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Política do vivente

Politics of the living

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Nascimento, Sebastião. São Paulo: N-1 Edições, 2020a. 216 p.

Resumo

Em seu ensaio, Achille Mbembe disserta acerca do modo pelo qual as políticas da inimizade se tornaram a versão mais sofisticada do exercício do poder e da dominação gestados pelo projeto moderno do Ocidente, exacerbando-se nas novas tecnologias da guerra, na fragmentação digital dos extrativismos contemporâneos, na desumanização em favor da instrumentalização de todas as relações, nos genocídios e hostilidades raciais e étnicas, na devastação do mundo – um processo histórico que se impôs em escala global através do colonialismo e do racismo, aspectos dissimulados da narrativa do humanismo iluminista. Na trilha de pensadores como Édouard Glissant e Frantz Fanon, bem como nas dobras e entranhas da história crítica da modernidade, Mbembe propõe um pensamento de Todo-o-Mundo, uma política do vivente que reorganize as relações em torno do em-comum.

Palavras-chave
políticas da inimizade; colonialismo; Frantz Fanon; descolonização; política do vivente

Abstract

In his essay, Achille Mbembe discusses how the politics of enmity has become the most sophisticated version of the exercise of power and domination generated by the modern Western project, exacerbated in new technologies of war, digital fragmentation of contemporary extractivisms, dehumanization in favor of the instrumentalization of all relationships, genocides and racial and ethnic hostilities, and devastation of the world – a-historical process that has been imposed on a global scale through colonialism and racism, disguised under the narrative of Enlightenment humanism. In the wake of thinkers such as Édouard Glissant and Frantz Fanon, as well as in the depths of the critical history of modernity, Mbembe proposes a thought of the whole-world, a politics of the living that reorganizes relations around the in-common.

Keywords
politics of enmity; colonialism; Frantz Fanon; decolonization; politics of the living

A arte política se transforma simplesmente em arte militar.

[…] Fazer guerra e fazer política é a mesma coisa.

Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, 2005, p. 154-155.

A obra Políticas da inimizade (2016), do filósofo e professor universitário Joseph-Achille Mbembe,1 Kaciano Barbosa Gadelha (in memoriam) era Doutor em Sociologia pela Freie Universität Berlin (FUB), Alemanha, professor adjunto de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi-FURG). publicada no Brasil em 2020 pela N-1 edições (2020a), nos convida a adentrar as inúmeras abordagens de um saber em construção e a nos confrontarmos com as mil passagens de seu pensamento do devir-ilimitado.

Como um veleiro entre a poética e a política do vivente, Mbembe nos convida a caminhar e habitar infinitas dobras, “becos” e “asfaltos” íngremes de um mundo-de-cercas, ao passo que recusa a repetição colonial do tempo presente e topografa multiplicidades de saberes por meio de uma “escrita feita de espirais entrecruzadas” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 21). Situando-se à frente da imprevisibilidade, o emaranhamento próprio das identidades em relação, o autor completa incansavelmente o índice das questões colocadas pelo presente século.

É a partir da África, onde vive e trabalha, “mas também a partir do resto do mundo” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 25), que é possível entender sua escrita e seu pensamento. Partindo das metafísicas africanas de tudo que é vivo, do tempo espiralar e da circulação dos mundos, sua reflexão enraíza-se no princípio do diverso que difere do uno.

À semelhança de um caminhante em viagem contínua ou, se preferir, um passante em movimento sem fim que se enraíza no abismo do ar e no sagrado das águas – entre uma esquina e outra –, o pensamento de Achille Mbembe habita a abertura, a travessia e a circulação. Tal pensamento convoca-nos para o desconhecido-absoluto de “Todo-o-Mundo” – a poética do imprevisível por excelência: “a multiplicidade que entra em nós e bate sem parar à nossa porta” (Glissant, 20148 GLISSANT, Édouard. O pensamento do Tremor: La CohéeduLamentin. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard, 2014., p. 43). Ela requer que deixemos o conforto de tudo que sabemos para então nos vulnerabilizar conscientemente sobre aquilo que ameaça desestabilizar nossas verdades e certezas. Nas palavras de Mbembe (2020a, p. 25)10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., significa rejeitar “a segregação teórica” e apoiar-se efetivamente nas mil partes dos arquivos de todo o mundo. Pensar, nesse contexto, é correr riscos e imaginar possibilidades, incluindo o risco da transparência enclausuradora e a possibilidade de habitar voos e mergulhos na opacidade dos abismos. Contrária às políticas de inimizade, a política do vivente se pauta por aquilo que agrega, pelo que se reúne, pela poética da partilha radical, pois viver é agregar.

Em face do programa de liberdade anunciado pelo pós-iluminismo, conforme Achille Mbembe em Sair da Grande Noite (2019), Crítica da Razão Negra (2018) e Políticas da Inimizade (2020a), determinadas identidades continuam a sofrer mais do que outras. Ao mesmo tempo, trata-se também de reinterrogar as noções de identidade-negra, interromper o trauma da repetição colonial que fixa os corpos fazendo deles paradigma cristalizado da diferença – instrumento da divisão absoluta –, e, pelo contrário, insistir na poética da relação, na semelhança e na abertura, a partir de uma teoria sobre o que ele chama de “em-comum” rumo à reparação e ao reconhecimento que desaguam em uma “relação de cuidado” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 192). É assim que Mbembe, ao longo de toda sua obra discute simultaneamente “a tensão entre o princípio da destruição […] e o princípio da vida” (p. 112) na experiência do mundo moderno e da universalidade da condição negra no século XXI.

Apoiando-se parcialmente na obra política e psiquiátrica de Frantz Fanon, Achille Mbembe ressalta, dentre outras coisas, que, em parte, o discurso iluminista do ideal de sujeito e de um universalismo abstrato serviram para mascarar, dissimular ou ocultar uma espécie de força necropolítica: “uma força que não sabe ouvir e não sabe transformar-se” (Mbembe, 201912 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Tradução de Fábio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2019., p. 85) ou um poder que tem a vida como “veículo da morte” (2020a, p. 68).

Se quisermos uma definição provisória do que Achille Mbembe chama de “políticas da inimizade”, podemos defini-la como uma força muito mais de separação do que de vínculo. Uma força que privilegia o “eu menos o outro” ao invés do em-comum enquanto lugar de reconhecimento e partilha radical. A reflexão de toda a obra tem por questão central o “retorno da relação de inimizade”, agora em escala global, e suas “múltiplas reconfigurações nas condições atuais” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 12).

Na introdução da obra, ao sugerir a presença de uma caveira ou de um esqueleto no interior do tema, o autor nomeia o Todo sem fixá-lo ao agora não inédito repovoamento da Terra, a saída da democracia, a sociedade da inimizade, o terror e o antiterror enquanto remédio e veneno do tempo que se segue nesse meio-dia atordoante. Achille Mbembe prevê o pior daquilo que tira possibilidade. Esse poder como farmácia (phármakon) possui “a capacidade de transformar os recursos da morte em força germinativa” (Mbembe, 201813 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 233): o devir-negro do mundo ou “a miséria comum de homens diferentes” (Fanon, 20214 FANON, Frantz. Por uma revolução africana: textos políticos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 71), como a universalização da experiência colonial antinegra, outrora exclusiva somente a determinadas existências, transmuta-se e converte-se no interior dos processos necropolíticos em capacidade de cura. A partir de uma escrita como devir-histórico, logo uma crítica a qualquer forma de universalismo histórico, e ao expor como a inimizade sempre foi a força motriz das democracias liberais, Mbembe esboça traços característicos do nosso tempo, e que merecem ser ressaltados.

No primeiro capítulo, “A saída da democracia”, Mbembe fala do estreitamento do mundo e do repovoamento da Terra no presente século a favor das existências do Sul, assim como de políticas do ódio e suas arquiteturas do terror colonial e imperial jamais estranhas à democracia. Se anteriormente o nomadismo invasor e, em seguida, a diáspora voluntária ou imposta a populações inteiras “foram eventos decisivos da nossa chegada à modernidade” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 26), a experiência transatlântica do planeta é marcada por dois momentos significativos na expansão do capitalismo industrial, que ditaram o ritmo desse repovoamento de milhões de pessoas: a experiência da deportação dos africanos para as Américas e a colonização, que em grande medida coincidiram “com a formação do pensamento mercantilista no Ocidente, se é que pura e simplesmente não lhe deram origem” (p. 26). Conforme Mbembe (2018)13 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018., em outras palavras, o liberalismo econômico e a arte de governar foram financiadas pelo sequestro, venda e trabalho de escravos negros.

Um dos momentos significativos na ampliação do poder dos Estados europeus teve como engrenagens essenciais a plantation e mais tarde a colônia. A plantation seguia a lógica, antes de tudo, da devastação de grande extensão de florestas, das queimadas e da destruição de ecossistemas em favor de um agrossistema ou agronegócio. O sistema das plantações era caracterizado, ainda, conforme Édouard Glissant (2011)9 GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Tradução de Manuela Mendonça. Portugal: Porto, 2011., por organizações sociais piramidais, circunscritas a lugares fechados, funcionando supostamente em situação de independência e/ou autossuficiência econômica de um Estado, entretanto, em efetiva dependência deste e, por fim, possuindo uma lógica de trabalho não evolutiva, por ter como base sua estrutura escravagista. Mais do que um dispositivo econômico, era ali que mulheres e homens africanos iniciavam uma vida de acordo com um princípio fundamentalmente racial. Não simplesmente presa ao significante biológico, a raça “remetia a um corpo sem mundo e sem chão, um corpo de energia combustível” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 27).

Se antes o drama das pessoas era ser exploradas pelo capital, a tragédia da multidão atualmente é já não poder ser explorada de nenhuma forma, é ser relegada a uma “humanidade supérflua”, despejada e entregue à própria sorte, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital. As linhas de força, ao redefinirem os corpos, transitam entre o ser-coisa, ser-máquina, ser-código e ser-fluxo. Agora esse sujeito-digital, esse ser-plástico, “vai diretamente de encontro com inúmeras convicções tidas até recentemente como verdades imutáveis” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 32). Em diálogo com Frantz Fanon em Os Condenados da Terra (2005)3 FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005., Mbembe (p. 32) afirma que, ao passarmos da condição humana para a condição terrestre, efetivamente nunca estivemos apartados da natureza/ecologia, pelo contrário, “o gênero humano especificamente não passa de uma parcela de um conjunto muito mais amplo de sujeitos vivos, que inclui os animais, os vegetais e outras espécies”. Logo, por não existir uma “essência humana” que precisa ser preservada e protegida, não há praticamente nenhum limite para modificações biológicas e genéticas da própria humanidade. Essa imbricação, conforme o autor, entre o “humano”, a natureza e a tecnologia converge em uma espetacular autocriação da vida por meio da tecnomedicina.

A um só tempo, conforme Mbembe (2020a, p. 33)10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., na era computacional “não existe mais separação estanque entre a tela e a vida. A vida se passa agora na tela e a tela se tornou a forma plástica e simulada da vida”, que, por sinal, “agora pode ser abarcada por um código”. Nesse sentido, a era do brutalismo (Mbembe, 2020b11 MBEMBE, Achille. Brutalisme. Paris: La Découverte, 2020b.) se caracteriza pela imbricação de diferentes figuras da razão: a econômica e instrumental; a eletrônica e digital; e a razão neurológica e biológica. O autor está convencido de que não há mais distinção entre os viventes e as máquinas ou, em suas palavras, existe um “acoplamento cada vez mais estreito do humano à máquina” (2020a, p. 33). Essa imbricação e, por último, essa indistinção permitem caracterizar a era computacional como um fenômeno de ordem global, não circunstancial e nem circunscrita localmente. Não obstante, o gesto mais radical é aquele que, operando sobre a indistinção entre os viventes e as máquinas, permite delimitar esse tempo como uma prática de transformação e de gerência, portanto de cálculo de tudo e do todo (vivo e não vivo) por meio dos algoritmos, como sendo obsoleto, residual ou despejado.

Essa gerência de tudo e do todo pelo capital é, também, um marcante traço do mundo do nosso tempo. O poder pelo capitalismo atual é uma força viva, uma criação destruidora. O seu “espetacular aumento da fragilidade e da instabilidade dos mercados” e “seu poder quase ilimitado de destruição”, conforme Mbembe (2020a, p. 34)10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., caracteriza sua prática como sendo um genocídio econômico contra não somente toda forma de vidas descartáveis à sua nova face, mas também contra o próprio ecossistema. Agora, se por um lado, definitivamente, a prática de mercado se avizinha e se equipara à prática da guerra, que, inclusive, “foi a matriz do desenvolvimento tecnológico ao longo dos séculos passados”, por outro “essa estreita imbricação do capital, das tecnologias digitais, da natureza e da guerra” (2020a, p. 34) é uma ameaça à própria possibilidade de alguma forma de vida política.

No segundo capítulo, marcado pela multiplicação das fronteiras que visam separar e, ao mesmo tempo, criar zonas hipermilitarizadas na “sociedade da inimizade”, Mbembe afirma que, politicamente, estamos entrando num mundo novo, que se estabelece com base na ideia de “inimigo” e pela normatização de um Estado de Exceção planetário, onde foram suspensos o direito e a liberdade – noções inerentes ao programa pós-iluminista do Mundo-Moderno.

Veremos que, mesmo em sociedades ditas democráticas, essa força sem rosto sempre fixou as vidas encaradas como supérfluas, existências despejadas dignas somente de ser eliminadas. Ao recorrer a uma multiplicidade de disciplinas e de eventos sistemáticos dos diversos campos do conhecimento e da historicidade, Achille Mbembe demonstra que o brutalismo das sociedades e das suas democracias sempre foi encoberto: “irreprimíveis, o desejo de inimigo, o desejo de apartheid e a fantasia do extermínio constituem a linha de frente, em suma, a prova de fogo do início deste século” (2020a, p. 84). Não puramente inédito, logo, não se trata de um “problema social”, mas de toda uma arquitetura que sustenta o mundo moderno, mas não somente – o mundo como o conhecemos e como ele se constituiu só foi possível por causa dessa força, isto é, do projeto colonial de dominação que mascarou e se mascara de democracia e de direitos humanos, pois ambos partem de um ideal dito universal de ser humano: homem-branco-cishéteropatriarcal-sexista-cristão-capitalista. Essa força mata tudo à sua volta. Sabemos que o colonialismo não é simplesmente “apenas” um evento histórico, ele é essa força a que todas nós estamos submetidas assimetricamente (a vida e a morte distribuídas de forma desigual).

Inventor das identidades no Mundo-Moderno, devido à sua poderosa capacidade de proliferação e de metamorfose, o colonialismo, em sua forma contemporânea, faz tremer tanto o presente daquelas/es que a ele se submetem, infiltrando-se inclusive nos sonhos, enchendo-os dos pesadelos mais horríveis e de inumeráveis adoecimentos psíquicos. Ele é complexo, uma pirâmide de certezas, umas mais ilusórias do que as outras: a potência do falso. Forças de separação: a sociedade de inimizade se define pelos “movimentos de ódio, pela hostilidade” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 76) e, sobretudo, pelo desejo de explorar e pela tentação de eliminar o inimigo inventado.

No terceiro capítulo do livro, “A farmácia de Fanon”, Mbembe nos relembra do sentido radical da descolonização em Frantz Fanon. Tal sentido radical se faz possível como um gesto de cura, como abertura para o vasto mundo, um mundo de uma nova humanidade. Mbembe nos convida a retomar à questão da violência, um ponto muitas vezes incompreendido nas leituras de Fanon, justamente porque uma certa gramática do humanismo no Ocidente obliterou a elaboração discursiva acerca de sua face negativa: a violência absoluta que, paradoxalmente, o edificava através do colonialismo. Mbembe problematiza, porque essa imagem da violência, de uma gramática da violência pela ótica do negativo e da destruição absoluta, nos impossibilita de ver um outro gesto, uma outra força libertadora. Em Fanon, a descolonização radical implica um movimento e um trabalho violento “que tem por objetivo se abrir para o princípio da vida; tornar possível a criação do novo” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 112). O argumento do autor nesse capítulo se desdobra em torno do estabelecimento de dois princípios: o princípio da destruição, que dá forma às políticas de inimizade contemporâneas, e o princípio da vida, o desejo de uma vida ilimitada, dimensão esta que o autor encontra na proposta de Fanon. Operando com esses dois princípios, Mbembe decanta o entendimento absoluto da violência e nos leva ao exame histórico da experiência moderna ao se perguntar sobre o princípio da destruição: como falar de uma violência que restaura, que cria o novo, se a experiência moderna na qual se inscreveram o colonialismo e as duas Grandes Guerras nos mostraram justamente a desordem, o caos e a perdição?

Na obra de Fanon, Mbembe sublinha as três grandes controvérsias do século XX: o racismo (a questão do gênero humano), o imperialismo (a partilha do mundo) e o tema da guerra (as tecnologias da guerra e com isso uma nova relação com a destruição e a morte). O princípio da destruição, que poderia também ser lido como a pulsão de morte do Ocidente, tem mostrado sua face de diversas maneiras. No texto, Mbembe recupera uma leitura de Freud6 FREUD, Sigmund. Considerações atuais sobre a guerra e a morte [1915]. In: FREUD, Sigmund. Escritos sobre a guerra e a morte. Tradução de Artur Mourão. Covilhã: LusoSofia, 2009. sobre a guerra e a morte (2009) e analisa o sentimento de decepção com o projeto civilizatório do Ocidente, ao vislumbrar a realidade brutal da Primeira Grande Guerra. Freud disseca esse sentimento até encontrar no seu cerne o princípio da sua hipocrisia ou o seu recalcamento daquilo que na guerra emerge em seu máximo esplendor, a saber, a indiferença à morte do outro e o desejo de aniquilação do inimigo. Da relação entre guerra e morte, seguindo também a trilha de Aimé Césaire (2020)2 CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. São Paulo: Veneta, 2020. sobre o colonialismo, tensionando com as análises de Hannah Arendt (1989)1 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. e Michel Foucault (2005)5 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. sobre os regimes totalitários e o racismo, Mbembe lança um olhar para a experiência do colonialismo enquanto laboratório do princípio da destruição.

Colonialismo, fascismo e nazismo se articulam como formas extremas do princípio da destruição. No seu livro, Mbembe traça dois mitos que amarram essas três formas. O primeiro deles se refere ao mito da superioridade absoluta da cultura ocidental, sendo esta “entendida como a cultura de uma raça, a raça branca” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 118). Esse mito serviu para hierarquizar a civilização ocidental e torná-la o marco a partir do qual todas as outras humanidades seriam medidas. O segundo mito seria a ideia do Ocidente como um corpo natural vivo. É sob o manto desse segundo mito, conjugado ao primeiro, que o racismo emerge enquanto prática de desumanização, de descivilização de todos aqueles encarados como outros, inimigos, empecilhos ao projeto de expansão e absorção do Ocidente. Nessa parte do texto, Mbembe examina os campos de concentração segundo os modelos coloniais na África, na Ásia e, também, ainda no século XIX, no contexto da guerra colonial em Cuba. Segundo o autor, a esses modelos coloniais, o Terceiro Reich incrementou a programação da morte em massa na forma do campo de concentração como campo de extermínio, uma forma que já havia sido ensaiada pelos alemães no atual território da Namíbia, no começo do século XX, no genocídio do povo herero. O mundo dos campos emerge na modernidade e na sua filosofia política como o mundo no qual se abriga uma humanidade: “Foi assim que, na filosofia moderna, o mundo dos campos se tornou inseparável do mundo de um crime singular, perpetrado em aparente sigilo: o crime contra a humanidade” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 125).

Em torno de uma pulsão genocida, organizou-se o processo colonial, um processo que mergulhou colonizadores e colonizados em uma atmosfera sangrenta, na qual vai se esvaziando todo o sentimento humano. Foi esse grau zero de debilitação e de destruição que Fanon encontrou no seu trabalho clínico na Argélia: relações de inimizade e de instrumentalização recíproca, a indiferença à morte do Outro, um mundo no qual o racismo desempenha a força motriz desse processo. Um racismo que se sofisticava enquanto bioeconomia e ecobiologia, para preservar sua eficácia, tal nos argumenta Mbembe. O sujeito racial é produzido como Outro, um bode expiatório dos medos e das angústias do grupo consagrado superior a todos os outros. Nesse complexo se articulam o conjunto de fantasias e medos racistas, uma economia do imaginário em que o negro é um objeto, um objeto fóbico, um objeto entranhado em um jogo de sombras. Mas esse negro objeto que habita os medos racistas resiste. O negro reduzido ao falo evidencia esse medo racista do falo do negro, medo que movimenta toda uma ordem pulsional sadomasoquista ativada pela instância mestra, diante desse significante que transgride, irrompe, enfim, o medo dessa força que não pode ser contida pela interdição; os gritos de dor, a castração do que não pode ser castrado, a resistência do objeto (Moten, 202015 MOTEN, Fred. A Resistência do objeto: o grito de Tia Hester. Tradução de Matheus Araújo dos Santos. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 1, 2020, p. 14-43. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i1.27542
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).

Na clínica de Fanon, estão homens e mulheres deformados pela colonização, mergulhados em uma economia do ódio e da vingança. A colonização se constitui na modalidade de uma deformação que visa descerebrar, tal como aparece nos casos clínicos tratados por Fanon, aos quais Mbembe retorna para dar conta dessa política de inimizade que o sistema colonial põe a funcionar. Onde há ódio, não há reconhecimento, mas apenas pobreza de mundo, pobreza de relação que o senhor colonial mantinha com relação ao seu súdito. Nesse jogo, o sangue derramado se torna a moeda de uma economia fúnebre. A descolonização radical consiste em desmantelar a violência racial que, entre outras coisas, asfixia o Outro em uma forma de representação que lhe esvazia, tira a sua vida, pois essa violência racial opera por sistemas de classificação que são também sistemas de divisão e de segregação. A descolonização radical, a saída da grande noite, põe em movimento todo o corpo, implica uma decisão radical e movimenta um festival da imaginação no qual a pessoa colonizada volta a respirar, restaura sua percepção, rompendo a moldura colonial. Com todas aquelas pessoas adoecidas que a sociedade de inimizade produz, Mbembe discute a relação de cuidado em que se empenhava Fanon no seu trabalho clínico. A sua farmácia é também uma política de vida de onde a cura autêntica surge na reconstituição do vínculo, de algo que seja comum, na abertura para o vasto mundo.

No capítulo quatro, “Esse meio-dia abrasador”, miramos mais uma vez África, essa África na qual tinha os olhos Fanon, tal disserta Mbembe, e da qual se projetaria um novo mundo, uma nova humanidade. O capítulo discute a história dos negros no Ocidente não como uma história à parte, mas como parte da história do mundo. O surgimento do mundo moderno alavancado pela expansão colonial europeia fez dos negros seus sujeitos constitutivos pela diáspora forçada de africanas e africanos sequestrados em África e comercializados pelo tráfico transatlântico para servirem de mão de obra nas colônias. As faces dessa diáspora nos mostram toda uma dimensão global, cosmopolita, poliglota, que marca as culturas da diáspora africana, aproximando aqui a discussão que faz Mbembe daquilo que nos trouxe Paul Gilroy (2001)7 GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. no seu trabalho acerca do atlântico negro. Mbembe coloca em xeque o projeto humanista ocidental que foi constituído na modernidade e, com isso, a ideia de “ser humano”, menos para abandoná-la e mais para fazer dela uma insistência em três proposições, apontadas por Paul Gilroy (2001)7 GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001., Sylvia Wynter (2003)16 WYNTER, Sylvia. Unsettling the coloniality of being/power/truth/freedom: towards the human, after man, its overrepresentation – an argument. CR: The New Centennial Review, v. 3, n. 3, p. 257-337, 2003. https://doi.org/10.1353/ncr.2004.0015
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e Glissant (2014)8 GLISSANT, Édouard. O pensamento do Tremor: La CohéeduLamentin. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard, 2014., respectivamente: uma humanidade mais global; a humanidade como práxis, devir, e uma poética da Terra (Todo-o-Mundo). Passando tanto pelas críticas dos teóricos e das teóricas da diáspora africana quanto pelas do afrofuturismo, Mbembe nos leva a uma imagem daquilo que a noção de arquivo dificilmente abarca, a transfiguração do escravo no espaço do museu. É no limite do arquivo que se desenha o horizonte de uma hospitalidade radical, o lugar do antimuseu.

Por fim, a obra Políticas da inimizade rascunha um mundo marcado pelo desejo por zoneamentos, fortificações, bodes expiatórios, partilha assimétrica de anátemas, conclaves e excomunhões de todas as espécies. É efetivamente um rascunho, processo mesmo do vivido, do tempo do agora – da figura do passante que, em sua ética, escreve a paisagem enquanto continua a caminhar. Mais do que o que vê, ele descreve a partir do rastro-vestígio daquilo que nos espera caso não façamos algo para mudar e transformar essa força que nos arrasta. O autor articula em sua obra aquilo que só existe por sua ausência; o corpo sem rosto, mutilado e desfigurado pelo organismo-colonial aponta para uma política do vivente que vá além do humanismo iluminista, isto é, a regeneração não somente dos seres humanos, mas de tudo e do todo por meio de uma vasta reorganização das relações, mais do que uma redistribuição de lugares.

Tendo saído da posição de cócoras e agora “membro de uma nova comunidade” (Mbembe, 2020a10 MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2020a., p. 212), esse novo corpo-inumerável e questionador escreve com suas próprias mãos, rosto e pés a recriação do mundo.

Homenagem

  • À memória-infinita de Kaciano Barbosa Gadelha que, enquanto esteve conosco neste plano, nos inspirou a sonhar com algo que não tem fim. Ela permanece aqui [viva], em cada pessoa que continua a inventar e imaginar um mundo [im]possível e a desejar o fim deste que nos foi dado a conhecer. Tia Kaci, como muitas/es/os de nós a chamávamos, é um eco-mundo, um rastro-vestígio; por meio de cada aula, exposição, festa, falas públicas, partilhas, deboches e curadorias que incansavelmente se colocou ao lado, com e a favor de saberes e de existências despejadas. Foi professor Adjunto de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG e coordenador do Neabi (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) da FURG. Doutor em Sociologia pela Freie Universität Berlin (2010-2014) e realizou estágio de pós-doutorado em Artes com bolsa PNPD CAPES no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará (2015-2018). Todo seu trabalho ficou marcado de forma indelével em cada discente e docente, em cada amizade, seja pela sua pretagogia dos afetos, sua capacidade de produzir coletividade e sua incansável propensão a imaginar outros mundos possíveis, seja pelo rigor teórico, pela genialidade com que abordava o incômodo em face da violência-total produzida pela matriz colonial-racial-cis-hetero-patriarcal-capitalista que sustenta e mantém esse mundo. Deixa um legado poético que continuará a inspirar e guiar as vidas e as pesquisas em diferentes áreas do conhecimento.

Referências

  • 1
    ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • 2
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    » https://doi.org/10.1353/ncr.2004.0015

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2021
  • Aceito
    25 Out 2022
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