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Editorial

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Scientiæ udia publica no segundo número deste ano um conjunto de artigos que tratam das ciências formais ou de aspectos formais ligados às ciências, iniciando com uma apresentação da teoria da prova em Leibniz, continuando com uma análise da concepção de modelo no início do século xx e para a tensão entre física e metafísica, debruçando-se então sobre uma elucidação estruturalista da explicação em bioquímica e uma elucidação intencionalista da autoria dos objetos técnicos. Os documentos científicos retornam ambos ao início do século xx retomando, no primeiro, o conceito de "modelo" no verbete de Boltzmann e avançando, no segundo, o conceito de "número transfinito" na crítica ao logicismo por parte de Poincaré. Encerram o número duas resenhas sobre coletâneas recentemente publicadas em português e espanhol.

No artigo que abre o número, Mark Julian Cass apresenta com grande clareza a teoria da prova de Leibniz segundo a qual as demonstrações deveriam ser reformuladas como deduções a partir de identidades, na medida em que proposições do tipo A = A são consideradas como a fonte única de verdade. O autor explica essa teoria da prova, que é também uma teoria do conhecimento, assim como seus conceitos elementares, ou seja, os conceitos de identidade, verdade (ou possibilidade) e proposição, mostrando, neste último caso, como a teoria leibniziana da redutibilidade a proposições do tipo sujeito-predicado está vinculada à teoria da prova por redução a identidades.

Em seu artigo, Tatiana Roque e Antonio Augusto Passos Videira debruçam-se sobre as concepções de modelo que estiveram em jogo na passagem do século xix para o século xx, analisando em particular o uso de modelos mecânicos no tratamento dos fenômenos elétricos e magnéticos por parte de Maxwell. Os autores buscam mostrar como o ingresso dos modelos na física é concomitante ao abandono das tentativas de representação rigorosa e sistemática do conjunto de fenômenos físicos, representados pela teoria eletromagnética do final do século xix. Avançam também apresentado posições favoráveis como a de Boltzmann e desfavoráveis como a de Pierre Duhem. Produzem com isso um quadro histórico razoavelmente completo da introdução dos modelos na ciência.

Por sua vez, em seu artigo, Fábio Rodrigo Leite detém-se em uma detalhada análise das relações entre a física e a metafísica tal como vistas nas reconstruções históricas por Pierre Duhem que fazem transparecer três níveis de interação entre elas. Primeiro, no nível que talvez se possa designar como o das aspirações, os físicos são movidos por ambições (ou convicções) metafísicas que ultrapassam a rigorosa lógica; depois, no nível da sistematização, os sistemas metafísicos contribuíram para o progresso da teorização física e para o nascimento da ciência moderna; finalmente, no nível do desenvolvimento histórico, tradições metafísicas de pesquisa mostram-se mais férteis do que certas tradições positivas. Com essa articulação argumentativa, o autor procura atenuar a atribuição de instrumentalismo à posição do físico católico francês.

Karina Alleva e Lucía Federico, por sua vez, apresentam o que pode ser talvez a primeira reconstrução metateórica estruturalista da chamada teoria de Hill, isto é, da teoria que procura dar conta da atividade cooperativa das proteínas, em particular, da hemoglobina. Por meio da explicitação dos elementos teóricos envolvidos na estrutura dessa teoria, as autoras mostram como se dá a passagem da versão original explicativa proposta por Hill para a versão didática descritiva dessa mesma teoria, apresentada nos livros-texto de bioquímica. Com essa análise procuram elucidar o que se pode entender por "explicação" na bioquímica e a função do uso de certos mecanismos na construção de tal tipo de explicação.

Encerrando o conjunto de artigos, Diego Parente dedica-se a discutir criticamente as principais teses envolvidas na concepção intencionalista de autoria dos artefatos técnicos desenvolvida por Hilpinen. Com o objetivo de pôr a teste essa concepção e explicitar suas suposições, o autor intenta aplicá-la ao campo da produção técnica contemporânea, em particular, àquele dos chamados bioartefatos, ou seja, seres vivos com produção engenharizada, como seriam as sementes, seja as produzidas por técnicas tradicionais, seja aquelas produzidas pelas técnicas da biologia molecular e da engenharia genética.

Scientiæ udia publica neste número dois documentos científicos do início do século xx. O primeiro é o verbete "Modelo", publicado por Boltzmann na edição da Enciclopédia Britânica de 1902. Nele, o físico austríaco faz uma apresentação muito organizada dos vários usos de modelos na ciência, na técnica e na arte, a qual é particularmente esclarecedora de seu pensamento filosófico. Em sua introdução ao documento, Antonio Augusto Passos Videira, além de apresentar as principais contribuições científicas de Boltzmann que se situam nos domínios da teoria cinética dos gases e da mecânica estatística, da qual ele foi um dos fundadores, mostra a centralidade dos modelos na concepção de ciência de Boltzmann, segundo a qual as teorias científicas são representações dos fenômenos naturais, de modo que os modelos não apenas seriam inevitáveis, mas necessários, uma vez que tornavam possível o aperfeiçoamento contínuo da ciência.

O segundo documento publicado neste número é o discurso de Poincaré sobre os números transfinitos proferido em alemão na Universidade de Göttingen em 27 de abril de 1909, o qual possui um papel central no desenvolvimento da concepção matemática de Henri Poincaré. Em sua introdução ao documento, Jacintho Del Vecchio Júnior faz uma apresentação do pensamento de Poincaré acerca dos fundamentos da matemática para mostrar a seguir a centralidade do conceito de "predicatividade" como recurso teórico que, introduzido no discurso aqui traduzido a propósito dos números transfinitos, visa à resolução dos paradoxos relativos à teoria dos conjuntos e opõe Poincaré às concepções logicistas de Bertrand Russell então dominantes

Concluem o presente número de Scientiæ udia duas resenhas de coletâneas recentemente publicadas. Na primeira, Paula Mousinho Martins resenha a coletânea organizada por Waldomiro Silva Filho, no qual se recolhem contribuições cuja principal preocupação, do ponto de vista epistemológico, é discutir as consequências céticas do externismo em relação ao autoconhecimento, uma vez que essa posição, introduzida por Putnam, cria obstáculos não só para a própria definição de mente, mas também, em sua versão mais radical, para a possibilidade desta última conhecer seus próprios estados intencionais de modo direto, transparente e infalível. Além de pretender destruir o tradicional reduto autocognoscível da subjetividade, esta nova e desafiadora modalidade de ceticismo, estudada nos vários textos da coletânea, também rejeita a suposição de que meus estados intencionais sobrevenham localmente as minhas disposições físicas ou neurais individuais, isto é, sejam determinados por eventos do meu cérebro. Na segunda resenha, María de las Mercedes O'Lery apresenta as contribuições de reconhecidos pesquisadores do Brasil, Colombia, Espanha, México e Argentina, coletadas por Pablo Lorenzano e Oscar Nudler em torno da noção de "incomensurabilidade" na obra de Thomas Kuhn. São analisados nos diversos artigos que compõem a coletânea um variado número de problemas derivados da ideia de que as teorias separadas por uma revolução científica são incomensuráveis, tais como a mudança de significado, a referência dos termos teóricos, a racionalidade e os aspectos cognitivos da mudança científica, bem como suas implicações para as concepções realistas e antirealistas acerca das teorias científicas.

Os editores

Pablo Rubén Mariconda

Valter Alnis Bezerra

Osvaldo Pessoa Júnior

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2013
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