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Acolhendo o espírito de Carnaval: o grotesco e o carnavalesco em Klail City Death Trip Series de Rolando Hinojosa

RESUMO

O presente artigo diz respeito às propriedades artísticas de uma das obras básicas da literatura chicana, Klail City Death Trip Series de Rolando Hinojosa, observadas através da perspetiva da cultura do riso popular. A pesquisa baseia-se na teoria de Bakhtin sobre o carnaval e o carnavalesco. A análise revela que o riso carnavalesco afeta o sistema de imagens, permeia o sistema de personagens e molda a estrutura do discurso dos romances. O caráter duplo dos personagens cômicos, que agem como uma força destrutiva e ao mesmo tempo são portadores da verdade, engloba a cultura do riso carnavalesco. Outro meio de representação do carnavalesco e do grotesco são as máscaras que os chicanos usam. O grotesco serve de ferramenta de sobrevivência para a comunidade chicana, retratada nos romances, ajudando-os a combater o medo do inevitável.

PALAVRAS-CHAVE:
Literatura chicana; Carnavalesco; Grotesco; Bakhtin; Rolando Hinojosa

ABSTRACT

The article is concerned with artistic properties of one of the staples of Chicano literature, the Klail City Death Trip Series by Rolando Hinojosa, which are viewed from the perspective of the culture of popular laughter. The research draws upon Bakhtin’s theory of carnival and the carnivalesque. The analysis reveals that carnival laughter affects the system of images; it permeates the system of characters and shapes the speech structure of the novels. The dual nature of the comic characters, who work as a destructive force and at the same time are bearers of the truth, encapsulates the culture of carnival laughter. Another representation of the carnivalesque and the grotesque is the masks that Chicanos wear. The grotesque serves as a survival tool for the Chicano community, depicted in the novels, that helps them combat the fear of the inevitable.

KEYWORDS:
Chicano Literature; Carnivalesque; Grotesque; Bakhtin; Rolando Hinojosa

Nas épocas de grande transformação e reavaliação, da alternância das verdades, até a um certo ponto, toda a vida assume um caráter carnavalesco.

M. M. Bakhtin 1 1 BAKHTIN M.M. Dopolneniya i izmeneniya k “Rable” (Additions and Alterations to “Rabelais”). Philosophy Issues, Moscow, 1992. Vol. 1, p.154. Em inglês: https://philpapers.org/archive/bakbos.pdf. Acesso em 17 out. 2021.

Rolando Hinojosa-Smith é um romancista e ensaísta bilíngue chicano, vencedor de prêmios literários Quinto Sol Awards e Casa de las Américas Prize. Seus romances mais aclamados, com o título Klail City Death Trip Series, se passam no fictício Condado de Belken e são povoados por personagens locais que apresentam forte semelhança com os habitantes do Baixo Vale do Rio Grande, onde Hinojosa nasceu, em 1929. Suas raízes familiares mexicanas e americanas permitiram-lhe escrever tanto em espanhol quanto em inglês e, na sua ficção, os seus arredores tornaram-se fonte de inspiração.

Nas suas entrevistas, Rolando Hinojosa sublinhou o fato de que seus romances não podem ser separados da história do seu povo; suas obras, então, integram a história moderna dos chicanos, que vivem perto da fronteira mexicana no estado do Texas. Hinojosa salienta seu senso de lugar; ele escreve sobre as pessoas que conhece e as pessoas do Vale são a chave para entender suas obras. Rolando Hinojosa (1985, p.21)HINOJOSA, R. The Sense of Place, The Rolando Hinojosa Reader: Essays Historical and Critical. Houston: Arte Público Press, 1985. descreve isso da seguinte forma:

Para o escritor – este escritor – percepção de lugar não era uma questão de importância, tornou-se algo essencial. E tanto que as minhas histórias não são unidas pela peripeteia ou pelo enredo, tanto quanto pelo o que as pessoas que vivem as histórias dizem e como dizem, como olham para o mundo exterior e o mundo interior: e as obras, então, tornam-se estudos dessas percepções e valores que, por sua vez, foram formados e moldados pelo lugar e pela história.

Hinojosa narra os acontecimentos e a vida das pessoas na réplica ficcional da região do Rio Grande. Ele retrata algumas gerações de um grande grupo étnico no fundo histórico, empregando um conjunto de narradores e protagonistas. A representação de Hinojosa do mundo meridional adquire alguns traços faulknerianos. O escritor foca sua atenção nos conflitos internos e externos de seus personagens, que se originam da matriz cultural mexicano-americana. Seus romances destacam o choque e a inter-relação de visões do mundo típicas de diferentes camadas de sulistas: os descendentes dos primeiros colonos, cujos ancestrais chegaram da Espanha, ingleses, mexicanos, que chegaram ao Texas um século depois, e a nova geração de mexicanos americanos.

Os primeiros romances de Klail City Death Trip SeriesKlail City Death Trip SeriesThe Valley (1983)2 2 HINOJOSA, R. Estampas del valle y otras obras [primeiro romance de Klail City Death Trip Series]. Berkeley, CA: Quinto Sol, 1972. Edição revista em inglês: HINOJOSA, R. The Valley. Ypsilanti, MI: Bilingual Press, 1983. e Klail City (1987)3 3 HINOJOSA, R. Klail City y sus alrededores [Segundo romance de Klail City Death Trip Series]. Edição bilíngue. Tradução Rosaura Sanchez. Casa de las Americas, 1976; Tradução Rolando Hinojosa publicada Klail City. Houston, TX: Arte Publico Press, 1987. – estão repletos de um humor específico. O humor chicano é determinado pela dupla identidade da comunidade, pela mudança das fronteiras culturais e linguísticas da Boderland. Chicanos, que vivem nos EUA, mas têm raízes mexicanas, experienciam dupla influência, o que predetermina a qualidade única de seu humor. Numerosos pesquisadores sublinham o papel do humor étnico, especialmente o humor bilíngue dos imigrantes como um meio de adaptação, de afirmar a identidade única do grupo, o que facilita a interação interpessoal e consolida a comunidade (VORONCHENKO, 1992VORONCHENKO, T. Meksikano-amerikanskij fenomen v literature SSHA [Mexican-American Phenomenon in the USA Literature]. Moscow: MPU, 1992.; ELENEVSKAYA, 2014ELENEVSKAYA, M. Dvuyazychnyj yumor immigrantov: yazykovaya igra i social’naya adaptaciya (na primere smekhovoj kul’tury russkoyazychnyh izrail’tyan) [Immigrant’s Bilingual Humor: Language Play and Social Adaptation (the Case of Russian-speaking Israelis)]. Russian Journal of Linguistics, n. 3, p.7-27, 2014.).

O humor chicano tornou-se o ponto focal de interesse acadêmico e foi estudado de vários ângulos. Examinando os primeiros trabalhos de Hinojosa, Joyce Glover Lee destaca seu caráter heterogêneo, escrevendo que eles são “ao mesmo tempo cômicos e trágicos, irônicos e ingênuos” (LEE, 1993, p.6LEE J. G. The Fictional World of Rolando Hinojosa. 1993. 177 p. Dissertation (Doctor on Philosophy) – University of North Texas, Denton, 1993.)4 4 In the original: “at once comic and tragic, ironic and ingenuous.” . Lee assume que o humor de Hinojosa é marcado por um tom de tragédia, que “muda rapidamente de ironia para humor e logo para pretensão e tragédia” (LEE, 1993, p.20-21LEE J. G. The Fictional World of Rolando Hinojosa. 1993. 177 p. Dissertation (Doctor on Philosophy) – University of North Texas, Denton, 1993.)5 5 In the original: “shifts rapidly from irony to humor to pathos to tragedy.” . María I. Duke dos Santos e Patricia de La Fuente (1985, p.72)DUKE DOS SANTOS, M.; DE LA FUENTE, P. The Elliptic Female Presence as Unifying Force in the Novels of Rolando Hinojosa. In: SALDÍVAR, J. D. The Rolando Hinojosa Reader: Essays Historical and Critical. Houston: Arte Público Press, 1985. p.64-75. sublinham a natureza anedótica da narrativa de Hinojosa, considerando-a a marca registrada do escritor. Rosaura Sanchez (1985, p.80)SANCHEZ, R. From Heterogeneity to Contradiction: Hinojosa’s Novel. In: SALDÍVAR, J. D. The Rolando Hinojosa Reader: Essays Historical and Critical. Houston: Arte Público Press, 1985. p.76-100. destaca a ironia e o humor como as características marcantes dos romances de Rolando Hinojosa. José David Saldívar (1985, p.520)SALDÍVAR, J. D. Rolando Hinojosa’s Klail City Death Trip: A Critical Introduction. In: SALDÍVAR, J. D. The Rolando Hinojosa Reader: Essays Historical and Critical. Houston: Arte Público Press, 1985. p.44-63. presta atenção à sua forma novelista dialógica, marcada pela expansividade oral e analisa a ironia situacional e verbal empregada nos romances.

Na obra Klail City Death Trip Series, as vozes de vários personagens se unem em uma voz única e formam uma tela narrativa. Os protagonistas, ao lado de seus familiares, amigos e inimigos, aparecem em todos os romances da série atribuindo um sentido de continuidade à narração, o que permite o uso da heterogeneidade nas obras de Rolando Hinojosa (BARANOVA, 2017BARANOVA, M. Sistema povestvovatelei v romane Rolando Inohosy Klail City [The System of Narrators in Rolando Hinojosa’s Klail City]. LUNN Bulletin, Nizhny Novgorod, v. 37, n. 1, pp.132-141, 2017. Available at: https://vestnik.lunn.ru/arhiv-zhurnala/2017-god/vypusk-37-1-kvartal-2017-g/37-13/. Access on 17 out. 2021.
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). Isso abre uma nova perspetiva ao humor chicano, que não tem sido estudado de forma abrangente e exige mais investigação. O humor abrangente da comunidade ecoa o sentido carnavalesco do mundo que Mikhail Bakhtin explorou em detalhe. Supomos que o humor na série Klail City Death Trip é semelhante ao riso carnavalesco, que Bakhtin definiu como riso festivo (BAKHTIN, 2010)6 6 BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7.ed. Tradução Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010. .

A hipótese da pesquisa é que os romances de Rolando Hinojosa revelam alguns traços de carnaval e os elementos carnavalescos se tornam elementos focais da narração. O objetivo da pesquisa é analisar os personagens e a linha da história através do prisma da teoria de Bakhtin sobre o grotesco e o carnavalesco, para estabelecer o tipo do cômico nos romances e examiná-lo à luz da cultura do riso popular.

1 A teoria bakhtiniana do carnaval e carnavalesco

Tradicionalmente, o carnaval é visto como uma festividade, uma forma de entretenimento popular, um baile de máscaras. M. Bakhtin introduziu um modelo teórico explicando a essência do carnaval e do baile de máscaras, que criou bases para mais pesquisas nesse campo. A teoria foi desenvolvida nas obras de Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (BAKHTIN, 2010)7 7 Para referência, ver nota 4. e Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 2018)8 8 BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5.ed. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. . De acordo com Bakhtin, o humor popular que permeia o romance de Rabelais é baseado na cultura do riso popular de praças públicas da Idade Média. Na teoria de Bakhtin, o mundo carnavalesco, com suas tradições e suas visões que parecem estar viradas de cabeça para baixo, com seus padrões de comportamento específico, é considerado “a cultura do riso carnavalesco”. A cultura do riso popular é um mundo novo, paralelo ao convencional, que proporciona um tipo de fuga da realidade do mundo. No livro dedicado à poética de Dostoiévski, Bakhtin explica a forma como o sagrado combina com o fantástico, e o sério se funde com o cômico.

De acordo com Bakhtin, a cultura do riso popular é um fenômeno complexo, que remonta à Idade Média. Ele define uma forma de oposição às formas e práticas culturais oficiais. A cultura do riso popular criou um mundo diferente, desafiando a Igreja e o Estado, que foi caracterizado por diferentes relações entre as pessoas e, portanto, foi chamado de “o segundo mundo”, “a segunda vida”.

Bakhtin assumiu que a cultura do riso popular tem múltiplas manifestações de expressão, que podem subdividir-se em três grandes categorias:

  • 1. As formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas etc.);

  • 2. Obras cômicas verbais (inclusive as paródicas) de diversa natureza: orais e escritas, em latim ou em língua vulgar;

  • 3. Diversas formas e géneros do vocabulário familiar e grosseiro: insultos, juramentos, brasões populares (BAKHTIN, 2010, p.4; destaque no original)9 9 Para referência, ver nota 4. .

Sendo heterogêneas, essas três formas representam o mundo através do prisma do riso popular; elas estão inter-relacionadas e se entrelaçam de várias maneiras.

A ideia de que a cultura do riso popular se opõe à cultura oficial é apoiada pelo linguista russo Dmitry Likhachev (1976)LIKHACHEV, D; PANCHENKO, A. Smehovoi mir drevney Rusi [Ancient Russia Popular Laughter]. Leningrad: Nauka, 1976., que observou que o riso provém da dupla natureza do mundo e revela o reverso da medalha, destacando o baixo nos fenômenos que pareciam ser altos.

Discutindo sobre a cultura do carnaval, Bakhtin argumenta que durante o carnaval todas as regras e regulamentos que regem a vida cotidiana são suspensos. Esta suspensão refere-se ao sistema hierárquico e a todas as formas de medo, temor e etiqueta associadas aos diferentes tipos de desigualdade. Isso resulta na suspensão de qualquer distância social entre as pessoas e no surgimento de uma interação informal livre, que Bakhtin acredita ser uma categoria especial do carnaval. No carnaval, as barreiras hierárquicas, que pareciam ser impenetráveis, não são mais relevantes. Isso cria um novo modo de relações interpessoais que é marcado por gestos e palavras irrestritas. Tal liberação de todas as restrições implica um comportamento excêntrico que normalmente opõe-se ao curso habitual da vida cotidiana, a vida além do carnaval (BAKHTIN, 2018)10 10 Para referência, ver nota 6. .

Na sua visão do “segundo mundo”, desafiando o mundo oficial da autoridade civil e religiosa, do carnaval contestando o poder, Umberto Eco argumenta que este confronto não é verdadeiramente revolucionário, uma vez que várias formas de entretenimento público têm sido empregadas por culturas repressivas para manter o controle (ECO; IVANOV; RECTOR, 1984ECO, U; IVANOV, V; RECTOR, M. Carnival! Berlin; New York: Mouton Publishers, 1984.). Segue-se que, de acordo com Eco, pessoas comuns se tornam seus próprios mestres devido à inversão no carnaval. No entanto, Bakhtin considerava os carnavais uma dimensão ideal, diferente da vida real, o que torna as festividades temporárias e utópicas. Durante as festividades, observa Bakhtin, as pessoas têm acesso temporário ao mundo utópico. Assim, a rejeição da ordem hierárquica e a inversão das relações sociais dominantes são algo temporário; o controle do povo sobre as autoridades é simbólico. Segundo Bakhtin, a coroamento e destronamento do rei é símbolo de mudança, de morte e renovação. Em diferentes culturas, o riso popular era restrito a certas datas e as festividades eram marcadas para dias quando se podia abandonar a rotina oficial. Os carnavais têm um sentido temporal e espacial, têm seu próprio ritmo; assim que terminam, a violação de regras termina também (GRAY, 2006GRAY, J. Watching with The Simpsons: Television, Parody, and Intertextuality. New York: Routledge, 2006.). Ao mesmo tempo, Dzyaloshinsky (2019)DZYALOSHINSKY, I. Mediakarnaval v epokhu globalizatsiyi [Mediacarnival in the Epoch of Globalization]. Media Almanach, v. 3, p.18-28, 2019. observa que nenhuma estrutura social pode ser estável se priva as pessoas das alegrias da vida. É por isso que a linguagem do carnaval está repleta de risos que revelam a relatividade do poder e as verdades dominantes. Interações irrestritas e informais, que o carnaval propõe, fornecem uma forma temporária de experienciar a plenitude da vida e a alegria da renovação.

Muitos pesquisadores da cultura festiva assumiram que qualquer festividade significa eliminar as fronteiras sociais e culturais, enquanto a cultura desafia suas próprias normas e valores e se regenera (ELIADE, 199211 11 ELIADE, M. Mito do eterno retorno. Tradução José A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992. ; COX, 1969COX, H. The Feast of Fools: A Theological Essay on Festivity and Fantasy. Cambridge, Harvard University Press, 1969.; PAZ, 201412 12 PAZ, O. O labirinto da solidão. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ). É uma espécie de vida modelada como uma brincadeira. O aspecto jocoso do carnaval está associado com imagens grotescas e linguagem. Bakhtin atribui um significado filosófico profundo a imagens grotescas de carnaval, tendo a degradação como seu princípio. O princípio básico é menosprezar tudo o que é elevado, espiritual e ideal e reduzi-lo ao nível do material. O propósito de rebaixar o alto serve para unir as pessoas, o que mostra que, independentemente de sua posição social, todos compartilham as mesmas funções fisiológicas.

A transformação, que é uma característica definidora do carnavalesco, está intimamente ligada ao tema de máscara. Segundo Bakhtin, a máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade a alegre negação (BAKHTIN, 2010)13 13 Para referência, ver nota 4. . Ao tema da máscara é atribuída grande importância, uma vez que se acredita ser o tema mais complexo e extremamente polissêmico da cultura popular. A máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna о princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos (BAKHTIN, 2010)14 14 Para referência, ver nota 4. .

A máscara representa um símbolo de metamorfoses e piadas, empregando apelidos em vez de nomes. As máscaras usadas durante os carnavais manifestam uma relação especial entre a realidade e a imagem, com origem em ritos antigos. Assim, paródia, caricatura e careta podem ser consideradas derivadas de uma máscara. Bakhtin nota que a máscara reflete a essência do grotesco. Ao contrário do grotesco romântico, o grotesco carnavalesco é caracterizado pela ousadia:

Ao contrário, о grotesco medieval e renascentista, associado à cultura cômica popular, representa о terrível através dos espantalhos cômicos, isto é, na forma do terrível vencido pelo riso. О terrível adquire sempre um tom de bobagem alegre.

О grotesco, integrado à cultura popular, faz о mundo aproximar-se do homem, corporifica-o, reintegra-o por meio do corpo à vida corporal (diferentemente da aproximação romântica, totalmente abstrata e espiritual) (BAKHTIN, 2010, p.34; destaque no original)15 15 Para referência, ver nota 4. .

A imagem grotesca adquire ambivalência e funciona como uma metamorfose inacabada do mundo que combina os dois polos de transformação – o velho e o novo, moribundo e ressuscitado, princípio e fim da reencarnação (BAKHTIN, 2010)16 16 Para referência, ver nota 4. .

D. Danow (1995)DANOW, D. The Spirit of Carnival: Magical Realism and the Grotesque. University Press of Kentucky, 1995. aborda a questão da origem da máscara, relacionando-a à tendência natural para o disfarce. Ele argumenta que a máscara representa uma dualidade entre o homem e a natureza. O autor conclui que a máscara pode ser vista como uma metáfora da natureza, refletindo as infinitas histórias de transformação.

A relação do homem com a natureza se manifesta na animalização de um herói cômico, no momento em que a máscara contribui para a ridicularização do homenzinho zoomórfico. Assim, a máscara ajuda as pessoas a superar as dificuldades da vida cotidiana, rindo (ECO; IVANOV; REITOR, 1985). Fiel à tradição carnavalesca, a análise das festas mexicanas, por Octavio Paz, revela a rejeição da ordem e o desaparecimento das hierarquias tradicionais. O autor destaca a qualidade reversa das festas quando “os homens se vestem de mulher, os senhores, de escravo, os pobres, de rico” (PAZ, 2014, p.52)17 17 Para referência, ver nota 12. . O desejo de vestir e usar máscaras é visto como uma forma de escapismo, que por sua vez é uma revolta contra as normas estabelecidas. É possível concluir que as máscaras têm um efeito libertador, pois reforçam a ousadia. A paródia e a degradação diminuem o medo, dando-lhe uma forma de algo real que as pessoas possam superar.

Segundo Bakhtin, o carnaval desenvolveu uma série de formas simbólicas, seus próprios sinais, que não podem ser efetivamente representados na linguagem natural, mas podem ser expressos com a ajuda de imagens literárias. Essa característica da literatura que serve de portadora da expressão carnavalesca é chamada de carnavalização. No seu trabalho sobre Dostoiévski, Bakhtin expressou-o da seguinte maneira:

Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos, no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. É essa transposição do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura (BAKHTIN, 2018, p.139-140; destaque no original)18 18 Para referência, ver nota 6. .

2 A cultura chicana do riso popular

Em seu ensaio Additions and Alterations to “Rabelais”19 19 Para referência, ver nota 1. , Bakhtin sublinha a natureza dominante do carnavalesco, que se torna especialmente evidente em alguns momentos cruciais de mudanças: “as fronteiras do mundo oficial diminuem e este mundo perde firmeza e confiança, enquanto as fronteiras do riso popular na praça pública expandem e seu ambiente penetra em todos os lugares”20 20 Em inglês: “the boundaries of the official world shrink and this world loses its strictness and confidence, while the boundaries of the market place expand and its atmosphere starts to penetrate everywhere”. (BAKHTIN, 1992, p.154BAKHTIN, M. Dopolneniya i izmeneniya k “Rable” [Additions and Alterations to “Rabelais”]. Philosophy Issues, Moscow, v. 1, pp.134-164, 1992. Available at: https://philpapers.org/archive/bakbos.pdf. Access on 17 out. 2021.
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).

Rolando Hinojosa baseia-se nesta ideia de mercado em constante expansão em seus romances, criando uma narração variada e colorida, uma colcha de retalhos de narrativas realizadas de acordo com a cultura do riso popular. A forma polifônica, que Bakhtin considerou ser uma das principais características de um romance carnavalesco, é apropriadamente empregada por Hinojosa. A narração não é linear, uma vez que alterna constantemente entre os personagens principais como pontos narrativos e entre os personagens secundários, criando uma tapeçaria repleta de humor popular.

Os elementos do enredo são apresentados de várias perspectivas quando diferentes personagens assumem o papel do narrador, tornam-se o assunto da narração ou desempenham o papel de ouvinte. Esta alternância de papéis pode ser apresentada como ativa – quase-ativa – passiva. A linha divisória entre estes três tipos de papéis é bastante confusa. É por isso que Guillermo Hernández (1991, p.13) classifica essa técnica como aquela que transforma os leitores em “ouvintes quase orais, inseridos num contexto de comunidade”21 21 Em inglês: “quasi-oral listeners, embedded in a community context”. .

O discurso humorístico dos romances engloba dois tipos: o humor dos protagonistas e o riso popular de personagens menores. Os protagonistas dos romances Rafe/Rafa Buenrostro, Jehú Malacara e Galindo desempenham a função de narradores e representam a nova geração de chicanos: eles nasceram nos EUA, lá se formaram e estão se afastando da comunidade em busca de seu lugar ao sol. Eles parecem estar entre dois mundos, é por isso que eles são críticos em relação aos mexicanos e anglo-americanos. Rafe tende a ser irônico, enquanto Jehú, um herói picaresco, recorre ao sarcasmo, sendo direto, franco e livre, livre de quaisquer restrições. Assim, seu discurso é semelhante à interação informal nas praças públicas, ao vocabulário familiar e grosseiro.

O segundo tipo de humor é característico de personagens menores. Também aparece nos capítulos onde os personagens permanecem anônimos e suas palavras se unem criando uma polifonia, a voz coletiva da comunidade. Esse riso popular define a velha geração de chicanos, aqueles que acham difícil integrar-se na sociedade americana e também os jovens mexicano-americanos que preservam suas próprias tradições e vivem em isolamento dentro de sua comunidade. Usando expressões informais e às vezes vulgares, eles ridicularizam os anglo-americanos, bem como os chicanos que não respeitam os valores da comunidade.

As falas no bar, onde Rafe trabalha, integram o riso popular de chicanos. Estas são expressões realistas, picantes, são postas muito apropriadamente; seu efeito humorístico é baseado no jogo de palavras e algumas transformações criativas de jogos de expressões:

  • Roupa suja se lava em casa.

  • Não se mete o nariz onde não se é chamado.

  • Quem mal ouve, melhor entender leitura labial.

  • À lei nem meia palavra.

  • Aos ofendidos: porta aberta.

  • Atrevido é meter-se onde não lhe chamam e perigoso é meter-se em assuntos alheios22 22 No original: “Dirty Linen Had Damn Well Better Be Washed at Home; Nosey Neighbors Need a Nose Job; The Hard of Hearing Should Learn to Lip-Read; When it Comes to the Law: Mum’s the Word; The Losers of the World Need a Shorter Bridge to Walk On; Meddling is Asking for Trouble on Credit”. .

Além do vocabulário familiar e grosseiro, o carnavalesco pode ser também notado na forma como o autor cria as máscaras que os chicanos usam. Segundo Bakhtin, a máscara é o motivo mais complexo, mas carregado de sentido da cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações. A máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais (BAKHTIN, 2010)23 23 Para referência, ver nota 4. .

As máscaras no carnaval de Hinojosa representam uma certa oposição. A mais proeminente delas é o Coiote contra o Cordeiro, a armadilha contra a presa.

O coiote é uma das máscaras mais assustadoras do carnaval. Em espanhol mexicano, um coiote é um oficial encarregado de documentos e pagamentos relacionados com imigrantes ilegais. Nos romances de Hinojosa, este indivíduo é personificado por Adrián Peralta, um coiote local, que encontra seus clientes no Tribunal do Condado de Belken. Na verdade, Peralta não tem nenhuma posição oficial no tribunal. No entanto, ele ganha a vida enganando os mexicanos-americanos intimidados que entram nos escritórios do tribunal.

Hinojosa desumaniza Peralta, retratando-o como um predador incansável e paciente esperando pela sua presa “de olhos arregalados e perdida, olhando para cima e para baixo, norte a sul, da esquerda para a direita, leste a oeste”24 24 Em inglês: “wide-eyed and lost, looking up and down, north to south, and left to right, east to west” , e, uma vez que a presa está aí, ele ataca:

Peralta está em pé, no caso de que mais um cordeiro de Deus apareça. E aparecerá. Eles sempre aparecem. Ele está certo […] olhos arregalados e perdido, olhando para cima e para baixo, norte a sul, da esquerda à direita, lesta a oeste. E depois: “Bom dia, señora. Meu nome é Adrián Peralta – posso ajudá-la de alguma forma?”25 25 Em inglês: “He’s also on his feet in case, just in case, another one of God’s lambs should show up. And they will. They always do, he says. And he’s right (…) wide-eyed and lost, looking up and down, north to south, and left to right, east to west and then: ‘Good morning, señora. My name is Adrián Peralta - may I help you in any way?’” (HINOJOSA, 2014b, p.143HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

A descrição metafórica de Hinojosa da espera de Peralta é marcada por uma imagem rítmica que se baseia na antítese. Os movimentos hábeis de Peralta se assemelham aos de um animal alerta e pronto para atacar.

Este homem não tem escrúpulos morais; ele age com precisão e eficiência, que o autor associa com movimentos táticos de uma operação militar. Cada palavra que ele usa é cuidadosamente formada, ensaiada e pronunciada no momento certo, como em uma missão bem-organizada:

“Com licença?” “Sim senhor”. O que os alemães chamam de impulso psicológico, Peralta primeiro dá um longo, reservado, cheio de mistério mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm, (Bombardeio de artilharia para suavizar as tropas). Daí, uma olhada para Don Marcial e, logo, outra para o envelope. (Patrulhas de reconhecimento, rádio e jipes metralhadores em ordem de funcionamento). E então, Peralta abre o envelope e lê a carta. (A reunião de prisioneiros para fins de inteligência). Ele pega Don Marcial pelo cotovelo e o leva ao escritório. (Missão concluída, agora é uma questão de preenchimento e arquivamento de relatórios). (...) Peralta olha para o seu relógio e pergunta por um e depois por outro, tal e tal; não, ele não está aqui. Eu não sei onde ele está. Obrigado. Outro escritório, e Peralta sorri para o vendedor de doces. (Bom relatório, meninos, vamos apenas enviar isso para baixo para o batalhão). “É isto, amigo de Anda. Eu vou chegar ao fundo disso, e eu vou fazê-lo antes que você possa contar até três; e, falando em três, você acha que pode arranjar três dólares para fazer andar a máquina?”26 26 Em inglês: “‘May I?’ ‘Please? Oh, yessir; here you are.’ At what the Germans refer to as the psychological impulse, Peralta gives out a long, almost private, mmmmmmmmmmmmmmmmmmmm, steeped in mystery. (Artillery bombardment to soften the troops.) From there, he stares at Don Marcial and, before the fidgeting starts, another look at the envelope. (Reconnaissance patrols, radio and machine gun jeeps in working order.) And now Peralta opens the envelope and reads the letter. (The gathering of prisoners for intelligence purposes.) He takes Don Marcial by the elbow. (Mission completed, it’s now a matter of filling and filing the reports.) (…) Peralta looks at his watch and asks for so and so and then for some other so and so; no, he’s not here. I don’t know where he is. Thanks. Another office, and Peralta smiles down to the candy maker. (Good report, boys, we’ll just send this on down to battalion.) ‘This is it, friend de Anda. I’m going to get to the bottom of this, and I’ll do it before you can count to three; and, speaking of three, you think you can rustle up three ones for me?’” (HINOJOSA, 2014b, p.140HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Peralta é retratado como um predador, fiel aos seus princípios, aquele com uma posição dominante na cadeia alimentar da comunidade e que se alimenta de Cordeiros de Deus. Uma de suas vítimas é Marcial de Anda, um homem de uma geração mais velha, un hombre de bien, “uma alma piedosa”, “pequeno, tímido e generoso”, “vendedor de doces caseiros”. Marcial de Anda chega no Tribunal do Condado porque recebe um “envelope branco” em inglês, que ele considera um mau presságio.

Peralta engana De Anda convencendo-o a dar algum dinheiro para “lubrificar esta pesada máquina burocrática”. Ainda, no final, a Senhora Espinoza, uma das funcionárias do Tribunal do Condado, explica a De Anda que a carta que recebeu é uma notificação e alerta-o contra pessoas como Peralta, dizendo que os funcionários não aceitam dinheiro por seus serviços. Para os mexicanos-americanos que não falam inglês, a experiência é tão dura que, uma vez que sentem alívio, eles esquecem todos os avisos. De Anda comporta-se como uma presa que consegue escapar:

Livre! Casa! Mal ouve o aviso e como não tem que desembolsar o seu último tostão, um dólar e setenta e cinco centavos (são quatro e setenta e cinco para uma licença de fazedor de doces), ele já esqueceu dos três que acabou de entregar ao coiote. Ele também se esquecerá do conselho da Senhora Epinoza. Ele vai para casa e em paz, até o próximo envelope27 27 Em inglês: “Free! Home! He barely hears the admonition, and since he doesn’t have to shell out his remaining dollar and seventy-five cents (it’s four seventy-five for a candy maker’s permit) he’s already forgotten about the three he gave to the coyote. He’ll also forget Miss Espinoza’s advice: he’s going home and in peace; until the next envelope.” (HINOJOSA, 2014b, p.142HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Para mostrar o absurdo de tal situação, Hinojosa emprega um conjunto de técnicas linguísticas: o discurso indireto livre “Livre! Casa!”, a ironia combinada com amplificação “mal ouve o aviso (...) já esqueceu (...) vai esquecer (...) casa e paz, até o próximo envelope”. Usando a metamorfose animalesca, o autor mostra o funcionamento normal do habitat do chicano, com sua seleção natural e diversidade biológica do Vale povoado por piedosas almas mexicano-americanas, ingênuas, humildes e analfabetas em inglês, vivendo ao lado dos seus amigos chicanos traiçoeiros, que nunca hesitam em levar Cordeiros de Deus para um passeio.

3 Os palhaços de carnaval

Os romances de Rolando Hinojosa também exibem uma diversidade de tolos de carnaval. Por exemplo, incluindo Emilio Tamez em seus livros, Hinojosa cria um bobo da corte que entretém o povo. Emilio é um desastre ambulante e toda a sua vida parece ser um grande infortúnio. Ele é coxo porque, aos onze anos, “ele escorregou num pedaço de brócolis” quando estava pulando nas estradas de ferro. Emílio tem apenas uma orelha porque uma noite a outra foi “cortada” como “uma fatia de pão” num bar. A deficiência de Emílio é descrita de forma carnavalesca. O fragmento é salientado por uma conexão peculiar entre comida, corpo e morte, baseando-se nos princípios do baixo material e corporal (BAKHTIN, 2010)28 28 Para Referência, ver nota 4. . Mesmo Emilio sendo bilíngue e devendo ser considerado superior na comunidade, seus compadres o provocam e fazem piada dele sem compaixão: “Você não notaria olhando para ele, mas ele lê e escreve em inglês e espanhol. Ele é bilíngue, mas, mesmo tendo tudo isso, ele ainda é um idiota”29 29 Em inglês: “You wouldn’t know it to look at him, but he reads and writes English and Spanish. A tee-total bilingual, he is; but, with all that going for him, he’s still a dam fool.” (HINOJOSA, 2014b, p.153HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). Ele é inteligente, mas a multidão ignora suas habilidades e procura nele apenas algo para fazer piada: “É a lei da compensação: ele manca do lado esquerdo e é surdo à direita”30 30 Em inglês: “It’s the law of compensation all over again: he limps on the left side and is deaf on the right.” (HINOJOSA, 2014b, p.153HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). Hinojosa retrata Emilio de acordo com a tradição grotesca mexicana, como um sujeito tratado como um objeto com defeitos físicos.

Outro tipo de tolo é um marido traído. O jovem Murillo torna-se motivo de riso no bairro, enquanto prossegue alegremente com a sua vida de casado completamente inconsciente da infidelidade da sua mulher. Hinojosa usa o símile “não criou sua filha para ser uma maldita melancia” no discurso do sogro de Murillo, que lhe assegurou a honestidade de sua noiva (HINOJOSA, 2014b, p.73HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). A metáfora de Don Víctor contém humor e sagacidade, o que o ajuda a salvar a reputação de sua filha. Murillo não questiona a lealdade de sua esposa e demonstra uma cega autoconfiança: “ele ainda se considera um esperto” (HINOJOSA, 2014b, p.73HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Quando Young Murillo disse a Don Víctor Solís que queria testar Estefanita antes da cerimónia do casamento, Don Víctor respondeu que não criou sua filha para ser uma maldita melancia. Isso aconteceu algum tempo atrás e Young Murillo ainda se considerava um esperto, como costumavam dizer. O problema com esse tardio namoro é que ele ainda não tem ideia de quantas vezes lhe botaram chifres31 31 Em inglês: “When Young Murillo told Don Víctor Solís he wanted to test Estefanita prior to the marriage ceremony, Don Víctor replied that he didn’t raise his daughter to be no goddam watermelon. This happened a long time ago, and Young Murillo still considers himself quite a card, as they used to say; trouble with that is that at this late date, he still has no idea how many times he’s been fitted for antlers.” (HINOJOSA, 2014b, p.73HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Um outro mestre do desastre é Melitón Burnias, que é a personificação da tolice nos romances de Hinojosa. De acordo com Bakhtin, a tolice é totalmente ambivalente. Ela “é o reverso da sabedoria, o reverso da verdade. É o inverso e o inferior da verdade oficial dominante; ela se manifesta, antes de mais nada, numa incompreensão das leis e convenções do mundo oficial e na sua inobservância. “A tolice é a saberdoria licenciosa da festa, liberada de todas as regras e restrições do mundo oficial, e também das suas preocupações e da sua seriedade” (BAKHTIN, 2010, p.227)32 32 Para referência, ver nota 4. . Melitón Burnias é o “tolo da cidade”, ele é pobre e miserável, sua filha o chutou para a rua e sua desgraça parece infinita, mas sua má sorte “tem um lado negativo: rebaixamento e aniquilação (que se conservou na injúria moderna de ‘imbecil’) e um lado positivo: renovação e verdade” (BAKHTIN, 2010, p.227)33 33 Para referência, ver nota 4. .

Além do mais, ele estava pior que sem um tostão: ele era constantemente, infinitamente, irreversivelmente pobre. Ele tinha altas expectativas, mas também ele era um azarado, como dizemos em Belken. Por exemplo, quando Tila, sua filha mais velha, fugiu com o Práxedes Cervera, voltaram em uma semana, além disso, os dois botaram Burnias na rua e o deixaram aí. O homem, e isso é sagrado, encolheu os ombros sacudiu a poeira e foi procurar um lugar para dormir, e achou: a horta de melancias. Na mesma noite choveu granizo34 34 Em inglês: “To add to this, he was worse off than penniless: he was constantly, endlessly, irreversibly poor. He had high hopes, but he also had bad luck, as we say in Belken. For example, when Tila, his eldest girl, ran off with Práxedes Cervera, they were back within the week and, in tandem, the two carried Burnias out into the street and left him there. The man, and this is gospel, shrugged his shoulders, dusted himself off and went to find a place to sleep, which he did: the watermelon patch. That same night, it rained like hail.” (HINOJOSA, 2014b, p.53HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

A pobreza e miséria de Burnias é enfatizada por uma série de epítetos, “constantemente, infinitamente, irreversivelmente pobre”, que são climaticamente organizados para intensificar a ironia. O motivo da má sorte aumenta o efeito cômico: Burnias é “pior que sem um centavo”, ele é “lançado para a rua” e, uma vez que ele está fora, “chove granizo”. Apesar de tristes, esses eventos são contados com uma boa dose de humor, que decorre da objetificação de Burnias, que se encontra sozinho na rua como um animal vadio: “levou Burnias para a rua e deixou-o lá”, “foi encontrar um lugar para dormir” (HINOJOSA, 2014b, p.53HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

No entanto, a má sorte de Melitón não o impede de seguir em frente com sua vida. Burnias, sem-abrigo, consegue alguns empregos part-time para ganhar a vida. Seus empregadores não são “pessoas sem sorte”. Um deles é Martin Lalanda, um comerciante de sucesso, proprietário de terra, fazendas em ações e um caminhão “para transportar cascalho de um lugar para outro na base de contrato”. O narrador chama Lalanda de “snug” [“forreta”], porque, de acordo com um dos personagens, Lalanda “nunca comprou mais que uma garrafa de cerveja para ninguém. Forreta, mas não uma pessoa ruim”35 35 Em inglês: “has never bought as much as a bottle of beer for anyone, anytime, anywhere. Snug, then, but not a bad person.” . Lalanda contrata Burnias para dirigir seu caminhão e permite que ele durma nele. O contrato entre eles é trabalho por alojamento (HINOJOSA, 2014b, p.146HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Novamente, Hinojosa opta por um Burnias grotesco, animalizado e degradado que dorme na horta de melancias, e não sente desconforto, mas fica tranquilo e relaxado. O narrador observa que o porco e seu novo dono dão uma impressão de harmonia e afinidade.

Burnias estava morto de cansaço e caiu sob a cama, o porco fez o mesmo. Ao amanhecer, Lalanda e seu motorista encontraram o par dormindo e Lalanda decidiu acordar o que podia falar36 36 Em inglês: “Burnias was dead tired and dropped off under the tuck bed; the pig did the same. At daybreak, Lalanda and his driver found the pair fast asleep, and Lalanda decided to wake up the one who could talk”. (HINOJOSA, 2014b, p.147HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Mais um empregador bem conhecido, Old Man Chandler, “não azarado” e que também “tem algumas boas terras à beira do rio Relámpago”37 37 Em inglês: “not unlucky”... “has got some good river-bank land by Relámpago.” HINOJOSA, 2014b, p.146HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.), oferece a Burnias um emprego temporário, de três dias, mas paga com um porco, com vermes na barriga. Mesmo não sabendo do problema, Burnias ainda sente que ele é “enganado de novo” quando recebe o seu “pagamento” (HINOJOSA, 2014b, p.146HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Desencorajado, Burnias mesmo assim vem com um plano de negócios e pede a Lalanda dois dólares para comprar comida para o porco para engordá-lo e vendê-lo. Ele também promete compartilhar dinheiro com Lalanda, que “sempre ouve muito bem quando se trata de dinheiro” e que ansiosamente aproveita a oportunidade para fazer dinheiro fácil (HINOJOSA, 2014b, p.146HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). No entanto, na feira semanal em Klail City, os parceiros não conseguem vender o animal por causa dos vermes. Comentando seu fiasco, Lalanda emprega humor popular e sua característica “o baixo material e corporal”:

“Estou te dizendo Melitón, você é tão azarado que os cachorros fazem fila para mijar em você, sabe?” Burnias acenou novamente e disse: “Sim, acho que sim, mas por que parar em cachorros? Porcos o farão se você deixá-los”38 38 Em inglês: “’I’m telling you, Melitón, your luck is so bad that dogs’ll line up to pee on you, you know that?’ Burnias nodded again, and said, ‘Yeh, I guess so; but why stop at dogs? Pigs’ll do it, if you let ’em’”. (HINOJOSA, 2014b, 148HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Burnias repete a piada, percebendo que ele não pode quebrar o seu círculo vicioso de má sorte, que se tornou parte da sua personalidade. Eventualmente, Lalanda o convence a devolver o porco para o proprietário anterior, Old Man Chandler, como um presente que o homem não será capaz de recusar sem dar qualquer explicação. O plano dá certo e o velho Chandler paga a Burnias o dinheiro que prometeu pelo seu trabalho e também cobre as perdas que os sócios tiveram.

Sendo o portador do reverso da sabedoria ou do reverso da verdade, o azarado Burnias é um gatilho ou um teste decisivo para os outros que entram em contato com ele, revelando sua natureza e potencial, que se comprovam positivos ou negativos.

Um desses personagens “sortudos” testados pela má sorte de Burnias é Bruno Cano, “um comerciante bem-sucedido, e o único proprietário de um matadouro”39 39 Em inglês: “a successful merchant as well as the sole owner of a slaughterhouse.” (HINOJOSA, 2014b, p.53HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). Bruno está disposto a ir à caça do tesouro com Burnias no lote de Dona Panchita, conduzido pelo mesmo desejo de Lalanda que foi vender porcos, mas “Burnias, no entanto, não era avarento – nem sequer sabia o significado da palavra”40 40 Em inglês: “Burnias, however, was not avaricious – didn’t even know the meaning of the word”. . Nesse sentido, Bruno Cano e Burnias revelam alguma semelhança com Dom Quixote e Sancho Pança, que partiram em busca de aventuras que acabaram numa desventura miserável.

Hinojosa pinta uma cena vívida e hilariante da caça ao tesouro baseada numa absurda confusão entre Cano e Burnias, que persistentemente ouvem mal as palavras um do outro. A seguinte conversa se desenrola quando Cano está cavando dentro de uma cova e Burnias está esperando por ele no topo, espalhando a terra:

“Perto! Eu disse ’tamo chegando aí.”

“Um fantasma? Você disse, perto?”

“Quê? O que você disse? Um fantasma? Fantasma onde? Aqui?”

“Fantasma aí? Oh, Nossa! Meu Deus, meu Deus é claro!”

“Um fantasma, é claro? Foi isso que disse, maldição? Melitón? O que está fazendo? Melitón! Me responde!”

“Um fantasma? Bruno, tenho que sair daqui!”

“Um fantasma? Fez isso (…) Jesus! Ele disse um fantasma! Jesus, me salve, Senhor!”41 41 Em inglês: “‘Close! I said we’re gettin’ close here.’ ‘A ghost? Near, did you say?’ ‘What? What did you say? A ghost? Where-a-ghost? Here?’ ‘There-a-ghost? Oh, dear! My God, my God, it’s clear!’ ‘A ghost is clear? Is that what you said, goddamit? Melitón? What are you doing? Melitón! Answer me!’ ‘A ghost? Bruno, I gotta get outta here!’ ‘A ghost? Did that idiot … Jesus! Did he say a ghost! Jesus, save me, Lord!’” (HINOJOSA, 2014b, p.54HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.).

Assim, os parceiros se assustam até a morte e Burnias corre para salvar sua vida da maneira mais quixotesca, sem olhar para trás, abandonando seu parceiro desesperado na cova:

Por essa altura, Burnias estava se dirigindo diretamente e rápido para a horta de melancia. Cano, por sua vez, começou a gritar por ajuda, mas Burnias já estava fora de alcance: ele passou por duas cercas, saltou três largos poços sem esforço e foi perseguido pela maioria de cachorros do bairro42 42 Em inglês: “By this time, Burnias was headed straight for the melon patch and making good time. Cano, for his part, began to scream for help, but Burnias was out of earshot by then: he had cleared two fences clean, had jumped across three fairly wide puddles without trying and he was then chased by most of the neighborhood dogs.” (HINOJOSA, 2014 b, p.55).

Nesse episódio, Burnias, que nunca se destacou em muita força ou resistência física, constantemente faminto, milagrosamente se transforma num atleta, corredor de obstáculos. Seus traços animalescos também são destacados: Burnias se desloca para a sua plantação de horta como um animal assustado correndo para sua toca. Ironicamente, Bruno Cano pega a maldição de Burnias e morre no poço. Sem dúvida, a má sorte de Bruno tem um certo elemento de destruição, pois causa problemas. Ao mesmo tempo, pode ser considerada como algo positivo, porque está associada à renovação e à verdade. Isso se alinha com o conceito bakhtiniano do alegre e triste sendo duas partes da medalha, da vida e da morte intimamente ligados. Hinojosa usa o grotesco para introduzir sua noção de morte nos romances chicanos. Bruno Cano é deixado na cova para morrer de uma morte irônica. Outra personagem morre em circunstâncias anormais, sendo mordida por um cão com raiva enquanto estava saindo do seu transporte após a missa. Assim, a morte adquire um tom cômico. Tal tratamento da morte serve como uma ferramenta de sobrevivência para os chicanos, o riso popular ajuda-os a chegar a um acordo com os momentos mais trágicos da existência, para combater o medo do inevitável.

Na cultura das praças públicas, os palhaços fazem o sério cômico, transformaram o alto no baixo, sendo o epítome do grotesco e carnavalesco. De fato, Hinojosa cria uma “cidade de tolos” em seu universo ficcional de Belken County, onde o espírito do carnaval reina supremo e incessante. Esse é um lugar onde reside Burnias “uma-bebida-aqui-uma-bebida-lá” (HINOJOSA, 2014b, p.53HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). A própria cidade é retratada em traços de contraste. Para começar, Flora tem “o maior, mais conhecido e certamente mais rentável bordel”43 43 Em inglês:“the largest, best known and certainly most profitable whorehouse” em Belken County (HINOJOSA, 2014b, p.111HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). Além disso, os cidadãos de Flora estão orgulhosos do fato; eles até mesmo “afirmam isso ser uma invenção nativa”44 44 Em inglês: “claim it as a native invention.” (HINOJOSA, 2014b, p.111HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). Ao mesmo tempo, a cidade de Flora “também se orgulha de ter mais igrejas per capita do que qualquer outra cidade do Vale”45 45 Em inglês: “also boasts of more churches per capita than any other Valley town.” (HINOJOSA, 2014b, p.111HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). Dessa forma, Hinojosa reúne representações do “alto” e do “baixo corporal” na descrição da cidade.

Outro sucesso da cidade é que “as pessoas da Flora se convenceram de que inventaram o pão fatiado, isso é de valor para os mexicanos do Texas e os anglos do Texas”46 46 Em inglês: “Flora people have convinced themselves that they invented sliced bread, this goes for Texas Mexicans and Texas Anglos alike”. (HINOJOSA, 2014a, p.111HINOJOSA, R. Klail City / Klail City y sus alrededores. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014a.). É significativo que Flora é o único lugar no Vale onde a população parece mental e espiritualmente homogênea. Mexicanos e anglos não revelam muitas diferenças. Por exemplo, os mexicanos do Texas lutaram em ambos os lados da Guerra Civil Americana. Eles têm ideias semelhantes e produzem uma impressão semelhante nas pessoas de fora da cidade, que acreditam que os florenses [Flora-ites] são um “inferno para lidar e conviver”, e eles “nunca vão deixar você manter o seu próprio mau hálito”47 47 Em inglês: “hell to deal and live with,” and they “won’t ever let you keep your own bad breath.” (HINOJOSA, 2014b, p.53HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.). Sem surpresa, os florenses se tornam o alvo de muitas piadas e deboches dos habitantes do Vale:

De qualquer forma, os cidadãos anglo-texanos e méxico-texanos de Flora são idênticos em várias formas: barulhentos, confiam em Deus, prestam-Lhe homenagens aos domingos e acreditam em dinheiro do amanhecer ao pôr do sol. Eles também acreditam em outras coisas importantes. Anos bissextos, por exemplo48 48 Em inglês: “Anyway, the Texas Anglo and Texas Mexican citizenry of Flora are identical in many ways: noisy, trust in God and give Him credit of Sundays, and believe in cash on the barrelhead from sunup to sundown. They also believe in other important things. Leap years, for one.” (HINOJOSA, 1984a, p.111).

Nesse exemplo, o autor combina o anticlímax com um jogo de palavras, “confiar em Deus (...) prestar-Lhe homenagens (...) acreditar em dinheiro (...) acreditar em anos bissextos”, para destacar o escárnio popular da religião combinado com a sua tolice, que não pode ser “curada” com uma pílula ou um tiro: “Não há nada que se possa fazer com a estupidez. Leva mais do que uma pílula ou uma injeção para isso. Mas os florenses não sabem disso, e se eles sabem, eles optam por ignorá-lo”49 49 Em inglês: “There is nothing you can do about stupidity. Takes more than a pill or a shot for that one. But the Flora-ites don’t know this, and if they do, they choose to ignore it.” (HINOJOSA, 2014a, p.112HINOJOSA, R. Klail City / Klail City y sus alrededores. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014a.). O jogo de palavras também é usado para descrever a insegurança dos mexicanos na comunidade moderna: “A vida é bastante barata em Flora, e se você é mexicano do Texas, é ainda mais barata” (HINOJOSA, 2014b, p.64HINOJOSA, R. The Valley/ Estampas del valle. Bilingual Edition. University of Houston, Texas: Arte Público Press, 2014b.)50 50 Em inglês: “Life is fairly cheap in Flora, and if you’re Texas Mexicano, it’s even cheaper than that.” . Pode-se inferir que Flora não é apenas desagradável, mas também perigosa para se viver. É uma cidade que acumula todas as fraquezas humanas e tenta as pessoas a manifestar o pior lado da natureza humana. Flora praticamente se transforma em um mito de uma cidade amaldiçoada que ninguém quer se aproximar e todos tentam passar de lado. A descrição de Flora e seus cidadãos revela a reversão carnavalesca do alto e baixo, a imagem grotesca da cidade de tolos cria o riso, libertador e universal.

4 Conclusão

Podemos concluir que, nos romances de Rolando Hinojosa, o sistema de imagens está intimamente relacionado com uma cultura carnavalesca, com a cultura do riso popular, o que implica a ambivalência da natureza humana. O humor que permeia a narração é universal, o que o torna semelhante ao riso das praças públicas, quando as pessoas debocham e ridicularizam de algo ou alguém e riem de si mesmas.

Outra manifestação do carnavalesco nos romances é a negação da autoridade da Igreja e do Estado, o riso popular dos habitantes do Vale exibe revoltas e reversões. Também está ligado a diferentes manifestações da natureza humana ambivalente. Os personagens revelam alguns traços cômicos que os tornam reais, fazendo-os mais humanos. Os personagens cômicos, que podem ser vistos como os tolos da cidade, agem como uma força destrutiva, passando sua má sorte para outros. Ao mesmo tempo, eles são retratados como portadores da verdade que é dotada de potencial de renovação e reavivamento. Esta natureza dupla do cômico encaixa-se perfeitamente com a visão bakhtiniana do carnavalesco.

Dentro do quadro geral do carnavalesco, Hinojosa explora os aspectos vívidos e os aspectos de afirmação da vida da comunidade chicana, bem como seus momentos mais lúgubres envolvendo a morte. A morte é apresentada como algo grotesco, que serve de mecanismo de sobrevivência para as pessoas, ajudando-as a superar seu medo do inevitável. As máscaras de carnaval criadas na Klail City Death Trip Series desempenham a mesma função, enfatizando a ousadia e a metamorfose. A imagem de um homenzinho zoomórfico ridículo simboliza a capacidade humana de passar pelas tragédias inevitáveis da vida rindo.

A análise revela que o riso carnavalesco afeta o sistema de imagens, penetra no sistema de personagens e preenche a estrutura de fala dos romances. A narração de Rolando Hinojosa é contrapontística e polifônica, abrangendo tanto a escuridão quanto a luz, combinando narrativas separadas num coro de vozes que se elevam a uma voz coletiva da comunidade chicana.

Hinojosa remarca a vida e a história moderna de chicanos como realidade carnavalizada, que se manifesta em sua arte como o grotesco e o carnavalesco. Sem dúvida, fornece novas abordagens para compreender o mundo e o lugar do homem nele.

  • 1
    BAKHTIN M.M. Dopolneniya i izmeneniya k “Rable” (Additions and Alterations to “Rabelais”). Philosophy Issues, Moscow, 1992. Vol. 1, p.154. Em inglês: https://philpapers.org/archive/bakbos.pdf. Acesso em 17 out. 2021.
  • 2
    HINOJOSA, R. Estampas del valle y otras obras [primeiro romance de Klail City Death Trip Series]. Berkeley, CA: Quinto Sol, 1972. Edição revista em inglês: HINOJOSA, R. The Valley. Ypsilanti, MI: Bilingual Press, 1983.
  • 3
    HINOJOSA, R. Klail City y sus alrededores [Segundo romance de Klail City Death Trip Series]. Edição bilíngue. Tradução Rosaura Sanchez. Casa de las Americas, 1976; Tradução Rolando Hinojosa publicada Klail City. Houston, TX: Arte Publico Press, 1987.
  • 4
    In the original: “at once comic and tragic, ironic and ingenuous.”
  • 5
    In the original: “shifts rapidly from irony to humor to pathos to tragedy.”
  • 6
    BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7.ed. Tradução Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
  • 7
    Para referência, ver nota 4.
  • 8
    BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5.ed. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.
  • 9
    Para referência, ver nota 4.
  • 10
    Para referência, ver nota 6.
  • 11
    ELIADE, M. Mito do eterno retorno. Tradução José A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992.
  • 12
    PAZ, O. O labirinto da solidão. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • 13
    Para referência, ver nota 4.
  • 14
    Para referência, ver nota 4.
  • 15
    Para referência, ver nota 4.
  • 16
    Para referência, ver nota 4.
  • 17
    Para referência, ver nota 12.
  • 18
    Para referência, ver nota 6.
  • 19
    Para referência, ver nota 1.
  • 20
    Em inglês: “the boundaries of the official world shrink and this world loses its strictness and confidence, while the boundaries of the market place expand and its atmosphere starts to penetrate everywhere”.
  • 21
    Em inglês: “quasi-oral listeners, embedded in a community context”.
  • 22
    No original: “Dirty Linen Had Damn Well Better Be Washed at Home; Nosey Neighbors Need a Nose Job; The Hard of Hearing Should Learn to Lip-Read; When it Comes to the Law: Mum’s the Word; The Losers of the World Need a Shorter Bridge to Walk On; Meddling is Asking for Trouble on Credit”.
  • 23
    Para referência, ver nota 4.
  • 24
    Em inglês: “wide-eyed and lost, looking up and down, north to south, and left to right, east to west”
  • 25
    Em inglês: “He’s also on his feet in case, just in case, another one of God’s lambs should show up. And they will. They always do, he says. And he’s right (…) wide-eyed and lost, looking up and down, north to south, and left to right, east to west and then: ‘Good morning, señora. My name is Adrián Peralta - may I help you in any way?’”
  • 26
    Em inglês: “‘May I?’ ‘Please? Oh, yessir; here you are.’ At what the Germans refer to as the psychological impulse, Peralta gives out a long, almost private, mmmmmmmmmmmmmmmmmmmm, steeped in mystery. (Artillery bombardment to soften the troops.) From there, he stares at Don Marcial and, before the fidgeting starts, another look at the envelope. (Reconnaissance patrols, radio and machine gun jeeps in working order.) And now Peralta opens the envelope and reads the letter. (The gathering of prisoners for intelligence purposes.) He takes Don Marcial by the elbow. (Mission completed, it’s now a matter of filling and filing the reports.) (…) Peralta looks at his watch and asks for so and so and then for some other so and so; no, he’s not here. I don’t know where he is. Thanks. Another office, and Peralta smiles down to the candy maker. (Good report, boys, we’ll just send this on down to battalion.) ‘This is it, friend de Anda. I’m going to get to the bottom of this, and I’ll do it before you can count to three; and, speaking of three, you think you can rustle up three ones for me?’”
  • 27
    Em inglês: “Free! Home! He barely hears the admonition, and since he doesn’t have to shell out his remaining dollar and seventy-five cents (it’s four seventy-five for a candy maker’s permit) he’s already forgotten about the three he gave to the coyote. He’ll also forget Miss Espinoza’s advice: he’s going home and in peace; until the next envelope.”
  • 28
    Para Referência, ver nota 4.
  • 29
    Em inglês: “You wouldn’t know it to look at him, but he reads and writes English and Spanish. A tee-total bilingual, he is; but, with all that going for him, he’s still a dam fool.”
  • 30
    Em inglês: “It’s the law of compensation all over again: he limps on the left side and is deaf on the right.”
  • 31
    Em inglês: “When Young Murillo told Don Víctor Solís he wanted to test Estefanita prior to the marriage ceremony, Don Víctor replied that he didn’t raise his daughter to be no goddam watermelon. This happened a long time ago, and Young Murillo still considers himself quite a card, as they used to say; trouble with that is that at this late date, he still has no idea how many times he’s been fitted for antlers.”
  • 32
    Para referência, ver nota 4.
  • 33
    Para referência, ver nota 4.
  • 34
    Em inglês: “To add to this, he was worse off than penniless: he was constantly, endlessly, irreversibly poor. He had high hopes, but he also had bad luck, as we say in Belken. For example, when Tila, his eldest girl, ran off with Práxedes Cervera, they were back within the week and, in tandem, the two carried Burnias out into the street and left him there. The man, and this is gospel, shrugged his shoulders, dusted himself off and went to find a place to sleep, which he did: the watermelon patch. That same night, it rained like hail.”
  • 35
    Em inglês: “has never bought as much as a bottle of beer for anyone, anytime, anywhere. Snug, then, but not a bad person.”
  • 36
    Em inglês: “Burnias was dead tired and dropped off under the tuck bed; the pig did the same. At daybreak, Lalanda and his driver found the pair fast asleep, and Lalanda decided to wake up the one who could talk”.
  • 37
    Em inglês: “not unlucky”... “has got some good river-bank land by Relámpago.”
  • 38
    Em inglês: “’I’m telling you, Melitón, your luck is so bad that dogs’ll line up to pee on you, you know that?’ Burnias nodded again, and said, ‘Yeh, I guess so; but why stop at dogs? Pigs’ll do it, if you let ’em’”.
  • 39
    Em inglês: “a successful merchant as well as the sole owner of a slaughterhouse.”
  • 40
    Em inglês: “Burnias, however, was not avaricious – didn’t even know the meaning of the word”.
  • 41
    Em inglês: “‘Close! I said we’re gettin’ close here.’
    ‘A ghost? Near, did you say?’
    ‘What? What did you say? A ghost? Where-a-ghost? Here?’
    ‘There-a-ghost? Oh, dear! My God, my God, it’s clear!’
    ‘A ghost is clear? Is that what you said, goddamit? Melitón? What are you doing? Melitón! Answer me!’
    ‘A ghost? Bruno, I gotta get outta here!’
    ‘A ghost? Did that idiot … Jesus! Did he say a ghost! Jesus, save me, Lord!’”
  • 42
    Em inglês: “By this time, Burnias was headed straight for the melon patch and making good time. Cano, for his part, began to scream for help, but Burnias was out of earshot by then: he had cleared two fences clean, had jumped across three fairly wide puddles without trying and he was then chased by most of the neighborhood dogs.”
  • 43
    Em inglês:“the largest, best known and certainly most profitable whorehouse”
  • 44
    Em inglês: “claim it as a native invention.”
  • 45
    Em inglês: “also boasts of more churches per capita than any other Valley town.”
  • 46
    Em inglês: “Flora people have convinced themselves that they invented sliced bread, this goes for Texas Mexicans and Texas Anglos alike”.
  • 47
    Em inglês: “hell to deal and live with,” and they “won’t ever let you keep your own bad breath.”
  • 48
    Em inglês: “Anyway, the Texas Anglo and Texas Mexican citizenry of Flora are identical in many ways: noisy, trust in God and give Him credit of Sundays, and believe in cash on the barrelhead from sunup to sundown. They also believe in other important things. Leap years, for one.”
  • 49
    Em inglês: “There is nothing you can do about stupidity. Takes more than a pill or a shot for that one. But the Flora-ites don’t know this, and if they do, they choose to ignore it.”
  • 50
    Em inglês: “Life is fairly cheap in Flora, and if you’re Texas Mexicano, it’s even cheaper than that.”
  • Traduzido por Nino Kapitula – ninolekishvili@yandex.ru

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2020
  • Aceito
    17 Out 2021
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