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TRABALHO E SOFRIMENTO: DESAFIOS DA SAÚDE MENTAL DE PROFISSIONAIS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

TRABAJO Y SUFRIMIENTO: DESAFÍOS DE LA SALUD MENTAL DE PROFESIONALES DE LA ASISTENCIA SOCIAL

RESUMO.

Esta pesquisa teve como objetivo investigar a saúde mental da equipe de funcionários do Centro de Referência e Assistência Social (CREAS) de Corumbá-MS, no ano de 2014. Adotou-se a abordagem teórico-metodológica da psicodinâmica do trabalho para abordar as vivências de prazer e sofrimento no trabalho, partindo da hipótese de que o atendimento aos indivíduos em situação de vulnerabilidade e violação de direitos exige investimento cognitivo e emocional excessivo, gerando sofrimento e desgaste psíquico. Participaram dez profissionais do CREAS, com escolaridade de nível fundamental e superior, os quais foram submetidos a dez encontros de entrevista coletiva, que tiveram como proposta a discussão e a análise das condições, da organização e das relações no trabalho, o reconhecimento e a valorização, e os sentimentos gerados diante dos casos de violência. Verificou-se que as vivências de sofrimento foram atribuídas à falta de estrutura e equipamentos, sobrecarga de trabalho pela demanda advinda de outras instituições, decorrendo em sentimentos de angústia, impotência, tristeza e desvalorização profissional. O prazer no trabalho foi constatado pela valorização por parte dos usuários e identificação com o trabalho social. Foi possível concluir que o trabalho com a violação dos direitos afeta as relações sociais e pessoais dos trabalhadores, pois a discrepância entre o prescrito (concepção) e o real (execução) demonstrou reações de angústia, choro, tristeza, impotência e pensamento negativo.

Palavras-chave:
Saúde mental; situações de violência; funcionários do CREAS

RESUMEN.

Esta investigación tuvo como objetivo investigar la salud mental del personal del Centro de Referencia y Asistencia Social (CREAS) en Corumbá-MS en el año 2014. Se adoptó la psicodinámica del trabajo y el estudio se centró en las experiencias de placer y sufrimiento en el trabajo, partiendo de la hipótesis de que el cuidado de personas en situaciones vulnerables y de violación de sus derechos requiere una sobreinversión cognitiva y emocional, causando sufrimiento y desgaste psíquico. Diez categorías profesionales del CREAS participaron de las reuniones, que tenían educación primaria y superior, y se sometieron a diez sesiones de entrevista colectiva, que siguieron las cuestiones de debate: condiciones, organización y relaciones laborales, reconocimiento y aprecio y sentimientos generados en casos de violencia. Se encontró que las experiencias de sufrimiento se atribuían a la falta de infraestructura y aparato y a la carga de trabajo exigida por otras instituciones, surgiendo sentimientos de ansiedad, desamparo, tristeza y devaluación profesional. El placer en el trabajo fue observado por la apreciación por el trabajo realizado por los usuarios y la identificación con el trabajo social. Llegamos a la conclusión de que el trabajo con la violación de los derechos afecta a los trabajadores sociales y las relaciones personales, ya que la discrepancia entre el prescrito y la realidad (aplicación) mostró reacciones de ansiedad, lágrimas, tristeza, impotencia y pensamiento negativo.

Palabras-clave:
Salud mental; situaciones de violencia; funcionarios CREAS

ABSTRACT.

This research aimed to investigate the staff mental health at the Specialized Reference Center for Social Assistance (CREAS), Corumbá, State of Mato Grosso do Sul, in 2014. For this, we adopted the theoretical-methodological approach of work psychodynamics to focus on the experiences of pleasure and suffering at work, starting from the hypothesis that the care of individuals in vulnerable situations and violation of rights requires a cognitive and emotional over-investment, causing suffering and psychic wear. Ten professionals of CREAS with elementary and higher education participated in ten meetings for collective interview, which proposed the following questions for discussion and analysis: conditions, organization and labor relations, recognition and valuation, and feelings generated on cases of violence. The experiences of suffering were attributed to lack of infrastructure and equipment, the work overload caused by the demand from other institutions, leading to feelings of anguish, helplessness, sadness and professional devaluation. The pleasure at work was observed by the appreciation for the work done on the part of the users and identification with social work. We concluded that working with the violation of rights affects social and personal relationships of workers, as the discrepancy between prescribed (design) and the actual (implementation) showed reactions of anguish, tearfulness, sadness, helplessness and negative thinking.

Keywords:
Mental health; violence situations; employees of CREAS

Introdução

As pesquisas no Brasil voltadas para o trabalho realizado junto a grupos e pessoas que sofreram ou que estão ameaçadas de sofrer algum tipo de violência geralmente referem-se a intervenções e atendimentos às vítimas, colocando em evidência as condições psicossociais dos que necessitam e buscam auxílio, tanto em organizações não governamentais como nas instituições públicas (Oliveira, 201725. Oliveira V. R. (2017). Atendimento psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no município de Canoas/RS: Redefinindo fluxos de atendimento. Trabalho de Conclusão de Especialização em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Recuperado em 20 de novembro, 2017, de < Recuperado em 20 de novembro, 2017, de http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/163935?show=full >
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; Barbiani, 20162. Barbiani R. (2016). Violação de direitos de crianças e adolescentes no Brasil: interfaces com a política de saúde. Revista Saúde Debate, 40(109), 200-211. doi: 10.1590/0103-1104201610916
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; Faraj & Siqueira, 201212. Faraj S. P., & Siqueira A. C. (2012). O atendimento e a rede de proteção da criança e do adolescente vítima de violência sexual na perspectiva dos profissionais do Creas. Barbarói, 37(2), 67-87. doi: 10.1590/0104-0707201500004580014
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; Neves, Castro, Hayeck, & Cury, 201024. Neves A. S., Castro G. B., Hayeck C. M., & Cury D. G. (2010). Abuso sexual contra a criança e ao adolescente: reflexões interdisciplinares. Revista Temas Psicologia, 18(1), 99-111.). Entretanto, pouca atenção ainda tem sido dada ao sofrimento psíquico vivenciado pelos profissionais que atendem violações de direitos, como é o caso dos trabalhadores dos CREAS.

Mantido pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com repasse de verbas das três esferas políticas (municipal, estadual e federal) (Brasil, 20113. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social (2011). Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Brasília: Gráfica e Editora Brasil Ltda.), o CREAS consiste em uma unidade pública e estatal que oferece serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (lei n. 12.435, 201114. Lei nº 12.435 de 6 de julho de 2011. (2011, 7 julho). Altera a Lei nº 8.742, de 7 de Dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. (Seção II das Diretrizes). Diário Oficial da União, Brasília.), que atende aos que necessitam de Proteção Social Especial (PSE) de média e alta complexidade, como nos casos de abandono, negligência, usuários de drogas, pessoas em situação de rua, abuso sexual, trabalho infantil, discriminados em decorrência da sua orientação sexual e/ou raça/etnia, vítimas do tráfico de pessoas e adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Para lidar com essas situações, o CREAS oferece diferentes programas, dentre eles o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi); o Serviço Especializado em Abordagem Social; o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e o de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC); o Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias (Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, 2013) que funcionam em interface com a Rede de Instituições, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o Ministério Público, o Conselho Tutelar e o Centro de Referência e Assistência Social (CRAS).

Segundo a Secretaria da Assistência Social (Brasil, 2011), eixos norteadores devem ser seguidos na gestão do CREAS e no desenvolvimento do trabalho social frente aos casos de violações de direitos perpetradas por familiares ou por membros da sociedade, os quais definem que seu funcionamento se dê em rede, a fim de possibilitar o acesso dos indivíduos aos seus direitos e benefícios; que sejam efetuadas ações preventivas junto às famílias, por estas serem constituídas por relações contraditórias de proteção e violência; e que o atendimento ocorra de maneira especializada e qualificada, para proporcionar o fortalecimento dos laços familiares e o empoderamento dos que se encontram em situação de vulnerabilidade. Ainda, para o desenvolvimento das ações, devem ser consideradas as características do território de atuação, uma vez que diversos fatores podem contribuir para o aumento e a exposição às situações de violência. Dessa forma, os registros realizados são de fundamental importância para o conhecimento social, cultural, geográfico e ocupacional da população e das ameaças, danos, vítimas e vulnerabilidades existentes em cada lugar, de forma a proporcionar análises sobre os principais riscos e possibilidades de intervenção, bem como para definir a necessidade de outra unidade na localidade, de acordo com a demanda atendida.

A unidade investigada localizava-se em um município brasileiro de fronteira internacional, permeado por um rio e seus afluentes, o que determinava a realização de atendimentos não somente à população residente na zona urbana, como também à população ribeirinha e pessoas do país vizinho. Ao acolher denúncias encaminhadas pelo disk 100, pela justiça, por interesse da própria vítima ou por solicitação de outras instituições, recebia uma alta e diversificada demanda, por vezes relacionada a questões de ilegalidade e narcotráfico, exploração sexual de crianças e adolescentes, cárcere privado, tráfico de pessoas (principalmente mulheres e crianças), dentre outras formas de violação de direitos. Em termos quantitativos, entre janeiro e outubro de 2014, a instituição contabilizou 114 atendimentos de casos de exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes e 108 de negligência e abuso financeiro ao idoso, demonstrando a variação das ocorrências e os diversos tipos de atuação necessários por parte dos profissionais.

Durante a realização do estudo, a equipe era composta por 15 profissionais, entre psicólogos, pedagogos, assistentes sociais e auxiliares administrativos, e desenvolvia atividades especializadas voltadas para a garantia da segurança socioassistencial, por meio de escuta psicológica, acompanhamento jurídico, pedagógico, e de concessão de benefícios da assistência junto às famílias de crianças, adolescentes, idosos e cidadãos em situação de vulnerabilidade.

Em consonância com uma avaliação crítica da realidade, o profissional da assistência social deve ser capaz de garantir que os direitos humanos sejam respeitados, com práticas e intervenções fecundas, fundamentadas politicamente e cientificamente, conectadas com a transformação da realidade (Iamamoto, 201213. Iamamoto M. V. (2012). Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional (22a ed.). São Paulo: Cortez.). Para além do conteúdo técnico, o trabalho social exige a disponibilidade afetiva, que pode trazer desgaste emocional aos que atendem casos de violência contra crianças, como visto na pesquisa de Correa, Labronici & Trigueiro (20095. Correa M. E. C., Labronici L. M., & Trigueiro T. H. (2009). Sentir-se impotente: um sentimento expresso por cuidadores de vítimas de violência sexual. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 17(3), 289-94.), que ao estudarem enfermeiros constataram vivências de angústia, tristeza e sensação de impotência, indicando a necessidade de capacitação e acolhimento para elaboração dos sentimentos decorrentes do trabalho.

Lopes (201715. Lopes C. S. (2017). Os trabalhadores do CREAS: entre o compromisso e a angústia. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Taubaté, Taubaté, SP.) pontua que ao sofrimento decorrente do contato direto com situações de violação de direitos e de vulnerabilidade social soma-se a falta de recursos e de pessoal, gerando angústia e frustação para conseguirem realizar seu trabalho. Também Santos (201726. Santos M. P. (2017). As dimensões prático- formativas do Serviço-Social no contexto do CREAS. In Restauração conservadora e novas resistências, Anais, 5º Encontro Internacional de Política Social e 12º Encontro Nacional de Política Social, Vitória: Programa de Pós-Graduação em Política Social/CCJE. Recuperado em 15 dezembro, 2017, de Recuperado em 15 dezembro, 2017, de http://periodicos.ufes.br/EINPS/article/view/16407/11275
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) identificou em uma unidade do CREAS um cenário de precarizações que acarretavam insatisfação, insegurança e sofrimento psíquico.

Dada a importância do trabalho efetuado pela assistência social e do sofrimento que atravessa a prática cotidiana no CREAS, entende-se que a saúde mental dos profissionais que lidam com violência mereça maior atenção. Com isso, este estudo discutiu os principais aspectos referentes ao sofrimento vivenciado pelos profissionais de uma unidade do CREAS, e analisou os subterfúgios utilizados frente às situações adversas em seu contexto laboral, sob a ótica da psicodinâmica do trabalho.

Conceitos norteadores da psicodinâmica do trabalho

O processo de sofrimento psíquico, advindo do mundo do trabalho, tem sido pesquisado pela psicodinâmica do trabalho (PDT) desde a década de 1980, principalmente pelo médico francês Christophe Dejours8. Dejours C. (2015). A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho (6a ed.). São Paulo: Cortez-Oboré.. Essa abordagem considera diferentes fatores relevantes no processo de saúde mental, como questões relacionadas ao reconhecimento no ambiente de trabalho, identidade, sofrimento e possibilidade de sublimação como estratégia de enfrentamento, ressonância simbólica, mobilização subjetiva, vivências de prazer e ressignificação do sofrimento (Dejours7. Dejours C. (2011). Ativismo profissional: masoquismo, compulsividade ou alteração. In S. Lancman & L. I. Sznelwar (Orgs.), Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho (pp. 193-216). Rio de Janeiro: Fiocruz. Brasília: Paralelo 15., Abdouchelli10. Dejours C., Abdoucheli E., & Jayet C. (2011). Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. (M. I. S. Betiol, Trad.). São Paulo: Atlas., & Janet, 2011; Bueno & Macedo, 20124. Bueno M., & Macêdo K. B. (2012). A Clínica psicodinâmica do trabalho: de Dejours às pesquisas brasileiras. Revista Ecos. Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 2(2): 306-318.).

A psicodinâmica do trabalho considera que vários fatores influenciam no alcance do equilíbrio psíquico, sendo o contexto laboral constituído pela organização e condições de trabalho, e por relações sociolaborais (Mendes,200716. Mendes A. M. (2007). Pesquisa em psicodinâmica: a clínica do trabalho. In A. M. Mendes (Org.), Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas (pp. 65-88). São Paulo: Casa do Psicólogo.). As condições de trabalho envolvem as pressões físicas e mecânicas do ambiente (como os instrumentos, equipamentos, matéria-prima, suporte organizacional e políticas de remuneração), e podem ocasionar doenças somáticas, desgaste e envelhecimento, ou mesmo originar doenças físicas. Já a organização do trabalho é composta pela divisão de tarefas, tempo, ritmo, prazos e tipos de pressão, controle, características e conteúdo da tarefa, o que influencia o funcionamento psíquico do sujeito (Dejours et al., 201111. Dejours C., & Gernet I. (2011). Trabalho, subjetividade e confiança. In L. I. Sznelwar, J. M. Leite & W. P. Bruno (Orgs.), Saúde dos bancários (pp. 33-42). São Paulo: Publisher Brasil/ Gráfica Atitude.). As relações socioprofissionais são estabelecidas entre trabalhadores e chefias imediatas e/ou superiores, usuários e membros da própria equipe, e consistem em um dos principais elementos para garantir a saúde psíquica. É a partir da dinâmica de reconhecimento da contribuição, da criatividade, da inteligência e do saber-fazer por parte dos pares que o indivíduo alicerça sua identidade e se sente integrado ao coletivo, o que contribui para a realização e o crescimento ocupacional (Augusto, Freitas, & Mendes, 20141. Augusto M., Freitas L. G., & Mendes A. M. (2014). Vivências de prazer e sofrimento no trabalho de profissionais de uma fundação pública de pesquisa. Psicologia em Revista (Online), 20(1), 33-55. doi: 10.5752/P.1678-9523.2014V20N1P34
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).

É na distância entre as normas e regras previstas e o modo de trabalhar na realidade que a possibilidade de reconhecimento acontece, já que a organização nunca é capaz de contemplar a totalidade do trabalho vivo, que inclui o zelo, as transações, bem como o uso de processos cognitivos e emocionais. De acordo com Dejours (201111. Dejours C., & Gernet I. (2011). Trabalho, subjetividade e confiança. In L. I. Sznelwar, J. M. Leite & W. P. Bruno (Orgs.), Saúde dos bancários (pp. 33-42). São Paulo: Publisher Brasil/ Gráfica Atitude.), a distância entre o prescrito e o real na situação laboral consiste em fonte de sofrimento que nem sempre trará um destino patogênico ao trabalhador, pois dependendo de como este lidará com a realidade e com as dificuldades impostas, será possível o exercício livre de sua inteligência e habilidades na resolução de problemas e situações não previstas pela organização do trabalho. Quando esta atuação é reconhecida pelo coletivo, é possível alicerçar a identidade profissional e vivenciar prazer no trabalho. Mendes e Cruz (200418. Mendes A. M., & Cruz R. M. (2004). Trabalho e saúde no contexto organizacional: algumas vicissitudes teóricas. In A. Tamayo (Org.), Cultura e saúde nas organizações (pp. 39-55). Porto Alegre: Artmed.) ressaltam que se manter saudável não implica na ausência de sofrimento, mas na reação frente à situação, de acordo com as possibilidades internas e externas para transformar e ressignificar o sofrimento, por meio da tomada de consciência das suas causas, conflitos e frustrações. Assim, a identificação subjetiva com o trabalho pressupõe que a atividade tenha sentido gratificante para o sujeito na forma de retribuição simbólica, que, ao fazer uso da sua personalidade e inteligência, confronta a realidade subjetiva do trabalho e encontra formas de transformar o seu sofrimento em algo que seja positivo, pressupondo um investimento sublimatório que se denomina sofrimento criativo.

As estratégias de mobilização subjetiva favorecem a saúde mental ao permitirem a ressignificação do sofrimento por meio da transformação das situações de trabalho, pois o uso da inteligência prática pressupõe a transgressão do trabalho prescrito que, a partir do reconhecimento pessoal pelo grupo e da cooperação, possibilita o desenvolvimento da organização do trabalho em direção da confiança e solidariedade do grupo (Mendes & Duarte, 201319. Mendes A. M., & Duarte F. S. (2013). Mobilização subjetiva. In F. O. Vieira, A. M. Mendes & A. R. C. Merlo (Orgs.), Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho (pp. 259-262). Curitiba: Juruá .). Já o sofrimento patogênico é desenvolvido a partir do momento em que o trabalhador não possui liberdade para atuar e transformar sua realidade laboral e utiliza-se de estratégias defensivas para conseguir se adaptar ao trabalho, as quais são alienantes ao trabalhador. Alienar-se, nesse sentido, significa que o trabalhador bloqueia o total conhecimento do seu fazer por meio dessas estratégias defensivas que obstruem o desenvolvimento da sua conscientização no trabalho. De acordo com Mendes e Morrone (201217. Mendes A. M., & Araújo L. K. R. (2012). Clínica psicodinâmica do trabalho: o sujeito em ação. Curitiba: Juruá.), os sujeitos lançam mão de determinadas estratégias de defesa para dar conta daquela realidade vivenciada, recusando-a, racionalizando, brincando, tornando-se mais veloz, fugindo dos roteiros ou inovando expressões verbais.

Método

Tratou-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, realizada com a equipe multiprofissional de um CREAS, situado no interior do Mato Grosso do Sul, no ano de 2014. A proposta da pesquisa-ação por meio da Clínica Psicodinâmica do Trabalho surgiu a partir da elaboração do diagnóstico organizacional na instituição, em que a equipe expôs a necessidade de um momento de escuta acerca do sofrimento no trabalho. Este método tem o intuito de atuar nos processos subjetivos das relações laborais, proporcionando um ambiente de emancipação e reconstrução coletiva a partir da reflexão do fazer, da compreensão e análise da organização do trabalho diante das estratégias defensivas usadas frente ao sofrimento laboral (Mendes & Vieira, 201421. Mendes A. M., & Vieira F. O. (2014). Diálogos entre a psicodinâmica e clínica do trabalho e os estudos sobre coletivos de trabalho e práticas organizacionais. Farol Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1,103-143. doi: 10.25113/farol.v1i1.2608
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).

De acordo com Dejours (20046. Dejours C. (2004). Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, 14(3), 27-34. doi:10.1590/S0103-65132004000300004
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, p. 28), a metodologia da psicodinâmica do trabalho é “uma disciplina clínica que se apoia na descrição e no conhecimento das relações entre trabalho e saúde mental”. Assim, enquanto clínica do trabalho, este estudo tem por objetivo levantar dados sobre o sofrimento psíquico e as estratégias de enfrentamento utilizadas pelos trabalhadores para lidarem com os aspectos geradores de sofrimento (Dejours, 2004), os quais foram possíveis de serem acessados a partir da escuta e da fala dos participantes, pois a psicodinâmica salienta que é pela palavra que os trabalhadores são capazes de nomear seu sofrimento e se conscientizar para ações mobilizadoras, de forma a superar e transformar o sofrimento patogênico em criativo e promover sua saúde mental.

Participantes

Participaram dez trabalhadores de diferentes categorias profissionais, sendo três psicólogas, dois técnicos administrativos, três assistentes sociais e dois educadores sociais. O grupo foi construído a partir da demanda institucional e de acordo com o interesse e disponibilidade de horários de cada trabalhador. Para isso foi realizada uma reunião com a equipe para o detalhamento dos objetivos e método da pesquisa, momento em que foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram agendados os encontros, conforme a disponibilidade da instituição e dos atendimentos e compromissos dos trabalhadores. A pesquisa teve a aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em 11/08/2014, sob nº 32445314.8.0000.0021.

Instrumentos

Para levantamento de dados, os participantes responderam a um questionário sociodemográfico e ocupacional, contendo perguntas como idade, sexo, escolaridade, formação e capacitação profissional, acidentes de trabalho, especialização e remuneração. Foram também realizadas dez sessões de entrevistas coletivas semiestruturadas, norteadas por tópicos-guias, partindo das reflexões produzidas em cada encontro. Os encontros foram realizados numa sala de reuniões do CREAS, no período de julho a outubro de 2014.

Questões norteadoras de cada encontro

1º encontro: participaram dez profissionais e o encontro foi norteado a partir das discussões sobre a importância do desenvolvimento da pesquisa naquele local.

2º encontro: nove profissionais discutiram em torno das condições e da organização do trabalho: “o que faço e como faço”; “dificuldades enfrentadas”; “como sinto a relação entre os gestores e pares”; “sou capacitado para o trabalho que exerço”.

3º encontro: nove profissionais discutiram acerca do custo emocional do atendimento: “Como me sinto diante dos casos de violência”.

4º encontro: sete profissionais debateram sobre as relações socioprofissionais e a existência de reconhecimento/valorização pelos gestores, colegas e usuários: “gratificação pelo trabalho que exerço”; “meus superiores, chefias e gestores são valorizados?”; “meus superiores, chefias e gestores me valorizam?”.

5º encontro: sete profissionais discutiram as relações socioprofissionais entre os membros da equipe de trabalho e com pessoas de instituições externas.

6º encontro: oito profissionais expuseram suas vivências laborais sobre o significado do trabalho no CREAS, resultados e sentimentos frente aos resultados conseguidos com sua atuação.

7º encontro: oito profissionais refletiram sobre as vivências no trabalho e o sentimento de indignação e tristeza, recorrentes nos atendimentos de violação dos direitos.

8º encontro: participaram dez trabalhadores, os quais refletiram acerca da elaboração de um plano de ação diante dos problemas encontrados, para uma gestão coletiva da organização do trabalho, com debate sobre possíveis soluções.

9º encontro: nove trabalhadores refletiram sobre o material elaborado pelo grupo quanto ao plano de carreira, piso salarial, SUAS e políticas públicas que normatizam o funcionamento da Rede de Assistência Social, e qual seria a razão das normas não estarem sendo cumpridas, já que são preconizadas.

10º encontro: dez trabalhadores refletiram sobre o material elaborado, e o relatório passou pelo grupo para validação das ideias e foi, posteriormente, encaminhado para a coordenação da instituição para possível aplicação. Encerraram-se os encontros.

Análise dos dados

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, sendo posteriormente analisadas segundo a Análise dos Núcleos de Sentido (ANS), que permite explicar os aspectos simbólicos e reais no processo de interação do sujeito com a sua rotina de trabalho (Mendes & Araújo, 201220. Mendes A. M., & Morrone C. F. (2012). Trajetória teórica e pesquisas brasileiras sobre prazer e sofrimento no trabalho. In A. M. Mendes, A. R. C. Merlo, C. F. Morrone & E. Facas (Orgs.). Psicodinâmica e clínica do trabalho: temas, interfaces e casos brasileiros (pp. 29-52). Curitiba: Juruá.). A escuta e interpretação da fala permitiram visibilizar e aprofundar as experiências e relações que envolviam os trabalhadores e o sofrimento no trabalho, pela reflexão e conscientização dos efeitos da organização laboral, buscando o sentido do trabalho (Mendes, 2007). Assim, os núcleos de sentido gerados por meio das verbalizações foram escolhidos a partir do objetivo da pesquisa, relevância e recorrência nos relatos dos participantes, sendo organizada em condições precárias de trabalho, organização do trabalho, reconhecimento e estratégias de defesa.

Resultados e discussão

O estudo foi realizado com nove mulheres e um homem, com idades entre 24 e 57 anos, seis participantes com ensino superior completo, um incompleto e dois com ensino médio completo. Dos participantes, oito eram casados, uma solteira e uma divorciada. O tempo de trabalho na instituição variou entre três meses e nove anos, com rendimento entre um e três salários mínimos, visto que a carga horária de trabalho para grande parte dos funcionários era de 40 horas semanais, podendo se estender por campanhas de prevenção em datas comemorativas (como carnaval) ou abordagens noturnas. Não houve relato de acidentes detrabalho.

Condições de trabalho precárias

Núcleo de sentido: “a estrutura pra nós é um pouco negativa, porque a gente não consegue estar acompanhando quem deveria estar acompanhando” (Entrevistado 7).

O documento de Orientações Técnicas CREAS (2011) prevê que o ambiente físico disponha de, no mínimo, três salas para cada tipo de atendimento realizado, sendo salas específicas para equipe técnica, administração e coordenação, respeitando as condições de sigilo e privacidade, além de dois banheiros adaptados e coletivos. Entretanto, a unidade estudada não oferecia o preconizado em estrutura predial, havendo duas salas de atendimentos, uma adaptada especialmente para o atendimento infantil e a outra que servia para todas as demais atividades (atendimento a famílias, grupos e reuniões com a equipe), revelando que as condições laborais previstas eram muito diferentes da realidade enfrentada para a realização da atividade. Não havia estrutura acessível com rampas e corrimões para acessibilidade de cadeirantes e deficientes físicos, sendo necessário o atendimento desses casos em domicílio. Ainda, a falta de condução foi uma das maiores dificuldades, em que o veículo era compartilhado com outros programas do CREAS, acarretando em atrasos nas visitas domiciliares, na busca ativa e demais atendimentos. Conforme o Entrevistado 5: “... o que nos falta no momento seria um carro apropriado só para abordagem social... Mais computadores, capacitações, estrutura mesmo, para dar continuidade ao nosso trabalho”.

Em relação ao contato diário com situações de violência, os profissionais relataram a tensão de conviver com essa realidade, expostos a muitas situações perigosas, inclusive sofrendo ameaças durante as visitas domiciliares e busca ativa. Em determinados casos a equipe relatou sentir-se bastante inibida em agir frente à denúncia, pois muitas vezes o agressor era alguém muito próximo da vítima ou da própria família: “... da insalubridade e periculosidade, quando a gente muitas vezes é intimidada, como já aconteceu por várias vezes aqui, na questão de ameaça de bala de revólver, na ameaça de estar com uma pessoa que era integrante do PCC” (Entrevistado 3).

Esse fato é agravado pela maioria da equipe ser mulher, não existindo guardas ou policiais presentes na instituição ou para acompanhamento durante o desenvolvimento do trabalho:

... eu até chamei o meu colega para ficar junto comigo e foi uma questão que a pessoa me ameaçou com um revólver e com o apoio do colega é que a gente conseguiu ainda fazer com que a pessoa que ameaçou saísse até satisfeito, mas para ver como é insalubre e perigoso (Entrevistado 2).

Ter a sua segurança física garantida foi uma preocupação presente predominantemente nos encontros e relatos. Verificou-se que os trabalhadores que atuavam na garantia de direitos não recebiam proteção, sentindo-se negligenciados por não terem seus próprios direitos assegurados. Por lidarem cotidianamente com situações de extrema violência sentiam frequentemente medo e insegurança, sendo mencionada a necessidade de um suporte psicológico pela equipe.

Foi possível evidenciar a ausência de condições laborais adequadas, principalmente em relação à infraestrutura, recursos e equipamentos, constatando-se a inadequação para o desenvolvimento das atividades propostas pela instituição, que, de acordo com Dejours et al. (201111. Dejours C., & Gernet I. (2011). Trabalho, subjetividade e confiança. In L. I. Sznelwar, J. M. Leite & W. P. Bruno (Orgs.), Saúde dos bancários (pp. 33-42). São Paulo: Publisher Brasil/ Gráfica Atitude.), pode ocasionar além de desgaste emocional, envelhecimento, desencadeador de doenças somáticas, e ser fonte de agravos à saúde física. Conforme o Entrevistado 3:

... a necessidade de uma capacitação para equipe e uma coisa importante que a gente sempre tentou pleitear é uma supervisão para os profissionais que atendem os casos para que ele tenha realmente uma saúde mental tranquila, uma supervisão tipo um laboratório para que ele possa estar bem mentalmente...

Os trabalhadores colocaram ainda que seria de extrema importância a implementação de outra unidade, com o intuito de respaldar o trabalho que já era desenvolvido e conseguir atender às necessidades da população dessa região. Para tanto, seria preciso a realização de um diagnóstico socioterritorial para levantamento das demandas e dos dados acerca da incidência de situações de risco pessoal e social, mapeamento dos serviços, programas e projetos existentes no território, fatores que, de acordo com a fala dos participantes, já justificariam outro núcleo de atendimento.

Organização do trabalho

Núcleo de sentido 1: “a demanda é muito maior do que é quantificada" (Entrevistado 7).

Em decorrência da pressa empreendida para darem conta da sobrecarga, os profissionais relataram dificuldade em registrar formalmente os casos em relatório após os atendimentos, contrariando a normativa de atualização do sistema de dados, tornando inviável comprovar a demanda recebida, embora fosse grande e acumulativa. Tal sobrecarga dificultava o desenvolvimento de uma mobilização subjetiva da equipe, a qual não conseguia colocar em prática sua inteligibilidade e criatividade ao acelerar seu ritmo de trabalho para dar conta de atender o maior número de casos possível, diante da falta de profissionais suficientes. Assim, se os profissionais seguissem à risca as normas preconizadas de registro a maioria dos casos ficaria sem atendimento.

Portanto, existia nesse contexto grande distância entre as tarefas previstas, presentes nas políticas públicas, e a atividade real do serviço prestado. Os trabalhadores vivenciavam um conflito entre as atribuições que lhes eram prescritas formalmente e as atribuições técnicas e exigências do trabalho real, conforme o relato do Entrevistado 5: “... todas as pessoas que vêm pra ser atendido no CREAS, se a gente for 100% técnico ela não vai ser bem atendida do jeito que ela merece...”.

Trabalhar com casos de violência diariamente mostrava-se cansativo e desgastante, pela sobrecarga emocional, sendo essa exaustão um indicativo de sofrimento capaz de induzir a um processo de adoecimento laboral.

... é um serviço puxado, maçante e tem dia que você sai daqui com vontade de não voltar mais, por causa de coisas pesadas mesmo que acontece, e aí você vê e fala assim - Meu Deus como isso pode acontecer ... (Entrevistado 3).

O trabalho interventivo requeria, dentre outros fatores, muita cautela dos profissionais, pois os mesmos deveriam ser capazes de avaliar a gravidade e a iminência ou não de exposição à violência, realizar a identificação das situações de risco, prevenção do agravamento e continuidade da situação de violência, buscar a devida responsabilização dos autores, oferecer acompanhamento jurídico, psicológico e assistencial. Dessa forma, havia a necessidade de capacitação dos funcionários para garantir a qualidade nos atendimentos, a qual era insuficiente. Conforme o Entrevistado 2: “... falta um momento para estudar, incentivo para capacitação, que a gente não tem... e necessita para que o trabalho flua melhor...”

Outro ponto levantado nas discussões era concernente à relação mantida com a Rede, que composta por diferentes órgãos de defesa de direitos exercia papel importante na garantia do acesso à justiça e a mecanismos de proteção legal. Tais instituições acabavam enviando casos e exigindo atendimentos dos profissionais do CREAS que não eram de sua alçada e não condiziam com a atuação e objetivos da instituição. Tal fator implicava no aumento da demanda, já que a partir do momento que a equipe passou a atender às solicitações dos casos enviados estabeleceu-se a dificuldade em limitar a carga de trabalho diária, que se caracterizava por ser intensa e desgastante.

... a gestão maior não consegue compreender o que é realmente o CREAS, eles têm essa dificuldade, às vezes eles fazem uma exigência para gente que não é nossa, é fora, e a gente até cumpre, engole a seco... e falta para eles esse conhecimento técnico do nosso fazer (Entrevistado 1).

Essa falta de articulação com a Rede, a qual desconhecia as tarefas e atribuições do CREAS, fazia com que a equipe se desgastasse psiquicamente ao ter que realizar funções para além do previsto, representando um risco de desenvolvimento de sofrimento patogênico, ao exigir a realização de atividades não preconizadas nem valorizadas. Frente a essa situação foi relatado o sentimento de insegurança e incapacidade, tanto na resolução dos casos quanto em acolher toda a demanda advinda da Rede. Apesar de serem realizadas reuniões e estudos de caso com a Rede, junto a psicólogos inseridos na Saúde, Conselho Tutelar e outros, na busca da realização de um trabalho interdisciplinar e contextualizado em casos considerados mais difíceis, os participantes relataram que não havia engajamento e interesse dos colegas das outras instituições. Contudo, apesar das dificuldades constatadas, foi possível apreender a existência de identificação com o trabalho social e o sentimento de orgulho por conseguir, de alguma forma, ajudar ao próximo.

... dá prazer e alegria porque a gente gosta do que faz, mas profissionalmente cresci muito e como ser humano também, devido à natureza do trabalho executado ... (Entrevistado 5).

Logo, compreende-se que quando as atividades são realizadas de acordo com a demanda adequada existe prazer no desenvolvimento de suas atribuições, principalmente quando há êxito nos casos atendidos.

Núcleo de sentido 2: “a gente consegue se complementar... e tenta compartilhar tudo, sendo o caso de uma ou de outra, a gente pede opinião e sempre prefere estar juntas nas decisões, até por questões judiciais eu não vou responder sozinha ...” (Entrevistado 3).

Durante o desenvolvimento da pesquisa, a unidade apresentava-se em processo de alterações na dinâmica do funcionamento, em decorrência principalmente da inserção de uma nova coordenação, muito mais participativa, que demonstrava flexibilidade, acesso e boa comunicação. Conforme Dejours (20169. Dejours C. (2016). Organização do trabalho e saúde mental: quais são as responsabilidades do Manager? In K. B. Macêdo, J. G. de Lima, A. R. D. Fleury & C. M. S. Carneiro (Orgs.), Organização do trabalho e adoecimento: uma visão interdisciplinar (pp. 317-331). Goiânia: PUC/Goiás. Recuperado em 18 de outubro de 2017, de Recuperado em 18 de outubro de 2017, de https://site.medicina.ufmg.br/osat/wp-content/uploads/sites/72/2017/06/Livro-organiza%C3%A7%C3%A3o-do-trabalho-e-adoecimento-mpt21-06-2017.pdf
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), ao respeitar a engenhosidade individual e o modo de trabalhar frente aos imprevistos, a gestão é capaz de ativar a cooperação. Assim, mediante a propagação de valores como lealdade e estima, a melhoria na convivência e a confiança começaram a se estabelecer (Dejours & Gernet, 2011), havendo espaço para que ações colaborativas ocorressem, inclusive em situações judiciais que geravam desgaste e estresse, e poderiam em outro momento pôr em dúvida a qualidade do trabalho realizado.

... a gente lida muito com situações judiciais e qualquer um dos técnicos pode responder judicialmente por qualquer erro que aconteça, e eu vejo que às vezes existe certa resistência de outros setores da própria prefeitura com alguns casos aqui do serviço (Entrevistado 2).

As possibilidades de um diálogo aberto acerca dos casos atendidos também fortaleciam a identidade no trabalho, visto que a maior parte dos funcionários gostava da função que exercia e apresentava carreira consolidada na área da assistência social.

... atualmente a coordenação tem uma abertura bastante grande para a gente, que está colocando as nossas dificuldades e potencialidades, eu sinto bastante facilidade e como também com a Secretaria de estar colocando qualquer tipo de necessidade ou não ou elogio (Entrevistado 5).

Embora as tarefas de elaboração de relatórios e preenchimento de formulários fossem padronizadas e burocráticas, os trabalhadores tinham autonomia para descrever os casos a partir de sua própria perspectiva, o que proporcionava o sentimento de identificação com o trabalho social e com suas tarefas.

Reconhecimento

Núcleo de sentido: “porque a valorização vem de um ambiente de trabalho propício, de uma remuneração propícia e isso a gente percebeu que a gente ainda não conseguiu” (Entrevistado 3).

A dinâmica de reconhecimento é um dos elementos principais para que o trabalhador mantenha-se em seu cargo, e quando esta não existe o indivíduo sente dificuldades para encontrar sentido no seu trabalho, podendo acarretar em uma dinâmica patogênica de descompensação psíquica ou somática (Dejours & Abdouchelli, & Jayet, 201111. Dejours C., & Gernet I. (2011). Trabalho, subjetividade e confiança. In L. I. Sznelwar, J. M. Leite & W. P. Bruno (Orgs.), Saúde dos bancários (pp. 33-42). São Paulo: Publisher Brasil/ Gráfica Atitude.). Apesar do desafio e do esforço diário em atender aos mais diversos casos de violência em um ambiente laboral inadequado, os funcionários não se sentiam valorizados em termos salariais nem suficientemente reconhecidos pela gestão, pela sociedade e por profissionais de outras instituições (Rede). De acordo com o Entrevistado 10 “... a Rede, eles acham que a gente é incompetente, que a gente não consegue gerenciar as nossas demandas, e pra gente é um pouco mais complicado ...”.

Por outro lado, houve consenso entre os trabalhadores de que o reconhecimento e a valorização dos pares e da chefia se encontravam em uma situação de progresso, conforme o Entrevistado 6: “... ela [a coordenadora] deixa eu bem à vontade, e em momento nenhum ela me colocou uma coisa negativa que eu tenho, ela acredita no que eu faço". Mesmo assim, o prazer no trabalho se dava, principalmente, a partir do reconhecimento feito pelos usuários, gerando o sentimento de gratificação pessoal: “... pelos usuários a gente percebe que, a partir do momento que se cria certa relação, um vínculo, eles valorizam sim o serviço, eles têm uma forma até de gratidão” (Entrevistado 5).

O reconhecimento influenciava no processo de formação da identidade do sujeito no campo social e na construção da identidade coletiva (Moraes, 201322. Moraes R. D. (2013). Estratégias Defensivas. In F. O. Vieira, A. M. Mendes & A. R. C. Merlo (Orgs.), Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho (pp. 153- 158). Curitiba: Juruá .), constituindo-se em um dos fatores para acionar a mobilização subjetiva diante das realidades impostas pelas situações do trabalho, fomentando a cooperação para lidarem com tais situações. Conforme o Entrevistado 7: “... eu faço é com paixão e com dedicação, e gosto muito do que eu faço”. Logo, o uso da criatividade, a possibilidade de imprimirem sua marca pessoal e a admiração pelo que faziam foram elementos observados que favoreciam a ressignificação do trabalho para obtenção do prazer e da saúde.

Outro fator relevante à mobilização subjetiva foi a possibilidade do uso e o reconhecimento da inteligência astuciosa, ou seja, inteligência em constante ruptura com normas e regras sociais (Nascimento, 201523. Nascimento B. M. F. (2015). Mobilização subjetiva: do sofrimento ao viver criativo no trabalho. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ.), fundamentada na experiência e conhecimento profissional de cada um e possível de ser colocada em prática porque a característica da unidade, no momento da pesquisa, permitia o uso da criatividade, evidenciada na realização das entrevistas de forma autônoma, na resolução dos casos de acordo com sua experiência e conhecimento profissional, e no compartilhamento das experiências com a equipe durante as reuniões.

Estratégias de defesa

Núcleo de sentido: “... então, eu não me abalo não, tento ser bem dura mesmo tento ser forte” (Entrevistado 10).

Diante dos casos atendidos constatou-se o uso recorrente da racionalização, estratégia por meio da qual os trabalhadores buscavam justificar as causas do sofrimento para atenuar suas implicações, aparentando um efeito positivo da organização do trabalho para a sua atuação, mas que se mostrava ineficaz por não mobilizar forças em direção a mudanças a serem efetivadas, como mostra a fala do Entrevistado 8 “... são casos que apesar de serem pesados, a gente cria aquela força, a gente vai criando aquela casca, aquela força, pra perceber outras pessoas também precisam da gente”.

Piadas, brincadeiras e ironia também foram apreendidas no ambiente de trabalho, e exerciam função de fuga ao sofrimento vivido diariamente na unidade, pois pelo bom humor os profissionais construíam um espaço de ilusão que permitia que a fantasia irônica estabelecesse sensação de suavidade e alívio:

... eu faço mais piada quando eu estou triste, quando eu estou aborrecida... Mas é bom, porque é isso faz a gente ser vivo ... (Entrevistado 9).

A negação foi outro recurso identificado, manifestado na medida em que os trabalhadores afirmavam gostar do seu fazer, contrapondo-se aos sentimentos de angústia, choro, tristeza e impotência recorrentes nos relatos, como a do Entrevistado 10: “... existe a tristeza sim, a gente fica muito triste também, mas com a vida a gente vai aprendendo com o nosso dia a dia”.

Considerações finais

A partir da pesquisa-ação, proporcionada pela prática da Clínica Psicodinâmica do Trabalho, foi possível compreender as vivências de prazer e sofrimento, destacando a importância da construção do coletivo para o alcance da saúde mental. No decorrer da pesquisa constatou-se o fortalecimento dos laços sociais, a partir do reconhecimento mútuo da engenhosidade e habilidades envolvidas no desenvolvimento das funções de cada um, proporcionando satisfação e fortalecendo a identidade profissional, a responsabilidade na atuação e a percepção de relevância pelo serviço prestado. Nesse contexto, ganhou destaque a coordenação da unidade, que buscava garantir com que a cooperação e solidariedade ocorressem, pelo livre debate sobre as regras e vivências no ambiente de trabalho.

Pelo alto custo afetivo e emocional envolvido no serviço, foram identificadas estratégias defensivas para o enfrentamento de situações violentas contra crianças, sendo comum a invasão da preocupação, tristeza e solidão na vida familiar e social. Constatou-se também a utilização da autoaceleração e do ativismo, estratégias consideradas essenciais pelo coletivo para que pudessem suprir a demanda da unidade, e que possibilitavam, ainda que de forma precária, o engajamento e adaptação à organização do trabalho.

Mesmo permeada pela sensação de impotência frente à sobrecarga de trabalho imposta, na elaboração do plano de ação foi validada a necessidade da adoção de um ritmo de atendimentos condizente à tarefa de cadastramento dos serviços efetuados, como forma de demonstrar à gestão municipal a necessidade da contratação de mais profissionais, de melhores condições de trabalho e de valorização salarial da categoria. Nesse sentido, a Clínica Psicodinâmica do Trabalho auxiliou na reelaboração das vivências de sofrimento decorrentes do embate entre o modo de trabalhar prescrito e da adaptação às imposições hierárquicas, sendo a prática clínica validada pelos próprios participantes, os quais sugeriram a instauração de um espaço de escuta e reflexão do sofrimento relativo ao trabalho.

Contudo, como limitação deste estudo, é preciso dizer que novas atuações e relações organizacionais ainda são necessárias de serem incorporadas e concretizadas no CREAS, de forma que a eficiência não esteja atrelada à quantidade, mas contemple a dimensão do trabalho vivo, a persistência no trabalho, a criação de novas soluções e modos de trabalhar, frente às dificuldades da realidade vivida, caracterizada por situações urgentes, imprevisíveis e impactantes, as quais convocavam rápida resolução. Nesse sentido, este estudo para que haja valorização e reconhecimento do trabalho realizado é necessário que a Rede conheça as reais atribuições do CREAS, a fim de possibilitar que o trabalho social, integrado e cooperativo ocorra.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2017
  • Aceito
    12 Fev 2018
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