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MARTIN, Nastassja 2021. Escute as feras. São Paulo: Editora 34. 106 pp.

MARTIN, Nastassja. 2021. Escute as feras. São Paulo: Editora 34. 106 pp.

Notas de campo costumam não sair à luz quando apresentamos os resultados finais das nossas pesquisas, especialmente aqueles fragmentos nos quais nossa subjetividade, nossos medos e desejos afloram livres sem censura. Os sofrimentos psíquicos, físicos, as fortes emoções e o assombro dos sonhos fazem parte da obra de Nastassja Martin; porém esses elementos, tão presentes em Escute as Feras (Croire aux fauves), não fazem dele um diário de campo no sentido estrito. Inicialmente as notas de campo da autora se dividiam entre o caderno diurno para descrições objetivas, diálogos e transcrições, e o caderno preto, virado para dentro, usado à noite para conteúdos mais íntimos e subjetivos, oníricos e fragmentários. O livro é a união de ambas as perspectivas e tira da marginalidade editorial o famigerado diário de campo.

É difícil definir um gênero para o livro de Martin. Ainda que tenha começado como um diário de campo, sua sublime elaboração o coloca mais perto da literatura, ou talvez algo entre etnografia, literatura e relato autobiográfico. Essa mistura faz dele uma bela e sensível peça de reflexão, deleite e agonia na tentativa de compreender as trajetórias dos mundos que se entrelaçam, não sem se chocar, quando a antropóloga francesa é atacada por um urso siberiano na Floresta de Tvaián, nas montanhas de Kamtchátca. Depois do “acontecimento urso”, que atravessa as fronteiras corporais, psíquicas e culturais da autora, o caderno preto deixou de existir, ele se derramou, em palavras de Martin, pelos outros cadernos, acabando com a dualidade dentro/fora que a compunham para poder fabricar uma história polifônica tecida com os inúmeros fios que fizeram aquela experiência de campo ser tão densamente pessoal.

O encontro entre a antropóloga e o urso é a atualização do tempo mítico em carne própria; a experiência é tão liminar que é encarada por Nastassja como um nascimento, assistido por parteiras desse lado e doutores de jaleco branco deste outro lado. Tamanha saga torna seu corpo, literalmente, um campo de batalha dos saberes do cuidado. A quase morte é então um parto, o umbral que lhe permite explorar um dolorido caminho de autoconhecimento em intenso diálogo com as formas de ver e entender o mundo dos povos animistas do extremo Leste da Rússia como os evens e os gwich’in do Alaska. No processo, os sonhos cumprem um papel mediador, mas de interpretação esquiva e misteriosa, pois a revelação nunca é completa como nos velhos oráculos; os sonhos são o canal de comunicação escolhido pelos espíritos dos animais. A repetitiva presença onírica do urso vale a Nastassja seu nome em even, mátukha, que significa ursa.

Procurando entender o próprio e difícil caminho de ser e estar num mundo que se desmorona dentro e fora, simultaneamente, a antropóloga se embrenha na fatídica expedição ao encontro do sonho que a persegue. Desenha-se assim a escolha mútua, o urso a perseguia, mas ela também o perseguia. É na descida do vulcão Kámien, no maciço de Kliútchevskoi, que o encontro se consuma. É uma luta, ninguém ganha, mas também ninguém morre, cada um, urso e mulher, perdeu um pouco de si e ficou com um tanto do outro. O combate foi uma troca simétrica não apenas de ferimentos, mas de olhares espelhados e mútuos reconhecimentos.

Do ponto de vista nativo, ao ver os olhos da Nastassja, o urso viu o reflexo da sua própria alma, é por isso que ursos não suportam ver os olhos dos humanos. Naquele beijo que lhe fraturou o osso do maxilar, a antropóloga é marcada pelo urso. E na defesa, o urso é ferido pela mulher com um golpe de picareta. Ela também foi a fera do urso. Então ela devém miêdka, o que significa que daí para frente ela é metade humana, metade urso, e que os sonhos dela passaram a ser também os sonhos do urso. O produto dessa hibridação é um perigoso tabu para alguns, afinal, não foi apenas a face da mulher a que foi metamorfoseada e subvertida, foi a sua própria identidade; de longe se trata de qualquer acontecimento.

O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontraram e as fronteiras entre os mundos implode. Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça. É também o tempo do mito que encontra a realidade: o outrora que encontra o atual; o sonho que encontra o encarnado. A cena acontece nos dias de hoje, mas poderia muito bem ter acontecido há mil anos. Somos apenas eu e esse urso no mundo contemporâneo, indiferente às nossas ínfimas trajetórias pessoais; mas é também o confronto arquetípico, é o homem cambaleante com o sexo ereto diante do bisão ferido no poço de Lascaux ( :97 MARTIN, Nastassja 2021. Escute as feras. São Paulo: Editora 34. 106 pp ).

Muito mais que o gastado clichê sobre como o campo transforma o pesquisador, Escute as feras é sobre levar até as últimas consequências ser afetado pelo campo através de uma experiência radical. Estarmos lendo sobre ela é consequência dessa afetação, escrever foi o resultado, mas também parte da travessia de cura. Ser afetado não se trata de uma operação de conhecimento por empatia, como nos lembra Favret-Saada (1990)FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Afecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8:3-9. Tradução de Paula Siqueira. Disponível em Cadernos de Campo, #13:155-161, 2005. , mas de estar, de fato, no lugar do nativo bombardeado por intensidades específicas e experimentando no próprio corpo afetos que se expressam sem precisar da comunicação verbal. Sonhar é a prova máxima da afetação. É pelos sonhos de Nastassja que Dária, a nativa anfitriã, percebe as perturbações que as profundezas do tempo onírico acometem a antropóloga, o urso a escolheu e Dária o sabe.

Seguindo com Favret-Saada, ser afetado é conceder estatuto epistemológico a situações de comunicação não verbal involuntária e não intencional, mas também significa não ceder ao jogo da representação nem à mera simbologia como ferramentas de compreensão do dito mundo natural e dos não humanos, o que implica mais crer do que escutar. Se, por um lado, o imperativo embutido no “Escute” bem pode se referir à urgência de escutar o que as forças da natureza têm a dizer, a ação posta como ordem foge da tradução do verbo croire em francês que se define por considerar algo como verdadeiro. Sem provas visíveis para todos, crer é ter certeza na existência de algo porque teve efeito em nós.

Abro meu caderno preto, fico rabiscando até o dia nascer. Nessa noite, escrevo que é preciso acreditar nas feras, nos seus silêncios, em seu comedimento; acreditar nos sinais de alerta, nas paredes brancas e nuas, nos lençóis amarelos desse quarto de hospital; acreditar no retraimento que trabalha o corpo e a alma num não lugar que conserva sua neutralidade e sua indiferença, sua transversalidade ( :53 MARTIN, Nastassja 2021. Escute as feras. São Paulo: Editora 34. 106 pp ).

O efeito do espelho é também a indagação impossível sobre esse outro, o urso ferido com sua trajetória, motivos e desejos no mundo; e que não deveria mais ser reduzido à lógica predatória, nem a um ator secundário, nem muito menos a mero reflexo do estado do espírito humano. Afinal, ainda que o ponto de vista do urso seja inacessível para muitos, nem tudo pode seguir girando em torno dos humanos.

Martin explora a fundo a reviravolta da viagem de campo, que na busca do outro termina no mergulho dentro de si. Sem comiseração, ela é levada a explorar os aspectos profundos da sua dimensão emocional comocionada por interrogantes que buscam alguma resposta no retorno à Floresta de Tvaián. Para ela a cura deve ocorrer perto da floresta e daqueles que entendem as forças em jogo. O isolamento a deixa revisitar memórias e produzir inevitáveis comparações culturais e questionamentos vertiginosos sobre a alteridade, o humano e o natural.

É no silêncio que se pode voltar a sonhar. Foi assim que fizeram os evens após o colapso da URSS, se distanciar da civilização e voltar à floresta para permitir o florescimento dos sonhos e assim atualizar o tempo mítico. A viagem de Nastassja é motivada pelo querer estar perto daqueles que creem nas forças da natureza e sabem que elas não apenas sentem, como também agem. Trata-se de um mundo onde todos os seres escutam, observam, lembram e onde sonhar não é privilégio humano. Tal entendimento propõe o estabelecimento de outras fronteiras, menos inteligíveis, mas que mantêm a promessa da vida íntegra respeitando seus ciclos e ritmos. Não em vão os capítulos do livro são as estações que ecoam nos estados da alma da autora. O livro não deixa de ser um tributo ao animismo que, comprometido com a vida, questiona a cosmologia do antropocentrismo. É também uma denuncia dos desejos de controle operacional e utilitarista do mundo aplicados por qualquer regime, que empenhado em homogeneizar e disciplinar a natureza, reduz a sua esplendorosa e caótica complexidade para produzir e otimizar apenas ganâncias. Escute as feras é o tipo de livro que o leitor devora, não sem antes ser devorado por ele.

Referências

  • MARTIN, Nastassja 2021. Escute as feras. São Paulo: Editora 34. 106 pp
  • FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Afecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8:3-9. Tradução de Paula Siqueira. Disponível em Cadernos de Campo, #13:155-161, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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