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Origens das orientações da pesquisa educacional na Faculdade de Educação da USP

CONFERÊNCIA

Origens das orientações da pesquisa educacional na Faculdade de Educação da USP

Celso de Rui Beisiegel

Universidade de São Paulo

Apresentada originalmente na mesa-redonda preparada em 2003 para a recepção aos novos alunos da graduação em Pedagogia, esta incompleta e modesta exposição é dedicada aos companheiros de viagem na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Foi preparada a partir da convicção de que a identidade construída na história de uma instituição é importante na formação intelectual e moral de seus servidores. Atendendo à distribuição das tarefas da mesa-redonda entre os colegas da faculdade, a exposição focalizou a questão das origens das orientações da pesquisa. Mas é evidente que as observações poderiam estender-se também às orientações das atividades no ensino e na extensão universitária.

Algumas instituições contribuíram para a definição das primeiras orientações da pesquisa educacional na Faculdade de Educação. Por ordem de antigüidade, aparece em primeiro lugar o antigo e efêmero Instituto de Educação, que por sua vez aponta para suas origens na Escola Normal Secundária da praça da República. Depois, registra-se a presença decisiva da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criada em 1934, no âmbito do processo de fundação da Universidade de São Paulo, para constituir-se na espinha dorsal da nova universidade. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de São Paulo, criado em 1956, e o Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criado no ano seguinte, completam a relação das mais importantes.

O Decreto de fundação da Universidade de São Paulo (Decreto estadual nº 6.283, de 25 de janeiro de 1934) criou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e determinou que ficavam incorporados à nova universidade a Faculdade de Direito, a Escola Politécnica, a Escola Superior de Agricultura ''Luiz de Queiroz'', a Faculdade de Medicina e o Instituto de Educação. (Antunha, 1974, p. 85)1 1 . O autor informa que a Escola de Medicina Veterinária existente foi extinta, criando-se logo em seguida outra em seu lugar.

Em estudo sobre a fundação e a reforma da Universidade de São Paulo, Heladio Antunha informa que o Instituto de Educação realizava parcialmente um antigo projeto de criação de uma faculdade de educação em São Paulo. Datava dos primeiros anos da segunda década do século a discussão sobre a conveniência e a possibilidade de criação de uma escola superior de estudos pedagógicos especializados e de aperfeiçoamento para professores e administradores escolares, ou de ''aperfeiçoamento pedagógico dos professores e disseminação da cultura geral'' (Ibid., p. 98-99). O autor acompanha o percurso do Instituto de Educação desde suas origens, ainda como curso de nível médio na Escola Normal da Praça, até o nível superior. O processo de criação do Instituto de Educação começou quando o Decreto estadual nº 4.888, de 12 de fevereiro de 1931, criou ''na antiga Escola Normal da Praça, que então passa a denominar-se de Instituto Pedagógico'', um Curso de Aperfeiçoamento, como órgão de preparação técnica para inspetores, delegados de ensino, diretores de estabelecimentos e professores do curso normal. Esse Instituto Pedagógico, transformado, em 1933, no Instituto de Educação, seria incorporado, no ano seguinte, à Universidade de São Paulo.

Encerrou-se o processo, finalmente, com a extinção do Instituto de Educação e a sua conversão, em 1938, na Seção de Educação da Faculdade de Filosofia, depois transformada em Seção de Pedagogia e mais recentemente em Departamento de Educação. (...) Finalmente (com a Reforma de 1970), e com o desdobramento da antiga Faculdade de Filosofia, constituiu-se a Faculdade de Educação (voltando-se à denominação de 1920), à base da antiga Seção de Pedagogia, ou melhor, do antigo Departamento de Educação, que a sucedeu. (Antunha, 1974)

Os primeiros ocupantes dos cargos docentes do Instituto de Educação eram antigos professores do curso normal na Escola Normal da Praça. Entre eles encontravam-se, nas palavras de Antunha, ''algumas das figuras mais expressivas e mais respeitáveis da educação paulista''. Fernando de Azevedo, Almeida Júnior, Noemy da Silveira Rudolfer, Roldão Lopes de Barros, Milton da Silva Rodrigues, entre outros, vinculavam as preocupações e os estudos educacionais agora realizados na Faculdade de Filosofia à tradição de estudos e reflexões que marcaram as primeiras décadas do século na Escola Normal da Praça. Cabe destacar, como expressões pioneiras na definição dessa tradição de estudos, as contribuições de Antonio Sampaio Dória, Manuel Bergstrom Lourenço Filho e Fernando de Azevedo.

São antecessores ilustres. A Reforma da Instrução Pública de 1920, de Sampaio Dória, constituiu-se na primeira afirmação radical da necessidade de levar a instrução básica a todas as crianças do estado de São Paulo. Nessa época, calculava-se em cerca de 250 mil, isto é, em mais ou menos a metade da população em idade escolar, o número de crianças ainda não alcançadas pela escola primária. Nos meios políticos discutia-se a criação de um ''imposto escolar''. Mas o governo do Estado entendia que a população não aceitaria aumentos na carga tributária. O Diretor da Instrução Pública, Oscar Thompson, em carta circular na qual solicitava sugestões para a solução do problema do analfabetismo, perguntava aos destinatários como seria possível estender o ensino primário a todas as crianças sem aumento dos recursos públicos destinados à instrução popular.

Embora defendesse a necessidade de muitos anos de escolaridade para todos os brasileiros, pois dessa instrução dependeriam não só a qualidade da vida social, a democracia e a capacidade produtiva do povo, mas também a própria integridade nacional, ameaçada pelo melhor nível de instrução das legiões de imigrantes estrangeiros, Sampaio Dória, na conhecida carta aberta que, ainda em 1918, enviou em resposta a Oscar Thompson, propunha que o Estado estendesse somente para dois anos a escolaridade gratuita a todos. Recomendava, portanto, a fixação do curso primário em dois anos; a promoção automática da primeira para a segunda série, com eliminação ao fim da segunda, e, no fim do ano letivo, o pagamento aos professores de uma gratificação proporcional ao número de alunos alfabetizados (Beisiegel, 1999).

O educador defendia bem mais do que quatro anos de instrução primária para todos. Mas, considerando a inexistência de recursos, ''não sendo possível, imediatamente, elevar o povo brasileiro a um nível de educação ideal,'' dever-se-ia ''agir de forma progressiva, promovendo-se, inicialmente, a alfabetização popular. O governo do povo, pelo povo e para o povo, tem a sua legitimidade na educação mesma do povo'' (Ibid.).

Inspirada nessas idéias e conduzida pelo próprio Sampaio Dória, a reforma da instrução pública de 1920 teve curta duração. Mas deixou registrada na história da educação da República a afirmação da absoluta necessidade de estender a instrução primária para todas as crianças em idade escolar.

Lourenço Filho diplomou-se na Escola Normal Primária de Pirassununga, em 1914. Pouco tempo depois, em 1917, obteve novo diploma de professor, agora na Escola Normal Secundária da Praça. Para manter-se, trabalhou na redação do Jornal do Comércio (edição de São Paulo) e na Revista do Brasil, então dirigida por Monteiro Lobato. Como auxiliar e depois secretário de Lobato, conheceu numerosos intelectuais. Foi também redator de O Estado de S. Paulo, onde conviveu com Júlio de Mesquita, Júlio de Mesquita Filho, Nestor Rangel Pestana e Plínio Barreto (Lourenço Filho, 1996). Discípulo dileto de Sampaio Dória, seria indicado, pelo mestre, em 1920, para assumir, como substituto, a cadeira de Pedagogia e Educação Cívica na Escola Normal Primária anexa à Escola Normal da Praça. Em 1921, foi nomeado professor da Cadeira de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal de Piracicaba. Logo em seguida, por solicitação do governo do Ceará e por indicação do governo de São Paulo, assumiu a Direção da Instrução Pública daquele estado, aí permanecendo até 1923. Após reassumir sua cadeira na Escola Normal de Piracicaba, foi nomeado, em 1925, para a cadeira de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal Secundária da Praça, onde permaneceu até novembro de 1931. Em outubro de 1930, foi nomeado Diretor Geral da Instrução do estado de São Paulo. Em 19 de dezembro de 1931, transferiu-se para o Rio de Janeiro, para assumir a chefia de gabinete do Ministério da Educação e Saúde.

É importante salientar que Lourenço Filho viveu os primeiros tempos de sua formação intelectual no âmbito de um movimento radical de afirmação da necessidade de educação para todos (Beisiegel, 1999). Tratava-se, até então, de estender o ensino fundamental a todas as crianças. As necessidades educacionais de jovens e adultos não-escolarizados deveriam esperar ainda pouco mais de uma década para começarem a despertar a atenção dos responsáveis pela política educacional do Estado brasileiro.

Lourenço Filho teve atuação relevante em quase todos os setores da educação nacional por um longo período, desde os primeiros anos da década de 1920. Suas contribuições para a definição de campos de pesquisa na área da educação foram amplas e diversificadas. Pelo maior alcance, cabe destacar sua participação na criação e na direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP). Em boa parte como conseqüência dos estudos promovidos pelo INEP e atendendo às preocupações despertadas pelo recenseamento geral do país, Lourenço Filho, já a partir dos primeiros anos da década de 1940, começou a articular o projeto de extensão da educação fundamental aos jovens e adultos analfabetos. Em 1947, iniciou e coordenou a Campanha de Educação de Adultos, inaugurando a inserção da alfabetização de jovens e adultos nas políticas públicas do Estado. Signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação, de 1932, destacou-se como notável defensor e divulgador do pensamento comprometido com a renovação educacional do país.

Quando o Instituto de Educação foi incorporado à Universidade de São Paulo, Fernando de Azevedo já era um dos educadores mais prestigiados do país. Fora o responsável pela reforma do ensino no Distrito Federal. Redigira o ''Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova''. Logo em seguida, teria importante participação na fundação da Universidade de São Paulo.

O Manifesto continha posições inegavelmente avançadas. Para os educadores empenhados na construção de um sistema de ensino mais justo, respeitadas as diferenças de época e de conjuntura, muito do que defendia continua tendo validade, ou como afirmação de valores e objetivos a serem alcançados ou como orientações para a realização da pesquisa educacional. O próprio relator o entendia como um divisor de águas da opinião pública e dos educadores entre duas correntes, ''a do pensamento conservador, se não reacionário, e a dos renovadores'' (Azevedo, 1958, p. 55). Essa orientação renovadora estava presente, entre muitos outros itens, na afirmação das finalidades da educação nova, como ''uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional (...)'', uma educação nova que, deixando de servir aos interesses de classes,

a que tem servido, (...) deixa de constituir um privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um ''caráter biológico'', com que ela se organiza para a coletividade em geral, reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais, independentemente de razões de ordem econômica e social. (Azevedo, 1958, p. 64)

Como decorrência da defesa desse direito de cada indivíduo à sua educação integral, impunha-se ao Estado o ''dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com a colaboração de todas as instituições sociais'' (Ibid., p. 66). Ainda como decorrência dessa concepção de educação, defendia a laicidade, que situa a escola acima de crenças e disputas religiosas; a gratuidade, extensiva a todas as instituições oficiais de educação e a obrigatoriedade, que por falta de escolas ainda não se realizava nem no ensino primário, mas que deveria estender-se progressivamente até aos dezoito anos, uma idade conciliável com o trabalho produtor.

Entre muitos outros aspectos de grande interesse para a reflexão e a pesquisa no campo educacional, o Manifesto tratava da questão crucial do planejamento da reconstrução educacional. Apontava, antes de tudo, para a necessidade de corrigir a ''falta de continuidade e articulação do ensino, em seus diversos graus, como se não fossem etapas de um mesmo processo...''. A escola primária deveria articular-se com uma educação secundária unificada, com base comum de três anos, que deixaria de ser ''a velha escola de um grupo social'', para ser um ''aparelho flexível e vivo, organizado para ministrar a cultura geral e satisfazer às necessidades práticas de adaptação à variedade dos grupos sociais''. Defendia, ainda, a necessidade de ''uma reforma integral da organização e dos métodos de toda a educação nacional'', para substituir o conceito estático do ensino por um conceito dinâmico, que apontasse, ''desde o jardim de infância até à universidade, não à receptividade mas à atividade criadora do aluno'' (Ibid., p. 72).

Fernando de Azevedo continuaria a atuar na definição das orientações das pesquisas educacionais da Feusp também durante suas atividades na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que dirigiu entre 1956 e 1961.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi criada em 25 de janeiro de 1934, nos termos do Decreto nº 6.283, de fundação da Universidade de São Paulo. No estudo sobre as concepções que orientaram a criação da nova universidade, Antunha atribui especial importância à idéia de construir a Universidade de São Paulo com base numa Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, encarregada do cultivo de todos os ramos do saber, da promoção do ensino das disciplinas de caráter não-utilitário, da realização de pesquisas científicas e altos estudos de caráter desinteressado, de realizar cursos básicos de disciplinas comuns a outros institutos universitários e de colaborar na formação de professores. Ainda segundo Heladio Antunha, nesses momentos iniciais de implantação, ''a peculiar concepção dos objetivos e das funções integradoras da Faculdade de Filosofia é que dava ao modelo paulista a sua característica própria e inconfundível'' (Antunha, 1974, p. 87).

Mas, sob o ponto de vista da formação das orientações da pesquisa, talvez a mais importante das decisões sobre a organização da nova escola tenha sido a de contratar professores estrangeiros para iniciar, na Faculdade de Filosofia, ''sem os impedimentos do regime de cátedras, o estudo das disciplinas ainda não consolidadas no país''. Foi possível, assim, aprofundar na universidade a construção de uma tradição de pesquisas e de altos estudos, ''com a conseqüente formação de um novo quadro de intelectuais e de especialistas de alto gabarito'' (Ibid., p. 45).2 2 . O autor relaciona os professores estrangeiros que lecionaram na FFCL no período anterior à guerra. Incluem-se, entre eles, Luiggi Fantappié, Gleb Wataghin, Heinrich Reinboldt, Ettore Onorato, Felix Rawistscher, Ernest Breslau, Pierre Deffontaines, Michel Berveiller, Robert Garric, Francesco Piccolo, Paul-Arbousse Bastide, Claude Lévi-Strauss, Edgard Otto Gotsch, Francisco Rebelo Gonçalves, Pierre Hourcade, Jean Maugué, Pierre Monbeig, Fernand Braudel, Ernest Marcus, Paul Shaw, François Perroux, Luigi Galvani, Giuseppe Ungaretti, George Readers, Ottorino de Fiore di Cropani, Heinrich Hauptmann, Roger Bastide, Jean Gagé, Pierre Froment, Atilio Venturi, Fidelino de Figueiredo, Alfred Bonzon informa, ainda, que o fluxo de professores, praticamente interrompido com a guerra, prosseguiu depois de 1945, embora com menor intensidade. A instituição do tempo integral, a valorização dos laboratórios e o cuidado na constituição das bibliotecas universitárias, entre outras medidas, favoreceram a formação de hábitos de trabalho intelectual e o cultivo dos procedimentos da pesquisa científica.

Após 1938, o Departamento de Educação, em que fora transformado o antigo Instituto de Educação, funcionou na FFCL como responsável pelo curso de Pedagogia e pela formação pedagógica dos cursos de licenciatura, até a reforma de 1970. Durante todo esse período, seus professores e alunos puderam integrar-se plenamente no clima de trabalho intelectual e na tradição de rigor acadêmico que marcaram a Faculdade de Filosofia desde o início de suas atividades.

Data desses primeiros tempos a constituição dos três departamentos que, com algumas alterações, continuam a responder pelas atividades da Faculdade de Educação. O Guia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (Filosofia e Educação), de 1966, relata a origem dos atuais departamentos, ainda na Escola Normal da Praça. Os estudos de Administração Escolar, Legislação Escolar e Educação Comparada foram iniciados regularmente no Instituto de Educação sob a orientação de Roldão Lopes de Barros, conjugados com os estudos de Estatística Educacional, conduzidos por Milton da Silva Rodrigues. A Orientação Educacional incluía-se na cadeira de Administração Escolar e Educação Comparada até 1961, quando passou a constituir-se em disciplina autônoma do Departamento de Educação.

A cadeira de História e Filosofia da Educação, igualmente instituída no antigo Instituto de Educação, teve em Roldão Lopes de Barros seu primeiro titular.

O guia informa ainda que os estudos no campo da didática também foram iniciados no Instituto de Educação (ainda Instituto Pedagógico) em 1936, no curso de Formação Pedagógica do Professor Secundário, destinado exclusivamente aos licenciandos da Faculdade de Filosofia da USP.3 3 . Em 1948, a cadeira foi assumida pelo professor José Querino Ribeiro. A cadeira de Filosofia e História da Educação foi assumida pelo professor Laerte Ramos de Carvalho em 1951. Em 1942, por transferência de disciplina afim (Metodologia do Ensino Primário), a cadeira de Didática foi assumida pelo professor Onofre de Arruda Penteado Júnior. Em 1961, a disciplina de Orientação Educacional passou a ser regida pela professora Maria José Garcia Werebe. (Universidade de São Paulo, 1966, p. 32-33.)

O Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE) de São Paulo foi criado em 22 de maio de 1956, nos termos de um convênio celebrado entre o Ministério da Educação e Cultura e a reitoria da Universidade de São Paulo. Antes disso, o Decreto 38.460, de 28 de dezembro de 1955, havia instituído o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), com sede no Rio de Janeiro, e mais cinco centros regionais de pesquisas educacionais, sediados, respectivamente, em Recife, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre e São Paulo.

O Decreto 38.460 consolidava um projeto amadurecido ao longo de muitos anos por Anísio Teixeira. Desde sua permanência no cargo de Secretário da Educação na Bahia, entre 1947 e 1950, e especialmente após sua nomeação para a direção do INEP, em 1952, Anísio Teixeira vinha incentivando a realização de pesquisas com a intenção explícita de colocá-las a serviço da renovação educacional do país. De acordo com Márcia dos Santos Ferreira (2001, p.18), enquanto secretário na Bahia, criou a Divisão de Pesquisas do Departamento de Educação e Cultura da Secretaria e a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência na Bahia, órgãos que possibilitaram a realização de importante intercâmbio com a Universidade de Colúmbia, com a colaboração dos etnólogos Charles Wagley e Eduardo Galvão, que alguns anos mais tarde participariam ativamente na criação e na implantação dos centros de pesquisas educacionais. Outros intelectuais e educadores, em diferentes momentos, participaram na discussão e na elaboração do projeto (Ibid.).4 4 . Além dos já mencionados Charles Wagley e Eduardo Brandão, a pesquisadora relaciona, entre outros colaboradores, Almir de Castro, João Roberto Moreira, Armando Hildebrand, Carl Withers, Paulo Carneiro, Delgado de Carvalho, Francisco Montojos, Jayme Abreu, R. Atcon, Frederico Rangel, Marvin Harris, Aroaldo J. Aires, Henry Laurentie, Otávio Martins, Otto Klinenberg, Bertram Hutchinson, Florestan Fernandes, L. A Costa Pinto. As repetidas afirmações de Anísio a propósito dos centros de pesquisa como instrumentos da renovação educacional do país reencontravam, agora, cerca de vinte anos depois, os ideais já advogados pelo educador ao lado dos ''Pioneiros da Educação Nova'' no Manifesto de 1932.

Criado em maio de 1956 e instalado no mês seguinte, em prédio originalmente destinado pelo MEC a um Centro Regional de Aperfeiçoamento do Magistério, o CRPE/SP teve Fernando de Azevedo como seu primeiro diretor. O novo órgão acompanhava os objetivos fixados para o Centro Brasileiro:

1. pesquisa das condições culturais e escolares e das tendências de desenvolvimento de cada região e da sociedade brasileira como um todo, para o efeito de conseguir-se a elaboração gradual de uma política educacional para o país;

2. elaboração de planos, recomendações e sugestões para a revisão e a reconstrução educacional do país – em cada região – nos níveis primário, médio, e superior e no setor de educação de adultos;

3. elaboração de livros de fontes e de textos, preparo de material de ensino, estudos especiais sobre administração escolar, currículos, psicologia educacional, medidas escolares, formação de mestres e sobre quaisquer outros temas que concorram para o aperfeiçoamento do magistério nacional;

4. treinamento e aperfeiçoamento de administradores escolares, orientadores educacionais, especialistas de educação e professores de escolas normais e primárias.

De acordo com o ''Plano de Organização do CRPE de São Paulo'', (Ferreira, 2001, p.29) para atender a esses objetivos, o Centro propunha-se a empreender e financiar levantamentos, inquéritos e pesquisas educacionais e sociais; promover experiências e demonstrações práticas de novas técnicas de ensino em suas escolas experimentais; contribuir para a complementação da formação, o aperfeiçoamento e a especialização dos professores diplomados pelas escolas normais; aproveitar os resultados das pesquisas para o aperfeiçoamento das reformas educacionais em andamento e para o planejamento da reconstrução educacional do país; procurar esclarecer professores, diretores e inspetores de escolas sobre os problemas de educação, por meio de publicações ou diretamente, atendendo a pedidos e consultas; divulgar os trabalhos científicos realizados e permutar comunicações, para manter-se atualizado sobre os progressos realizados no país e no exterior nesse domínio de estudos e atividades (Ferreira, 2001, p. 29). Esse plano, fixado em janeiro de 1957, formalizava programação que em boa parte já vinha sendo seguida nas divisões do CRPE. Em correspondência dirigida a Fernando de Azevedo, em 24 de outubro de 1956, Anísio Teixeira já havia delineado as orientações dos trabalhos do Centro para os anos seguintes.

Nessa carta, Anísio Teixeira expunha suas idéias a respeito da pesquisa educacional e dos trabalhos que deveriam ser empreendidos pelo CRPE. Começava por recomendar a necessidade de transmitir,

a todo o sistema escolar, da classe à sala do diretor, a idéia de que todo esse imenso aparelho é um aparelho de coleta e registro de fatos; que tais fatos constituem a matéria-prima para a pesquisa, e que, portanto, se forem melhoradas as formas de registro dos fatos e os mesmos se fizerem cumulativos – na escola e na classe – encontrará sempre um material abundantíssimo para o estudo dos alunos, dos métodos e do conteúdo do ensino. Isso posto, um dos primeiros trabalhos-raiz do Centro seria o preparo de formulário e fichas para o registro de fatos escolares. Substituir o espírito puramente estatístico ou, se quiser, quantitativo dos registros escolares, pelo qualitativo. Haveria então uma ficha do aluno, desenvolvida e cumulativa, que nos daria a história do aluno na escola. Uma ficha idêntica do professor. E, possivelmente, outra de fatos escolares, algo como o diário de bordo de um navio. Com esses três documentos, teríamos sempre um conjunto de fatos seguidos e, repito, acumulados, isto é, longitudinais sobre o aluno, o professor e a escola: verdadeiro tesouro para pesquisas de toda espécie.

Segundo – Além da acumulação desse material, o professor e o diretor da escola seriam instruídos de que eles sempre se poderiam dirigir ao Centro para estudar problemas que lhes tivessem surgido e que não tivessem capacidade de resolver. Deste modo, não seriam apenas coletores de fatos, mas pessoas que estariam refletindo sobre esses fatos e sentindo os problemas que eles suscitavam. E assim estariam fazendo parte do grande corpo de pesquisadores educacionais em que se deve transformar toda a profissão do magistério.

Terceiro – Por sua vez, o Centro não deveria ser apenas um foco de pesquisas, mas, um núcleo de preparação de material de ensino, compreendido nesta expressão, tudo que fossem recursos materiais para a educação, desde livros, de texto e de fontes (...). (Ferreira, 2001, p. 178-179)5 5 . A autora informa que essa carta encontra-se reproduzida no livro organizado por Diana Vidal, Na batalha da educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971).

Comprometido acima de tudo com a reconstrução da escola pública no país, o programa então proposto por Anísio vinculava os estudos e as pesquisas da instituição às necessidades sociais na área da educação. Os primeiros trabalhos iniciados e desenvolvidos pelas divisões do CRPE corresponderam, na medida do possível, a essas orientações. A nova instituição apoiou a realização de um levantamento do ensino normal. Sua Divisão de Estudos Sociais promoveu um amplo levantamento do ensino primário. A Divisão de Estudos Educacionais iniciou pesquisas para a elaboração de uma ''ficha de observação do aluno'' e de uma ''escala de escolaridade'' (Ferreira, 2001, p. 62, 64 e 170). Essas orientações prevaleceram durante a gestão de Fernando de Azevedo, que se estendeu até maio de 1961. Nesse ano, com a renovação do convênio entre o MEC e a USP, a Direção do Centro foi atribuída a Laerte Ramos de Carvalho, que então dirigia o Departamento de Educação da FFCL. No ano seguinte, o Departamento de Educação e o Curso de Pedagogia passaram a funcionar nas instalações do CRPE. Funcionando no mesmo prédio e dirigidas pelo mesmo professor, as duas instituições estreitaram bastante suas relações. Nos anos seguintes, houve progressiva participação de professores do Departamento de Educação nos cursos e atividades do CRPE e, depois, diversos pesquisadores do Centro foram contratados por diferentes setores do Departamento de Educação da FFCL. Em 1976, com a conclusão do demorado processo de extinção dos centros de pesquisas educacionais do INEP, o acervo do CRPE foi incorporado ao patrimônio da Faculdade de Educação.

O Colégio de Aplicação da FFCL completa o quadro institucional considerado nesta exposição.

Criado em 13 de março de 1957, por convênio celebrado entre a Faculdade de Filosofia e a Secretaria de Educação do Estado, o Colégio, como centro de experimentação e demonstração pedagógica, visava a promover ensaios de renovação pedagógica do ensino secundário; estágios de observação e prática de ensino, estudos e investigações pedagógicas de professores e alunos da Faculdade de Filosofia; e aperfeiçoamento de professores do ensino secundário. (USP, 1966, p. 42)

O Colégio de Aplicação mantinha um Serviço de Orientação Pedagógica e um Serviço de Orientação Educacional, que atendiam à prática de ensino dos alunos das licenciaturas e à prática em orientação educacional dos alunos do curso de Pedagogia. Os serviços respondiam pela orientação pedagógica e educacional dos alunos do próprio Colégio e promoviam estudos e pesquisas nos respectivos campos de atuação. Muitos professores da Faculdade, sobretudo no Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada, foram recrutados entre os docentes do Colégio de Aplicação.

A partir de 1970, a transformação do antigo Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia na atual Faculdade de Educação, a institucionalização da pós-graduação e a ampliação das atividades de ensino, pesquisa e extensão universitária resultaram em considerável aumento do número de docentes e favoreceram as tendências à progressiva diversificação de campos de trabalho e especialização dos pesquisadores. A instituição dos concursos públicos como instrumento de seleção de candidatos à docência na Universidade intensificou a diversificação das origens dos novos quadros da Faculdade. Constituíram-se novos grupos de pesquisa, com associação de pesquisadores da Feusp a colegas de outras unidades universitárias do estado, do país e do exterior. Nesse período, muitos professores da Faculdade de Educação aprofundaram a interação com docentes de outras unidades da USP, de outras universidades e dos sistemas federal, estadual e municipal de ensino. Com maior velocidade, a partir dos últimos anos da década de 1980, intensificaram-se os contatos com universidades do exterior. A inserção internacional da Faculdade cresceu significativamente, com ativa interação dos pesquisadores com colegas e instituições estrangeiras, sobretudo em Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Estados Unidos, Japão, Cidade do Vaticano e, especialmente, países da América Latina. Nesse quadro de multiplicação dos contatos, de diversificação das eventuais fontes de referências e de crescente especialização das áreas de estudos e pesquisas, aumentaram consideravelmente também as alternativas de orientação intelectual dos docentes e de influência na definição dos respectivos campos de investigação.

Percebe-se, porém, que pelo menos uma parte dos estudos e pesquisas realizados pelos professores da Faculdade ainda tende a preservar um núcleo de características comuns, algo como um ''ethos'' acadêmico solidamente assentado nas raízes da instituição.

Não obstante a atual multiplicação de campos de interesse, a diversificação das filiações intelectuais e o crescente aprofundamento das especialidades, as marcas de origem na Faculdade de Filosofia continuam presentes nos hábitos de trabalho e na permanente exigência de rigor nas investigações. Ao mesmo tempo, guardadas as diferenças de tempo e de circunstâncias, é razoável afirmar-se que a Feusp continua ao menos parcialmente fiel às orientações de seus precursores. Continua sendo intensa e significativa a participação de professores da Faculdade na orientação e na condução de políticas públicas de educação no país, no estado e em numerosos municípios. Em parte significativa das pesquisas e dos estudos realizados na Faculdade, reencontram-se orientações e preocupações identificadas com os valores da educação democrática. Há, nesses trabalhos, um claro compromisso com a educação pública. E, à medida que a escola pública vai-se identificando principalmente com a educação das grandes massas populares, numerosos estudos, pesquisas e atividades da instituição passaram a orientar-se para os imensos desafios colocados pela educação popular, em todos os níveis do ensino.

Referências bibliográficas

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AZEVEDO, F. A educação entre dois mundos. São Paulo: Melhoramentos, 1958.

BEISIEGEL, C. R. Lourenço Filho e a educação popular no Brasil. In: PILETTI, N. (Org.) A atualidade de Lourenço Filho. São Paulo: FEUSP, 1999. (Estudos e Documentos, v. 41).

FERREIRA, M. S. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (1956/1961). 2001, 195p. Dissertação (Mestrado)_ Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

LOURENÇO FILHO, Ruy (Org.) Cronologia e bio-bibliografia do professor M.B. Lourenço Filho. Rio de Janeiro: Fundação Cesgranrio, 1996.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Guia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. São Paulo: FFCL/USP, 1966.

VIDAL, D. (Org.) Na batalha de educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: Edusf, 2000.

Celso de Rui Beisiegel é Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

  • 1
    . O autor informa que a Escola de Medicina Veterinária existente foi extinta, criando-se logo em seguida outra em seu lugar.
  • 2
    . O autor relaciona os professores estrangeiros que lecionaram na FFCL no período anterior à guerra. Incluem-se, entre eles, Luiggi Fantappié, Gleb Wataghin, Heinrich Reinboldt, Ettore Onorato, Felix Rawistscher, Ernest Breslau, Pierre Deffontaines, Michel Berveiller, Robert Garric, Francesco Piccolo, Paul-Arbousse Bastide, Claude Lévi-Strauss, Edgard Otto Gotsch, Francisco Rebelo Gonçalves, Pierre Hourcade, Jean Maugué, Pierre Monbeig, Fernand Braudel, Ernest Marcus, Paul Shaw, François Perroux, Luigi Galvani, Giuseppe Ungaretti, George Readers, Ottorino de Fiore di Cropani, Heinrich Hauptmann, Roger Bastide, Jean Gagé, Pierre Froment, Atilio Venturi, Fidelino de Figueiredo, Alfred Bonzon informa, ainda, que o fluxo de professores, praticamente interrompido com a guerra, prosseguiu depois de 1945, embora com menor intensidade.
  • 3
    . Em 1948, a cadeira foi assumida pelo professor José Querino Ribeiro. A cadeira de Filosofia e História da Educação foi assumida pelo professor Laerte Ramos de Carvalho em 1951. Em 1942, por transferência de disciplina afim (Metodologia do Ensino Primário), a cadeira de Didática foi assumida pelo professor Onofre de Arruda Penteado Júnior. Em 1961, a disciplina de Orientação Educacional passou a ser regida pela professora Maria José Garcia Werebe. (Universidade de São Paulo, 1966, p. 32-33.)
  • 4
    . Além dos já mencionados Charles Wagley e Eduardo Brandão, a pesquisadora relaciona, entre outros colaboradores, Almir de Castro, João Roberto Moreira, Armando Hildebrand, Carl Withers, Paulo Carneiro, Delgado de Carvalho, Francisco Montojos, Jayme Abreu, R. Atcon, Frederico Rangel, Marvin Harris, Aroaldo J. Aires, Henry Laurentie, Otávio Martins, Otto Klinenberg, Bertram Hutchinson, Florestan Fernandes, L. A Costa Pinto.
  • 5
    . A autora informa que essa carta encontra-se reproduzida no livro organizado por Diana Vidal,
    Na batalha da educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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