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WANG WEI E O MISTÉRIO DO MUSGO VERDE AZULADO

WANG WEI AND THE MISTERY OF THE BLUE-GREEN MOSS

Resumo

O poema Lu Zhai (漉柴; “Parque dos Cervos”) do famoso poeta chinês Wang Wei (王维; 699-759) é uma de suas obras mais conhecidas e traduzidas no Ocidente. O presente artigo discute e apresenta uma nova interpretação para o verso final do referido poema.

Palavras-chave
Poesia Chinesa; Dinastia Tang; Wang Wei; Lu Zhai

Abstract

The poem Lu Zhai (漉柴; “Deer Park”) by the famous Chinese poet Wang Wei (王维; 699-759) is one of his best known and most translated works in Western world. This article discusses and presents a new interpretation of the final verse of the referred poem.

Keywords
Chinese Poetry; Tang Poetry; Wang Wei; Lu Zhai

王维与“青”苔之谜

摘要

《鹿柴》是唐朝诗人王维〔699-759〕在西方世界最著名 且被翻译次数最多的作品之一。本文讨论并提出对这首 诗最后一节的新诠释。

关键词
中国诗歌; 唐诗; 王维; 鹿柴

1. Introdução

Wang Wei (王維; 699-759) foi um poeta, músico, pintor e estadista chinês que viveu durante a Dinastia Tang (618-906). Ele foi um dos homens mais famosos das artes e letras de sua época. Mais de quatrocentos dos seus poemas são preservados e 29 foram incluídos na famosa antologia do século XVIII conhecida como “Os Trezentos Poemas Tang” (唐詩三百首).

Wang Wei era famoso por sua poesia e suas pinturas, sobre as quais o famoso poeta da Dinastia Song, Su Shi (1037-1101) afirmou: “A qualidade dos poemas de Wang Wei está na pintura que existe dentro deles. Ao observar suas pinturas, pode-se perceber que ali também existe poesia”.

Cerca de quatrocentos de seus poemas sobreviveram graças ao esforço feito pelo seu irmão mais novo, Wang Jin, a pedido do imperiador. Além disso, várias das suas criações mais famosas, como o poema Lu Zhai (鹿柴;“Parque dos Cervos”), integram uma coletânea intitulada “Wangchuan ji” (辋川集), escrita por Wang Wei e o seu amigo Pei Di. Os poemas dessa coleção, inspirados nas paisagens próximas ao santuário de Lantian, são aparentemente simples, no entanto resultam de observações profundas sobre as paisagens e a vida humana segundo os ensinamentos budistas. Tais características levaram Wang Wei a ser conhecido como o “poeta pintor” e como o “Buda dos poetas”.

2. Dezenove visões de Wang Wei mais três

Algo semelhante ao “samba de uma nota só”, conhecida canção brasileira de Tom Jobim e Newton Mendonça, Eliot Weinberger e Octavio Paz publicaram em 1987 uma antologia de traduções de um único poema de WangWei, justamente o poema Lu Zhai.

A obra intitulada 19 Ways of Looking at Wang Wei contém dezessete traduções para o inglês e duas para o espanhol, todas elas comentadas por Weinberger e PazWeinberger, Eliot e Paz, Octavio. 19 Ways of Looking at Wang Wei. Kingston, Rhode Island: Asphodel Press, 1987.. A este repertório especializado, podemos acrescentar três traduções para o português feitas no Brasil em anos recentes.

A primeira pertence ao poeta Haroldo de Campos (1929-2003)Campos, Haroldo de. Escrito sobre Jade. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, 2ª edição revista e ampliada. Org. Trajano Vieira., publicada originalmente em 1988 num artigo com o sugestivo título “Três Versões do Impossível” (Folhetim num. 583 do jornal Folha de São Paulo de 08/04/1988) e posteriormente incluída na antologia “Escrito sobre Jade” de 2009.

O Refúgio dos Cervos montanha vazia não se vê ninguém ouvir só se ouve um alguém de ecos raios do poente filtram na espessura um reflexo ainda luz no musgo verde (Campos 51Campos, Haroldo de. Escrito sobre Jade. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, 2ª edição revista e ampliada. Org. Trajano Vieira.)

A segunda pertence aos tradutores Sergio Caparelli e Sun Yuqi, publicada na obra Poemas clássicos chineses: Li Bai, Du Fu e Wang Wei de 2012

O Parque dos Cervos Montanha deserta. Ninguém à vista. Só eco de vozes. A luz do poente entre ramagens. Sobre o musgo, um fulgor: verde. (Caparelli e Sun 209Caparelli, Sergio e Sun, Yuqi. Poemas clássicos chineses: Li Bai, Du Fu e Wang Wei. Porto Alegre: L&PM, 2012.)

A terceira pertence aos tradutores Ricardo Primo Portugal e Tan Xian, publicada na obra Antologia da poesia clássica chinesa – dinastia Tang de 2013

O retiro dos cervos vazia a montanha ninguém se vê entanto rumores vozes se ouvem torna a luz poente até o bosque denso ainda ilumina o musgo verde sobre (Portugal e Tan 144Portugal, Ricardo Primo e Tan, Xian. Antologia da poesia clássica chinesa – dinastia Tang. São Paulo: Editora da Unesp, 2013.)

Todas estas excelentes traduções estão em consonância com o conceito de reimaginação (Faleiros 37-39Faleiros, Álvaro. “Na esfera da reimaginação”. Cadernos de Literatura em Tradução, São Paulo, nº 11 (2010): 37-46. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/clt/article/view/49484. Acesso em: 31. set. 2019
http://www.revistas.usp.br/clt/article/v...
) e seguem pari passu o texto original do poema apresentado a seguir:

Tabela 1
Traduções

3. Os problemas de um problema

A obra de Weinberger e Paz nos remete ainda ao notável conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, de Jorge Luis Borges (1899-1986)Borges, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Editora Abril, 1972.. No referido texto, o escritor argentino lista a diversificada e extravagante produção intelectual de Pierre Menard, dentre as quais destacamos:

m) A obra Les Problèmes d’un Problème (Paris, 1917) que discute em ordem cronológica as soluções do ilustre problema de Aquiles e a tartaruga. Duas edições desse livro apareceram até agora; a segunda traz como epígrafe o conselho de Leibniz ‘Ne craignez point, monsieur, la tortue’, e renova os capítulos dedicados a Russell e a Descartes. (Borges 49Borges, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Editora Abril, 1972.)

Ou seja, diante do problema de traduzir o famoso poema “Lu Zhai” de Wang Wei, Weinberger e Paz apresentam também diversas soluções que por sua vez geram novos problemas quando confrontados com o texto original, trazendo sempre de volta o espectro da intraduzibilidade da poesia chinesa (Jatobá 216-218Jatobá, Júlio Reis. “Poesia e (in)traduzibilidade na língua chinesa”. Scientia Traductionis, Florianópolis, nº 13 (2013): 213-223. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/30271. Acesso em: 31. set. 2019
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sci...
).

Contudo, o ponto que nos interessa neste breve estudo é o mistério do musgo cuja descoberta é o ponto focal do poema e, sobretudo, a sua instigante cor verde azulada.

4. O musgo é um musgo é um musgo

Parafraseando Gertrude Stein (“Rose is a rose is a rose is a rose”) o musgo representa a forma inesperada e desconcertante com que o zen se apresenta quando confrontado de maneira intelectualista ou quando interpelado por uma curiosidade frívola. Desta forma, o poema funciona também como as famosas anedotas dos mestres zen (公案 gong1 an4, em japonês koan) tal como esta do mestre zen japonês Kakua:

Quando Kakua voltou ao Japão depois de estudar vários anos na China, o Imperador, que ouvira dizer que ele aprendera uma nova doutrina, mandou chamá-lo à sua presença para interrogá-lo sobre ela.

Quando o Imperador lhe perguntou o que era o Zen, Kakua fez uma profunda reverência, tirou das dobras de seu quimono uma flautinha, soprou uma nota, guardou o instrumento, fez nova reverência e desapareceu. Nunca mais ninguém ouviu falar nêle.

(Gonçalves 205Gonçalves, Ricardo Mário. Textos Budistas e Zen-Budistas. São Paulo: Editora Cultrix, 1967.)

Qual seria o significado dessa nota musical de Kakua? Essa pergunta que ecoa na mente do discípulo, exige um desprendimento e uma intuição mais profunda.

No caso do poema “Lu Zhai”, Wang Wei vai além de apenas deixar consignada a pergunta característica do zen sobre o significado do musgo ao escolher uma tonalidade particularmente indefinida e especial para identificá-lo.

Conforme vimos anteriormente, a palavra 青 (qing1) significa “verde, azul, preto, jovem”. Ao invés de escolher uma cor específica como “verde” (繂 lü4) ou “azul” (蓝 lan2), o poeta opta por uma tonalidade cujo espectro vai do azul ao verde incluindo o preto. Tal escolha não é casual pois, como observa o escritor e erudito chinês Lin Yutang (1895-1976)Lin, Yutang. A Sabedoria da Índia e da China. São Paulo: Irmãos Pongetti, 1942., os poetas da Dinastia Tang são extremamente cuidadosos quanto ao vocabulário utilizado:

A diferença entre a poesia T’ang e o “Livro da Poesia” [Shi Jing] é a diferença entre um galho de flores cuidadosamente arranjado num vaso, onde cada ângulo e cada curva é estudada carinhosamente, e o desenvolvimento luxuriante de um jardim silvestre. Esses poemas [do Shi Jing] representam para nós a voz do povo antigo, fresca, direta e sem afetação, e algumas vezes despudorada. Num namoro ouve-se a voz dos namorados, o que é impossível nos poemas dos letrados T’ang. Ouvimos também uma surpreendente variedade de temas, de fugas, os anseios de donzela, a esposa abandonada, a mulher divorciada, a luxúria dos ricos, a caça, guerras, soldados em serviço e sátiras contra as classes abastadas.

(Lin 322Lin, Yutang. A Sabedoria da Índia e da China. São Paulo: Irmãos Pongetti, 1942.)

Vale observar ainda que existe de fato uma planta originária da China e do Camboja chamada Selaginella willdenowii também conhecida popularmente como “Musgo-Azul”. Trata-se de uma espécie aparentada das samambaias e que possui propriedades iridescentes, ou seja, a sua cor varia conforme o ângulo de incidência da luz, indo do verde ao azul.

Figura 1
Selaginella willdenowii

Não se pode afirmar que o poeta tenha se referido a esta planta em particular, contudo o uso da palavra 青 (qing1) poderia ser um índice desse incomum e exuberante dinamismo cromático.

5. Da capo (de volta ao início)

O escritor Graham Greene (1904-1991) quando questionado sobre a relação entre sua confissão religiosa e sua atividade literária, dizia ser ele apenas “um católico que escreve” enquanto que Evelyn Waugh (1903-1966) seria de fato “um escritor católico”.

Da mesma forma, a tonalidade verde azulada faz com que em Wang Wei o poeta pintor prevaleça sobre o poeta budista ou antes sobre o budista que escreve poemas. Em outras palavras (e acrescentando novas dificuldades para os tradutores de poesia chinesa) toda a riqueza e complexidade pictórica do poeta não devem ser ofuscadas pela iluminação zen, de tal modo que o poema não deixe no leitor a impressão final de um lacônico musgo, mas sim de um extraordinário jardim verde azulado.

Referências

  • Borges, Jorge Luis. Ficções São Paulo: Editora Abril, 1972.
  • Campos, Haroldo de. Escrito sobre Jade São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, 2ª edição revista e ampliada. Org. Trajano Vieira.
  • Caparelli, Sergio e Sun, Yuqi. Poemas clássicos chineses: Li Bai, Du Fu e Wang Wei. Porto Alegre: L&PM, 2012.
  • Faleiros, Álvaro. “Na esfera da reimaginação”. Cadernos de Literatura em Tradução, São Paulo, nº 11 (2010): 37-46. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/clt/article/view/49484 Acesso em: 31. set. 2019
    » http://www.revistas.usp.br/clt/article/view/49484
  • Gonçalves, Ricardo Mário. Textos Budistas e Zen-Budistas São Paulo: Editora Cultrix, 1967.
  • Jatobá, Júlio Reis. “Poesia e (in)traduzibilidade na língua chinesa”. Scientia Traductionis, Florianópolis, nº 13 (2013): 213-223. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/30271 Acesso em: 31. set. 2019
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/30271
  • Lin, Yutang. A Sabedoria da Índia e da China São Paulo: Irmãos Pongetti, 1942.
  • Portugal, Ricardo Primo e Tan, Xian. Antologia da poesia clássica chinesa – dinastia Tang São Paulo: Editora da Unesp, 2013.
  • Weinberger, Eliot e Paz, Octavio. 19 Ways of Looking at Wang Wei Kingston, Rhode Island: Asphodel Press, 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2019
  • Aceito
    30 Nov 2019
  • Publicado
    Dez 2019
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