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Memórias bioculturais dos Guarani-Kaiowá sobre a floresta e os seres que a coabitam: ecologia cosmopolítica na perspectiva da etnoconservação

Guarani-Kaiowá biocultural memories of the forest and the beings that live in it: cosmopolitical ecology from the perspective of ethnoconservation

Resumo

Este trabalho é fruto de uma construção colaborativa e participante entre uma pesquisadora kaiowá, sua comunidade e uma pesquisadora não indígena, cujo objetivo foi registrar as memórias bioculturais do povo Kaiowá sobre a floresta e os seres que a coabitam, e refletir sobre elas, a fim de tecer um diálogo sobre a etnoconservação, na perspectiva da ecologia cosmopolítica. Metodologicamente, foi baseado na investigação-ação participativa, de modo que o caminho metodológico foi construído através de oficinas participativas, turnês guiadas, listagem livre e entrevistas. As/os participantes foram a comunidade escolar e três lideranças espirituais Tekoha Tapy Kora, do município de Amambai, Mato Grosso do Sul. Como resultado, ficou evidente que a presença da floresta em seus diversos patamares e sua diversidade de seres compõem parte vital do tekoha (território da vida) e possibilitam a existência da vida em todas suas dimensões. As mobilizações políticas dos povos indígenas em defesa dos territórios e da biodiversidade têm apontado novos horizontes epistêmicos e políticos para as pesquisas da etnobiologia e da biologia da conservação. Esse diálogo entre diferentes ciências pode contribuir para o fortalecimento da luta pela existência e pela recomposição da vida em suas múltiplas dimensões.

Palavras-chave
Biodiversidade; Conhecimento tradicional guarani-kaiowá; Conservação da biodiversidade; Etnobiologia

Abstract

This paper is the result of a collaborative and participative construction between a Kaiowá researcher, her community, and a non-indigenous researcher which reflects on the importance of the Kaiowá people’s biocultural memories of the forest and the beings that inhabit it together, weaving a dialog on ethnoconservation from the perspective of cosmopolitical ecology. Participatory active research was used, with the methodology constructed through participatory workshops, guided tours, free listing, and interviews. The participants were the school community and three Tekoha Tapy Kora spiritual leaders in Amambai, Mato Grosso do Sul. We found that the presence of the forest (in its various levels and diversity of beings) comprises a vital part of the tekoha (territory of life) and permits life to exist in all its dimensions. The political mobilizations of indigenous peoples in defense of territories and biodiversity indicate new epistemic and political horizons for research in ethnobiology and conservation biology. This dialog between different sciences can contribute to the struggle for existence and the recomposition of life in its multiple dimensions.

Keywords
Biodiversity; Traditional Guarani-Kaiowá knowledge; Biodiversity conservation; Ethnobiology

INTRODUÇÃO

Os conhecimentos tradicionais, as ciências indígenas e a biologia da conservação têm muito a compartilhar entre si quando se trata de identificar teorias, técnicas e métodos para manejar e sustentar paisagens sustentáveis. Com base nos registros da literatura científica, é evidente que alguns povos indígenas mantiveram conhecimentos ambientais distintos, sistemáticos, localizados e de base local por longos períodos, de forma que esses sistemas de conhecimento de longa duração contêm informações extensas sobre como administrar os ecossistemas biodiversos (Johnson et al., 2016Johnson, J. T., Howitt, R., Cajete, G., Berkes, F., Louis, R. P., & Kliskey, A. (2016). Weaving Indigenous and sustainability sciences to diversify our methods. Sustainability Science, 11(1), 1-11. https://doi.org/10.1007/s11625-015-0349-x
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; Garnett et al., 2018Garnett, S. T., Burgess, N. D., Fa, J. E., Fernández-Llamazares, Á., Molnár, Z., Robinson, C. J., . . . Leiper, I. (2018). A spatial overview of the global importance of Indigenous lands for conservation. Nature Sustainability, 1(7), 369-374. https://www.nature.com/articles/s41893-018-0100-6
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; Reyes-García & Benyei, 2019Reyes-García, V., & Benyei, P. (2019). Indigenous knowledge for conservation. Nature Sustainability, 2(8), 657-658. https://doi.org/10.1038/s41893-019-0341-z
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).

Os povos que vivem nas florestas tropicais têm uma relação particularmente profunda com esses ecossistemas, de forma que moldaram suas cosmovisões e cosmopercepções, compreendendo os seres humanos como sendo parte de uma comunidade florestal muito mais ampla, diversa e complexa. O valor da floresta para os povos que vivem em seus ecossistemas é incalculável, e povos indígenas, caiçaras e ribeirinhos coexistem em ecossistemas florestais, possuindo plena consciência da proteção que esses ambientes oferecem às nascentes, ao fluxo dos mananciais, ao clima, à temperatura, à umidade; além de assegurarem a fertilidade do solo e a proteção de escarpas e encostas de morros (Tiepolo, 2015Tiepolo, L. M. (2015). A inquietude da Mata Atlântica: reflexões sobre a política do abandono em uma terra cobiçada. Guaju, 1(2), 96-109. http://dx.doi.org/10.5380/guaju.v1i2.45057
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). Todos esses aspectos que envolvem as múltiplas dimensões da vida compõem a própria diversidade de territorialidades dos povos que ali vivem.

Na perspectiva da conservação, os povos indígenas protegem de maneira efetiva e admirável o que restou dos ecossistemas do planeta Terra, e isso fica materializado em inúmeros processos de mapeamento de territórios indígenas. Diversos estudos têm apontado que as áreas geridas por esses povos são essencialmente paisagens culturais, preservadas e manejadas pelas populações originárias, que mantêm uma relação de reciprocidade e cuidado mútuo. Assim, compreender a cosmopercepção e a relação dos povos indígenas com o território em que vivem é um aspecto fundamental para ampliar horizontes relacionados à conservação ambiental e climática (B. Pereira & Diegues, 2010Pereira, B. E., & Diegues, A. C. (2010). Conhecimento de populações tradicionais como possibilidade de conservação da natureza: uma reflexão sobre a perspectiva da etnoconservação. Desenvolvimento e Meio Ambiente, (22), 37-50. http://dx.doi.org/10.5380/dma.v22i0.16054
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; Garnett et al., 2018Garnett, S. T., Burgess, N. D., Fa, J. E., Fernández-Llamazares, Á., Molnár, Z., Robinson, C. J., . . . Leiper, I. (2018). A spatial overview of the global importance of Indigenous lands for conservation. Nature Sustainability, 1(7), 369-374. https://www.nature.com/articles/s41893-018-0100-6
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; Fa et al., 2020Fa, J. E., Watson, J. E., Leiper, I., Potapov, P., Evans, T. D., Burgess, N. D., & Garnett, S. T. (2020). Importance of Indigenous peoples’ lands for the conservation of intact forest landscapes. Frontiers in Ecology and the Environment, 18(3), 135-140. https://doi.org/10.1002/fee.2148
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).

Nesse contexto, desde os anos 1980, há um interesse crescente no conhecimento ecológico tradicional, de forma que esse fato representa a busca por insights ecológicos de povos indígenas em sua coexistência com a biodiversidade (Berkes, 2012Berkes, F. (2012). Implementing ecosystem-based management: evolution or revolution? Fish and Fisheries, 13(4), 465-476. https://doi.org/10.1111/j.1467-2979.2011.00452.x
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). Nesse processo, emerge também a necessidade da construção de uma nova ética ecológica, a partir dos aprendizados compartilhados com pesquisadoras/es indígenas e as ciências nativas.

As ciências indígenas, ou ciência do território, como denominado pela pesquisadora Célia Xabriabá (Corrêa, 2018Corrêa, C. N. (2018). O barro, o genipapo e o giz no fazer epistemológico de autoria Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. https://repositorio.unb.br/handle/10482/34103
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), apontam caminhos, a partir de novos léxicos teórico-metodológicos, que possibilitam a compreensão dos processos de restauração e conservação da biodiversidade, associados simultaneamente às autonomias e aos movimentos de livre autodeterminação.

Como observado por um estudo realizado pelas pesquisadoras Monfort e Gisloti (2022)Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2022). A retomada epistemológica Kaiowá e Guarani: ciências indígenas, autonomias e lutas territoriais como eixos políticos. Revista Inter Ação, 47(1), 184-202. https://doi.org/10.5216/ia.v47i1.71401
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, os povos Kaiowá e Guarani têm fortalecido a retomada epistêmica e política dentro da universidade e nos espaços de pesquisa, tanto em cursos de graduação, quanto em programas de pós-graduação. Os trabalhos que emergem desse processo de retomada perpassam pelos mais diversos campos do conhecimento e têm em comum o aspecto de serem construídos em seus territórios através de métodos e ciência próprios.

A dificuldade de desenvolver um diálogo prolongado e estimulante entre as ciências ambientais e as ciências indígenas é surpreendente e merece uma reflexão séria, já que não há respostas fáceis e nenhuma maneira simples de representar, compreender ou responder à complexidade de sistemas que inter-relacionam humanos e ambiente, a partir de aspectos biofísicos, socioespaciais, culturais e cosmológicos (Ostrom et al., 2007Ostrom, E., Janssen, M. A., & Anderies, J. M. (2007). Going beyond panaceas. Proceedings of the National Academy of Sciences, 104(39), 15176-15178. https://doi.org/10.1073/pnas.0701886104
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).

As ciências ambientais investigam a complexidade da interação entre seres humanos e o mundo biofísico (ou natureza) sob uma perspectiva inter e multidisciplinar entre ciências naturais e ciências humanas. Essa interação está sujeita sempre ao entrelaçamento com questões de justiça social e ambiental e questões metafísicas (ou cosmológicas), mais profundas, de conexão e de significado, inevitavelmente abordando relações de direitos humanos, direitos indígenas e direitos ambientais/territoriais. No entanto, as ciências ambientais permaneceram distanciadas de uma perspectiva de engajamento ético-político com os povos e ciências indígenas, seus conhecimentos e direitos territoriais.

Com a proposta de fortalecimento da perspectiva inter e multidisciplinar, surge a ecologia política, expressando as dimensões das relações de poder para desvelar as faces da racionalidade insustentável da modernidade capitalista. O propósito visa o fortalecimento de ações sociais “. . . para a construção de um futuro sustentável fundado nos potenciais da natureza e da criatividade cultural, num pensamento emancipatório e em uma ética política para renovar o sentido e a sustentabilidade da vida” (Leff, 2015Leff, E. (2015). Ecologia política: uma perspectiva latino-americana. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 35, 29-64. http://dx.doi.org/10.5380/dma.v35i0.44381
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, p. 29).

Esse campo é fruto de um diálogo intenso entre as disciplinas da etnobiologia, da antropologia, da geografia, da história e da ecologia política, criando um espaço inter e multidisciplinar próprio dentro das ciências naturais e humanas, buscando iluminar diferentes aspectos das relações ecológicas frente a novas realidades, como os conflitos territoriais e socioambientais (Little, 2006Little, P. E. (2006). Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, 12(25), 85-103. https://doi.org/10.1590/S0104-71832006000100005
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; Porto-Gonçalves, 2012Porto-Gonçalves, C. W. (2012). A ecologia política na América Latina: reapropriação social da natureza e reinvenção dos territórios. Revista Internacional Interdisciplinar Interthesis, 9(1), 16-50. https://doi.org/10.5007/1807-1384.2012v9n1p16
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, 2015Porto-Gonçalves, C. W. (2015). Amazônia enquanto acumulação desigual de tempos: uma contribuição para a ecologia política da região. Revista Crítica de Ciências Sociais, (107), 63-90. https://doi.org/10.4000/rccs.6018
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). Esse diálogo inter e multidisciplinar, que tem crescido em diversos campos, é um legado do aprendizado obtido junto aos povos indígenas e às dimensões de suas ciências, lutas e experiências no mundo.

A noção de sustentabilidade é construída a partir de múltiplas dimensões, como a ecológica, a social, a territorial, a econômica, a cultural, a política e a ética, de modo que a conservação do ambiente está relacionada com os seus significado e relevância, que muitas vezes estão interconectados a aspectos espirituais e sobrenaturais. Nesse sentido, as ciências indígenas precisam ser consideradas, fortalecidas e valorizadas, uma vez que a identidade desses povos deve ser compreendida como prática sociocultural realizada especificamente no território e ambiente onde vivem (Gadgil et al., 2021Gadgil, M., Berkes, F., & Folke, C. (2021). Indigenous knowledge: from local to global. Ambio, 50(5), 967-969. https://doi.org/10.1007/s13280-020-01478-7
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).

O aprofundamento das reflexões relacionadas à ecologia, à defesa do território, à conservação e à sustentabilidade é um movimento que vem sendo construído há algumas décadas. Nesse debate, emerge a importância das ciências indígenas, cosmovisões e diversas ontologias nos projetos de pesquisa, ensino e extensão que estão relacionados ao tema socioambiental, territorial e de conservação da biodiversidade.

Muitos povos indígenas e outros povos tradicionais possuem formas de manejo agrícolas específicas para a manutenção da biodiversidade, incluindo valores de uso e símbolos que compõem a cosmologia e as relações territoriais/socioecológicas de cada povo. Para muitos povos, principalmente os indígenas, existe uma conexão orgânica entre os mundos natural, sobrenatural e a organização social, de forma que não há uma classificação separatista ou uma forma de separar o natural e o social. O que há é uma continuidade entre ambos (Nazarea, 2006Nazarea, V. D. (2006). Local knowledge and memory in biodiversity conservation. Annual Review of Anthropology, 35, 317-335. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.35.081705.123252
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; Diegues, 2019Diegues, A. C. (2019). Conhecimentos, práticas tradicionais e a etnoconservação da natureza. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 50, 116-126. http://dx.doi.org/10.5380/dma.v50i0.66617
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; Thompson et al., 2020Thompson, K. L., Lantz, T., & Ban, N. (2020). A review of Indigenous knowledge and participation in environmental monitoring. Ecology and Society, 25(2), 10. http://dx.doi.org/10.5751/ES-11503-250210
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).

No sul do estado de Mato Grosso do Sul, no Centro-Oeste do Brasil, o povo Guarani-Kaiowá trava a resistência anticolonial contra a usurpação e a degradação de seus territórios originários pelas fronteiras do agronegócio, que impera e expande territórios monopolizados. As lutas socioterritoriais deste povo são marcadas por uma multiplicidade de estratégias complexas que se alicerçam na auto-organização comunitária, nos territórios retomados, bem como na valorização dos conhecimentos tradicionais e sistemas socioecológicos (Martins et al., 2020Martins, E. S., Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2020). Conhecimentos indígenas, autonomias e lutas anti-coloniais Kaiowá e Guarani contra a necropolítica e o agronegócio. Revista Terra Sem Amos, 1(2), 5-11.).

Neste artigo, reunimos esforços para apresentar e refletir sobre a importância das memórias bioculturais e da ecologia cosmopolítica do povo Guarani-Kaiowá sobre a floresta e os seres visíveis e invisíveis que a cohabitam, a fim de dialogar com a conservação e a restauração dos sistemas socioecológicos, que simultaneamente dialogam com a defesa dos territórios ancestrais, na perspectiva da etnoconservação como garantia de segurança territorial e socioecológica.

Partimos da noção de memória biocultural de Toledo e Barrera-Bassols (2008)Toledo, V. M., & Barrera-Bassols, N. (2008). La memoria biocultural: la importancia ecológica de las sabidurías tradicionales. Icaria Editorial., entendida como o componente cognitivo da memória da espécie, o qual revela como as sociedades foram se apropriando de seus habitats e se diferenciando a partir de interações com a diversificação biológica agrícola, territorial e paisagística. De acordo com os autores, estudá-la significa mergulhar nessa ampla e complexa rede de saberes locais e ancestrais, buscando compreender e identificar eventos que influenciaram na formação de modos de vida distintos através da história ambiental da humanidade.

Paralelamente, ampliando o conceito de ecologia política, miramos o campo de visão a partir do conceito de ecologia cosmopolítica, onde o foco analítico reflexivo se constrói no âmbito do regime de “. . . conhecimentos e práticas orientado à manutenção de um ficar tranquilo, que trata das relações e interações entre os diferentes elementos do cosmos, como visíveis e invisíveis, forças e sentimentos, pessoas e bichos” (Sauma, 2016Sauma, J. F. (2016). Palavras carnais: sobre re-lembrar e re-esquecer, ser e não ser, entre os Filhos do Erepecuru. Revista de Antropologia, 59(3), 150-173. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.124811
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, p. 156).

Desse modo buscamos conduzir a abordagem a partir da perspectiva da ecologia política e Cosmopolítica, ou seja, considerando cosmologicamente e politicamente os intensos conflitos de territorialidades, os crimes socioambientais e o etnocídio orquestrados pelo agronegócio e pelo Estado brasileiro nos territórios tradicionais do povo Guarani-Kaiowá.

OJAPO TAPE OGUATA HINA (SE FAZ CAMINHO AO CAMINHAR): O CAMINHO METODOLÓGICO

Este trabalho foi desenvolvido no município Amambai, que está situado no sul do estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, e possui população de quase 35 mil habitantes. No entorno do município, foram criadas as reservas indígenas de Amambai, Limão Verde e Jaguari, somando uma população de quase 9.000 indígenas do povo Guarani-Kaiowá, conforme os dados da coordenadoria da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) da localidade.

O Tekoha Guapo’y, como é denominada a aldeia Amambai pela comunidade, conta com área de 2.429 ha e população de mais de 7 mil habitantes. Já o Tekoha Tapy Kora, como é denominada a Aldeia Limão Verde, foco deste estudo, conta com área bastante menor, de 608 ha, abrigando em torno de 3.000 habitantes. Percebe-se, pelo tamanho dessas áreas, que as terras são diminutas e limitam drasticamente a capacidade de esse povo gerir seus recursos e manter os seus modos de vida tradicionais (Zimmerman & Viana, 2014Zimmerman, T. R., & Viana, A. E. A. (2014). Apontamentos sobre gênero e violência contra mulheres indígenas em Amambai-MS. Tellus, 27(2), 117-128. https://doi.org/10.20435/tellus.v0i27.311
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). Tekoha significa o lugar que vivemos segundo nossos costumes (Melià et al., 1976Melià, B., Grünberg, G., & Grünberg, F. (1976). Los Pai-Tavyterã-etnografia guarani del Paraguay contemporaneo. Suplemento Antropológico de la Revista del Ateneo Paraguayo, 9(1-2), 151-295.).

O Tekoha Tapy Kora Aldeia Limão Verde (23° 10’ 49,3” S e 55° 12’ 23,4” W) foi criado em 1928 pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). O solo predominante na região é o neossoloquartzarênico de baixa fertilidade natural, sendo pouco desenvolvido, profundo ou muito profundo, excessivamente drenado e com baixa capacidade de retenção de água. A vegetação natural predominante na região faz parte dos domínios da Mata Atlântica e classifica-se como Floresta Estacional Semidecidual Submontana com zona de transição (Veloso et al., 1991Veloso, H. P., Rangel-Filho, A. L. R., & Lima, J. C. A. (1991). Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal. IBGE.; Albanez, 2018Albanez, J. L (2018). Madeireiros e demais aventureiros em meio à modernização conservadora na região cone sul de Mato Grosso do Sul (1970-1990) [Tese de doutorado, Universidade Federal da Grande Dourados]. https://www.ppghufgd.com/wp-content/uploads/2019/03/Albanez-Jocimar-L.-Madeireiros-e-demais-aventureiros-Tese-2018.pdf
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).

No entanto, esse bioma encontra-se com intenso grau de devastação, com alto índice de contaminação das águas, além das reservas indígenas estarem distantes dos corpos d’água, um processo que ocorreu concomitantemente ao compulsório e violento desterro dos povos originários Guarani-Kaiowá. Nesse contexto, o Estado é um agente fundamental, não sendo, entretanto, o que garante a proteção do bioma e dos territórios de vida, mas sim o que cria as bases para a expansão das políticas econômicas de espoliação (Martins et al., 2020Martins, E. S., Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2020). Conhecimentos indígenas, autonomias e lutas anti-coloniais Kaiowá e Guarani contra a necropolítica e o agronegócio. Revista Terra Sem Amos, 1(2), 5-11.).

KAIOWÁ KUERA (NOSSA GENTE): PARTICIPANTES

Os povos Guarani correspondem a povos indígenas falantes da língua guarani e no Brasil organizam-se em três grupos: Guarani-Mbya, Guarani-Ñandeva e Guarani-Kaiowá. Este estudo foi construído junto ao povo Guarani-Kaiowá, precariamente territorializado no Centro-Oeste do país, onde, juntamente com os Guarani Ñandeva, em Mato Grosso do Sul, compõem a segunda maior população indígena do país, com aproximadamente 50 mil pessoas (L. Pereira, 2016Pereira, L. M. (2016). Os Kaiowá em Mato Grosso do Sul: módulos organizacionais e humanização do espaço habitado. Universidade Federal da Grande Dourados.). Segundo Santos et al. (2020, p. 1)Santos, A. S., Amado, L. H. E., & Pasca, D. (2020). “É muita terra pra pouco índio”? Ou muita terra na mão de poucos? Conflitos fundiários no Mato Grosso do Sul. Instituto Socioambiental., “das 32 terras dos Guarani-Kaiowá e Ñandeva no estado, as comunidades estão atualmente na posse efetiva de apenas 29% da área total delimitada, o que significa uma posse de apenas 1,1 ha por pessoa”.

O território tradicional desse povo localizava-se, de norte a sul, entre o limite dos rios Apa e Dourados até a Serra de Maracaju e os afluentes do rio Jejuí, nas duas faces da Serra de Amambai, entre a fronteira do território ocupado pelos estados brasileiro e paraguaio (Melià et al., 1976; Mota, 2015Mota, J. M. B. (2015). Territórios de resistência e práticas descoloniais: estratégias de luta Guarani-Kaiowá pelo Tekoha - Mato Grosso do Sul. Revista de Geografia Agrária, 10(20), 416-439. https://doi.org/10.14393/RCT102026662
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). Tradicionalmente, esses povos cultivam os alimentos em proximidade da floresta tropical, além de praticarem a caça, a pesca e a coleta nas florestas (Brand, 1997Brand, A. (1997). O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da palavra. PUC/RS.; Mota, 2015Mota Neto, J. C. (2015). Educação popular e pensamento decolonial latino-americano em Paulo Freire e Orlando Fals Borda [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]. http://ppgedufpa.com.br/arquivos/File/TeseColares2015.pdf
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; L. Pereira, 2016Pereira, L. M. (2016). Os Kaiowá em Mato Grosso do Sul: módulos organizacionais e humanização do espaço habitado. Universidade Federal da Grande Dourados.). Nos dias atuais, verifica-se grande empobrecimento deste território tradicional, brutalmente reduzido e fragmentado devido à exploração ambiental, impulsionada pelas violentas disputas territoriais em consequência do agronegócio que domina a região (Brand, 2003Brand, A. (2003). Biodiversidade, sócio-diversidade e desenvolvimento: os Kaiowá e Guarani no estado de Mato Grosso do Sul. In R. B. Costa (Org.), Fragmentação florestal e alternativas de desenvolvimento rural na região Centro-Oeste (pp. 175-204). Editora UCDB.; Colman & Brand, 2008Colman, R. S., & Brand, A. J. (2008). Considerações sobre território para os Kaiowá e Guarani. Tellus, (15), 153-174. https://doi.org/10.20435/tellus.v0i15.166
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; Benatti et al., 2010Benatti, L. A. C., Costa, R. B., Brand, A. J., & Roa, R. A. R. (2010). O conhecimento tradicional e os recursos naturais na reserva indígena Kaiowá e Guarani em Caarapó, MS. Multitemas, (38), 53-73. https://www.multitemas.ucdb.br/multitemas/article/view/645
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; Pedro et al., 2022Pedro, M. S., Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2022). Mymba ka’aguy ha tey’i rembikwa’a: as relações entre o povo Kaiowá e os animais. Etnobiología, 20(1), 116-141. https://revistaetnobiologia.mx/index.php/etno/article/view/454
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).

Sob esse contexto, as/os participantes desta pesquisa foram selecionadas/os pelo interesse em contribuir com o estudo e, dessa maneira, constituíram-se em dois grupos: (i) comunidade da Escola Municipal Indígena Tupã Y Ñandeva (sede) e Kuarahy Rendy (extensão) (n = 23), onde contamos com a participação de estudantes (n = 11) e de educadoras e educadores (n = 12) e (ii) lideranças político-espirituais (n = 3), Ñande Ru Eduardo Recalde, Ñande Sy Amélia Servim e Ñande Sy Adelaide Lopes, do Tekoha Tapy Kora, Aldeia Limão Verde.

As lideranças tradicionais do povo Guarani-Kaiowá Ñande Ru e Ñande Sy são imprescindíveis para manter o povo fortalecido territorialmente e espiritualmente, de modo que as práticas de rituais tradicionais realizadas por esses/as xamãs fazem com que a espiritualidade indígena se mantenha viva, fortalecendo, assim, a identidade e a luta pela retomada territorial. Para os Guarani-Kaiowá, essas pessoas mantêm uma relação suficientemente próxima com as divindades através de práticas tradicionais, como o ñembo’e, o jeroky (cantos/rezas) e o jehovassa (bendições) (Martins, 2015Martins, E. S. (2015). O papel das lideranças tradicionais na demarcação das terras indígenas Guarani e Kaiowá. Tellus, 15(29), 153-172. https://doi.org/10.20435/tellus.v0i29.363
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).

TAPE PORÃ: O BELO CAMINHO GUARANI-KAIOWÁ NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO METODOLÓGICO

De imediato, faz-se relevante apontar para a especificidade metodológica que perpassou essa pesquisa, a qual se apoiou em diversas metodologias e, para além disso, mesclou as reflexões de uma pesquisadora indígena do povo Kaiowá, que nasceu e vive na área de estudo, com o olhar não indígena da coautora, que tem vivenciado um processo de caminhada e aprendizado junto às memórias bioculturais e aos conhecimentos tradicionais deste povo. Nesse sentido, todas as etapas da pesquisa perpassaram por essa metodologia crítica, colaborativa e participante, incluindo a possibilidade de conduzir todo o processo de construção na língua kaiowá.

A proposta se fundamenta no exercício coletivo da prática política e do aprendizado junto aos povos, a partir de metodologias participantes, de modo que seja possível construir o que Rivera Cusicanqui (1993)Cusicanqui, S. R. (1993). La raíz: colonizadores y colonizados. In X. Albó & R. Barrios (Eds.), Violencias encubiertas en Bolivia: cultura y política (Tomo 1, pp. 27-123). CIPCA Aruwiyiri. destaca como exercício coletivo de descolonização, tanto para o/a pesquisador/a, quanto para o/a interlocutor/a, constituindo-se como síntese dialética entre os/as sujeitos/as que refletem juntos/as sobre suas experiências. Assim, é importante destacar que a potencialidade dessa autodeterminação intelectual leva a pontuar que, na presente pesquisa, é apresentado o resultado da procedência de trabalhos cuja produção intelectual gira ao redor do compromisso com seus coletivos, reconhecendo o peso das circunstâncias históricas na construção das pesquisas (Monfort & Gisloti, 2022Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2022). A retomada epistemológica Kaiowá e Guarani: ciências indígenas, autonomias e lutas territoriais como eixos políticos. Revista Inter Ação, 47(1), 184-202. https://doi.org/10.5216/ia.v47i1.71401
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).

Dessa maneira, a metodologia foi baseada na investigação-ação participativa (IAP), através de técnicas de (i) entrevistas, (ii) oficinas participativas, (iii) turnês guiadas e (iv) listagem livre.

A investigação-ação tem como proposta a participação mais ativa do/a pesquisador/pesquisadora no contexto de realização do trabalho. Para Thiollent (2003)Thiollent, M. (2003). Metodologia da pesquisa-ação. Cortez., essa metodologia é construída em profunda associação à ação coletiva para resolução de um problema comunitário, em que as pessoas envolvidas na pesquisa criam juntas possibilidades de reflexão e resolução da situação-problema. Essa proposta metodológica “. . . enfatiza a investigação-ação que é participativa, e de uma investigação que se funde com a ação transformadora” (Mota Neto, 2015Mota, J. M. B. (2015). Territórios de resistência e práticas descoloniais: estratégias de luta Guarani-Kaiowá pelo Tekoha - Mato Grosso do Sul. Revista de Geografia Agrária, 10(20), 416-439. https://doi.org/10.14393/RCT102026662
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, p. 22).

As entrevistas livres, na forma de diálogos, foram construídas e direcionadas ao/às xamã(s), rezador/rezadoras (Ñande Ru e Ñande Sy, respectivamente), com o intuito de estimular a memória biocultural através do diálogo entre os conhecimentos tradicionais e ancestrais em relação aos seres vivos que coexistem naquele território. Os diálogos foram realizados na língua kaiowá, respeitando o princípio da língua nativa. Os depoimentos foram registrados ao longo dos anos 2019 e 2020, com o auxílio de um gravador digital e de um caderno de campo e, posteriormente, foram transcritos e interpretados para a língua portuguesa. Em algumas ocasiões, no texto, optou-se por manter o termo na língua originária, seguida da interpretação em português. As entrevistas duraram de acordo com a disponibilidade e a vontade das/o xamã, de forma que se buscou expressar o respeito máximo e a imensa gratidão pelo aceite em participarem deste estudo.

É fundamental registrar que a confiança já estabelecida entre as/os xamãs e a pesquisadora kaiowá possibilitou que os momentos de compartilhamento de conhecimentos, através dos diálogos, fossem de tranquilidade e profundidade, cujas interações transcorreram sem restrições e, muitas vezes, durante as atividades cotidianas.

As oficinas participativas e as turnês guiadas foram realizadas em 10 de outubro de 2019 e 17 de janeiro de 2020, no formato de roda de conversa, junto com a comunidade escolar da Escola Municipal Indígena Tupã Y Ñandeva (sede) e a Kuarahy Rendy (extensão), com duração de uma manhã e uma tarde, em cada ocasião. Complementando a atividade da oficina participativa, foi realizada, após a roda de conversa, a turnê guiada (Albuquerque et al., 2010Albuquerque, U. D., Lucena, R. D., & Cunha, L. V. F. C. (2010). Métodos e técnicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica. Nupeea.) aos locais de mata remanescente aos arredores.

Desse modo, após o término da oficina participativa, as/os participantes foram convidadas/os a se deslocar até uma área de floresta remanescente na aldeia, junto às lideranças espirituais. Tanto na oficina participativa como na turnê, as pessoas participantes foram encorajadas a refletir sobre a mata, as plantas e os animais presentes naquela aldeia, seus guardiões e os processos que levaram à alteração da paisagem. A partir do registro da lista livre dessas duas atividades, foi elaborada uma tabela sobre a flora e a fauna, baseada na memória coletiva da comunidade escolar da Aldeia Limão Verde (Tabela 1).

Tabela 1
Memória biocultural do povo Guarani-Kaiowá sobre as plantas e os animais presentes no Tekoha Tapy Kora, Amambai, Mato Grosso do Sul.

Na oficina participativa e nas turnês guiadas, as/os participantes não foram separados em grupos focais; ao invés disso, o foco foi estimulá-las/os a participar e contribuir nas reflexões sobre os seres vivos de relevância. Isso se justifica pelo fato de que, nas comunidades dos Kaiowá, crianças, adultos e anciãos realizam as atividades em conjunto, e assim foi compreendido que o mais apropriado era realizar o diálogo em coletividade. Nesse sentido, entendeu-se que essa metodologia foi bastante adequada para o propósito desta pesquisa, de forma que, “. . . ao colocar os indivíduos como sujeitos do processo, desloca-se o eixo de poder, implicando novas capacidades de decisão, bem como desenvolve-se a confiança mútua entre os diversos segmentos e atores envolvidos” (Cordioli, 2001Cordioli, S. (2001). Enfoque participativo: um processo de mudança. Conceitos, instrumentos e aplicação prática. Gênesis., p. 24).

As plantas e os animais aqui citados estão grafados primeiramente em kaiowá, constando entre parênteses o nome popular em português, seguido pela classificação biológica (ordem, família, gênero e espécie, quando possível).

Em relação ao retorno da pesquisa para a comunidade, é fato que esse processo representa mais do que uma questão ética, uma vez que possibilita a ampliação da construção do conhecimento a partir do compartilhamento de saberes e do engajamento nas demandas dos povos. Assim, foi construído, junto aos Guarani-Kaiowá dessa aldeia, um calendário de ações que visa implementar e aprofundar a discussão acerca da importância da conservação/recuperação da floresta no território. As ações projetadas se voltam para a comunidade escolar, a partir de experiências pedagógicas, e chega até o poder público e à sociedade civil por meio de uma proposta de reflorestamento e melhoramento ambiental, através da construção de etnoquintais e viveiros de mudas.

A proposta de etnoquintais tem surgido a partir do diálogo entre a comunidade, a universidade e projetos de gestão ambiental e territorial, que têm sido construídos por outros povos em outras regiões do país. Essa demanda por etnoquintais emerge entre os Guarani-Kaiowá como uma ação frente ao amplo contexto de devastação ambiental atual em seus territórios. Para Almeida (2001)Almeida, R. F. T. D. (2001). Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o Projeto Kaiowa-Ñandeva como experiência antropológica. FIOCRUZ., o importante é justamente poder detectar os processos sociais que permitem adequar a organização social indígena às pressões do colonialismo.

Desse modo, para os Guarani-Kaiowá, os etnoquintais são formas de recompor a vida, a biodiversidade e as relações ecossistêmicas, visto que sua construção perpassa pela busca por reconstruir vínculos e conexões da vida e, para isso, necessita de um olhar atento aos conhecimentos relacionados à cosmologia, às ciências indígenas, aos métodos de plantio, de colheita, à relação com os animais e as plantas tradicionais. Nesse sentido, diante do contexto atual, os etnoquintais se colocam como possibilidade de recomposição dos sistemas socioecológicos em uma microescala, da residência, como prática cotidiana e coletiva.

Dessa forma, as memórias, as narrativas e a discussão foram organizadas a partir das memórias bioculturais das Ñande Sy e do Ñande Ru e, posteriormente, foram incorporadas as narrativas referentes a professoras, professores e estudantes, com o intuito de revelar aspectos das relações desse povo com a floresta, nos âmbitos cosmológicos, ecológicos, culturais e territoriais.

Os resultados e a discussão estão organizados de forma que, primeiramente, são apresentadas algumas dimensões das histórias e trajetórias do povo Guarani-Kaiowá, sendo tecidas algumas reflexões acerca da relação entre esse povo e a floresta, que antes era presente e hoje se vê aniquilada pela fronteira moderna colonial. Somam-se a isso as reflexões sobre os problemas, os conflitos e as violências enfrentados, decorrentes do projeto político de colonização e da política de Estado, com a expansão da mercantilização e a monopolização da terra para o latifúndio extrativista nas dimensões dos territórios tradicionais, sobretudo pelo modelo predatório do agronegócio.

Posteriormente, esboça-se uma reflexão sobre as memórias bioculturais desse povo com a floresta, tendo como foco aspectos etnobiológicos, sob o pano de fundo da cosmovisão guarani-kaiowá. Essa última seção está subdividida em dois subtítulos: “Memórias bioculturais do povo Guarani-Kaiowá sobre a floresta” e “Arandu Ka’aguy: conhecimento tradicional guarani e kaiowá como ciência indígena”.

A FLORESTA COMO DIMENSÃO DAS HISTÓRIAS E TRAJETÓRIAS DO POVO GUARANI-KAIOWÁ

O povo Guarani-Kaiowá ocupa atualmente a porção sul de Mato Grosso do Sul, na região Centro-Oeste do Brasil, dimensão na qual os tekoha (lugar onde se é) e os tekoha guasu são quase integralmente definidos pelos afluentes da bacia do rio Paraná, com exceção do rio Apa (Mota, 2015Mota, J. M. B. (2015). Territórios de resistência e práticas descoloniais: estratégias de luta Guarani-Kaiowá pelo Tekoha - Mato Grosso do Sul. Revista de Geografia Agrária, 10(20), 416-439. https://doi.org/10.14393/RCT102026662
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). De acordo com o antropólogo Levi Pereira (2004)Pereira, L. M. (2004). O pentecostalismo Kaiowá: uma aproximação dos aspectos sociocosmológicos e históricos. In R. Wright (Org.), Transformando os deuses (pp. 267-302). Editora da UNICAMP., o tekoha reúne de três a cinco parentelas, de modo que guasu é o adjetivo que significa grande. Então, a expressão tekoha guasu indica que o módulo organizacional é formado por várias parentelas, compondo comunidades específicas, inseridas em uma rede mais ampla de relações.

Essa dimensão é reconhecida por este povo, segundo o pesquisador kaiowá Eliel Benites, como Yvy pyru’ã (centro do mundo, ou umbigo da terra, ou ainda centro da terra). É esse território que compõe a origem do povo Guarani-Kaiowá, sendo considerado o território tradicional desse povo (Benites, 2014Benites, E. (2014). Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýiku [Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco]. https://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/13832-eleil-benites.pdf
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, 2021).

As experiências históricas e geográficas desse povo confluem, em grande parte, com ecossistemas da Mata Atlântica, dinâmica que se revela na autodenominação como ka’aguy ygua ou ka’aguy rehegua (povo da mata). A floresta é um espaço que envolve agentes que mantêm o equilíbrio do ecossistema e do território (João, 2011; Benites, 2020Benites, E. (2020). Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta. Revista Nera, (52), 19-38. https://doi.org/10.47946/rnera.v0i52.7187
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). De acordo com as anciãs e anciãos desses povos, os tamõi kwera (avôs) ou as jari kwera (avós), o significado de ka’aguy ygua refere-se não somente aos seres vivos da mata, mas também a outros seres que somente as/os xamãs conseguem enxergar através do dom espiritual. Um desses seres que compõem a mata é o ka’aguy jary (dono da floresta).

Nesse contexto, as memórias do território tradicional e a origem do povo estão presentes nas narrativas das lideranças espirituais (Ñande Ru e Ñande Sy) e possibilitam uma melhor compreensão e percepção sobre a grande sabedoria deste povo acerca de seus territórios de vida, bem como sobre a fauna, a flora e todos os seres que compõem as relações socioecológicas, cosmológicas e territoriais (Benites, 2014Benites, E. (2014). Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýiku [Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco]. https://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/13832-eleil-benites.pdf
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).

Cada espécie e lugar tem o seu dono e guardião particular, que, entre o povo Kaiowá, é denominado como jara. A floresta é uma categoria composta por diferenciações, patamares e múltiplos agentes político-espirituais que compõem seu equilíbrio, sendo que o seu manejo adequado necessita da ciência indígena, de seus conhecimentos e práticas ancestrais, além do estabelecimento de uma relação harmoniosa junto aos guardiões das espécies e dos lugares. Os jara são seres espirituais que cuidam da fauna, da flora e dos lugares habitados pelos coletivos humanos e não humanos, aguçando a sensibilidade de quem por ali caminha (Benites et al., 2021). O universo é composto por muitos domínios e cada um deles corresponde a um jara particular (João, 2011João, I. (2011). Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato Grosso do Sul [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados].).

Toda dimensão, todo modo de ser e existir, envolve um campo relacional através do qual se produz o ava reko (modo de ser, viver e existir kaiowá) e uma comunicação-intercâmbio com o modo de ser dos guardiões – teko jara –, que estão conectados a outros patamares existenciais, classificados, no pensamento euro-moderno, como pertencentes aos reinos dos seres vivos. Cada teko jara organiza um coletivo particular, produzindo espaço com paisagem também específica, que compõe a dimensão do tekoha e que está diretamente articulado ao teko (modo de ser) (Benites & L. Pereira, 2021Benites, E. (2021). A busca do Teko Araguyje (jeito sagrado de ser) nas retomadas territoriais Guarani e Kaiowá [Tese de doutorado, Universidade Federal da Grande Dourados]. https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/4591
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).

Como observado por Benites et al. (2021)Benites, E. (2021). A busca do Teko Araguyje (jeito sagrado de ser) nas retomadas territoriais Guarani e Kaiowá [Tese de doutorado, Universidade Federal da Grande Dourados]. https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/4591
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, além do mundo perfeito e de seus respectivos guardiões/donos, existem outros mundos que são considerados como imperfeitos, os quais compõem a totalidade dos ára (tempo/cosmo):

Estes mundos são as moradas dos seres imperfeitos, onde habitam os grandes guardiões decompositores, os donos das doenças e da morte, que os ñanderu e ñandesy chamam de jeguakaréi, o guardião dos cataclismos universais. No seu domínio estão os grandes gafanhotos, os besouros, os grandes morcegos-dragão (guaruje) e outros grandes destruidores natos da perfeição do cosmo. Dona Amélia, uma grande ñandesy de Panambizinho, afirma que estes seres podem destruir as florestas, os rios e emitir nuvens de doenças mortíferas como forma de dominar o nosso mundo perfeito

(Benites et al., 2021Benites, E. (2021). A busca do Teko Araguyje (jeito sagrado de ser) nas retomadas territoriais Guarani e Kaiowá [Tese de doutorado, Universidade Federal da Grande Dourados]. https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/4591
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, p. 52).

Nessa multidimensionalidade espaço-temporal, a floresta, para o povo Kaiowá, é um agente central da cosmologia e das relações territoriais e socioecológicas, sendo composta por diversos seres que semeiam o equilíbrio e a convivência orgânica e harmoniosa nesse ambiente onde, tradicionalmente, se estabeleciam os cultivos, a caça e a coleta. Nessa perspectiva, a floresta se apresenta como um espaço de muitos patamares, muitos seres viventes, diversas divindades, distintas classificações, sendo composta por entidades relacionais que integram diversos mundos, entre eles o inframundo e o mundo espiritual ou supramundo (Escobar, 2015Escobar, A. (2015). Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Cuadernos de Antropología Social, 41, 25-38.).

Assim, a ka’aguy (floresta), para o povo Kaiowá, é uma categoria ampla e complexa, de forma que o bom manejo da mata é atrelado aos conhecimentos tradicionais e espirituais, como a ñembo’e (rezas), o jehovasa (bendições) e a uma boa relação com os jara (protetores) das espécies que ali estão (Valiente, 2019Valiente, C. A. (2019). Modos de produção de coletivos Kaiowá na situação atual da Reserva Indígena de Amambai, MS [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados]. https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1589
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). Desse modo, para esse povo, são os jara (guardiões) os seres responsáveis pela harmonia e por proteger todas as espécies e lugares. Sob esse ângulo, o universo está repleto de muitos domínios e cada um deles corresponde a um jara particular, entre os quais se destacam o yvy jara (dono da terra), o y jara (dono rio), o ama jara (dono da chuva), o mymba jara (dono dos animais), o pytũ jara (dono da noite), o ka’aguy jara (dono da floresta) e tantos outros (João, 2011João, I. (2011). Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato Grosso do Sul [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados].).

Nesse contexto, para muitos povos indígenas que vivem em territórios de floresta tropical, mais importante do que o valor utilitário das interações com a biodiversidade é a importância dessas relações na construção das cosmologias e cosmopercepções, assim como nas relações socioecológicas e territoriais, de forma que a territorialidade construída na interação com a diversidade não humana é o eixo estrutural para a multiplicidade de rituais cosmo-espirituais entre os povos da Abya Yala (América) (Agosto, 2018Agosto, P. (2018). Modernidad/colonialidad, extractivismo y memoria biocultural: en busca de los caminos perdidos. Revista Kavilando, 10(1), 225-235.).

O pesquisador Carlos Fausto (2008)Fausto, C. (2008). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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, em diálogo com povos da Amazônia, enfatiza a importância da categoria indígena comumente aproximada em sua compreensão como ‘dono’ ou ‘mestre’ e como essa categoria transcende a expressão de uma relação que se reduz à propriedade e ao domínio. O autor destaca que a categoria e os seus recíprocos qualificam um modo de socialidade amazônica e as interações entre humanos, entre não humanos, entre humanos e não humanos e entre pessoas e coisas (Fausto, 2008Fausto, C. (2008). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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).

Entre o povo Kaiowá, a categoria jara se aproxima também da expressão ‘dono’ e, assim como os povos amazônicos, não designa a categoria a uma relação de propriedade, mas de sociabilidade entre as relações humanas, não humanas e com o cosmos.

Contudo, essa relação entre o povo Kaiowá e os jara tem sido profundamente afetada pelas marcas e rastros da ocupação colonialista orquestrada pelos karaí (brancos) e seu modelo predatório, latifundiário e colonialista, que provocou profundos processos de espoliações, desarticulações e fragmentações territoriais. Esse processo foi consumado pela imposição de territórios heterônomos do Estado, a partir da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). A criação das reservas indígenas (1915-1928) aprofundou essa dinâmica colonialista e ocasionou o brutal deslocamento forçado dos coletivos para liberação das terras para o agronegócio (Valiente, 2019Valiente, C. A. (2019). Modos de produção de coletivos Kaiowá na situação atual da Reserva Indígena de Amambai, MS [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados]. https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1589
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). Assim, esses processos remontaram à espoliação, à degradação e à aniquilação da biodiversidade local, bem como aprofundaram os processos de insegurança e instabilidade territorial desse povo.

Desde a primeira metade do século passado, a usurpação e a degradação impostas aos tekoha estão associadas ao desterro, ao intenso desmatamento e à instabilidade territorial, que visavam à expansão de políticas de Estado e da burguesia agrária-latifundiária.

Essa dinâmica ocasionou a extrema redução das áreas de cobertura vegetal nativa e aumentou o isolamento dos fragmentos florestais causados pela sucessiva diminuição de territórios. Toda essa estruturação das políticas de Estado e do neoextrativismo, na região Centro-Oeste do Brasil, se manifesta através de um amplo processo de monopolização e concentração de terra por grandes corporações, por meio do processo de arrendamento realizado por corporações do agronegócio. De fato, as políticas territoriais do Estado e a ofensiva neoextrativista se constituem nos principais agentes do genocídio, ecocídio e, consequentemente, da precarização territorial e da insegurança socioecológica do povo Kaiowá (Monfort & Gisloti, 2020Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2020). Necropoder e crimes socioambientais do agronegócio, lutas anticoloniais e resistências socioterritoriais kaiowá e guarani. Boletín Geocrítica Latinoamericana, 1, 138-157.).

A pesquisadora kaiowá Valdelice Verón destaca que são os próprios governos os primeiros exploradores dos territórios indígenas e que o Estado beneficia os invasores (arrendatários, madeireiros, garimpeiros, empresários, latifundiários e grileiros). Segundo a autora, há sempre um artifício legal do Estado para legitimar as invasões das terras indígenas, “. . . mas quando os Kaiowá e outros povos retomam suas terras tradicionais são criadas forças-tarefas policiais para expulsá-los” (Veron, 2018Veron, V. (2018). Tekombo’e kunhakoty: modo de viver da mulher kaiowá [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. https://repositorio.unb.br/handle/10482/34048
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, p. 20). Essas violações constantes contra os povos indígenas têm seu âmago no progresso e desenvolvimento econômico do Brasil, ainda que “. . . às custas dos direitos humanos, econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais dos povos indígenas” (Veron, 2018Veron, V. (2018). Tekombo’e kunhakoty: modo de viver da mulher kaiowá [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. https://repositorio.unb.br/handle/10482/34048
https://repositorio.unb.br/handle/10482/...
, p. 20).

Entretanto, se opondo à violência do Estado, do latifúndio e do agronegócio, o povo Guarani-Kaiowá constrói processos de resistência em distintos contextos territoriais, desde as reservas indígenas, as terras indígenas demarcadas, os acampamentos próximos às beiras de rodovias, até as áreas de retomadas dos tekoha. A inspiradora luta desse povo é construída a partir de diferentes estratégias comunitárias e intercomunitárias que fazem emergir ações coletivas autônomas em torno da luta pela valorização das memórias, pela recuperação socioterritorial e pela restauração socioecológica, tendo como base as formas de manejo tradicional (Benites, 2020Benites, E. (2020). Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta. Revista Nera, (52), 19-38. https://doi.org/10.47946/rnera.v0i52.7187
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; Benites et al., 2021Benites, E., Monfort, G., & Gisloti, L. J. (2021). Territorialidades originárias e a cosmologia Kaiowá e Guarani: auto-organização contra o agronegócio, os crimes socioambientais e a pandemia. Espaço Ameríndio, 15(2), 38-59. https://doi.org/10.22456/1982-6524.114322
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).

As territorialidades autônomas confrontam radicalmente a fragmentação dos tekoha, a monopolização da terra e os cercos que representam as reservas indígenas. Confrontam, ainda, a expansão da devastação ocasionada pelo agronegócio no território ancestral, visto que a biodiversidade se encontra substancialmente reduzida nesses locais (Monfort & Gisloti, 2020Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2020). Necropoder e crimes socioambientais do agronegócio, lutas anticoloniais e resistências socioterritoriais kaiowá e guarani. Boletín Geocrítica Latinoamericana, 1, 138-157.).

Nesse processo de resistência histórica e permanente dos povos, emerge a força política-espiritual composta pela agência de muitos entes que compõem a dimensão da cosmopolítica. A categoria cosmopolítica começou a ser discutida por meio de contribuições da filósofa Isabelle Stengers (2018)Stengers, I. (2018). A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464
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, tomando como princípio o fato de que a política se faz entre mundos e desde diferentes mundos, por isso a cosmopolítica é, para a autora, mais uma proposição do que propriamente um conceito.

A categoria analítica foi apropriada por autoras/es como Bruno Latour e por etnólogas/os como Tânia Stolze Lima e Eduardo Viveiros de Castro, que refletem sobre perspectivas que envolvem a relação entre o que se costuma denominar de xamanismo e política, ou, ainda, sobre as formas através das quais os tratos com o mundo não humano participam da constituição e da dissolução de pessoas e coletivos (Sztutman, 2019Sztutman, R. (2019). Um acontecimento cosmopolítico: o manifesto de Kopenawa e a proposta de Stengers. Mundo Amazónico, 10(1), 83-105. https://doi.org/10.15446/ma.v10n1.74098
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).

Sob esse prisma, em diálogo com Kopenawa e Albert (2019)Kopenawa, D., & Albert, B. (2019). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Companhia das Letras., o discurso cosmopolítico é também um discurso profético, uma leitura de situações e acontecimentos históricos por meio de elementos da cosmologia, dos conhecimentos, do modo de pensar a política e da memória de luta de um povo. Refere-se à possibilidade de pensar em outra forma de construir a política que não esteja subordinada ao dualismo natureza/cultura, nem reduzida à institucionalidade e à perspectiva de um só mundo, para muitas representações dele (Sztutman, 2019Sztutman, R. (2019). Um acontecimento cosmopolítico: o manifesto de Kopenawa e a proposta de Stengers. Mundo Amazónico, 10(1), 83-105. https://doi.org/10.15446/ma.v10n1.74098
https://doi.org/10.15446/ma.v10n1.74098...
).

Para Stengers (2018)Stengers, I. (2018). A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464
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e Latour (2018)Latour, B. (2018). Qual cosmos, quais cosmopolíticas? Comentário sobre as propostas de paz de Ulrich Beck. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (68), 428-441. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p427-441
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, a política é tomada como uma imagem de experimentação através da qual o cosmos não é pensado como um fator de equivalência (perspectiva kantiana), mas sim como fator de equalização, que conecta e articula múltiplos mundos, entes, sentidos e significações; uma política a favor da multiplicidade (Sztutman, 2019Sztutman, R. (2019). Um acontecimento cosmopolítico: o manifesto de Kopenawa e a proposta de Stengers. Mundo Amazónico, 10(1), 83-105. https://doi.org/10.15446/ma.v10n1.74098
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). A cosmopolítica implica, assim, o reconhecimento da existência e das agências que permeiam mundos múltiplos e divergentes (Stengers, 2018Stengers, I. (2018). A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69), 442-464. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464
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).

Portanto, a categoria chama a atenção para as dimensões de diferentes mundos e de pontos de vista que estão numa disputa política e que possuem distintas referências (Pimentel, 2012aPimentel, S. K. (2012a). Cosmopolítica kaiowá e guarani: uma crítica ameríndia ao agronegócio. Revista de Antropologia da UFSCar, 4(2), 134-150. https://doi.org/10.52426/rau.v4i2.81
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). Sob esse contexto, emergem críticas às estruturas de poder através dos discursos políticos dos povos originários, como a que foi caracterizada por Albert (1993)Albert, B. (1993). L’or cannibale et la chute du ciel. Une critique chamanique de l’économie politique de la nature. L’Homme, 33(126-128), 349-378. https://www.persee.fr/doc/hom_04394216_1993_num_33_126_369644#:~:text=chute%20du%20ciel
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como uma “. . . crítica xamânica da economia política da natureza”.

Na situação de conflito, violência e resistência dos Guarani-Kaiowá, podemos refletir sobre o discurso xamânico em um contexto em que a floresta está devastada desde o século XX, e a luta é pela retomada de porções do tekoha e pela possibilidade de reaproximar os guardiões que se afastaram com a devastação da floresta pelos karaí. O povo Guarani-Kaiowá enfatiza a possibilidade de recuperação ambiental com a retomada dos tekoha e isso fica evidente de muitos modos no discurso profético, que permeia o movimento de luta pelo território, sobretudo através das vozes de grandes lideranças político-espirituais (Pimentel, 2012bPimentel, S. K. (2012b). Elementos para uma teoria política kaiowá e guarani [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]., pp. 210-211):

Retomar as áreas de tekoha é, como se viu, recuperar hábitos e práticas dos antigos, hoje impossibilitadas pelo ambiente (cada vez mais) urbano das grandes reservas. Essas práticas dos antigos, justamente, dependem de elementos que nós designamos por “natureza”. Nesse sentido, mais uma vez, há uma relação direta entre a luta pela terra, o xamanismo e a política. Terra, aqui, é muito mais do que o mero suporte para a “produção” que nela veem os karaí. De todo modo, o fato é que o projeto, teoria ou filosofia kaiowá da política passa, de forma decisiva, por aquilo que chamamos de natureza. E isso não apenas no sentido “romântico” identificado pelos fazendeiros, de uma “volta à natureza”. A natureza, essa multidão, é não somente o objetivo, ela é aliada no processo de luta pela terra.

Todo esse pluriverso de resistências e modos de pensar os processos de luta a partir de diferentes mundos também compõe o debate em curso no âmbito da ecologia política, a qual tem se consolidado como um campo que tem se debruçado sobre um compromisso epistêmico-político, buscando a compreensão do conflito e da relação de poder que abrange a luta de povos originários e de outros povos tradicionais pelo território e em defesa/recomposição da biodiversidade.

Na literatura antropológica de Paul Little (2006)Little, P. E. (2006). Ecologia política como etnografia: um guia teórico e metodológico. Horizontes Antropológicos, 12(25), 85-103. https://doi.org/10.1590/S0104-71832006000100005
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, o tratamento acadêmico, crítico, holístico, estratégico e público, no que tange aos conflitos socioambientais, é um leque de elementos da ‘política’ das práxis da ecologia política. Nesse processo, tem surgido a retomada da universidade como campo de diversidade de ciências, sendo ocupada por pesquisadoras/es indígenas, com produções e grandes contribuições para a perspectiva inter e multidisciplinar, como a ecologia política.

Sob essa ótica, Krenak (2018)Krenak, A. (2018). Ecologia política. Ethnoscientia: Revista Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, 3(2), 1-2. http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v3i2.10225
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definem o termo ecologia como um conjunto de referências e seres de um lugar específico. Para os povos originários, de diversos modos e olhares, a ecologia está relacionada a quem vive na floresta como floresta viva, respirando e inspirando. A floresta é a dimensão que possibilita a cultura, a vida material, a política pela resistência diante dos sistemas capitalista/colonialista. Para os autores, esses sistemas desmembram o humano da relação com o lugar e com os não humanos e constroem a individualização, rompendo com o coletivo (Krenak, 2018Krenak, A. (2018). Ecologia política. Ethnoscientia: Revista Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, 3(2), 1-2. http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v3i2.10225
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).

A relação entre o povo Guarani-Kaiowá e a floresta tem sido amplamente discutida em trabalhos acadêmicos, nas últimas cinco décadas, de modo que a literatura conta com uma série de discussões relevantes relacionadas à interação entre os Guarani-Kaiowá e os diversos elementos daquilo que os ocidentais classificam como ambiente. Desde a década de 70, etnógrafos tem deixado evidente que, sob a ótica guarani-kaiowá, as condições da terra são mais importantes que determinados espaços geográficos, ou seja, o que realmente importa são as possibilidades de viabilizar determinada ocupação do espaço, viabilizando uma específica e profunda relação com o território em questão (Melià et al., 1976Melià, B., Grünberg, G., & Grünberg, F. (1976). Los Pai-Tavyterã-etnografia guarani del Paraguay contemporaneo. Suplemento Antropológico de la Revista del Ateneo Paraguayo, 9(1-2), 151-295.).

O antropólogo Levi Pereira Marques, em suas pesquisas junto aos Guarani-Kaiowá, aponta para o fato de que, por esse povo residir permanentemente na floresta, praticando uma agricultura altamente especializada, ele foi fundamental para a história de contato com a sociedade nacional. O autor reflete que, até os meados do século XIX, somente poucos viajantes e exploradores se arriscavam a penetrar nas densas matas que cobriam o sul de Mato Grosso do Sul, visto que a região não oferecia nenhum atrativo, como minérios ou outro ativo econômico de importância. No entanto, segundo o autor:

Os fazendeiros e colonos tinham interesse em ocupar efetivamente as terras kaiowá e em poucos anos dizimaram a floresta. Hoje a floresta desapareceu quase completamente, “karai roupa ñande ka‘‘aguype – os brancos comeram toda nossa floresta”, afirmam consternados os Kaiowá, enfatizando a irracionalidade da ocupação da região. Hoje em lugar da antiga floresta encontramos agricultura mecanizada e pastagens modernas. Com a mata desapareceu a caça, os remédios, os materiais para a construção de casas e dos objetos rituais. A terra infestada de gramíneas introduzidas na região pelos criadores de gado provoca o descontrole do fogo, resultando em queimadas gigantescas. O solo perdeu a fertilidade, não é mais possível praticar a agricultura itinerante, “já não existe mais animais e pássaros, a terra não produz mais, está cansada, a vida do índio ficou triste, esta terra deve desaparecer”, afirmam os xamãs kaiowá

(L. Pereira, 2004Pereira, L. M. (2004). O pentecostalismo Kaiowá: uma aproximação dos aspectos sociocosmológicos e históricos. In R. Wright (Org.), Transformando os deuses (pp. 267-302). Editora da UNICAMP., p. 7).

Sob essa mesma perspectiva, a historiadora Graciela Chamorro demonstra que, para o povo Guarani, a “. . . terra produz não só alimento, mas também inspiração para rezar e cantar” (Chamorro, 2008Chamorro, C. G. (2008). Terra madura Yvy Araguyje: fundamento da palavra Guarani. Universidade Federal da Grande Dourados., p. 172). Desse modo, a conexão entre território, cosmologia e diversidade biológica é indissociável.

Estudos mais recentes, elaborados por pesquisadores/as guarani-kaiowá, demostram essa forte conexão entre aspectos políticos, ecológicos e cosmológicos. O pesquisador kaiowá Marildo Pedro, em sua pesquisa de mestrado sobre etnozoologia, afirma que:

Registrar aspectos cosmológicos e cosmopolíticos é uma forma de fortalecer e valorizar a multiplicidade de mundos, corpos, territórios e naturezas originalmente sustentáveis, já que o eixo central dessas relações se baseia na perspectiva da subversão da dicotomia humano/não humano e na contraposição da visão colonialista ocidental baseada na fissura ontológica e na dominação. Sob essa perspectiva, o povo Kaiowá possui uma relação profunda com os mymba (animais, bichos) que também vivem nos tekohas (territórios ancestrais/“lugar onde se é”), e dessa coexistência derivam suas histórias, trajetórias, ritos, políticas e ecologias

(Pedro et al., 2022Pedro, M. S., Monfort, G. C., & Gisloti, L. J. (2022). Mymba ka’aguy ha tey’i rembikwa’a: as relações entre o povo Kaiowá e os animais. Etnobiología, 20(1), 116-141. https://revistaetnobiologia.mx/index.php/etno/article/view/454
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, p. 1).

Em caminho semelhante, a pesquisadora guarani-kaiowá Inair Gomes Lopes, em estudo sobre os saberes tradicionais e as práticas culturais associadas à atividade da caça, nos mostra que:

Em meio a tanta complexidade decorrente da invasão do karai reko, os diálogos, os momentos, as reflexões e a vivências na construção desse estudo foram de grande relevância para compreender aspectos bioculturais do povo Kaiowá em relação ao universo da caça. Assim, foi possível chegar numa prévia conclusão: as narrativas revelaram a magnífica importância da espiritualidade, centrada na natureza, como meio de construção da visão e interpretação de mundo por esse povo. Além disso, foi possível refletir que tal leitura de mundo está intrinsecamente associada ao observar, compreender e sentir o mundo natural entrelaçado ao mundo espiritual. Para os Kaiowá, todos os seres vivos são dotados de grande relevância no mundo natural e espiritual, portanto devem ser conhecidos e respeitados

(Lopes & Gisloti, 2022Lopes, I. G., & Gisloti, L. J. (2022). A caça e os caçadores kaiowá da aldeia Pirakua: uma reflexão na perspectiva da etnobiologia. Ethnoscientia-Brazilian Journal of Ethnobiology and Ethnoecology, 7(2), 79-100. http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v7i2.12749
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, p. 97).

Portanto, com a compreensão da importância dos debates e das relações que estão sendo debatidas pelo campo da ecologia política, e com a centralidade da categoria cosmopolítica, neste trabalho, analisamos as relações territoriais, socioecológicas e cosmológicas sob a perspectiva do que denominamos como ecologia cosmopolítica guarani-kaiowá.

A categoria ecologia cosmopolítica emerge a partir do entendimento de que há uma inseparabilidade entre as dimensões territoriais, socioecológicas e cosmológicas, de modo que as interações ou relações entre os diferentes elementos do cosmos incluem seres viventes, que realizam diferentes agências entre os mundos. Além disso, nesse âmbito, tem relevância os elementos de negociação, como as rezas, os cantos, as bendições e as celebrações; assim como são essenciais os elementos relacionados aos modos de cuidado e de produzir/cultivar a saúde, por meio da terra, da medicina tradicional, das ecologias ancestrais, dos modos de gestar a vida. Nessa dinâmica, também estão envolvidos todos os entes que compõem as lutas e os processos de resistência pela recuperação de seus territórios originários.

Essas sabedorias originárias são tecidas não só como consciências ecológicas, históricas e geográficas das comunidades e de diferentes gerações, mas também enquanto ciências nativas e milenares compostas pela totalidade da cosmovisão e da memória biocultural, de forma que são essas memórias que pavimentam a construção do território tradicional sociobiodiverso e equilibrado. Nesse sentido, essas relações constituem um eixo central da contra-colonização necessária e urgente, que retoma e fortalece a diversidade biocultural e os territórios ricos e diversos que construímos como humanidade (Agosto, 2018Agosto, P. (2018). Modernidad/colonialidad, extractivismo y memoria biocultural: en busca de los caminos perdidos. Revista Kavilando, 10(1), 225-235.). Para o autor quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015)Santos, A. B. (2015). Quilombos: modos e significações. INCTI/UNB., se a colonização envolve os processos de invasão, roubo, etnocídio, genocídio, e ecocídio, a contra-colonização realizada pelos povos indígenas e africanos abrange os processos de defesa dos territórios e de todas as formas de vida humana e não humana que nele vivem.

Dessa forma, é em meio a esse processo importante de resistência e complexidade socioecológica e territorial que almejamos registar, refletir e discutir sobre as memórias bioculturais que o povo Guarani-Kaiowá teceu junto à floresta e aos seres que a coabitam. De fato, é importante ressaltar que existe uma lacuna no que tange informações no sentido de discutir dados etnobiológicos que olhem com relevância para aspectos cosmológicos e, principalmente, políticos dos povos em foco. Assim, entendemos que muita importância tem sido atribuída ao valor utilitário nas pesquisas sobre a relação humana com a biodiversidade, em detrimento do registro e da reflexão a partir das diversas relações socioecológicas e territoriais dos povos indígenas.

Assim, este artigo registra e analisa as memórias bioculturais do povo Guarani-Kaiowá sobre a floresta, a fauna e a flora e os demais seres, tendo como foco a cosmologia e a cosmopercepção desse povo e considerando como pano de fundo a autodeterminação ontológica e política dos Guarani-Kaiowá.

MEMÓRIAS BIOCULTURAIS DO POVO GUARANI-KAIOWÁ SOBRE A KA’AGUY (FLORESTA)

Anastácio Peralta, educador e pesquisador guarani-kaiowá, em seu trabalho sobre kokuê (roças tradicionais), pontua que:

Historicamente nossos ancestrais sempre alimentaram os europeus desde que chegaram até nossas terras. As missões jesuíticas foram abastecidas de alimentos e remédios tradicionais, advindos do trabalho e produção agrícola dos antepassados, no entanto, hoje são vistos como improdutivos. Para combater este discurso pejorativo é que descrevo a forma de produção de meu povo e assim dizer que a Mãe Terra nos dá o que necessitamos e queremos vesti-la novamente com sua ornamentação natural: a mata

(Peralta, 2014Peralta, A. (2014). A agroecologia kaiowá: tecnologia espiritual e bem viver, uma contribuição dos povos indígenas para a educação [Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal da Grande Dourados]., p. 19).

Os diálogos e as entrevistas revelaram que, nas memórias originárias da Ñande Sy (rezadora) Adelaide, todo o território kaiowá era repleto de florestas e mata densa. Havia uma diversidade incrível de árvores, animais, rios e cachoeiras, que foram aos poucos desparecendo. Na visão dessa Ñande Sy, o egoísmo dos karaí (não indígenas) foi o grande responsável pela destruição da floresta, sendo que, para ela, o modo de viver do não indígena é contrário à coletividade, contribuindo para a desvalorização das riquezas naturais.

Segundo esta rezadora, desde a chegada dos colonizadores/invasores o processo de derrubada das florestas se iniciou e, desde então, o desmatamento não parou. Contudo, a rezadora enfatiza que, apesar de toda destruição da vegetação nativa, ainda existe, na região da aldeia, algumas áreas com remanescentes florestais, fundamentais para a dinâmica do modo de vida do povo Guarani-Kaiowá. Para ela, esta é a chave da sustentabilidade kaiowá, ou seja, olhar para as riquezas que a mata oferece, sem o olhar ganancioso, e reconhecer que a floresta é a grande mãe que sustenta e dá abrigo para seus filhos:

Muita floresta daqui hoje já não tem mais. Vieram sem dó, tirando tudo que encontravam pela frente para vender a madeira, para fazer lavoura. Tiraram quase tudo. Tinha muita floresta aqui antes. Mas também hoje já está mais diferente que antes. As áreas que antes estavam bem desmatadas e feias hoje já se encontram mais verdes e com vida e alguns animais que antes não apareciam, agora já começam a ser vistos novamente. As florestas são fontes de vida e os karaí não sabem reconhecer isso. É por isso que desmatam e matam todas as plantas e animais sem dó no coração

(Ñande Sy Adelaide, comunicação pessoal, 2020).

De fato, o processo compulsório de reservamento (por meio das reservas indígenas), a invasão e mercantilização das terras e a expansão do extrativismo foram resultantes do modelo de precarização instituído contra as relações do ymaguare (tempo antigo), onde as florestas ainda existiam, até serem brutalmente usurpadas com a territorialização de intensivas e agressivas monoculturas (Seraguza, 2018Seraguza, L. (2018). Em tempos de fins: reservamento, retomadas e as múltiplas formas Kaiowa e Guarani de Composição. ACENO - Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 5(10), 223-240. https://doi.org/10.48074/aceno.v5i10.7336
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).

Em confluência, a Ñande Sy Amélia expressa, em suas reflexões, a manutenção da mata e da biodiversidade local como elemento primordial para a manutenção do modo de vida guarani-kaiowá. A rezadora aponta para a importância da valorização e do fortalecimento dos conhecimentos tradicionais sobre a fauna e a flora, além de reivindicar que esses conhecimentos estejam presentes no currículo das escolas indígenas:

Manter a mata de pé é muito importante para o Guarani-Kaiowá. A mata nos presenteia com tudo que precisamos para viver bem, com saúde e com a cabeça boa. Ela é como nossa coluna vertebral. Sem a mata acontece desequilíbrio entre as crianças e os jovens. A mata também nos ensina muita coisa. A gente precisa parar e ouvir o que ela tem para nos falar. E não é com qualquer pessoa que ela fala, mas a Ñande Sy e o Ñande Ru conseguem ouvir. A gente sabe a linguagem da mata, não é qualquer um que sabe. As escolas também precisam ouvir o que os anciãos têm a falar. Na escola não pode ter só o conhecimento do branco. Precisa ter o conhecimento tradicional guarani-kaiowá

(Ñande Sy Amélia, comunicação pessoal, 2020).

As reflexões da Ñande Sy Amélia se soma ao coro entoado pelo pesquisador Isaque João e pelo Ñande Ru Ava Ñomoandyja Atanásio Teixeira, que buscam levar para a educação escolar indígena reflexões acerca da perda da diversidade dos sistemas socioecológicos, ocasionada pelos impactos sociais e ambientais gerados pelo agronegócio nos território dos Guarani-Kaiowá (João, 2011João, I. (2011). Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato Grosso do Sul [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados].; Ñomoandyja, 2021Ñomoandyja, A. T. (2021). Cantos dos animais primordiais. Editora Hedra.).

Ainda nesse mesmo contexto, o Ñande Ru (rezador) Eduardo reconhece os ecossistemas diversos no território kaiowá e explica que o ka’ati (cerrado) exibe uma riqueza valiosa, abrigando diversas plantas medicinais e frutíferas nativas. O rezador também aponta para a importância do porã rupa (brejo) como o local onde se encontram os remédios tradicionais. De maneira semelhante, o rezador reconhece a ka’aguy (floresta) como um ecossistema de grande relevância, visto que esse habitat é ocupado por seres poderosos, como a jaguaretê (onça), o kai (macaco) e outros animais de grande importância espiritual e cosmológica.

Todos os seres e toda mata têm a sua importância. O ka’ati, que é o cerrado, tem também muita riqueza. Plantas, remédios, frutas. O brejo também, esse é mais importante ainda como remédio. O brejo é porã rupa, a cama dos remédios. Mas as ka’aguy, as florestas, são o lugar mais importante para os Kaiowá. É como o palácio do presidente. Ali na mata moram os poderosos, como a onça, o macaco e os outros animais mais ativos, fortes e poderosos que nos dão a força espiritual

(Ñande Ru Eduardo, comunicação pessoal, 2020).

Sob outra perspectiva, as oficinas participativas e as turnês guiadas foram desenvolvidas em duas ocasiões (outubro de 2019 e janeiro de 2020). Na primeira, participaram cinco estudantes e sete educadoras/es e, na segunda atividade, participaram seis estudantes e cinco educadoras/es. A idade do grupo de estudantes variou de sete a 17 anos e do grupo de educadoras/es variou de 21 a 43 anos.

Assim, as oficinas participativas realizadas com a comunidade escolar (professoras/es e estudantes) revelaram que, para as/os educadoras/es, os conhecimentos relacionados à flora, à fauna e à sustentabilidade ambiental precisam ser construídos considerando aspectos culturais e espirituais específicos do povo Guarani-Kaiowá. Esses temas, em contraposição à educação escolar indígena, que é imposta pelo Estado, precisam estar alinhados à educação indígena, ou seja, àquela ofertada pela família/comunidade.

As relações entre plantas, animais e tudo estão intimamente ligadas com a comunicação espiritual adquirida através da Arandu Ka’aguy, ou seja, a nossa educação indígena kaiowá. Essa é diferente da educação escolar indígena, que foi pensada pelos karaí e articulada pelo Estado, que mistura a ciência dos brancos com a nossa ciência. Na nossa ciência indígena kaiowá, a natureza não se separa de nós e a terra é a nossa Grande Mãe

(professora kaiowá, comunicação pessoal, 2019).

Durante os diálogos, as/os professoras/es ressaltaram aspectos bastante interessantes sobre a cosmovisão guarani-kaiowá, pautada nas relações construídas entre os seres vivos e os seres espirituais, que são os guardiões de todas as formas de vida. Para os Guarani-Kaiowá, esses seres são conhecidos como jara e são imprescindíveis para a manutenção da biodiversidade:

Os jara são essenciais para manter toda a forma de vida do nosso planeta. São esses seres que orientam toda a dinâmica da vida no mundo Guarani-Kaiowá. Tudo está conectado a esses seres espirituais, que são os guardiões de toda a biodiversidade na Terra. É preciso saber se comunicar e respeitar esses seres para que o equilíbrio natural seja mantido. Se houver desrespeito em relação aos jara, eles irão desaparecer e junto deles irão sumir também todas as outras formas de vida

(professora kaiowá, comunicação pessoal, 2019).

No que tange aspectos relacionados à biodiversidade, se faz necessário observar que a cosmovisão dos Guarani-Kaiowá não segrega a fauna e a flora, como ocorre na ciência ocidental. Desse modo, para os Guarani-Kaiowá, “. . . existem categorias que expressam redes classificatórias, conforme o interesse na produção da pessoa e de seu ser social pleno, nas quais o vegetal e o animal são vistos como intermediador da relação com os guardiões (teko jara), que compõem os diversos lugares do tekoha (aldeia, território) (Pavão et al., 2021Pavão, S., Lopes, I. G., Vilharva, K. N., Peralta, A., Pedro, M. S., Benites, E., & Gisloti, L. J. (2021). Flora medicinal Guarani e Kaiowá: conhecimento tradicional como forma de resistência. Espaço Ameríndio, 15(1), 160-196. https://doi.org/10.22456/1982-6524.105223
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, p. 189).

Desse modo, de acordo com a pesquisadora guarani-kaiowá, a flora e a fauna são compostas por:

Seres que possuem almas e o estado aparente do animal ou vegetal é apenas uma miragem limitada dos humanos de enxergar a dimensão incompleta dos ecossistemas, onde o mundo físico é apenas uma parte da totalidade da existência. O mundo “natural”, entendido pelos povos indígenas Guarani e Kaiowá, é repleto de diferentes plantas e animais conforme a presença de seus guardiões que cuidam e proliferam cada espécie numa dinâmica de movimento

(Pavão et al., 2021Pavão, S., Lopes, I. G., Vilharva, K. N., Peralta, A., Pedro, M. S., Benites, E., & Gisloti, L. J. (2021). Flora medicinal Guarani e Kaiowá: conhecimento tradicional como forma de resistência. Espaço Ameríndio, 15(1), 160-196. https://doi.org/10.22456/1982-6524.105223
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, p. 189).

Desse modo, estar próximo dos jara no processo da existência produz o teko araguyje (vida sagrada), formando a aldeia sagrada como condição da existência. Assim, para os Guarani-Kaiowá, a vida é produto da presença dos grandes guardiões perfeitos no tekoha, onde cada ser vivo é o reflexo da força e da perfeição dos grandes guardiões de caráter perfeito. Por isso, a fauna, a flora, os fungos, as bactérias e todos os tipos de seres vivos são representantes do seu próprio guardião no mundo terreno (Benites et al., 2021Benites, E., & Pereira, L. M. (2021). Os conhecimentos dos guardiões dos modos de ser–teko jára, habitantes de patamares de existência tangíveis e intangíveis e a produção dos coletivos kaiowá e guarani. Tellus, (44), 195-226. https://doi.org/10.20435/tellus.vi44.745
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).

Sob essa perspectiva, como forma de valorizar as memórias bioculturais de plantas e animais, confeccionamos a Tabela 1, que apresenta os registros de espécies da fauna e da flora citadas durante as atividades participativas construídas junto à comunidade. Foram listadas dezesseis espécies de plantas e oito espécies de animais de importância sócio/cosmo/ecológica, que se mostraram presentes nas memórias dos Guarani-Kaiowá. Confeccionamos esta tabela contendo a etnoespécies, a categoria da memória (medicinal, alimentação, construção, preditiva, artesanato e lenha) para cada espécie da fauna e da flora citadas (Tabela 1).

A rica diversidade da memória biocultural dos Guarani-Kaiowá a respeito da flora e da fauna é revelada através das relações com esses seres, que vão desde a relação cosmológica, cultural, utilitária, mas, principalmente, através da relação medicinal, por meio das mymba kyra (gorduras animais) e das pohã ñana (plantas medicinais).

De fato, essa relação íntima, complexa e profunda é expressa nas narrativas dos Guarani-Kaiowá, que associam a sustentabilidade da existência desse povo à dinâmica coevolutiva das relações entre os seres que compõem o território. Assim, todos os seres que habitam a mata são elementos importantes para a manutenção da vida desse povo, ou da sustentabilidade da existência. Nessa perspectiva, há que se considerar ainda que, para muitos povos indígenas, os seres da flora e da fauna são também humanos ou espíritos com os quais se constrói uma relação orgânica, buscando-se manter integração e equilíbrio, sendo, inclusive, importantes na medicina tradicional.

ARANDU KA’AGUY: CONHECIMENTO TRADICIONAL GUARANI E KAIOWÁ COMO CIÊNCIA INDÍGENA

As conversas realizadas junto ao rezador Ñande Ru Eduardo foram de grande importância para aprofundar as reflexões sobre a importância dos conhecimentos tradicionais para o fortalecimento da ciência originária dos Guarani-Kaiowá. O rezador pontuou, em diversos momentos, que esses conhecimentos e essa ciência são específicos e, quando transmitidos geracionalmente, atuam em sinergia para garantir a existência do teko ava (modo de existir dos Guarani-Kaiowá).

O rezador Ñande Ru Eduardo relata que os conhecimentos tradicionais formam uma grande teia, sustentada por alguns eixos que se comunicam entre si. Nessa teia, o mundo biofísico juntamente com outros elementos, como o ar, a água, a terra, o fogo, a fauna, a flora e os demais seres, coabitam a terra de forma respeitosa e harmoniosa. O Ñande Ru Eduardo ainda aprofunda a reflexão pontuando que essa interconexão de seres e da vida é fortalecida pelos conhecimentos tradicionais materializados em rezas, rituais e celebrações.

O conhecimento tradicional dos Guarani-Kaiowá é enorme e é através dele que guardamos o segredo do nosso bem viver. E vai passando dos anciões para as crianças em um ciclo de conhecimento. Está tudo interligado em cinco eixos: o ar, a água, a terra, o fogo e a mata. Montanhas, floresta, rios, brejos, cerrado, tudo interligado. E as rezas é a teia que fortalece e fazem valer esse conhecimento. Nesse momento, falamos com as sementes, com a chuva, com a terra. É essa ligação que faz os jara permanecerem por perto e, assim, garante a sobrevivência de todos os seres vivos

(Ñande Ru Eduardo, comunicação pessoal, 2020).

Nesse contexto, a dimensão cosmológica do conhecimento tradicional é uma categoria com muitos patamares, classificações e diversidade de sentidos, ações e percepções que interagem entre si. Para o pesquisador kaiowá Eliel Benites (2020)Benites, E. (2020). Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta. Revista Nera, (52), 19-38. https://doi.org/10.47946/rnera.v0i52.7187
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, o mundo cosmológico é percebido como Ypy (origem; ancestral; matriz; seres/coisas originais/primordiais que geram outros seres), na raiz que mantém as relações entre o mundo e o universo, interligado à beleza e à complexidade. O efeito dessas forças compõe a dinâmica da Terra. Nessa expressão de mundo dos Guarani-Kaiowá, o equilíbrio é alcançado, sobretudo, através da intervenção das rezas.

Ainda sobre o conhecimento tradicional, o rezador Ñande Ru Eduardo aponta para a vital importância do conhecimento tradicional no cotidiano e na construção do modo de ser Guarani-Kaiowá, levando-se em conta que esse conhecimento está implícito desde as atividades mais básicas, como o plantio de alimentos, até nas atividades mais específicas, como o tratamento de determinada enfermidade.

Através do conhecimento tradicional dos Guarani-Kaiowá sabemos a época certa de plantar o alimento certo. Não é em qualquer época que pode plantar qualquer coisa. E antes de plantar precisa observar o vento, e não só isso. A fase da lua também é importante. Tudo precisa ser observado. Até tem época correta para tirar o graxo dos animais que curam. É entre agosto e novembro

(Ñande Ru Eduardo, comunicação pessoal, 2020).

Assim, de acordo com a pesquisadora kaiowá Valdelice Verón, este povo pertence a um território ancestral onde, além de se desfrutar do que é concedido pela Mãe Terra, há o dever de cuidar, defender e proteger os elementos dos ecossistemas; e esse respeito mútuo é aprendido através da interpretação do conhecimento tradicional. “Durante todo o tempo de nossa vida, aprendemos, com nossas anciãs, a interpretar a voz da natureza, através das manifestações e reações climáticas do tempo e do espaço” (Veron, 2018Veron, V. (2018). Tekombo’e kunhakoty: modo de viver da mulher kaiowá [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. https://repositorio.unb.br/handle/10482/34048
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, p. 18).

Desse modo, fica evidente que sociedades, guardiões, territórios e jeito de estar, ser e viver compõem um todo interdependente com dinâmicas de coevolução entre as práticas culturais, espaciais e ecossistêmicas (Maffi, 2007Maffi, L. (2007). Biocultural diversity and sustainability. In J. Pretty, A. Ball, T. Benton, J. Guivant, D. Lee, D. Orr, M. Pfeffer & H. Ward (Eds.), Sage Handbook on Environment and Society (pp. 267-277). Sage Publications.; Krenak, 2018Krenak, A. (2018). Ecologia política. Ethnoscientia: Revista Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, 3(2), 1-2. http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v3i2.10225
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). Nesse sentido, de acordo com o Ñande Ru Eduardo, os conhecimentos tradicionais perpassam outros aspectos sociais e também fornecem orientações para as famílias:

Se a floração do ipê se antecipar, a seriema aparecer e o pôr de o sol apresentar uma cor bem avermelhada com reflexos amarelados, os casais precisam fazer jehovasa junto com o Ñande Ru para evitar as tentações, ou seja, as paixões iludidas. Assim, o Ñande Ru consegue fazer a tentação ser passageira. Então, a educação no contexto familiar se relaciona com a comunicação com a natureza, onde no convívio do ser humano com a natureza existe uma ligação muito forte com os Ka’aguy jarakuera (donos e guardiões da mata), que, para o Guarani-Kaiowá, através deles que adquirimos uma força muito grande, como a reza, os conhecimentos dos remédios das plantas medicinais. Essa é a maneira de estar bem com seu povo, sua família e ter o bem-estar da saúde dos filhos, ou seja, o Teko Porã e Teko Resai

(Ñande Ru Eduardo, comunicação pessoal, 2020).

O pesquisador kaiowá Eliel Benites destaca que o mundo para o povo Guarani-Kaiowá é constituído a partir de uma conexão entre o mundo físico e espiritual, emergindo uma relação que se percebe através da sensibilidade das linguagens da floresta, da terra, dos rios e de outros elementos do mundo. A diversidade de linguagens existentes na natureza compõe também as linguagens dos Guarani-Kaiowá, de forma que “. . . estar em constante ligação com esta rede de equilíbrio da natureza é o papel fundamental da nossa atuação, a partir da postura de um corpo espiritualizado” (Benites, 2014Benites, E. (2014). Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýiku [Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco]. https://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/13832-eleil-benites.pdf
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, p. 57).

O rezador Ñande Ru Eduardo relata a importância dos conhecimentos tradicionais relacionados às rezas e aos rituais, de modo que, para o rezador, o poder das plantas medicinais só pode ser acessado por meio das rezas e da comunicação com os guardiões de cada ser vivo que compõe a biodiversidade. Essa comunicação é essencial para a dinâmica da vida dos Guarani-Kaiowá.

A reza é muito importante para fazer com que alcancemos o poder das plantas medicinais. Toda planta é medicinal para nós, Kaiowá, desde que seja cultivada e colhida de forma tradicional, orientado sempre pelos Ñande Ru. Com a reza, nos conectamos com os jara kuera, cada planta com o seu, cada animal com o seu, cada rio com o seu... Na reza, sabemos o que pode curar, o que pode caçar, onde pode ir, de acordo com o tempo indicado pela fala do Ñande Ru com os jara

(Ñande Ru Eduardo, comunicação pessoal, 2020).

Nessa perspectiva, o corpo espiritualizado é semeado pelas relações com os Ñande Ru e Ñande Sy, através de suas especialidades que se manifestam na reza e no canto, onde se personifica o seu nhe’engary (alma/palavra) (João, 2011João, I. (2011). Jakaira Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi: origem e fundamentos do canto ritual Jerosy Puku entre os kaiowá de Panambi, Panambizinho e Sucuri’y, Mato Grosso do Sul [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados].). De acordo com Benites (2014)Benites, E. (2014). Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýiku [Dissertação de mestrado, Universidade Católica Dom Bosco]. https://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/13832-eleil-benites.pdf
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, os cantos são como trilhas pelas quais torna-se possível visualizar o tape rendy (caminho iluminado), que move até a morada dos deuses para fortalecer o conhecimento na condução do povo. Cantar é a forma de ressoar versos com belas palavras que manifestam, de maneira harmoniosa, as linguagens e as belezas da biodiversidade, do território e das pessoas. Estes são momentos de transe em que se entrecruzam passado, mundo espiritual e presente, para imaginar a construção do futuro. Assim, de acordo com o pesquisador kaiowá, os cantos e as rezas são os principais elementos de cuidado mútuo com a floresta e com os seres que a habitam.

Os diálogos realizados junto ao rezador Ñande Ru Eduardo revelaram aspectos da pedagogia da educação indígena dos Guarani-Kaiowá, que é construída a partir de uma teoria e uma metodologia própria, nativa e originária. Esse processo de ensino-aprendizagem é transmitido geracionalmente durante as atividades cotidianas, em celebrações, rituais e eventos realizados de forma comunitária.

A ciência nativa, indígena, tem um jeito de se fazer próprio que vem de muito tempo de experiência, de cultivo. E assim ela vai se construindo a cada geração. Desde criança, o Kaiowá é ensinado a viver dentro das normas daquele seu tekoha e só quem vive ali sabe o valor dessa ciência nossa para manter o nosso modo de viver

(Ñande Ru Eduardo, comunicação pessoal, 2020).

De modo crítico e incisivo, o rezador Ñande Ru Eduardo reconhece que a ciência indígena e os conhecimentos tradicionais foram muito negligenciados no passado pelo mundo não indígena, contudo, o rezador afirma que atualmente a situação tem se invertido, de modo que se tem observado um interesse crescente, por parte de escolas e universidades, relacionado aos conhecimentos tradicionais dos Guarani-Kaiowá. O Ñande Ru ainda reflete que, em muitas comunidades, os conhecimentos tradicionais se encontram pouco valorizados e conclui que a valorização da língua materna é uma ferramenta de grande relevância para o fortalecimento das ciências indígenas.

Os karaí não sabem entender o valor da ciência indígena, do nosso conhecimento próprio, específico. Mas agora parece que vem mudança. Eu vejo mesmo algo mudando. A universidade, as escolas estão ficando interessadas no nosso conhecimento milenar. Isso é muito bom, porque em algumas famílias kaiowá o conhecimento tradicional já está sendo deixado de lado e para isso não acontecer precisa manter a língua, que é a essência do nosso conhecimento

(Ñande Ru Eduardo, comunicação pessoal, 2020).

Nesse sentido, é fato que a agressividade da racionalidade integracionista imposta pela sociedade karaí (branca) tem violado também os métodos de construção e compartilhamento de saberes, buscando tornar o conhecimento tradicional fragilizado. Em contraposição a isso, os Guarani-Kaiowá têm fortalecido espaços autônomos e comunitários que buscam potencializar esses saberes e a oralidade, valorizando os conhecimentos culturais, cosmológicos, territoriais e socioecológicos. Nesse sentido, esses saberes e linguagens também constituem as relações cosmológicas e a memória biocultural dos territórios indígenas (Pavão et al., 2020Pavão, S., Lopes, I. G., Vilharva, K. N., Pedro, M. S., & Gisloti, L. J. (2020). Plantas medicinais dos povos Kaiowá e Guarani como possível prática complementar no enfrentamento dos sintomas da covid-19: conhecimento tradicional como arma contra a pandemia. Revista Brasileira de Agroecologia, 15(4), 4-17. https://doi.org/10.33240/rba.v15i4.23271
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).

Sob essa ótica, um importante compromisso reivindicado por este povo é o de fortalecer o registro de memórias por meio da oralidade, tão vital na sociedade indígena, bem como o registro escrito a partir das narrativas do próprio povo. Esse foi o principal motor que motivou a realização do presente estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O povo Guarani-Kaiowá compreende que, para a comunidade florestal se manter equilibrada e em harmonia, é importante a presença dos guardiões espirituais como agentes políticos que compõem as lutas pela terra ancestral, pela defesa e pelo retorno da floresta. Expressam claramente um entendimento a respeito da indiscernibilidade e do respeito mútuo entre humano e não humano. A relação multiespecífica é composta pelo equilíbrio proferido entre os jara (donos), o ñembo’e (rezas), o mborahéi (cantos) e o jehovassa (bendições).

Nessa perspectiva, o povo Guarani-Kaiowá tem uma relação particularmente profunda com os ecossistemas da floresta, e suas cosmovisões e percepções se mostram profundamente interconectadas, de forma a compreender os seres humanos como sendo apenas uma parte de uma comunidade muito mais ampla. Assim, a flora, a fauna, assim como todos os outros seres vivos (biológicos, não biológicos e espirituais) são de vital importância para o território, já que compõem a multidimensionalidade da terra e constroem relações com outros seres que ali coabitam.

Pudemos observar que a base material, cosmológica e espiritual do conhecimento dos Guarani-Kaiowá é substancialmente complexa, e profunda e as memórias bioculturais reveladas pelas/os participantes desta pesquisa acrescentam muitas informações relevantes relativas aos ecossistemas habitados pelos Guarani-Kaiowá. Toda a complexidade dessas relações se revela no entendimento de que a floresta é permeada de espíritos e guardiões/as das mais diversas ordens e classificações, onde a ecologia está associada a um conjunto de referências históricas, socioecológicas, geográficas e cosmológicas.

Assim, entendemos que as ações construídas em torno da restauração ecológica devem ter como princípios as relações cosmológicas, socioterritoriais e ecológicas deste povo, de forma que a luta pela retomada dos territórios seja o ponto-chave para que as florestas presentes nos territórios possam ser protegidas e restauradas.

No território dos Guarani-Kaiowá, pulsam as marcas da destruição ambiental ocasionada pelo perverso modelo de agronegócio, que dizima diversas formas de vida e afeta como um todo o modo de viver desse povo. Diante disso, acreditamos que a busca por entender os processos que feriram a sociobiodiversidade e os territórios seja de extrema relevância para que se construam estratégias efetivas de restauração e conservação de sistemas sócio/eco/cosmológicos.

Esperamos que este trabalho possa aprofundar aspectos fundamentais a respeito dos elementos que compõem a Mata Atlântica para o povo Guarani-Kaiowá do Tekoha Tapy Kora, Aldeia Limão Verde, a fim de contribuir na construção de estratégias de autogestão territorial, bem como de restauração ambiental, pensada, articulada e executada a partir da compreensão cosmo/biogeográfica desse povo.

  • Pavão, S., & Gisloti, L. J. (2023). Memórias bioculturais dos Guarani-Kaiowá sobre a floresta e os seres que a coabitam: ecologia cosmopolítica na perspectiva da etnoconservação. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(2), e20220006. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0006

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Editado por

Responsabilidade editorial: Claudia Leonor López-Garcés

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2022
  • Aceito
    20 Mar 2023
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