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"Novas" violências assolam o cotidiano

"Novas" violências assolam o cotidiano

Assédio Moral. A violência perversa no cotidiano

HIRIGOYEN, Marie-France.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 224p.

Nesse livro notável, Marie-France mostra como se processa um tipo de violência, que considera perversa, no cotidiano de nossas vidas. Permite-nos observar pelo "olho da fechadura" o estabelecimento e a evolução de relações interpessoais caracterizadas pela violência psicológica em diferentes espaços institucionais.

A autora concentra-se na definição e na análise da violência perversa, ou assédio moral, enfatizando que determinados indivíduos podem exercer sobre os outros uma verdadeira e demolidora estratégia de produção de poder, no sentido da dominação, com o objetivo de eliminar aqueles que foram escolhidos como vítimas. Segundo a autora, essa violência emerge como uma estratégia de poder totalitário, pois a dominação que se pretende implica a destruição/anulação do outro diferente.

A análise desses relacionamentos invoca diferentes espaços sócio-institucionais: no mundo do íntimo, a família; no espaço público, a empresa. Na família, a autora analisa a violência perversa no relacionamento entre pais e filhos e entre os casais; na empresa, focaliza o relacionamento entre chefias e subordinados e entre os colegas. Cada relacionamento é discutido teoricamente a partir de casos clínicos. Em três capítulos — "A violência perversa no cotidiano", "A relação perversa e seus protagonistas" e "Conseqüências para a vítima e responsabilidade"— Marie-France coloca a nu o que denomina violência privada (na família) e na empresa, analisa as características psicológicas dos protagonistas do drama (o perverso narcísico e sua vítima) e finalmente mostra as conseqüências desse tipo de relacionamento para as vítimas, orientando sobre as estratégias que podem ser utilizadas para se livrar dessa situação.

O poder, como catalisador das relações interpessoais nos diferentes espaços institucionais, não é discutido pela autora; ele é invocado e se faz presente como um eixo da análise, embora não seja suficientemente problematizado. Entretanto o discurso da autora deixa transparecer a presença de um ethos masculino no exercício do poder totalitário nessas instituições, especialmente no espaço familiar, já que seus exemplos clínicos de vítimas da perversão entre casais são sempre mulheres.

Logo na introdução, a autora alerta para o perigo que pode se esconder nos "encontros" com os semelhantes. Qualquer um de nós pode ser interpelado por um outro que poderá desejar nos destruir psicologicamente e quem sabe fisicamente. Como já foi dito, a autora chama esse processo destrutivo de assédio moral. Considera-o uma forma de violência indireta perante a qual a sociedade ainda permanece "cega". Em função disso, o livro tem o tom forte da denúncia e consegue transmitir, na análise dos protagonistas do drama, um certo maniqueísmo ao apontar a existência na sociedade de indivíduos bons e de indivíduos maus. Há compromisso moral e ético por parte da autora, que sem abandonar a objetividade renuncia à neutralidade, colocando-se explicitamente do lado das vítimas da violência.

A perversão moral que caracterizaria alguns sujeitos é considerada uma patologia. Fica claro que a posse de traços perversos e narcísicos é comum nos indivíduos, tanto quanto comportamentos sintonizados com esses traços são considerados normais em determinadas situações. Mas a perversão moral que distingue o perverso narcísico constitui, segundo a autora, a única forma possível de esse indivíduo se relacionar com o outro.

Uma espécie de predador, animal sedento de sangue, possuidor de uma especial sensibilidade para identificar suas presas, é apresentado como o algoz da relação: o perverso narcísico. A autora reconhece que o termo "perverso" é um tanto perturbador porque tem conotações morais, relativas a metamorfoses do bem em mal, mas aceita essa denominação em função de sua vasta experiência clínica com as vítimas do assédio moral, consideradas pela autora como verdadeiras vítimas, não como cúmplices masoquistas da relação.

Essa visão de uma vítima "realmente existente", e não de cúmplice da relação, a levará posteriormente a rejeitar todo e qualquer dogmatismo terapêutico, colocando-se do lado do ecletismo na escolha das terapias que podem ajudar a vítima a romper com a relação de dominação.

Explicitamente, a vítima constitui o objetivo de sua reflexão, embora ela dedique um espaço relativamente importante ao algoz da relação, visualizado como a encarnação do próprio mal. A autora descreve os perversos narcísicos como indivíduos possuidores de um certo magnetismo, uma espécie de carisma que os tornaria sedutores aos olhos alheios. Mas a imagem que a autora constrói desse tipo de sujeito é verdadeiramente assustadora. Trata-se de alguém que possui o poder de manipular os outros; alguém capaz de se apropriar da vida de outro: sanguessuga, vampiro. Enfim, um ser maligno, "sem vida própria", que para viver precisa da vitalidade e da energia de um outro, tido como puro, vital, afirmativo, e com uma tendência a culpabilizar-se e sentir-se desvalorizado.

Sem ingressar em demasiados detalhes (porque esse não é seu objetivo), a autora admite que o perverso narcísico é alguém que foi negado em sua individualidade, isto é, alguém que foi vitima na infância de um algoz, uma identidade ferida que por não conseguir sentir sua própria dor, inflige sofrimento aos outros.

O personagem Drácula de filme de Coppola, Drácula: Uma historia de amor, evoca essa construção do perverso narcísico, alguém que sofrendo a dor da perda do ser amado (uma relação fundamental) amaldiçoa Deus, metamorfoseando-se num vampiro vingativo e sedento de sangue que vagará pelos tempos fazendo suas vítimas, que consegue atrair porque possui um magnetismo que lhes anula a vontade. O reencontro com sua amada numa outra vida o redimirá de sua maldade, transformando-o num mortal que poderá finalmente descansar em paz. A recuperação do ser amado que evoca uma relação afetiva fundamental o levará à compreensão de sua própria dor.

Assim, tanto o filme de Coppola como o livro de Marie-France relembram que a violência na espécie humana não deriva de instintos animais, "fora de controle", mas de uma terrível dor recalcada, impossível de ser reconhecida pelo indivíduo, de uma violência que lhe foi infligida e que o levou ao limite de sua própria negação. Drácula vaga pelo abismo da eternidade sem poder conter e sem entender seu ódio pelos outros, que se traduz na necessidade de beber-lhes o sangue/vida, condenando-os por sua vez à imortalidade e à maldade, isto é, trazendo-os a seu próprio "inferno". Ele se distingue porque, à diferença dos humanos, o espelho não reflete sua imagem, ele é vácuo. O perverso narcísico de Marie-France procura nos outros sua própria imagem; sua dor é um vácuo existencial que não consegue enfrentar.

O mal e a maldade existem, pois, na sociedade, viabilizados por indivíduos perversos que encontrarão sua redenção ou justificação numa história de vida que os fez também alvo da maldade dos outros. Uma cadeia infernal e interminável de "negados". Mas a autora não se submete às dores dos dráculas do século XXI. Seu alvo serão as vítimas atuais desses relacionamentos.

Para a autora, as vítimas nunca são pessoas frágeis. Muito pelo contrário, não é o déficit do outro que atrai os perversos, mas o inflacionado, as qualidades, o êxito, a beleza, a força, a vitalidade, enfim, o que tem valor positivo na sociedade. A vítima é alguém que pode ser alvo da inveja, que tem algo que o "predador" não possui, mesmo que toda a construção do sentimento que leva à inveja se assente sobre um delírio. Ele investe a vítima de poderes que lhe resultam ameaçadores; não suporta observar o que intui, o que é sua carência, no outro. Mas ele/a não quer possuir as qualidades do outro, simplesmente quer que o outro não as possua, e por isso almeja destruir esse espelho perverso, interpelando no outro aspectos negativos da personalidade. O sentimento que acompanha a inveja nesse caso é o ódio.

A estratégia de poder baseada no exercício da violência psicológica, ou assédio moral, é um processo que começa com uma fase de sedução perversa e que avança a outra de violência manifesta. Sedução, enredamento e controle, ou atração, desestabilização e submissão, são as estratégias violentas empregadas pelos "predadores" para poder destruir finalmente o outro. O prazer do predador é o sofrimento do outro; mas esse outro deve estar à altura, isto é, deve resistir tanto quanto responder às provocações do perverso. A resposta violenta da vítima o enche de regozijo, permite o espelhamento de sua própria maldade.

Talvez a fase mais importante desse processo seja a do enredamento e controle, quando uma verdadeira estratégia de guerra será desenvolvida pelo predador. Ele/a procurará desestabilizar psicologicamente sua vítima para impedi-la de reagir. A forma eficaz para conseguir isso seria a recusa à comunicação. Os não ditos, os silêncios, os gestos, a utilização de outras formas de comunicação que permitem o estabelecimento da ambigüidade, da confusão, serão freqüentes. O objetivo é impedir a reação da vítima, com base na produção de um ambiente confuso, que a leve à incerteza, à insegurança, a dúvidas com relação ao que acontece com o outro e com ela mesma. Deseja que o outro se sinta culpado pela relação, que sinta remorso por suas reações, que serão sempre por ele/a consideradas como "fora de lugar", exageradas, e assim por diante.

Importante mencionar que a autora coloca a nu um mundo de violências subterrâneas, extremamente trágico, porque geralmente invisível. Uma violência geralmente sem sangue, sem marcas visíveis. Humilhação, desvalorização, agressões veladas, subentendidos, um caminho que conduzirá a vítima a uma crise de identidade e à doença.

Podemo-nos perguntar, entretanto, se essa análise do assedio moral, de seus protagonistas e dos contextos sócio-institucionais não exigiria uma contextualização histórica e cultural mais apropriada. É certo que a autora parece tentar suprir essa carência estabelecendo mediações, que podem ser tidas como insatisfatórias, entre o excesso de individualismo identificado na sociedade atual e o estabelecimento desse tipo de relações, ou talvez mais, a tolerância para com esse tipo de violência, que existe atualmente nas empresas, devido a fenômenos como o desemprego, que geram medo nos trabalhadores e nas trabalhadoras, que por isso se submetem ou se transformam em cúmplices do algoz. Enfim, breves referencias são feitas a aspectos sócio-econômicos, culturais etc. Mas não se constroem mediações entre esses fenômenos psicológicos e o tipo de sociedade que os acompanha. É como se a subjetividade, seja a do algoz, seja a da vítima, não fosse construída num espaço histórico singular. É por isso que a autora não consegue explicar porque, na relação de casais, geralmente as vítimas são as mulheres. Ela não enfrenta o fato gritante de que a perversão narcísica masculina acontece numa sociedade em que prevalecem os valores do machismo, ou mais ainda, em que os machistas se vêem cada vez mais acuados perante a superioridade mostrada pelas mulheres em muitos dos espaços sociais. A negação do outro, o desconhecimento de sua diferença, tem uma base valorativa. No caso dos valores machistas, sua interiorização leva à negação do outro, à desvalorização, à humilhação, a uma espécie de anulação — um comportamento socialmente construído há até pouco tempo bem aceito.

O machista pode ser considerado um perverso narcísico? Ou, o quanto, ou como, os valores machistas reforçam ou possibilitam o surgimento dessa patologia? O quanto os atributos ditos femininos transformam as mulheres em presas fáceis dos perversos? Qual a mediação que existe entre, de um lado, a relação de dominação/poder que os homens estabelecem com as mulheres, e que é social e culturalmente construída, e, de outro, a violência perversa entre casais? Qual a relação entre a emancipação feminina, no sentido da produção de novos valores e atributos, e a violência perversa do homem com relação à mulher?

Outras interrogações se impõem. Há sociedades caracterizadas pela perversão narcísica, isto é, que negam as diferenças individuais, cujas instituições permitem a manipulação, a mentira, que levam a população a confusão, à ambigüidade, impedindo a reação à violência infligida? Há sociedades em que esses processos são mais explícitos, ocorrem com maior freqüência?

Enfim, o livro de Marie-France é fundamental pelos menos por duas razões. Primeiro porque desnuda com maestria o universo quase invisível da violência psicológica nas instituições, num momento histórico em que o incremento de outros tipos de violência na sociedade ocupa a atenção tanto de cientistas quanto de políticos, introduzindo assim uma nova agenda nas discussões. Segundo porque estimula a refletir sobre a violência psicológica nas organizações do mundo do trabalho e sua relação com as novas formas de gestão do trabalho, uma questão da maior importância para os administradores preocupados com a gestão dos recursos humanos nas empresas.

ANALÍA SORIA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2002
  • Data do Fascículo
    2001
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