feito. Pois bem: essa “tensão” - tão inevitável quanto bem-vinda - entre posturas diferentes no âmbito da esquerda em relação à experiência do “lulismo” (de 2003 a 2014) se apresenta de modo notável na coletânea organizada por André Singer e Isabel Loureiro, publicada pela Boitempo Editorial, cujo título é expressivo do que está em questão: As contradições do lulismo: a que ponto chegamos?

A quente, isto é, sob o impacto de um processo ainda em curso, aquele da crise do lulismo, ao menos na sua feição governista, os oito artigos/capítulos do livro analisam, a partir de pesquisas e reflexões desenvolvidas no âmbito do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic-USP), aspectos diversos que, cada qual ao seu modo, são reveladores de algumas das principais características dos governos liderados pelo PT, da política tout court ao sindicalismo, da questão agrária à da pobreza, da esfera pública à crítica cultural, passando pela realidade da periferia paulistana. Renunciando à tentativa de um balanço acabado e definitivo, tarefa aliás impossível, os textos se orientam pela busca de totalizações provisórias, “abertas”, espécies de “registros de mapeamento futuro” (p.13) em meio a um processo cujo desfecho, em termos de longue durée, é ainda imprevisível.

Daí a sensação permanente, pelo leitor, dessa tensão entre posições relativamente diferentes sobre um fenômeno ele próprio dúbio e contraditório, tensão que já se apresenta de maneira saliente na apresentação do livro, redigida pelos organizadores: ao mesmo tempo em que reconhecem os avanços sociais logrados pelo lulismo, Singer e - a crer pelos textos de cada um - sobretudo Loureiro destacam a “extrema ambiguidade” do “ensaio desenvolvimentista tardio”, com sua “incorporação ao consumo desprovido de politização” (p.17) e, poder-se-ia acrescentar, seu apego a uma concepção iluminista de desenvolvimento como medida do “progresso”.

A esse propósito, além do texto de Isabel Loureiro - que aborda com a perspicácia que lhe é usual um dos aspectos mais contestáveis dos governos petistas, a saber: a pouca atenção dispensada às questões agrária e ecológica, questões que se tornaram prementes na prática e nas concepções teóricas do MST, especialmente nos anos 2000 -, os capítulos escritos por André Singer e Ruy Braga, respectivamente e não por acaso os dois primeiros do livro, demarcam duas das linhas-de-força que orientam o debate: a primeira, mais sensível aos avanços e às dificuldades de se avançar mais, e a segunda, “à esquerda do possível”, mais crítica em relação aos limites de uma experiência assentada na conciliação interclassista, agora desarmada em meio ao “retorno da luta de classes”.

Com efeito, se o texto de Singer se dedica à elucidação das dificuldades político-institucionais inescapáveis enfrentadas pelo “ensaio desenvolvimentista” intensificado pelo governo Dilma I e finalmente boicotado pela burguesia industrial - “que a partir de 2012 começa gradualmente a sair da coalização produtivista e passar para a rentista” (p.44) -, dificuldades das quais deu prova entre outras coisas o fracasso do embate dilmista contra o rentismo em torno da taxa de juros, o de Braga enfatiza a incapacidade progressiva dos governos petistas de continuar pacificando os conflitos sociais à medida que se aprofundavam as “tensões entre a regulação política e a acumulação econômica” (p.55), sobretudo a partir de meados de 2013. Especialmente porque a promoção, pelo modo de regulação lulista, do aumento nos níveis de formalização do emprego não apenas não implicou o declínio da precarização, como a estendeu a patamares inéditos, gerando uma sensível quebra de expectativas para trabalhadores doravante formalizados e precários - em mais uma demonstração de como o “moderno”, no país, repõe sob novas bases traços característicos do “atraso”.

Para Singer, responsável por uma interpretação mais positiva do lulismo no âmbito do Cenedic -, em especial se comparada à crítica devastadora de Francisco de Oliveira à “hegemonia às avessas” efetivada pelo PT no poder -, o governo Dilma I levou o lulismo à beira da ruptura com seus moldes conciliatórios, sem porém estimular qualquer mobilização de sua base social a fim de dar suporte ao embate político inevitável. Daí a imagem de pensamento segundo a qual, no final das contas, Dilma “cutucou a onça com varas curtas”. Sem deixar de reconhecer os avanços sociais promovidos pelo lulismo, ao qual atribui inclusive a responsabilidade por uma forma de “revolução passiva à brasileira”, já que teriam sido incorporadas parte das exigências dos “de baixo”, Braga insiste por sua vez na incapacidade dos governos petistas de continuar pacificando - ou passivizando - as classes subalternas: se o lulismo logrou por algum tempo aplastar a luta de classes do centro da cena política, nem por isso os dominados deixaram de resistir à luz dos seus próprios critérios, da sua própria experiência social, como dariam prova a ascensão de movimentos que, de algum modo, vocalizam os anseios do precariado brasileiro contemporâneo, tal qual o MTST.

Elementos mais “específicos” das ambiguidades do projeto posto em marcha pelo lulismo são abordados, a partir da análise dos “de baixo”, nos textos de Leonardo Mello e Silva sobre as “redes sindicais internacionais” como desafio à globalização capitalista, de Carlos Alberto Bello acerca da percepção sobre a pobreza e o Bolsa Família por parte tanto da sociedade em geral quanto dos próprios beneficiários do programa social, e de Cibele Rizek, cujo texto versa sobre as formas de gestão (privatizada) do social na periferia paulistana, levadas a cabo através do modelo de atuação e de captação de recursos das OS notadamente das áreas de saúde e de cultura, num processo em linha com o “novo espírito do capitalismo” que, embora tenha se transformado numa marca indelével dos governos tucanos, não foi substancialmente revertido pelas ações do governo federal controlado pelo PT. O que está em questão, aqui, para além do governo de plantão, é a “fabricação do sujeito neoliberal”, como o definem Pierre Dardot e Christian Laval (2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. ) em A nova razão do mundo, sujeito imbuído de uma nova racionalidade, de um novo modo de (auto) governo dos homens (p.217).

Em seu texto, por sua vez, Wolfgang Leo Maar analisa os condicionantes do processo de “colonização da política pela economia”, processo que, desde sempre presente na história “nacional” - a colônia não sendo mais do que um entreposto comercial-capitalista -, foi intensificado no final da ditadura militar, com a edificação de uma indústria cultural digna do termo no país, e reproduzido no período democrático pela dinâmica permanente de privatização da esfera pública, reduzida à “opinião pública” ou, melhor dizendo, à “opinião publicada”. Na óptica do autor, tal situação sobredetermina a forma assumida pela luta de classes no país, limitando o espaço de possibilidades propício à elaboração de uma socialização alternativa à socialização capitalista, capaz de contribuir para a formação de uma “esfera pública popular-democrática” (p.244). Resta saber o que, de fato, foi feito pelos governos liderados pelo PT para se contrapor a essa situação, uma vez que o autor se concentra sobretudo nas determinações da “luta de classes” que teriam restringido a ação possível dos governos vigentes, por mais “progressistas” que tenham sido as suas intenções originais.

Mesmo porque, de um ponto de vista histórico mais amplo - no qual os impasses atuais do país são observados na sua articulação com aqueles legados pelo passado da ex-colônia, que ressurgem como um “eterno retorno do sempre-igual” -, os próprios governos liderados pelo PT aparecem menos como uma reversão e/ou ruptura do que como um momento de continuidade (de maior sensibilidade social, é bem verdade) de um processo que, desde a ditadura militar - com sua modernização sem integração social, sem ruptura com o imperialismo e com reposição do “atraso” - até o “ornitorrinco” atual de que fala Francisco de Oliveira (2003OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.), demarcou o destino da modernidade capitalista à brasileira. Tal qual nos mostra Maria Elisa Cevasco no último ensaio do livro, caberia (talvez não por acaso) a um crítico literário/cultural como Roberto Schwarz - munido que estava de um enquadramento específico da realidade do país - a tarefa de aquilatar esse percurso histórico-nacional que, após as esperanças na “superação do subdesenvolvimento” via modernização que vigorou até meados dos anos 1960, transformou o país numa verdadeira “vanguarda da desintegração”, após a emergência da “terceira revolução industrial”, o que confere à experiência periférica, por outro lado, uma atualidade “global”.

Como sugerem as reflexões mais recentes de Schwarz (1999SCHWARZ, R. Fim de século. In: Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ), qualquer renovação do pensamento crítico - aí incluído o marxismo, bem entendido - deve passar, necessariamente, pelo abandono das apostas modernizadoras para as quais a superação dos dilemas da nação periférica implicaria na aceleração induzida e orientada do desenvolvimento, junto ao qual viria a tão almejada integração social democrática. Se parece levar a um beco sem saída semelhante àquele atribuído por Habermas aos frankfurtianos da primeira geração, aos quais opôs a panaceia da razão comunicativa, é porque essa constatação crítico-negativa se abstém de sinalizar como deveria ser, contentando-se em ajudar a revelar como não pode mais ser.

Menos como prognóstico ou como petição normativa e maximalista de princípio, quiçá o momento exija então a retomada em termos atualizados do vaticínio proferido pelo então sociólogo marxista crítico Fernando Henrique Cardoso (1972CARDOSO, F. H. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difel, 1972.) em sua tese de livre-docência Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil, defendida em 1963, ou seja, em plena euforia nacional-desenvolvimentista. Para Cardoso, após fazer o inventário daquele grupo social que deveria ser o protagonista do desenvolvimento capitalista moderno no país, isto é, a burguesia industrial, o Brasil estaria “condenado” - com vantagem incontrastável e até segunda ordem para o primeiro polo - à alternativa entre “subcapitalismo ou socialismo”. Se já não é mais possível falar em “subcapitalismo” num país que, bem ou mal, se modernizou e se desenvolveu, permanecem os impasses de uma construção nacional que, após a experiência do reformismo fraco lulista, ainda clama por transformações estruturais cuja efetivação exigirá a confrontação política dos interesses vinculados à autocracia burguesa (Fernandes, 1975FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. ) à brasileira.

Referências

  • CARDOSO, F. H. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difel, 1972.
  • DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
  • OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
  • SCHWARZ, R. Fim de século. In: Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • SINGER, A.; LOUREIRO, I. (Org.) As contradições do lulismo. A que ponto chegamos? São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2018
  • Aceito
    13 Maio 2018
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