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Discurso relatado e posicionamentos ideológicos: a distribuição social do saber e do poder no discurso midiático

RESUMO

Neste artigo, analisamos as representações que foram postas em circulação sobre os atores sociais envolvidos no conflito educativo que teve lugar na Cidade de Buenos Aires, em setembro de 2017. Para isso, questionamos os posicionamentos manifestados nos principais jornais argentinos, La Nación e Página/12. Partimos da ideia de que o discurso relatado constitui um mecanismo discursivo a partir do qual os jornais configuram o marco ideológico no qual se inscrevem a partir das problemáticas que abordam, resultando em um espaço privilegiado de acesso a seus posicionamentos sobre esses temas. Dessa maneira, propomos fornecer ferramentas para analisar o discurso relatado como um mecanismo que regula as possíveis interpretações de um texto através da hierarquia e legitimação de diferentes vozes e posições que ele incorpora.

PALAVRAS-CHAVE:
Discurso relatado; Ideologia; Atores sociais; Práticas educativas; Discurso midiático

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze the representations in circulation about the social actors that participated in the education-related conflict which took place in Buenos Aires, in September of 2017. We analyze the positions adopted by two of the main newspapers in Argentina, La Nación and Página/12. In order to perform this analysis, we consider reported speech as a discursive mechanism employed by newspapers to establish the ideological framework within which they inscribe the topics they address. Thus, reported speech constitutes a privileged resource to analyze the ideological positionings taken up by these newspapers. We aim at contributing to the analysis of reported speech as a mechanism that regulates which interpretations are possible for a given text through the hierarchization and legitimization of the different voices and stances that a newspaper incorporates.

KEYWORDS:
Reported speech; Ideology; Social actors; Educational practices; Media discourse

RESUMEN

En este artículo, analizamos las representaciones que se pusieron en circulación sobre los actores sociales involucrados en el conflicto educativo que tuvo lugar en la Ciudad de Buenos Aires, en septiembre de 2017. Para ello, indagamos en los posicionamientos manifestados por dos de los principales diarios argentinos, La Nación y Página/12. Partimos de la idea de que el discurso referido constituye un mecanismo discursivo a partir del cual los diarios configuran el marco ideológico en el que inscriben las problemáticas que abordan, por lo que resulta un espacio privilegiado para acceder a sus posicionamientos sobre esos temas. De esta manera, nos proponemos aportar herramientas para analizar el discurso referido en tanto mecanismo que regula las interpretaciones posibles de un texto a través de la jerarquización y legitimación de las diferentes voces y posturas que incorpora.

PALABRAS CLAVE:
Discurso referido; Ideología; Actores sociales; Prácticas educativas; Discurso mediático

Introdução

Desde os últimos dias de agosto de 2017 até fins de setembro desse mesmo ano, ocorreram na Cidade de Buenos Aires uma série de protestos organizados por estudantes de nível médio que tinham como motivo manifestar seu desacordo com a reforma educativa que estava sendo levada a cabo pelo Governo da Cidade de Buenos Aires, denominada “Secundaria del Futuro”1 1 De acordo com o site do governo da cidade de Buenos Aires (https://www.buenosaires.gob.ar/educacion/secundaria-del-futuro), essa reforma tinha como objetivo implementar “una escuela secundaria que se adapta a las innovaciones tecnológicas, a los nuevos formatos de los procesos de enseñanza y de aprendizaje y a las futuras demandas de la sociedad.” . O eixo principal do descontentamento estava centrado nos estágios que os alunos do último ano do ensino médio teriam que realizar em empresas ou ONGs (organizações não-governamentais). Os protestos foram realizados em mais de vinte escolas de gestão pública e tiveram como principal modalidade a ocupação desses estabelecimentos, que consiste, basicamente, na permanência de estudantes dentro da instituição de ensino até que suas queixas sejam atendidas.

O tema ganhou grande repercussão nos meios massivos de comunicação, especialmente nos jornais, que publicaram notícias de forma cotidiana (crônicas, entrevistas, editoriais) desde o primeiro episódio ocorrido na escola, em 29 de agosto, até o último evento em 25 de setembro. Esse tipo de conflito geralmente ocupa um grande espaço na agenda da mídia pública porque desafia a ordem estabelecida, e é por isso que a mídia de massa é desafiada a dar uma interpretação que explique os fatos (TREW, 1979TREW, T. “What the papers say”: linguistic variation and ideological difference. In: Fowler, R. (comp.). Language and Control. Londres: Routledge, 1979. pp.117-156.; ZULLO, 2015ZULLO, J. Piquetes y piqueteros en la prensa argentina (1996-2002). Buenos Aires: La Bicicleta, 2015.). Essa interpretação inclui uma teoria dos acontecimentos que os inscreve em um marco ideológico específico, em uma determinada concepção do mundo.

Neste artigo, estamos interessados em analisar as representações que foram postas em circulação durante esse conflito no que se refere aos atores sociais envolvidos. Para isso, investigamos as posições manifestadas sobre o tema pelos jornais La Nación y Página/12, dois dos principais jornais da Argentina, que se caracterizam por apresentar linhas editoriais bastante distintas entre si (DVOSKIN, 2016DVOSKIN, G. Exhibir u ocultar: esa es la cuestión. La educación sexual en el diario La Nación. In: A. Raiter y Zullo, J. (comp.). Al filo de la lengua. Buenos Aires: La bicicleta ediciones, 2016. p.151-168.). Decidimos centrar-nos nas crônicas jornalísticas, dentre as quais selecionamos seis artigos distribuídos, igualmente, entre cada jornal, a partir do número total de artigos publicados pelas duas mídias: por um lado, analisamos os artigos publicados nos dias 9, 12 e 22 de setembro, no jornal La Nación; e, por outro lado, os publicados nos dias 6, 9 e 22 de setembro, no Página/12.

Nossa pesquisa parte da ideia de que um dos recursos privilegiados pelos jornais para expressar seus posicionamentos sobre os problemas sociais com os quais lidam em seus artigos e classificar os atores sociais envolvidos reside na seleção que fazem das vozes ou posturas que citam e nos recursos que eles empregam para isso (TREW, 1979TREW, T. “What the papers say”: linguistic variation and ideological difference. In: Fowler, R. (comp.). Language and Control. Londres: Routledge, 1979. pp.117-156.). Propomos, dessa forma, investigar o discurso relatado como um mecanismo discursivo por meio do qual os jornais manifestam e põem em circulação determinadas representações sobre o mundo.

Marco teórico e metodologia de análise

O discurso relatado tem sido abordado a partir de diferentes enfoques no campo da Linguística e da Análise do Discurso2 2 Para uma revisão detalhada desses estudos, ler Gallucci (2016) e Repede (2018). , o que permitiu caracterizá-lo segundo critérios sintáticos (MALDONADO, 1999MALDONADO, C. Discurso directo y discurso indirecto. In: Bosque, I. y Demonte, V. (dirs.). Gramática descriptiva de la lengua española, 3. Madrid: Real Academia Español/ Esapa Calpe, 1999, p.3549-3596.), e a partir de perspectivas semântico-pragmáticas (VERSCHUEREN, 1980VERSCHUEREN, J. On Speech Act Verbs. Amsterdam: John Benjamins Pub. 1980.; CALDAS-COULTHARD, 1992CALDAS-COULTHARD, C. R. Reporting speech in narrative discourse: stylistic and ideological implications. In: Meurer, J. L. (ed). Ilha do Desterro. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1992. p.67-82.).

Nossa investigação enquadra-se na linha desenvolvida por Zoppi-Fontana (1986)ZOPPI-FONTANA, M. El discurso referido o en busca del contexto perdido. Cuadernos del Instituto de Lingüística, n.1, p.90-109, agosto 1986., segundo a qual o discurso relatado constitui um espaço privilegiado para acessar o posicionamento ideológico de um texto. De acordo com a autora, em todo ato de referência se estabelece uma relação entre duas instâncias de enunciação, nas quais o falante do texto citado interpreta tanto o enunciado citado quanto o sujeito a quem ele atribui a responsabilidade da citação. Essa interpretação se manifesta nas duas operações constitutivas desse recurso: a descontextualização, que consiste na seleção e extração de determinados enunciados do texto original que os contém; e a recontextualização, que é a inclusão desses enunciados em um novo texto que lhe serve como estrutura.

De acordo com Zoppi-Fontana, entre as duas instâncias de enunciação são estabelecidas relações de tipo estrutural, representacional e comunicativa, que ocorrem no texto por meio de características formais e funcionais. Seguimos sua proposta, concentrando nosso estudo na análise das características funcionais, que são aquelas que explicam, no nível de enunciação, a distância que o falante do texto estabelece com o sujeito citado; e, no plano do enunciado, a atitude que assume diante da postura evocada: “O tipo de informação que provêm [os traços funcionais] é aquilo que melhor possibilita inferir a interpretação do enunciado e do discurso originais realizada pelo falante citante e implícita na citação” (1986, p.104)3 3 No original: “El tipo de información que proveen[los rasgos funcionales] es el que mejor posibilita inferir la interpretación del enunciado y del discurso originales realizada por el hablante citante e implícita en la cita”. .

Ainda, nesta investigação, retomamos também a proposta de Pérez (2003)PÉREZ, S. Verbos de actos de habla y modalidad: una mirada desde el análisis del discurso. Iztapalapa. México: UAM, 2003. p.51-66 sobre a análise do discurso relatado, que faz uma distinção entre o locutor do texto e os enunciadores. Embora essas categorias estejam relacionadas à teoria polifônica-enunciativa de Ducrot (1984)DUCROT, O. El decir y lo dicho. Traducido por Sara Vassallo. Buenos Aires: Edicial, 2001., consideramos necessário, para nossa análise, recuperar a reformulação feita pela autora dessas noções, que concebe o locutor como aquele sujeito discursivo ao qual se remetem as marcas de primeira pessoa que não aparecem no contexto do discurso relatado e a quem se atribui a responsabilidade pela produção do texto como unidade. O enunciador, por sua vez, é apresentado não somente como aquele a quem se atribui um determinado ato de enunciação, mas que, além desse plano de interação enunciativo, pode ser identificado como um ator sociohistórico.

A análise do discurso relatado torna-se de vital importância nas crônicas jornalísticas, uma vez que esse é um gênero no qual se enunciam acontecimentos dos quais o locutor dá conta, principalmente, com base no que ouviu de outros. Esse último, transforma o ditado jornalístico em um ditado indireto, e o discurso jornalístico em um gênero no qual são integradas diferentes formas de reproduzir a palavra alheia (REYES, 1993REYES, G. Los procedimientos de cita: estilo directo y estilo indirecto. Madrid: Arco Libros, 1993.).

Neste artigo, analisamos o discurso relatado a partir da identificação de quais atores sociais são constituídos como enunciadores nas notas publicadas nos jornais, como esses sujeitos são nomeados, qual é sua frequência de aparição e que tipos de verbos e de procedimentos estilísticos são empregados para trazer à cena suas posturas. Cada um desses elementos que compõem o discurso relatado têm um potencial de significados diversos e, em alguns casos, contraditórios, impossíveis de precisar se os tomamos de forma isolada. Por isso, propomos analisar seu funcionamento em um contexto específico, pois somente se os abordarmos em conjunto poderemos determinar os efeitos gerados pelo discurso relatado.

Dessa forma, em uma primeira etapa da investigação, observamos quais atores são constituídos como enunciadores nas notas, identificando aqueles verbos que representam um ato prévio de enunciação. Para isso, seguimos a classificação proposta por Pérez (2003, p.59)PÉREZ, S. Verbos de actos de habla y modalidad: una mirada desde el análisis del discurso. Iztapalapa. México: UAM, 2003. p.51-66 sobre esses tipos de verbos, caracterizados por expressarem movimentos na responsabilidade do ato de fala:

Reconhecem-se como verbos de atos de fala aqueles que referem um ato verbal ou introduzem discurso alheio, independentemente de critério sintáticos ou de definições prévias desta classe léxica. Quer dizer, foram selecionados todos aqueles que aparecem como expressão da modalidade de movimento na responsabilidade do ato de fala4 4 No original: “Se reconocen como verbos de actos de habla aquellos que refieren un acto verbal o que introducen discurso ajeno, independientemente de criterios sintácticos o de definiciones previas de esta clase léxica. Es decir, se han seleccionado todos aquellos que aparecen como expresión de la modalidad de movimiento en la responsabilidad del acto de habla”. .

Distanciamo-nos, portanto, daquelas propostas que caracterizaram essa classe de verbos segundo critérios sintáticos, assim como sua estrutura argumentativa ou o estilo que o discurso relatado admite (MALDONADO, 1999MALDONADO, C. Discurso directo y discurso indirecto. In: Bosque, I. y Demonte, V. (dirs.). Gramática descriptiva de la lengua española, 3. Madrid: Real Academia Español/ Esapa Calpe, 1999, p.3549-3596.). Em vez disso, adotamos uma linha que se concentra em suas propriedades semântico-pragmáticas, dado que o que nos interessa é analisar as representações que são postas em circulação a partir de seu uso concreto em enunciados historicamente situados.

Pérez classifica essa classe de verbos a partir de dois critérios. Em primeiro lugar, observa qual aspecto da cena enunciativa é destacada, ou seja, se põe em primeiro plano a função referencial (estado de coisas sobre o mundo), a função expressiva (atitude do sujeito frente ao que foi dito) ou a função apelativa (orientação para o outro). Embora as três funções estejam sempre presentes em todo ato de dizer, alguns verbos destacam o conteúdo proposicional a que se referem (como é o caso de decir), outros enfatizam o enunciador (como opinar) e outros focam na relação com o destinatário (como ordenar).

Por sua vez, a autora incorpora um segundo critério, que consiste em considerar o grau de [+/- poder] e [+/- saber] dado ao enunciador, valores que surgem ao se prestar atenção ao conteúdo proposicional e à força elocutiva dos verbos, embora esses valores variem de acordo com seu uso específico em emissões concretas. De fato, esse segundo critério nos permite diferenciar verbos como rogar e ordenar, os quais, embora coincidam em colocar o sujeito a quem o discurso é dirigido no centro da cena, se opõem no grau de poder concedido que se outorga a quem se dirige o ato da fala. Esse critério é altamente produtivo para investigar a distribuição social do poder e do saber, a partir da revelação de quais atores aparecem como agentes de quais tipos de atos de fala.

Uma vez identificados os enunciadores, quantificamos sua frequência de aparição nos textos e as formas linguísticas que são utilizadas para nomeá-los.

Em uma segunda etapa da análise, analisamos os tipos de verbos empregados para trazer à cena os diferentes enunciadores nas notas e procedimentos estilísticos a partir dos quais se recuperam suas posturas. Dado que a classificação proposta para essa classe de verbos tem como principal interesse reconhecer um ato de enunciação prévio - independentemente de que o objeto (o conteúdo relatado) ou o destinatário sejam argumentos obrigatórios -, consideramos cinco tipos de procedimentos que permitem incorporar o discurso alheio nos textos: o estilo direto, o estilo indireto, o estilo misto, o discurso narrativizado e a nominalização citacional (PALAZÓN, 2008PALAZÓN, J. N. Verdades a medias: la nominalización deverbal en los titulares periodísticos. Comunicación y Sociedad, n. 9, p.175-189, ene/jun. 2008.). Embora a valoração que se estabelece dependa de seu funcionamento efetivo em cada texto em particular (DVOSKIN & ZUKERFELD, 2017DVOSKIN, G. y ZUKERFELD, G. Discurso referido y valoración: representaciones sobre los jóvenes en la toma de colegios secundarios. In: Pascual, M. (comp.), Los estudios del discurso en la Argentina actual: nuevos desafíos, nuevas miradas. San Luis: Nueva Editorial Universitaria, 2017. p.89-106.), dentre os diferentes procedimentos podemos identificar diferentes graus de reconhecimento das vozes alheias e dos conteúdos expressos no texto citado, desde uma suposta reprodução até à omissão absoluta.

O estilo direto reproduz palavras alheias, mantendo o sistema dêitico do enunciador citado. Entre as duas enunciações, da citante e do citado, se estabelecem fronteiras claras, manifestadas na presença de aspas ou de um hífen e de verbos introdutórios que indicam que se trata de uma enunciação diferente. A citação direta geralmente é apresentada como um reflexo fiel do texto original, portanto, a responsabilidade da expressão e, com ela, de sua avaliação, corresponde ao orador citado (REYES, 1993REYES, G. Los procedimientos de cita: estilo directo y estilo indirecto. Madrid: Arco Libros, 1993.): “‘Os alunos não vão trabalhar’5 5 No original: “Los alumnos no van a trabajar”. , assegurou [a Ministra de Educação] Acuña” (P12, 6/9/17)6 6 Para os exemplos de nosso corpus, colocamos entre parênteses a data de publicação e o jornal, utilizando “LN” para o La Nación e “P12” para o Página/12. .

O estilo indireto, em contrapartida, apresenta-se como uma versão do locutor sobre o texto citado (GARCÍA NEGRONI & TORDESILLAS, 2001GARCÍA NEGRONI, M. M. y TORDESILLAS COLADO, M. La enunciación en la lengua. Madrid: Gredos, 2001.), portanto, geralmente indica de um modo mais evidente uma valorização sobre as palavras que cita, fato que lhe outorga uma maior responsabilidade pelo que foi dito. Entre ambos os textos não se estabelece uma fronteira clara, em vez disso, há uma fusão de vozes que, em muitos casos, pode levar a leituras ambíguas sobre qual é a fonte precisa do que foi dito: “Vozes do ministério assinalaram que entre a pasta e os estudantes o diálogo é permanente7 7 No original: “Voceros del ministerio señalaron que entre la cartera y los estudiantes el diálogo es permanente”. ” (LN, 9/9/17).

O estilo misto, por sua vez, combina características do estilo direto e do estilo indireto (Reyes, 1993REYES, G. Los procedimientos de cita: estilo directo y estilo indirecto. Madrid: Arco Libros, 1993.), uma vez que geralmente apresenta o uso de aspas como uma marca de fidelidade ao texto original, porém, em geral, o sistema dêitico toma como eixo o texto citante: “As autoridades portenhas afirmaram que o documento ‘carece de qualquer validade e autenticidade legal” (LN, 12/9/17)8 8 No original: “Las autoridades porteñas afirmaron que el documento ‘carece de toda validez y entidad legal’”. .

Por outro lado, o discurso narrativizado e a nominalização citativa, diferentemente dos procedimentos anteriores, caracterizam-se pelo fato de que o enunciado a que se referem são apresentados, integralmente, desde a perspectiva do locutor, impedindo a recuperação das palavras originais do texto citado (GENETTE, 1989GENETTE, G. Figuras III. Traducido por Carlos Manzano. Barcelona: Lumen, 1989.). O primeiro desses recursos inclui a palavra alheia no dizer de quem refere; portanto, o verbo utilizado para introduzir o ponto de vista alheio condensa a interpretação do locutor sobre o ato ilocucionário ao qual ele se refere. O discurso alheio se apresenta, desse modo, como uma ação, explicando o ato verbal ou o evento comunicativo globalmente: “Alunos e docentes rejeitam as mudanças promovidas pelo governo portenho”9 9 No original: “Alumnos y docentes rechazan los cambios que impulsa el gobierno porteño”. (6/9/17).

Por último, na nominalização citativa, o verbo introdutório aparece nominalizado, fenômeno que apresenta o referido discurso como um feito preexistente e, portanto, alheio à responsabilidade do locutor do texto citante. (GENETTE, 1989GENETTE, G. Figuras III. Traducido por Carlos Manzano. Barcelona: Lumen, 1989.): “O protesto [dos estudantes] começou no dia 29 do mês passado”10 10 No original: “La protesta [de los estudiantes] comenzó el 29 del mes pasado”. (LN, 12/9/17).

A análise conjunta dos diferentes elementos que compõem o discurso relatado em seu uso concreto em um determinado texto nos permite investigar a multiplicidade de relações que o locutor estabelece com a diversidade de enunciadores que ele traz à cena. A maior ou menor proximidade hierarquiza o espaço heteroglóssico, fenômeno esse que legitima algumas vozes e posicionamentos em detrimento de outros. Desse modo, configura-se o marco ideológico no qual se inscreve a problemática e seu posicionamento sobre o conflito.

2 Análises

Nesta seção, apresentaremos a análise de seis notas que compõem nosso corpus. Como mencionamos na seção anterior, a análise consiste em identificar os atores sociais que são constituídos como enunciadores nos dois jornais, analisando os modos como são nomeados, revelando sua frequência de aparição e investigando os verbos e procedimentos estilísticos empregados para incorporar suas posturas nos textos. Começaremos expondo a análise dos dados obtidos nas notas do jornal La Nación e, em seguida, continuaremos com a Página/12.

2.1 La Nación: o conflito polarizado

As notas que analisamos do jornal La Nación foram publicadas nos dias 9, 12 e 22 de setembro. No seguinte quadro, apresentamos os dados obtidos na análise:

Como pode ser visto no quadro 1, nas notas do jornal La Nación, cinco atores sociais são constituídos como enunciadores: os estudantes, os funcionários, o orientador dos estudantes (Gustavo Moreno), os pais e os professores. Além dessa multiplicidade de vozes, é notória a maior frequência de aparição das posturas dos funcionários e dos estudantes em comparação com as do restante dos atores incorporados à cena. Por sua vez, funcionários e estudantes diferem dos demais também no modo como são classificados, já que são nomeados de maneira individual e coletiva, enquanto o restante dos atores aparece de modo individual, como é o caso do orientador Gustavo Moreno, ou como um coletivo homogêneo, como ocorre com pais e professores

Quadro 1
Enunciadores, designações, frequências de aparição, verbos e procedimentos estilísticos no La Nación.

No caso dos funcionários, notamos que esse ator aparece nomeado nos textos através de formas metonímicas, como “el Gobierno [o Governo]” ou “el Ministerio de Educación [o Ministério da Educação]”; designações no plural que não têm uma referência precisa, como “voceros del Ministerio de Educación [vozes do Ministério da Educação]” ou “autoridades porteñas [autoridades portenhas]”; e individualizações que remetem a pessoas identificadas por seu cargo e/ou nome, como é o caso de “el mandatario local [Rodríguez Larreta] [o líder local] ou “la ministra de Educación de la ciudad [a ministra da Educação da cidade], Soledad Acuña”.

Do mesmo modo, os estudantes também são nomeados de diversas maneiras. Com efeito, aparecem classificados de forma individual, mediante seu nome e função, como ocorre com “Abril Viladrich, estudiante de sexto año del colegio Nacional Buenos Aires”, “el presidente del Centro de Estudiantes del Normal 2 Mariano Acosta, Agustín Prieto” e “Manuel Ovando del Centro de Estudiantes del Lenguas Vivas”; também são apresentados como um coletivo homogêneo, sejam como “los alumnos” ou “los estudiantes”; ou, ainda, através de despersonalizações, como em “algunos centros de estudiantes”.

O seguinte ator com maior presença é Gustavo Moreno, que é identificado por seu cargo de orientador dos estudantes. Esse ator é mencionado apenas na nota de 12 de setembro, após a denúncia apresentada ao Ministerio de Educación quando da ocupação das escolas.

Por último, os pais e professores aparecem uma única vez, na nota do dia 22 de setembro, e ambos os atores são classificados como um coletivo homogêneo.

A maior frequência de aparição de funcionários e estudantes e o fato de serem nomeados de forma individual e coletiva remetem a um protagonismo nas notas publicadas sobre a ocupação das escolas. No entanto, os recursos empregados pelo locutor para trazer à cena essas posturas são diferentes, fenômeno que explica diferentes atitudes frente aos posicionamentos que evocam e uma classificação diferente desses enunciadores.

No quadro I, podemos observar que, do total de verbos empregados para recuperar as posturas dos funcionários e dos estudantes, só três se repetem: afirmar, rejeitar e assinalar, esse último no sentido de descrever, que é aquele que valora o responsável de levar a cabo o ato de fala por seu conhecimento sobre o tema, pelo que o caracteriza [+saber] (DVOSKIN & ZUKERFELD, 2017DVOSKIN, G. y ZUKERFELD, G. Discurso referido y valoración: representaciones sobre los jóvenes en la toma de colegios secundarios. In: Pascual, M. (comp.), Los estudios del discurso en la Argentina actual: nuevos desafíos, nuevas miradas. San Luis: Nueva Editorial Universitaria, 2017. p.89-106.). No resto dos casos, os verbos empregados diferem. No quadro seguinte, apresentamos a classificação dos tipos de verbos que aparecem nas notas do jornal La Nación que expressam movimento na responsabilidade do locutor:

No caso dos estudantes, suas posturas são recuperadas no jornal La Nación através de verbos que não estabelecem nenhum tipo de valoração quanto à verdade ou falsidade (KERBRAT-ORECCHIONI, 1980KERBRAT-ORECCHIONI, C. La enunciación de la subjetividad en la lengua. Traducido por Gladys Anfora y Emma Gregores. Buenos Aires: Hachette, 1986.). O uso de verbos como dizer, manifestar, protestar, sustentar ou considerar permite ao locutor incorporar o posicionamento dos alunos sem se comprometer com seu ponto de vista, já que se apresenta com uma postura cuja responsabilidade recai, exclusivamente, sobre os estudantes. Como se pode observar no quadro 2, o uso desses verbos não comporta uma classificação nem quanto ao saber que esse ator tem sobre o tema nem quanto a seu poder para decidir:

Quadro 2
Tipos de verbos no La Nación.
  • 1. “Uma das coisas que mais nos preocupam é que [pela reforma] o quinto ano divide seu tempo entre o curso habitual e práticas laborais que colocam os estudantes em mecanismos de flexibilização do trabalho”, considerou [Agustín Prieto] (LN, 9/9/17)15 15 No original: “‘Una de las cosas que más nos preocupan es que [por la reforma] quinto año divide su tiempo entre la cursada habitual y prácticas laborales en multinacionales que ponen a los estudiantes en mecanismos de flexibilización laboral’, consideró [Agustín Prieto]”. .

  • 2. [Os estudantes] se manifestaram em frente ao Ministério da Educação (LN, 22/9/17)16 16 No original: “[Los estudiantes] se manifestaron frente al Ministerio de Educación”.

Nos exemplos 1 e 2, podemos observar uma particularidade que se repete de modo sistemático nas notas publicadas pelo La Nación: quando se utiliza o estilo direto ou misto, que são procedimentos que supõem a reprodução literal do conteúdo citado, os estudantes aparecem representados de modo individual. No entanto, quando se apresenta os estudantes como um coletivo, se emprega o discurso narrativizado ou a nominalização citativa, que impede a recuperação das palavras originais do enunciador e, em seu lugar, apresenta-se uma postura incorporada inteiramente desde a perspectiva do locutor (PALAZÓN, 2008PALAZÓN, J. N. Verdades a medias: la nominalización deverbal en los titulares periodísticos. Comunicación y Sociedad, n. 9, p.175-189, ene/jun. 2008.). Quer dizer, o posicionamento dos estudantes só se desenvolve quando esses são individualizados, porém, quando se apresentam como um coletivo organizado, sua voz se oculta sob uma ação, fenômeno que não nos permite identificar nem os argumentos de sua reivindicação nem o destinatário a quem sua declaração foi endereçada:

  • 3. [Os estudantes] rejeitam a reforma educativa 17 17 No original: [Los estudiantes] rechazan la reforma educativa (LN, 9/9/17).

  • 4. La protesta [de los estudiantes] comenzó el 29 del mes pasado. (12/9/17).

Tanto rejeitar como protestar são verbos que põem em primeiro plano o enunciador. O uso do discurso narrativizado ou a nominalização citativa, nos exemplos 3 e 4, omite os argumentos de rejeição e de protesto e a quem esses atos são dirigidos. Em consequência, o que o jornal destaca é o caráter disruptivo ou transgressor da medida, mas não as causas que a originaram. Com efeito, os estudantes se apresentam apenas como um grupo de agentes de atos que desafiam a ordem social, representação que os classifica como culpáveis.

Distinto é o caso para os funcionários. O uso de verbos como aclarar ou indicar para trazer à cena seu ponto de vista, posiciona esse ator em um lugar de saber, fenômeno que legitima sua posição sobre o tema:

  • 5. Do Ministério da Educação portenho18 18 Portenho é uma forma utilizada para referir-se a algo ou alguém da cidade de Buenos Aires. esclareceram: Estamos mais ocupados em fazer com que os meninos desocupem as escolas do que em puni-los Mas estamos investigando19 19 No original “Desde el Ministerio de Educación porteño aclararon: “Estamos más ocupados en que los chicos levanten las tomas de los colegios que en ir por las sanciones. Pero estamos investigando” (LN, 12/9/17).

Ao mesmo tempo, também encontramos verbos como propor e prometer, que, como os anteriores, põem no centro da cena o destinatário a quem se dirige o ato da fala, porém, diferentemente deles, esses têm a característica [+ poder], pela qual valoram o responsável por esses atos como uma figura que tem o poder de decidir e agir, qualidades que o posicionam em um lugar de autoridade:

  • 6. [Os funcionários portenhos] prometem, além disso, que investigarão administrativamente a denúncia de Moreno20 20 No original: “[Los funcionarios porteños] Prometen, además, que investigarán administrativamente la denuncia de Moreno”. (LN, 12/9/17).

Por outro lado, a diferença do que ocorre com os estudantes, o uso do estilo direto ou misto não está necessariamente acompanhado de um sujeito individual, como pode se observar no exemplo 5, no qual encontramos o sintagma “El Ministerio de educación porteño”, que reúne um grupo de pessoas.

Outra diferença que notamos no modo de recuperar as posturas de um ou outro ator é que, no caso dos funcionários, utiliza-se o estilo indireto, como se observa no exemplo 6 e no seguinte: “7. Voceros del ministerio señalaron que entre la cartera y los estudiantes el diálogo es permanente”. (9/9/17)

Esse recurso confunde as fronteiras entre o texto citado e a enunciação citada, gerando um maior envolvimento do locutor em relação à postura que ele traz à cena. O uso desse recurso junto com o verbo assinalar, que atribui ao enunciador um conhecimento sobre o tema, produz o respaldo do locutor ante a postura evocada, fenômeno que estabelece uma aproximação entre ambos os sujeitos.

A legitimação dada à posição dos funcionários nas notas do jornal La Nación, tanto por seu conhecimento sobre o tema como pelo seu poder para decidir e atuar, classifica esse ator social como aquele que sabe e que pode restaurar a ordem nas escolas desafiada pelos estudantes.

A polarização acentuada do conflito entre funcionários e estudantes praticamente silencia a posição dos professores e pais, também integrantes da comunidade educacional, relegando-os, desse modo, a um nível marginal.

2.2 Página/12

As notas selecionadas do jornal Página/12 foram publicadas nos dias 6, 9 e 22 de setembro. No quadro seguinte apresentamos os resultados obtidos na análise:

Nas notas publicadas pelo jornal Página/12, constituem-se como enunciadores sete atores sociais: os professores, os estudantes, os funcionários, os pais, os diretores de escola, um juiz ou juíza que permanece anônimo, e Alejandro Amor, o Defensor da Cidade.

No quadro 3, podemos observar que, diferentemente do que ocorre no La Nación, neste jornal, a postura que teve maior frequência de aparições foi a dos professores (48), fenômeno que outorga a esse ator um protagonismo no conflito. A voz dos alunos, por sua vez, é retomada em um número menor que dos professores, contabilizando a segunda maior quantidade de vezes de aparecimento (20), enquanto a posição dos funcionários é trazida em doze oportunidades. O restante dos atores tem uma participação praticamente nula, já que só são retomadas na nota de 9 de setembro.

Quadro 3
Enunciadores, designações, frequências de aparição, verbos e procedimentos estilísticos no Página/12.

Por sua vez, também é diferente o modo como são nomeados os distintos atores, dado que tanto os professores, como os alunos e funcionários são classificados de forma individual e coletiva, enquanto os pais e diretores só aparecem como coletivo e o Defensor da cidade é individualizado por seu nome e cargo (a presença do juiz ou juíza é inferida a partir da metonímia “la Justicia” [a Justiça]).

Dessa maneira, diferentemente do que ocorre no La Nación, no Página/12 não se apresenta o conflito como um enfrentamento entre os atores sociais, só se recupera de modo preponderante uma postura, a dos professores, e, em um plano secundário, a dos estudantes e funcionários.

No quadro 3, podemos observar que, em muitos casos, coincidem os verbos empregados para incorporar as vozes dos três atores principais. No seguinte quadro, apresentamos a classificação dos tipos de verbos que trazem à cena as posturas dos diferentes enunciadores:

Se focarmos nos professores e estudantes, verificamos que, em ambos os casos, suas posturas são retomadas mediante os verbos rejeitar, criticar ou mostrar-se em desacordo, que põem no centro da cena a medida impulsionada pelo governo e posicionam ambos os atores como opositores.

No entanto, esse lugar de oposição se desenrola enquanto analisamos o resto dos verbos que introduzem suas posturas nos textos. No caso dos estudantes, sua voz é trazida à cena mediante os verbos reclamar e protestar, que, como se observa no quadro 4, têm como foco o posicionamento do enunciador e tem esta característica [-poder], que não o habilita para resolver a situação por seus próprios meios. Nesse sentido, apresentam-se através de nominalizações citativas, recurso que se assemelha mais a uma ação material do que a um ato verbal: “8. A reclamação por parte dos alunos cresceu ao longo da semana”22 22 No original: “El reclamo por parte de los alumnos creció a lo largo de la semana”. (P/12, 9/9/17).

Quadro 4
Tipos de verbos no Página/12

Por outro lado, a postura dos estudantes também se apresenta através do verbo sustentar que, como considerar, não estabelece nenhum tipo de valoração por parte do locutor acerca do saber que possui o enunciador sobre o tema, visto que aparece como uma opinião, entre outras possíveis: “9. Santiago Legaro, do Colégio Nicolás Avellaneda, considerou que ‘foi um ato político para a foto. La maioria não pôde falar’”23 23 No original: “Santiago Legaro, del Colegio Nicolás Avellaneda, consideró que ‘fue un acto político para la foto. La mayoría no pudo hablar’”. (9/9/17).

A postura dos professores, ao contrário, é trazida à cena através de verbos como opinar, concluir, recordar24 24 Remete ao ato de dizer e não como uma atividade de pensamento. ou manifestar. Esses verbos tampouco comportam uma valoração sobre o saber que possui o responsável do ato de fala, pois, na maioria dos casos analisados, essa valoração segue o estilo direto, o que permite “escutar” a voz dos professores no texto:

  • 10. “Não somos contrários a articular com o mundo do trabalho mas tem de fazê-lo siem perder um segundo de aula”, opinou [o secretário geral da Unión de Trabajadores de la Educación] López.25 25 No original: “No estamos en contra de articular con el mundo del trabajo pero hay que hacerlo sin perder un segundo de clase”, opinó [el secretario general de la Unión de Trabajadores de la Educación] López. (6/9/17)

  • 11. “Uma reforma tão estrutural merece uma discussão profunda, um congresso educativo pelo menos. Mas aqui não se debateu nada, baixaram uma reforma que se vai aplicar em alguns meses e nem eles sabem como”, concluiu a docente26 26 No original: “Una reforma tan estructural merece una discusión profunda, un congreso educativo por lo menos. Pero acá no se debatió nada, nos bajaron una reforma que se va a aplicar en unos meses y ni ellos saben cómo”, concluyó la docente”. (9/9/17).

Por sua vez, diferente de que ocorre com os estudantes, sua postura também é retomada a partir de verbos que têm a característica [+saber], como explicar, descrever, aclarar, apontar, assinalar ou indicar, que põem em relevo a quem se dirigiu o ato de enunciação. O uso desse tipo de verbos posiciona os professores em um lugar de conhecimento e, em consequência, legitima sua postura sobre o tema:

  • 12. “De um dia para o outro nos inteiramos que íamos ser uma escola-piloto para a reforma. Contaram-nos como algo já resolvido, sem espaço para discutir nada”, explicou a docente [da Escuela Comercial 34 de 3]27 27 No original: “De un día para el otro nos enteramos que íbamos a ser una escuela piloto para la reforma. Nos la bajaron como algo ya resuelto, sin lugar para discutir nada”, explicó la docente [de la Escuela Comercial 34 de 3]”. (9/9/17).

Assim, a postura dos funcionários portenhos se apresenta como uma resposta às críticas recebidas. O uso dos verbos contestar, responder ou negar para introduzir suas vozes nos textos dá conta disso ao pôr no centro da cena o destinatário:

  • 13. [A ministra de educação portenha] Acuña negou que as práticas educativas propostas para o quinto ano incentivem uma precarização laboral encoberta28 28 No original: “[La ministra de educación porteña] Acuña negó que las prácticas educativas propuestas para quinto año alienten una precarización laboral encubierta”. (6/9/17).

A negação da ministra Acuña, no exemplo 13, supõe um discurso prévio atribuído àqueles que se opõem à reforma ao qual responde. Por sua vez, utilizam-se outros verbos, como informar ou insistir, que também destacam o destinatário, porém se diferenciam dos anteriores porque valoram o responsável desses atos de fala com a característica [+saber]:

  • 14. Do Ministério informaram que a nova modalidade para o secundário se aplicará a partir do próximo ciclo letivo29 29 No original: “Desde el Ministerio informaron que la nueva modalidad para la secundaria se aplicará a partir del próximo ciclo lectivo”. (6/9/17).

Tanto no exemplo 13 como no 14, aparece o uso do estilo indireto, recurso que predomina no Página/12 para trazer à cena a voz dos funcionários, fenômeno que contrasta com o caso dos professores e dos alunos, cujas posturas são retomadas, principalmente, por meio do estilo direto. O estilo indireto impede a recuperação das palavras originais pronunciadas pelo falante citado, por isso não há nenhum elemento de seu discurso que não esteja integrado na perspectiva do locutor.

Vemos, desse modo, que nas notas do Página/12 também é atribuído aos funcionários certo conhecimento sobre o tema. Esses aparecem fundamentalmente respondendo às críticas dos professores, perdendo a iniciativa discursiva (RAITER, 1999RAITER, A. Lingüística y política. Buenos Aires: Biblos, 1999.).

É a incorporação da postura dos professores, na Página/12, a que impõe os tópicos sobre os quais se discute e qual a posição legitimada para fazê-lo. O lugar de saber atribuído a esse ator social autoriza-os a abordar a problemática, e seu poder os habilita para atuar e resolver a situação originada pela reforma coordenada pelo Ministério de Educação da Cidade de Buenos Aires.

Os estudantes, por sua parte, são aqueles que reclamam e protestam, porém, como aparece no jornal La Nación, não possuem nem conhecimentos sobre o tema nem poder para atuar, dado que a visibilização do conflito foi produto de sua organização para concretizar a ocupação das escolas.

Conclusões

Neste artigo, nos propusemos a dois objetivos mutuamente relacionados. Por um lado, interessava-nos indagar as representações postas em circulação nos jornais La Nación e Página/12 sobre os atores sociais envolvidos na ocupação das escolas secundárias da Cidade de Buenos Aires, ocorridas em setembro de 2017. E, por outro, pretendíamos contribuir com elementos para a análise do discurso relatado como forma de acesso ao posicionamento ideológico de um texto.

A partir da análise das notas publicadas sobre esse tema, pudemos observar que cada jornal configura um marco ideológico particular a partir do qual interpreta os acontecimentos. No caso do La Nación, o conflito se constrói como um enfrentamento entre dois atores sociais: os estudantes, classificados como os causadores da desordem institucional; e os funcionários do Ministério da Educação da Cidade de Buenos Aires, constituídos como os responsáveis por restituir o funcionamento normal nas escolas. A polarização do conflito relega a um plano secundário o restante dos atores envolvidos, como os pais e os professores, também integrantes da comunidade educativa, porém deslocados da cena configurada pelo jornal.

Página/12, ao contrário, coloca no centro os professores, que ocupam o lugar de protagonistas no conflito. Esses são apresentados junto com os estudantes como opositores à medida impulsionada pelo Ministério da Educação, diferenciando-se daqueles pelo saber que lhes é conferido, classificação que os constitui como uma voz legitimada. Os funcionários, por sua parte, apesar da atribuição também de certo saber, respondem às críticas e questionamentos, já que a discussão ocorre a partir dos eixos impostos pelos professores.

A partir da análise do discurso relatado, pudemos dar conta dos posicionamentos dos jornais sobre a ocupação das escolas e das representações postas em circulação sobre os diferentes atores sociais envolvidos. Para isso, foi necessário analisar de forma conjunta diferentes aspectos do discurso relatado, assim como as formas empregadas para nomear os atores constituídos como enunciadores, os verbos que introduzem suas posturas e os procedimentos estilísticos utilizados para referenciar seus discursos nas notas. Caso contrário, seria impossível determinar o efeito que gera a aparição do discurso relatado, já que um mesmo aspecto desse recurso pode contribuir para produzir sentidos diversos e inclusive, opostos, visto que se corre o risco de incorrer em análises circulares ou pouco relevantes.

Consideramos proveitoso para os estudos da linguagem e do discurso continuar com essa linha de investigação que indaga os modos nos quais o discurso relatado é utilizado, constituindo um mecanismo que habilita determinadas interpretações dos textos e, paralelamente, fecha outras. Ela pode representar uma via para abordar a circulação social do sentido e sua distribuição desigual na sociedade.

Aprofundar o estudo dos verbos que introduzem o discurso alheio pode ser um caminho possível nesta direção. Reconhecer a variedade de matizes semânticas que atravessam essa classe heterogênea de verbos pode ser útil para identificar sutis diferenças nos modos de incorporar vozes alternativas à do locutor, que podem servir como evidência de manifestações ideológicas.

  • Traduzido por Anelise Gregis Estivalet - anegregis@gmail.com; https://orcid.org/0000-0003-0036-6558.
  • 1
    De acordo com o site do governo da cidade de Buenos Aires (https://www.buenosaires.gob.ar/educacion/secundaria-del-futuro), essa reforma tinha como objetivo implementar “una escuela secundaria que se adapta a las innovaciones tecnológicas, a los nuevos formatos de los procesos de enseñanza y de aprendizaje y a las futuras demandas de la sociedad.”
  • 2
    Para uma revisão detalhada desses estudos, ler Gallucci (2016)GALLUCCI, M. J. El discurso referido en los manuales sobre análisis del discurso y pragmática lingüística. Lengua y Habla, n.10, p.200-224, 2016. e Repede (2018).
  • 3
    No original: “El tipo de información que proveen[los rasgos funcionales] es el que mejor posibilita inferir la interpretación del enunciado y del discurso originales realizada por el hablante citante e implícita en la cita”.
  • 4
    No original: “Se reconocen como verbos de actos de habla aquellos que refieren un acto verbal o que introducen discurso ajeno, independientemente de criterios sintácticos o de definiciones previas de esta clase léxica. Es decir, se han seleccionado todos aquellos que aparecen como expresión de la modalidad de movimiento en la responsabilidad del acto de habla”.
  • 5
    No original: “Los alumnos no van a trabajar”.
  • 6
    Para os exemplos de nosso corpus, colocamos entre parênteses a data de publicação e o jornal, utilizando “LN” para o La Nación e “P12” para o Página/12.
  • 7
    No original: “Voceros del ministerio señalaron que entre la cartera y los estudiantes el diálogo es permanente”.
  • 8
    No original: “Las autoridades porteñas afirmaron que el documento ‘carece de toda validez y entidad legal’”.
  • 9
    No original: “Alumnos y docentes rechazan los cambios que impulsa el gobierno porteño”.
  • 10
    No original: “La protesta [de los estudiantes] comenzó el 29 del mes pasado”.
  • 11
    Frequência de aparição.
  • 12
    Procedimentos estilísticos.
  • 13
    No sentido de acusar.
  • 14
    Saber/ Poder.
  • 15
    No original: “‘Una de las cosas que más nos preocupan es que [por la reforma] quinto año divide su tiempo entre la cursada habitual y prácticas laborales en multinacionales que ponen a los estudiantes en mecanismos de flexibilización laboral’, consideró [Agustín Prieto]”.
  • 16
    No original: “[Los estudiantes] se manifestaron frente al Ministerio de Educación”.
  • 17
    No original: [Los estudiantes] rechazan la reforma educativa
  • 18
    Portenho é uma forma utilizada para referir-se a algo ou alguém da cidade de Buenos Aires.
  • 19
    No original “Desde el Ministerio de Educación porteño aclararon: “Estamos más ocupados en que los chicos levanten las tomas de los colegios que en ir por las sanciones. Pero estamos investigando” (LN, 12/9/17).
  • 20
    No original: “[Los funcionarios porteños] Prometen, además, que investigarán administrativamente la denuncia de Moreno”.
  • 21
    No sentido de considerar.
  • 22
    No original: “El reclamo por parte de los alumnos creció a lo largo de la semana”.
  • 23
    No original: “Santiago Legaro, del Colegio Nicolás Avellaneda, consideró que ‘fue un acto político para la foto. La mayoría no pudo hablar’”.
  • 24
    Remete ao ato de dizer e não como uma atividade de pensamento.
  • 25
    No original: “No estamos en contra de articular con el mundo del trabajo pero hay que hacerlo sin perder un segundo de clase”, opinó [el secretario general de la Unión de Trabajadores de la Educación] López.
  • 26
    No original: “Una reforma tan estructural merece una discusión profunda, un congreso educativo por lo menos. Pero acá no se debatió nada, nos bajaron una reforma que se va a aplicar en unos meses y ni ellos saben cómo”, concluyó la docente”.
  • 27
    No original: “De un día para el otro nos enteramos que íbamos a ser una escuela piloto para la reforma. Nos la bajaron como algo ya resuelto, sin lugar para discutir nada”, explicó la docente [de la Escuela Comercial 34 de 3]”.
  • 28
    No original: “[La ministra de educación porteña] Acuña negó que las prácticas educativas propuestas para quinto año alienten una precarización laboral encubierta”.
  • 29
    No original: “Desde el Ministerio informaron que la nueva modalidad para la secundaria se aplicará a partir del próximo ciclo lectivo”.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2020
  • Aceito
    15 Set 2020
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