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Produção e transmissão de conhecimentos em coletivos kaingang

Knowledge production and transmission in kaingang collectives

Resumo

O artigo tem por objetivo refletir sobre as relações entre sistema xamânico, produção e transmissão de conhecimentos e corporalidade, a partir de uma etnografia junto a professores bilíngues da rede escolar estadual de Educação Básica do estado do Rio Grande do Sul, e junto a sábios e intelectuais indígenas kaingang. Igualmente, tenho a intenção de retomar a discussão de práticas próprias de aprendizagem, etnografadas durante os anos de 2013 a 2015, em contextos de oficinas e encontros de formação continuada de professores durante a realização da ação “Saberes Indígenas na Escola, Núcleo UFRGS”, analisando os atuais processos de escolarização em coletivos kaingang no Sul do Brasil. A partir da discussão de sua sócio-cosmo-ontologia relacional, apresento e analiso duas concepções de produção e transmissão de conhecimentos kaingang, que coexistem e estão complexamente interrelacionadas e conectadas: uma tradição cosmo-ontológica (produção e transmissão do conhecimento a partir das agências exercidas entre todos os existentes do cosmos – humanos e extra-humanos) e uma tradição oral-iconográfica, que se consolida nas ações cujo aprendizado se conforma nas práticas sociais, nos mitos, nos rituais e nas imagens, e que enfatiza a reciprocidade entre humanos, alicerçada nos saberes e fazeres dos seus anciães, sábios e intelectuais.

Palavras-chave
Sócio-cosmo-ontologia kaingang; Produção e transmissão de conhecimentos; Xamanismo; Corpo e pessoa; Educação escolar indígena

Abstract

This article aims to reflect on the relationships between the shamanic system, production and transmission of knowledge and corporeality, based on an ethnography with bilingual teachers from the state school network of Basic Education in the state of Rio Grande do Sul, Brazil, and together with kaingang indigenous scholars and intellectuals. Likewise, this work intends to resume the discussion of ethnographic learning practices during the years 2013, 2014, and 2015 in the context of workshops and continuing education meetings for kaingang teachers during the Indigenous Knowledge at School, UFRGS Nucleus, analyzing the current schooling processes in kaingang collectives in southern Brazil. From the discussion of their relational socio-cosmo-ontology, two conceptions of kaingang knowledge production and transmission are presented and analyzed, which coexist and are complexly interrelated and connected: a cosmo-ontological tradition (production and transmission of knowledge from the agencies exercised among all those existing in the cosmos – human and extra-human beings) and an oral-iconographic tradition, which is consolidated in actions, the learning of which conforms to social practices, rituals and images, and which emphasizes reciprocity between humans, based on the knowledge and practices of their elders, sages, and intellectuals.

Keywords
Kaingang socio-cosmo-ontology; Knowledge production and transmission; Shamanism; Body and person; Indigenous school education

SÓCIO-COSMO-ONTOLOGIA KAINGANG1 1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada como comunicação oral no GT 28 – Educação Indígena ou Intercultural: um debate epistemológico e político, na XI Reunião de Antropologia do Mercosul, Montevidéu, Uruguai, em 01/12/2015. Optei por grafar ‘kaingang’, como usual e amplamente vem sendo utilizado na literatura etnológica, e não ‘kanhgág’, como recomenda o dicionário de língua kaingang de Wiesemann (2011). Não obstante, as demais palavras no idioma indígena seguiram a grafia preconizada por este dicionário. Ademais, vocábulos em kaingang, no texto, permaneceram sem flexão de número, uma vez que o plural na língua indígena não utiliza o ‘s’, como é comum no português. Por último, fiz a opção de grafar a palavra kaingang com letra inicial minúscula quando se trata de um adjetivo (por exemplo, intelectuais kaingang, conhecimentos kaingang) e com inicial maiúscula quando a palavra está substantivada (os Kaingang, dos Kaingang).

A sócio-cosmo-ontologia kaingang, em suas múltiplas práticas, enfatiza a categoria corpo e sua composição no devir (Silva, 2001Silva, S. B. (2001). Etnoarqueologia dos grafismos kaingang: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]., 2002Silva, S. B. (2002). Dualismo e cosmologia kaingang: o xamã e o domínio da floresta. Horizontes Antropológicos, 8(18), 189-209. https://doi.org/10.1590/S0104-71832002000200009
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, 2014Silva, S. B. (2014). Cosmo-ontologia e xamanismo entre coletivos kaingang. In E. C. D. Fleck (Org.), Religiões e religiosidades no Rio Grande do Sul: Manifestações da religiosidade indígena (pp. 69-96). ANPUH.). A composição de um corpo kaingang pressupõe, pois, uma concepção de pessoa, que inclui uma vasta gama de conhecimentos, habilidades, propriedades e emoções que idealmente a compõe.

O cosmos kaingang, percebido como intensamente relacional, coloca em comunicação seres da série intra e extra-humana, em constante ação e reação uns sobre os outros. A fluidez e a multiplicidade das exterioridades (corpos) dos existentes do cosmos, e das habilidades e conhecimentos que carregam, postulam um investimento relacional importante entre pessoas humanas (Kaingang) e alteridades extra-humanas (demais pessoas do cosmos kaingang). A esse amplo e complexo sistema relacional denomino de sócio-cosmo-ontologia.

De um modo geral, os processos de composição ou dividuação (Strathern, 2006Strathern, M. (2006). O Gênero da dádiva. Ed. Unicamp.) do corpo e da pessoa humana são possíveis nesses mundos ameríndios que não fazem essa divisão ontológica e cosmológica entre o que nós, eurorreferenciados, chamamos de natureza e cultura. Nesses outros mundos possíveis, costuma não existir uma separação ente humanos e não humanos, como no dualismo antagônico ocidental. Nessas sócio-cosmo-ontologias indígenas, os existentes no cosmos são entendidos como seres de vontade, de desejo e de cultura, havendo entre eles uma hierarquia, uma gradação de pertencimento a níveis diferentes de humanidade (Descola, 1992Descola, P. (1992). Societies of nature and the nature of society. In A. Kuper (Org.), Conceptualizing Society (pp. 107-126). Routledge.). Para esses coletivos indígenas, todos esses seres, inclusive os que nós, os eurorreferenciados, designamos de animais, plantas, minerais, objetos, dentre outros, também possuem conhecimentos, propriedades, habilidades, vontades, desejos, sensibilidades. Para os Kaingang, esta interioridade, este ‘espírito’, denomina-se tãn, e está presente na maioria dos seres que habitam o cosmos (Silva, 2002Silva, S. B. (2002). Dualismo e cosmologia kaingang: o xamã e o domínio da floresta. Horizontes Antropológicos, 8(18), 189-209. https://doi.org/10.1590/S0104-71832002000200009
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, 2014; Rosa & Crépeau, 2020Rosa, R. R. G., & Crépeau, R. R. (2020). Puissance et connaissance animales chez les Kaingang du Brésil meridional. Anthropologica, 62(1), 60-69. https://doi.org/10.3138/anth.2018-0105.r1
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).

Esse conceito kaingang, seguindo a análise de Fausto (2008)Fausto, C. (2008). Dono demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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, pode ser compreendido como a potência que anima e protege todos e cada um dos agrupamentos de seres existentes no cosmos, sendo seus guardiães, em uma relação caracterizada pela maestria-domínio, que não se confunde com controle ou propriedade, conforme entendemos em contextos eurorreferenciados.

Sendo assim, o sistema sócio-cosmo-ontológico kaingang, percebido como intensamente interrelacional, atua produtivamente sobre a comunicação entre todos os seres constitutivos do cosmos e está aberto à relação contínua e generalizada entre todos os humanos e extra-humanos, não sendo essa comunicação operada exclusivamente pelo kujà (xamã). Esse detém, por outro lado, uma forte e intensa conexão com os jangré, seres da série extra-humana que possuem tãn com potentes agências e conhecimentos e que atuam como guias nas práticas curativas e de previsão xamânicas. Em outras palavras, todos os Kaingang têm possibilidade de interação com os tãn, mas somente os kujà acessam os poderosos jangré, cujas habilidades e conhecimentos, somados àquelas ligadas aos tãn dos diferentes seres do cosmos kaingang, lhes dão proeminente posição no sistema sócio-cosmo-ontológico indígena.

Nesse sentido, os Kaingang em geral, potencialmente, podem estabelecer relação com os tãn dos seres existentes do cosmos. No entanto, ela difere da relação dos kujà com o tãn de seu jangré, uma vez que é muito mais intensa, regular e plenamente estabelecida a partir de rituais específicos de iniciação do xamã. Há, portanto, uma hierarquia intrassérie humana no estabelecimento de relações com os seres extra-humanos.

Como se percebe, também na série extra-humana o caráter assimétrico está presente, pois há uma hierarquia entre as potências dos tãn dos seres pertencentes a estes agrupamentos, o que leva, igualmente, a uma hierarquização entre os xamãs, sendo considerados mais poderosos aqueles que mantêm relações com jangré mais potentes, como é o caso do jangré jaguar, modelo máximo de predador (Rosa & Crépeau, 2020Rosa, R. R. G., & Crépeau, R. R. (2020). Puissance et connaissance animales chez les Kaingang du Brésil meridional. Anthropologica, 62(1), 60-69. https://doi.org/10.3138/anth.2018-0105.r1
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, p. 64).

Silva (2014, p. 72)Silva, S. B. (2014). Cosmo-ontologia e xamanismo entre coletivos kaingang. In E. C. D. Fleck (Org.), Religiões e religiosidades no Rio Grande do Sul: Manifestações da religiosidade indígena (pp. 69-96). ANPUH. analisou detalhadamente as formas de induzir, provocar e negociar a relação com a alteridade extra-humana, objetivando incorporar habilidades e conhecimentos, que estão materializados em corpos, pedaços ou partes de outros seres do cosmos, através de inúmeras técnicas e rituais, que vão desde a confecção e o uso de pinturas, ‘adornos’, ‘objetos’ junto ao corpo (Figura 1),passando pelo banho (Figura 2), fumigação (Figura 3), ingestão, fricção, inalação de parcelas dos corpos desses seres do cosmos, até a experiência onírica, onde a relação com a alteridade acontece, sem esquecer das potências dos jangré e dos kujà.

Figura 1
Incorporando potências, conhecimentos e habilidades de alteridades extra-humanas (sementes) e humanas (objetos-sujeitos fóg – não indígenas). Rókãn em visita de pesquisa ao Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, usando colar de chefe kaingang do início do século XX.
Figura 2
Incorporando potências, conhecimentos e habilidades de seres extra-humanos através de banho ritual. Kujà Carlinhos Loureiro. Antigo acampamento de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, abr. 2007.
Figura 3
A-B) Incorporando potências, conhecimentos e habilidades de alteridades extra-humanas – ‘fumigação’. Antigo acampamento de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, abr. 2007.

De acordo com essa concepção do cosmos, seres das séries intra-humana e extra-humana são percebidos diferencial e complementarmente como pertencentes a uma das divisões duais: de um lado, seres kamé; de outro, seres kainru-kré. Essas metades cósmicas remetem aos gêmeos Kamé e Kainru, demiurgos kaingang (Silva, 2001Silva, S. B. (2001). Etnoarqueologia dos grafismos kaingang: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo].).

Tendo como referência essa discussão, os coletivos kaingang são aqui compreendidos como coletividades alargadas, que incluem na sua composição tanto seres pertencentes à série intra-humana quanto seres oriundos da série extra-humana. Tem-se, então, desde um ponto de vista epistemológico kaingang, não uma ‘sociedade’, termo ocidental indicativo de grupos formados exclusivamente por ‘humanos’, mas, sim, um coletivo que inter-relaciona todos os existentes do cosmos.

Por tudo o que já foi dito, vê-se que o corpo é uma fundamental categoria de entendimento para a compreensão do xamanismo e do sistema sócio-cosmo-ontológico kaingang. Igualmente, pode-se dizer que o corpo humano e a pessoa são percebidos pelos Kaingang de forma diferente de como o pensamos na tradição ocidental eurorreferenciada.

CONHECIMENTOS KAINGANG E SUA SÓCIO-COSMO-ONTOLOGIA RELACIONAL

Penso que as constatações já apresentadas possuem um importante valor analítico para que se possa discutir e avaliar a produção de conhecimentos e sua transmissão nos coletivos kaingang, uma vez que se está diante de um postulado epistemológico diferente daquele eurorreferenciado.

Esse me parece ser o verdadeiro desafio: enquanto, lá no início da disciplina antropológica, os antropólogos clássicos afiançavam que a diferença entre as diversas etnias estava estabelecida a partir de critérios culturais, o que os coletivos kaingang estão nos dizendo é que essas diferenças não são culturais, são diferenças de natureza, pois, se todos esses seres – chamados no ocidente de objetos (‘inanimados’), de animais, de plantas – têm cultura, vontade e desejo, não estamos diante de critérios culturais para estabelecer a diferença, mas sim diante de critérios que são de ‘natureza’, que dizem respeito a corpos diferentes, mas que têm um fundo comum de humanidade, de cultura e, principalmente, de possibilidade de relação entre eles, como já descrito, discutido e analisado, dentre inúmeros outros etnólogos, por Descola (1986)Descola, P. (1986). La Nature domestique: Symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Fondation Singer-Polignac et Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme., no que diz respeito aos Achuar, por Viveiros de Castro (1996)Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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, em relação aos Araweté, e por Lima (2005)Lima, T. S. (2005). Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. Editora UNESP., no que se refere aos Yudjá.

Assim, tomando-se o ponto de vista da epistemologia kaingang, as diferenças são de ‘naturezas’, de corpos com suas especificidades. Tem-se, então, uma questão fundamental, principal, para pensar tanto o conhecimento como a educação escolar indígena kaingang: será que se trata de uma questão de interculturalidade? Se, do ponto de vista dessa epistemologia indígena, todos os seres do cosmos têm conhecimentos e habilidades, o ponto focal a ser avaliado não é de interculturalidade, mas refere-se a internaturezas.

Do ponto de vista da sócio-cosmo-ontologia kaingang, o que diferencia a pessoa humana de um objeto, de um animal, de uma planta? É a natureza, o seu corpo, porque todos os seres existentes do cosmos são pessoas, com propriedades de vontade, de cultura, de agência. O que está em jogo não é a cultura, e sim a natureza.

O OBJETIVO DESTE ARTIGO

O que é conhecimento para os coletivos kaingang? Como se produz conhecimento a partir da relação que se faz com esses seres existentes do cosmos, que nós, no ocidente eurorreferenciado, não consideramos humanos e são fundamentais para produção do conhecimento para eles?

O professor kaingang D. R. Cardoso (comunicação pessoal, 28 jul. 2014), disse-me uma vez: “Eu aprendi com o rio, aprendi com a corrente de água. Ela me ensina quando está acordada. A água acorda, ela dorme, tem fluxo, ela traz o movimento, o tempo, uma série de conhecimentos. Ela pode ser remédio”.

Os objetivos deste artigo levam-me a trazer à discussão alguns elementos relacionados à obra dos filósofos da diferença, Deleuze e Guatarri (1995Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). Tradução: Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. Ed. 34., p. 8 e 22; 1996Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. Ed. 34., p. 90; s.d. [1972Deleuze, G., & Guattari, F. (s.d. [1972]). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Assírio & Alvim.], p. 150). Eles refletiram sobre a grande dificuldade que o ‘ocidente’ tem em perceber a diferença, trabalhá-la e aceitá-la. Esse fenômeno não acontece com a maioria dos grupos indígenas – e aqui, especificamente, com os Kaingang, exatamente por possuírem sistemas abertos, que buscam constantemente relação com as alteridades, sejam elas humanas ou extra-humanas.

É essa a questão central deste artigo: o sistema sócio-cosmo-ontológico kaingang apresenta-se amplamente aberto a esses outros, às alteridades. São mundos em intensa e densa mediação e relação com a alteridade, que se processa constantemente.

Conectando essa sócio-cosmo-ontologia relacional com as concepções de conhecimento e sua transmissão, tenho como presente entre os Kaingang a coexistência e a complexa inter-relação de uma tradição cosmo-ontológica (produção e transmissão do conhecimento a partir das agências exercidas entre todos os existentes do cosmos, humanos e extra-humanos) com uma tradição oral-iconográfica (que se consolida nas ações, nas imagens e nos rituais, e cujo aprendizado se conforma nas práticas sociais, e mesmo no silêncio, enfatizando a reciprocidade entre humanos).

Numa tradição iconográfica, segundo Severi (2004)Severi, C. (2004). Capturing imagination: a cognitive approach to cultural complexity. Journal of the Royal Anthropological Institute, 10(4), 815-838. http://www.jstor.org/stable/3803856
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, não são enfatizadas nem a palavra dita nem a palavra escrita, mas um híbrido entre ambas, no qual a memória social (e os conhecimentos tradicionais) é produzida e transmitida por imagens2 2 Para os coletivos kaingang, veja-se, por exemplo, Silva (2001) e Vidal et al. (2001). e enunciações rituais.

Já em uma tradição cosmo-ontológica, a transmissão do conhecimento ou de habilidades é um ato de incorporação de saberes ou propriedades de alteridades extra-humanas, ou seja, a aprendizagem é incorporada através da relação entre seres humanos e extra-humanos, com acento nos processos de criação de corpos e pessoas humanas.

Com relação à tradição oral-iconográfica apontada, o professor kaingang S. K. Amaral (comunicação pessoal, 28 jul. 2014) revelou-me uma importante reflexão sobre as formas diferenciadas dos processos de aprendizagem kaingang, enfatizando que os “Kaingang aprendem por si próprios, na prática”. Segundo ele, o modo de aprender kaingang baseia-se na observação e na ação de “fazer igual”. “A vida te ensina, você aprende na prática” (S. K. Amaral, comunicação pessoal, 28 jul. 2014).

Na mesma perspectiva dessa tradição oral-iconográfica, o professor kaingang Á. Paula (comunicação pessoal, 29 out. 2014) costuma referir que o seu “material didático são os velhos; que o conhecimento está nos velhos”, atestando a forte presença dessa tradição entre os coletivos aqui discutidos.

Sendo assim, o principal objetivo deste artigo é conhecer e analisar a produção e a transmissão do conhecimento a partir das agências exercidas entre todos os existentes do cosmos. Sem negar a forte presença da tradição oral-iconográfica, apenas secundariamente enfocarei a produção de conhecimento kaingang entre os seres da série intra-humana, alicerçada nessa tradição, ou seja, nos saberes e fazeres dos seus anciães, sábios e intelectuais (Figura 4).

Figura 4
Transmissão de conhecimentos via tradição oral-iconográfica. Pintura corporal com grafismos ligados aos gêmeos ancestrais Kamé (tej – compridos) e Kainru (ror – redondos). Antigo acampamento de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, abr. 2007.

Nos ambientes escolares do ocidente eurorreferenciado, essa é a única tradição que se costuma apontar para coletivos indígenas, em geral, e para os Kaingang, em particular, sem, contudo, levantar ou analisar o seu caráter iconográfico. Essa visão ocidental tem sérias e dramáticas consequências para o debate e a implantação da educação escolar indígena diferenciada e própria no cenário das políticas educacionais para coletivos indígenas.

Esse é o motivo de minha opção, no presente artigo, de apresentar e discutir aspectos da tradição cosmo-ontológica.

A ETNOGRAFIA E SEU CONTEXTO

O trabalho de campo foi possibilitado pela minha participação, nos anos de 2013, 2014 e 2015, da estrutura da Rede da Ação Saberes Indígenas na Escola – Núcleo Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), como professor conteudista. A Rede estava assim organizada: coordenador-geral da rede no Instituto de Ensino Superior (IES) Sede (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG); coordenador do Núcleo UFRGS; supervisores do Núcleo; professores conteudistas (pesquisadores, doutores ligados à UFRGS); pesquisadores indígenas (4 Kaingang); professores formadores (mestres e doutorandos, inclusive indígenas); professores indígenas orientadores de estudos vinculados às escolas indígenas (15 professores kaingang); professores indígenas cursistas vinculados às escolas indígenas (150 professores kaingang); e coordenadores da ação vinculados à Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (SEDUC RS).

Ela destinava-se a promover a formação continuada de professores indígenas de Educação Básica, que, no caso do Núcleo UFRGS, abrangia as etnias Kaingang e Guarani, tendo como objetivos: 1) apoiar os professores indígenas em suas atividades didático-pedagógicas; 2) oferecer subsídios para a elaboração de currículos, definição de metodologias e processos de avaliação que atendessem às especificidades do povo indígenas; e 3) fomentar pesquisas que resultassem na elaboração de materiais didáticos e paradidáticos, conforme a situação e especificidade da Educação Escolar Indígena enfocada (Portaria n. 1062, de 30 outubro de 2013Portaria n. 1062, de 30 outubro de 2013. Institui o Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais – PNTEE. https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/31176478/do1-2013-10-31-portaria-n-1-062-de-30-de-outubro-de-2013-31176474
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).

Nesse cenário, minha interlocução mais direta foi com os quatro pesquisadores indígenas, especialistas do sistema sócio-cosmológico kaingang, alguns sendo kujà (Dorvalino Cardoso, Pedro Sales, Iracema Nascimento e Jorge Garcia), com os dois professores formadores indígenas (mestres Bruno Ferreira e Fátima Trindade do Amaral), com o professor orientador de estudo Selvino Kókáj do Amaral, à época professor na escola da Fág Nhin (Lomba do Pinheiro), que coordenou os trabalhos das escolas da região metropolitana de Porto Alegre, e com os inúmeros professores cursistas que se dedicaram às atividades do Núcleo UFRGS.

Os encontros promovidos com os professores kaingang da região metropolitana de Porto Alegre foram acompanhados de perto por mim e por alguns bolsistas ligados à UFRGS (Ana Letícia Meira Schweig, Eduardo Schaan, Camila Dilli Nunes e Bruna Morelo).

Nesses momentos, além do professor Selvino, estavam presentes os professores cursistas da área metropolitana de Porto Alegre: Vera Lucia Claudino Ribeiro, da Fág Nhin; Orilde Ribeiro, de Farroupilha; Ramilton Kafej Manoel Antonio, de Jamã Ty Tãnh (Estrela); Álvaro de Paula e Antonio Raul da Silva, da Tup? Pãn (Morro do Osso); Tiago Farias (Lajeado) e Josme Cosme (in memoriam), da Por Fi Ga (São Leopoldo).

O encontro etnográfico que aqui relato também teve outros interlocutores decisivos para minha análise no presente artigo: os 150 professores cursistas kaingang, especialmente aqueles ligados às escolas da região de Porto Alegre, com os quais tive uma relação mais contínua e próxima. De qualquer forma, essa rica e importante interlocução também se estabeleceu ao longo de encontros mais amplos com parte ou a totalidade dos professores cursistas presentes.

É importante mencionar que esse universo de interlocução, apesar de estar mais relacionado aos professores indígenas, tem como principal característica uma complexa amplitude de posições pessoais, que incluem professores, intelectuais, sábios, anciões e xamãs kaingang. Igualmente, é importante destacar que essas posições são intercambiáveis e não marcadas por fronteiras rígidas.

Começo, então, apresentando e discutindo algumas falas desses interlocutores.

A professora V. L. C. Ribeiro (comunicação pessoal, 11 dez. 2014), filha do cacique de sua área, afirmou que se descobriu kujà (xamã) recentemente. Vera aprendeu a língua kaingang tardiamente, pois viveu fora da aldeia. Seu “lado xamã” foi surgindo depois de ter começado a trabalhar na escola, com cultura indígena. Diz sonhar com os “remédios” (v?nh kagta) e onde buscá-los para os doentes que a procuram ou falam sobre suas doenças, demonstrando a estreita conexão entre seres da série extra-humana e conhecimento. Além disso, sua fala acentua que, no seu caso, essas relações com os seres do mato, e os consequentes conhecimentos deles advindos, são estabelecidas através do sonho, o que evidencia prática de aprendizado totalmente fora do cenário da educação eurorreferenciada.

Para o Professor D. Cardoso (comunicação pessoal, 6 jan. 2015), os kujà estão acima de todos os líderes, tendo a figura do cacique surgido com a política dos brancos. Corroborando a diferença marcante entre os modos de aprendizagem e a produção do conhecimento entre os Kaingang e a epistemologia eurorreferenciada, ele afirma ter aprendido “muito pouco no meu mundo na Universidade” (D. Cardoso, comunicação pessoal, 11 dez. 2014), apontando para a tradicional vinculação entre conhecimento e práticas entre humanos, por um lado, e entre conhecimento e relações com alteridades extra-humanas, como se verá a seguir.

As prioridades e os objetivos para levar adiante a ação Saberes Indígenas na Escola, elencadas pelos professores e pesquisadores kaingang dela participantes, listadas a seguir, expressam a coexistência e o imbricamento, essa complexa conexão, entre as tradições de produção e transmissão de conhecimentos aqui analisadas: 1) retomar ‘marcas tribais’ (patrimetades Kamé e Kainru) e seu conhecimento; 2) escrever as histórias de cada comunidade e sua escola; 3) registrar trajetórias de ex-alunos; 4) coletar histórias sobre ervas; cânticos; 5) discutir as variantes da língua; 6) reverter a ausência de livros em kaingang nas salas de aula das escolas da área metropolitana de Porto Alegre e adjacências; 7) registrar em vídeo e retomar práticas pedagógicas consideradas kaingang, dentre as quais: banhos com ervas, benzimento, fumigação, massagens (com graxas de tatu e de mão-pelada – Procyon cancrivorus); “colocar em prática nossa pedagogia indígena”; “trabalhar com o kujà”; 8) reivindicar, nos órgãos oficiais de educação, a presença dos kujà nos encontros; 9) enfatizar o ato de pesquisar com o velho3 3 Encontro na Escola de Por Fi Ga – São Leopoldo, em 15.12.14. Além dos professores cursistas, estavam presentes os pesquisadores indígenas João Padilha, Iracema Nascimento e Dorvalino Cardoso. .

Apontando para relações com seres extra-humanos, na constituição de corpos e pessoas kaingang compósitos e dividuais, reforçando a potência da alteridade como conhecimento a partir de si mesmo, de seus corpos que interagem, de suas experiências e de suas emoções, o professor S. K. Amaral (comunicação pessoal, 15 dez. 2014) traz inúmeros exemplos. Ele nos fala da captura de propriedades através da relação com outros seres existentes do cosmos, possuidores de informações, nomes, propriedades. Sua fala enfatiza que o ‘remédio’ (vẽnh kagta) utilizado tem vida.

Suas informações, no que diz respeito às relações estabelecidas com alguns seres da série extra-humana são as seguintes:

  1. Cobra. Renova-se constantemente com a troca de sua pele. Comê-la traz essa propriedade e essa experiência de renovação a quem a ingere;

  2. Pulmão de peixe. Sua ingestão proporciona às crianças a habilidade de crescerem como bons nadadores;

  3. Barro que adere às patas de um cavalo. Seu uso junto ao corpo, principalmente pernas e pés de crianças, faz com que adquiram as propriedades e habilidades para correr velozmente;

  4. Rabo de peixe. Usado pelos kujà na formação de corpos de guerreiros. As habilidades e os conhecimentos relacionados ao ato de esquivar-se de perigos, de movimentar-se rápida e inesperadamente, são adquiridos através de sua ingestão;

  5. Rabo do tatu e pênis seco do quati. Sua ingestão tem agência, no primeiro caso, sobre a sexualidade masculina e, no segundo, sobre a feminina (S. K. Amaral, comunicação pessoal, 15 dez. 2014).

As propriedades, potências, habilidades e os conhecimentos destes seres extra-humanos são adquiridos através de técnicas rituais de ingestão ou contato com a totalidade ou de partes desses seres. Nos casos indicados pelo professor Selvino, é por intermédio da ingestão ou contato que a relação com a alteridade acontece, estabelecendo a incorporação da potência do outro, a habilidade do outro, o conhecimento do outro, por meio de ‘objetos’ ou coisas feitas com partes do corpo da alteridade extra-humana.

No mesmo diapasão, o professor I. R. Jacinto (comunicação pessoal, 7 jan. 2014) traz o exemplo de seu pai octogenário, que sempre passa em seus músculos pedras de rio, tendo delas incorporado a durabilidade.

Por sua vez, o professor D. Cardoso (comunicação pessoal, 28 jul. 2014) costuma fazer uma afirmação contundente: “Não cabe tudo na escola”. Igualmente, ele habitualmente pergunta: “Como é que a gente aprende? Como é que a gente ensina?”. E ele mesmo responde: “Nós aprendemos com a natureza, com as coisas da vida, com a cosmologia”. E prossegue: “Damos valor para o rio, para a árvore, para os animais”.

Problematizando a questão do conhecimento tradicional kaingang, o professor D. Cardoso (comunicação pessoal, 28 jul. 2014) costuma fazer outra pergunta: “Quem é o autor dos diversos tipos de dança e de músicas?” E ele mesmo responde: “Os animais, os passarinhos”.

O professor S. K. Amaral (comunicação pessoal, 28 jul. 2014) trouxe outra importante reflexão sobre a produção do conhecimento e sobre as formas diferenciadas dos processos de aprendizagem kaingang, nesse caso apontando para a tradição oral-iconográfica, enfatizando que os “Kaingang aprendem por si próprios, na prática”. Falou sobre o modo de aprender kaingang, afirmando que “eles são observadores, não ficam ensinando, não perguntam, têm que ver para fazer igual”. Disse que eles “não gostam de curiosos, que a vida te ensina, não são de ficar mostrando o processo, você aprende na prática”.

Uma outra fala do professor D. Cardoso (comunicação pessoal, 28 jul. 2014) segue o fluxo geral dos comentários etnografados e que ora analisamos. Ele diz que aprendeu olhando o movimento da água. Aprendeu que ela é viva, é remédio, tem tempo de descansar, de acordar, de atividades mais intensas. Continuando com este importantíssimo exercício reflexivo, que conectou processos de aprendizagem com concepções epistemológicas kaingang, Dorvalino fala que aprendeu observando os animais e os pássaros.

Demonstrando a coexistência da tradição cosmo-ontológica, acima exemplificada, com o que aqui denomino tradição oral-iconográfica, o professor S. K. Amaral (comunicação pessoal, 15 dez. 2014) afirma que “o jeito de aprender dos Kaingang é olhar o que os outros fazem; o que é diferente do mundo branco no qual as crianças precisam ler, escrever, por exemplo. No mundo kaingang é diferente”. E deu um exemplo de quando era criança. Disse que seu pai não o obrigava a ir para o mato com ele para colher lenha (para ele aprender a colher), mas que ele, como criança, saía correndo atrás do pai, o seguia, e ficava olhando o pai colher lenha, até que aprendeu. Segundo o professor S. K. Amaral (comunicação pessoal, 15 dez. 2014), a criança tem que estar junto, envolvida em fazer alguma coisa, para que, então, ela aprenda e cresça. Diz que é pensando nessas formas de aprendizagem que devem apresentar um material didático à ação Saberes Indígenas na Escola, que pode ser um material bem simples, fácil de entender.

Antes desse momento, o professor S. K. Amaral (comunicação pessoal, 29 out. 2014) expôs sobre possibilidades de temáticas para o material didático: medicina tradicional, ervas, tabus alimentares, frutas do mato, plantas, animais terrestres, animais aquáticos, rituais (onde destacou o papel dos penh – que possuem as duas marcas, das patrimetades Kamé e Kainru, e podem tratar com os mortos), destacando que estes temas poderiam “chamar a discussão com os alunos, nos dois ou só em um idioma”. O professor S. K. Amaral (comunicação pessoal, 29 out. 2014) também tem a ideia de focar o planejamento do livro didático em árvores frutíferas, já que poucos alunos conhecem as frutas tradicionais. Os poucos que conhecem são os que acompanham os pais nas idas ao mato para coletar material de cipó, destacando esse momento e espaço educativo tradicional, quando aqueles ensinam aos filhos sobre as plantas e uma série de outros conhecimentos.

O professor Á. Paula (comunicação pessoal, 29 out. 2014) (Morro do Osso) sugere uma questão para os professores participantes refletirem: como se dá a classificação dos animais do ponto de vista kaingang – “animais que ensinam, animais kamé e kainru, mais longe, mais perto, conversar com os animais, ouvir, entender e trazer conhecimento (o mesmo serve para as plantas)”.

Igualmente, reafirmando aqui a coexistência e a inter-relação apontadas entre as tradições cosmo-ontológica e a oral-iconográfica, o professor Á. Paula (comunicação pessoal, 29 out. 2014) diz que o material didático dele são os velhos (kofá), que os conhecimentos estão nos velhos. Ele fala também sobre os nomes kaingang, onde fica clara essa conexão entre as duas tradições analisadas:

Nome não é só pra bonito. Meu vô escolheu o nome do meu filho, mas eu troquei (me enganei) porque não pensei direito e ele era mais antigo e sabia mais. Ele escolheu um nome ror (kainru) porque ele é ror; e eu havia trocado (me enganado com) as metades e coloquei um nome tej (kamé). Não pode só tirar conhecimento, os nomes vêm da floresta

(Á. Paula, comunicação pessoal, 29 out. 2014).

Os kofá são importantes guardiões e transmissores dos conhecimentos, que, no caso dos nomes kaingang, estão diretamente conectados às propriedades e habilidades (tãn) dos seres extra-humanos.

Em uma de suas falas, o professor D. Cardoso (comunicação pessoal, 29 out. 2014) profere uma preciosidade sobre o processo de conhecimento kaingang, dizendo da relação muito íntima desse processo com os animais. E alarga: “todo ser humano aprendeu com a natureza. Vidas aprendendo entre si”.

E complementa:

Não se pode cortar a taquara quando quer, a taquara tem tempos. Tem que se pedir licença para o espírito (tãn) da taquara, e de como que, se a autorização não é pedida, a taquara pode esconder os melhores ramos. A classificação dos Kaingang não é de vertebrado/invertebrado, é de contato direto com as pessoas, animais e outras coisas. É igual morar em Porto Alegre: a gente acabou aprendendo o português, e nós podemos falar a língua dos bichos na convivência com eles. Como eu digo no meu trabalho, são vidas aprendendo entre si

(D. Cardoso, comunicação pessoal, 29 out. 2014).

COMENTÁRIOS FINAIS

A sócio-cosmo-ontologia kaingang não faz uma divisão entre o que nós, eurorreferenciados, chamamos de natureza e cultura. A maioria dos existentes do cosmos são seres que têm vontade, desejo, sensibilidades, habilidades e conhecimentos. A princípio, como vimos, os Kaingang fazem uma diferenciação entre seres da série intra-humana e seres da série extra-humana, todos eles considerados como pessoas.

Penso que é exatamente essa não separação entre sociedade/cultura e natureza que ficou evidenciada pela etnografia e pela discussão presentes neste artigo. Essa constatação é-nos extremamente importante no sentido do entendimento da especificidade epistemológica kaingang, que se abre e positiva as relações com as alteridades humanas e extra-humanas.

Estou convencido de que, para vencer os perigos internos presentes nas armadilhas da epistemologia eurorreferenciada e nos ensinamentos dos antropólogos clássicos – para os quais a diferença entre os povos estava estabelecida a partir de critérios culturais –, é urgente e fundamental que possamos atingir uma melhor compreensão dos processos de produção e transmissão de conhecimentos entre os coletivos kaingang.

O que são os conhecimentos para os coletivos kaingang? Como se produz conhecimentos a partir da relação que se faz com esses seres que o mundo eurorreferenciado não considera humanos e são fundamentais para produção do conhecimento para eles?

O professor D. Cardoso (comunicação pessoal, 28 jul. 2014), como vimos, é enfático em afirmar constantemente: “Eu aprendi com o rio, aprendi com a corrente de água; ela me ensina quando está acordada. A água acorda, ela dorme, tem fluxo, ela traz o movimento, o tempo, uma série de conhecimentos, ela pode ser remédio!”.

O sistema kaingang é muito mais aberto ao outro, à alteridade radical, aos seres extra-humanos. Constitui-secomo um mundo em que se percebe e se produz a partir de constantes e intensas relações entre os existentes do cosmos. Estamos diante, pois, de uma sócio-cosmo-ontologia instável, em contínua transformação e de criação de seus corpos e de suas pessoas.

A partir dos exemplos etnográficos aqui apresentados, percebo a produção de conhecimentos entre os Kaingang como um encontro positivo, intenso e produtivo com uma alteridade, que, nos casos discutidos, pertencem tanto à série humana como à extra-humana.

Os processos de incorporação diante de um corpo fluido, dinâmico em suas transformações, que se compõe de inúmeras propriedades, essências, habilidades, informações, nomes e conhecimentos ao longo da duração da pessoa kaingang, são fundamentais para o entendimento de como é percebido o conhecimento e sua transmissão. Com certeza, essas relações são procuradas, perseguidas tanto pelas pessoas que querem adquirir as habilidades e os conhecimentos desses seres quanto por aqueles que são responsáveis pelos cuidados com pessoas em formação, como familiares muito próximos e xamãs. Outros encontros, especialmente com alteridades potencialmente perigosas, obviamente são evitados, o que reforça a lógica dessa epistemologia relacional ou desse cosmos percebido, constituído e reconfigurado continuamente por relações.

Essa captura, na qual também as práticas oníricas estão presentes, acontece porque é possível estabelecer com os seres da série extra-humana uma intensa interlocução, uma troca produtiva de perspectivas, habilidades e conhecimentos, tendo-se aí a base da tradição cosmo-ontológica de produção e transmissão de conhecimentos

Por outro lado, coexistindo e intimamente inter-relacionada com esta, tem-se uma tradição oral-iconográfica, cujo lastro é a reciprocidade entre os seres da série intra-humana e que está ancorada nas práticas, nas imagens e nos rituais, cujo aprendizado e a produção de conhecimentos se conformam nas práticas sociais e mesmo no silêncio.

Infelizmente, a educação escolar aos moldes eurorreferenciados está muito longe de uma compreensão adequada desses modos de produção e transmissão de conhecimentos e suas práticas pedagógicas próprias.

AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela concessão de bolsa de produtividade em pesquisa. Aos colegas e bolsistas da ação Saberes Indígenas na Escola, Núcleo Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Aos Kaingang, pela interlocução, convívio e amizade.

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    Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada como comunicação oral no GT 28 – Educação Indígena ou Intercultural: um debate epistemológico e político, na XI Reunião de Antropologia do Mercosul, Montevidéu, Uruguai, em 01/12/2015. Optei por grafar ‘kaingang’, como usual e amplamente vem sendo utilizado na literatura etnológica, e não ‘kanhgág’, como recomenda o dicionário de língua kaingang de Wiesemann (2011)Wiesemann, U. G. (2011). Kaingang - Português | Português - Kaingang Dicionário (2 ed.). Editora Evangélica Esperança. https://www.yumpu.com/pt/document/read/12744787/dicionario-portugues-kaingang/175
    https://www.yumpu.com/pt/document/read/1...
    . Não obstante, as demais palavras no idioma indígena seguiram a grafia preconizada por este dicionário. Ademais, vocábulos em kaingang, no texto, permaneceram sem flexão de número, uma vez que o plural na língua indígena não utiliza o ‘s’, como é comum no português. Por último, fiz a opção de grafar a palavra kaingang com letra inicial minúscula quando se trata de um adjetivo (por exemplo, intelectuais kaingang, conhecimentos kaingang) e com inicial maiúscula quando a palavra está substantivada (os Kaingang, dos Kaingang).
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    Para os coletivos kaingang, veja-se, por exemplo, Silva (2001)Silva, S. B. (2001). Etnoarqueologia dos grafismos kaingang: um modelo para a compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. e Vidal et al. (2001)Vidal, L. B., Castro, E., Silva, S. B., Müller, R. P., Silva, F. A., Barcelos Neto, A., . . . Van Velthem, L. (2001). As artes indígenas e seus múltiplos mundos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (29), 10-41..
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    Encontro na Escola de Por Fi Ga – São Leopoldo, em 15.12.14. Além dos professores cursistas, estavam presentes os pesquisadores indígenas João Padilha, Iracema Nascimento e Dorvalino Cardoso.
  • Silva, S. B. (2022). Produção e transmissão de conhecimentos em coletivos kaingang. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 17(2), e20200135. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0135

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Editado por

Responsabilidade editorial: Jorge Eremites de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2020
  • Aceito
    02 Out 2021
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