Acessibilidade / Reportar erro
Este documento está relacionado com:

A ficção científica: o enunciador hiperperceptivo e a viagem do ponto de vista na referenciação

RESUMO

A ficção científica é um gênero literário que se espalhou mundo afora devido, entre outros motivos, à sua popularidade; as narrativas contêm personagens exóticos e intrigas fantásticas. É considerada, contudo, pelo círculo de eruditos e críticos, uma literatura “menor”, mas, para os linguistas do discurso, seus atributos “estéticos” ficam em segundo plano. A teoria dos pontos de vista (PDV), por exemplo, pode contribuir para uma melhor avaliação do gênero. O presente artigo tem como ambição estudar enunciativamente esse gênero literário. Em primeiro lugar, falaremos sobre estudos da narratologia, para marcar o lugar da ficção científica (ou fc) no universo das narrativas. Em segundo lugar, falaremos sobre as noções e notações da teoria PDV dentro do estudo narratológico para acionar uma análise dialógica do discurso literário. Em terceiro lugar, analisaremos um fragmento da narrativa Duna, de Frank Herbert, em sua versão para português brasileiro (2017). Ao final, propomos que os “superpoderes” dos personagens nesse gênero podem ser explicados linguisticamente.

PALAVRAS-CHAVE:
Ficção científica; Narrativa; Ponto de vista; Superpoderes

ABSTRACT

Science fiction is a literary genre that has spread around the world due, among other reasons, to its popularity; narratives contain exotic characters and fantastic intrigue. It is considered by the circle of scholars and critics, however, a “minor” literature; for discourse linguists, its aesthetic attributes remain in the background. The theory of points of view (POV), for example, can contribute to a better assessment of the genre. This article aims to study this literary genre via enunciation. First, we talk about studies in narratology to delimit the place of science fiction (or sf) in the universe of narratives. Secondly, we talk about concepts and notations from POV theory within narratological studies to trigger a dialogical analysis of literary discourse. Thirdly, we analyze a fragment from Dune, by Frank Herbert, in its version into Brazilian Portuguese (2017). Finally, we propose that “superpowers” held by characters in this genre can be explained linguistically.

KEYWORDS:
Science fiction; Narrative; Point of view; Superpowers

Introdução

A ficção científica é um gênero literário disseminado internacionalmente devido, entre outros motivos, à sua popularidade. Contudo, é conhecida como um gênero não acadêmico, ou seja, tem pouca circulação institucional e goza de reduzida credibilidade no ambiente universitário. Por sequer ser designada como uma “beletrística”, ou não sustentar o status de “belas letras”, o gênero é visto, aqui e ali, como uma literatura de “baixo nível estético, de grande pobreza imaginativa (...), com personagens sem vida e situações sem significado profundo” (Rosenfeld, 2011ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção. 12. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 09-49., p. 37) - evidentemente, isso se refere ao juízo de valoração dos “críticos” e de teorias que reproduzem certa repugnância à popularidade. Dentre outras, a conhecida teoria avessa a “indústria cultural” e sua resistência ao consumo da cultura de massa (Adorno; Horkheimer, 2002ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. Traduzido por Júlia Elisabeth Levy. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 169-214.). Contudo, em outro lugar, distante da régua do “belo” e de certo “tribunal estético” - ou mesmo de análises filosóficas profundas de crítica ao capitalismo tardio -, cabe considerar que a ficção científica é uma narrativa como qualquer outra; consideração simples, mas não menos fascinante. Esse tipo textual traz personagens exóticos, enredos pulsantes e intrigas fabulosas. Como qualquer outro texto, constitui-se em um gênero, isto é, suas características se estabilizam dentro de um quadro comum e se rotinizam. São rotina nas produções de entretenimento cinematográfico os enredos que parecem priorizar a “diversão” no âmbito da ficção científica. Além disso, há a procura pelo universo fabuloso dos livros nas adaptações cinematográficas de obras “clássicas” que se tornaram tão famosas quanto banais (Andrews; Rennison, 2006ANDREWS, Stephen E.; RENNISON, Nick. 100 Must-Read Science Fiction Novels. Londres: A & C Black Publishers Limited, 2006.). Entretanto, suas características, como atividade humana em comunicação discursiva entre seus admiradores, são definidas com diversos adjetivos: distópicas, utópicas, fabulosas, futuristas, alternativas etc. Melhor dizendo, em sua riqueza, geralmente a ficção científica (também chamada de fc na literatura crítica brasileira) é caracterizada como uma realidade científica imaginada no futuro, ou uma realidade alternativa com propriedades fantásticas, uma “ficção fabulosa”. Muitos são os adjetivos; muitas as características.

Como “ficção fabulosa”, apenas para apresentar um desses adjetivos, a ficção científica procura a reflexão de uma “moral da história”, implícita ou explícita, para fomentar debates sobre a condição humana, os caminhos da sociedade e os destinos da humanidade, dentre muitas outras questões éticas resultantes de verdadeiros dilemas morais: o que é certo, o que deu errado, como chegamos até esse ponto etc.

Como ficção, inclui em sua dinâmica narradores e personagens exóticos. Tipicamente, é uma história contada por um locutor-narrador que relata tramas diversas em ambientes fantásticos. Um narrador reporta diversos personagens e promove encontros em uma rede que cria mundos intergalácticos, realidades futuristas, intrigas de sociedades distópicas, armas especiais, alienígenas e até mesmo ressurreições messiânicas. O desenvolvimento desse enredo tem na figura do narrador um verdadeiro focalizador da trama imaginativa, geralmente em um planeta Terra do futuro ou no espaço sideral, distante por anos-luz daqui1 1 Nesse ponto, tratamos a ficção científica a partir do subgênero space opera. A simplificação é proposital para remeter o leitor a leituras mais detalhadas desse gênero textual (WestfahL, 2003). .

A ficção científica, contudo, não é uma realidade alternativa, desprovida das questões sociais e políticas da atualidade. Ela se divide em subgêneros que focalizam questões externas ao discurso narrado, mas que pautam questões da ordem do dia. Existem as narrativas distópicas, que criam realidades dominadas por autoritarismos -muito à semelhança de regimes totalitários que marcaram o mundo “real” do século XX. São conhecidas as histórias de 1984, A revolução dos bichos ou Admirável mundo novo. Antes destes, Nós, de Ievguêni Zamiátin, desafiava o regime de Stálin em plena União Soviética. No Brasil, a ficção contada em Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, retrata um “regime militar futurista” à semelhança da ditadura que perdurou entre 1964 e 1985 no Brasil. Ou seja, a ficção científica está longe de ser um gênero “inocente”.

Com o passar do tempo, a fc desenvolveu novas focalizações por meio de diferentes locutores, escritores e escritoras diversos, novas identidades políticas potentes e imaginativas. Por exemplo, existem distopias criadas como realidades dominadas por regimes machistas; muito conhecido é o livro O conto da aia, da romancista Margaret Atwood, adaptado para a televisão e que, embora não seja de ciência imaginada, projeta um mundo distópico, machista e tirânico. Além dele, outros parecem se tornar cada vez mais populares, como O poder, de Naomi Alderman, romance feminista e futurista que confronta homens e mulheres.

A lista do gênero chega a ser incontável, pois a ficção científica ganhou vários desdobramentos desde sua consolidação no século XIX. Há quem atribua a Frankenstein, de Mary Shelley, seu nascedouro. Contudo, sem entrar na estéril polêmica do “Adão mítico discursivo”2 2 Há quem recorra a Thomas Morus, com a publicação da famosa fantasia Utopia em 1516, para fundar o gênero, ou, ainda, quem vá a 1627, com a obra Nova Atlantis, para dizer que tudo começou em Francis Bacon. O que nos parece mais plausível é que a ciência e a narrativa ficcional se criaram por meio de uma interdiscursividade dialógica. Eleger um “pai fundador”, um “adão bíblico” (Bakhitin, 2006, p. 300) é um debate estéril e não dialógico. (quem deu origem ao gênero), fato é que a ficção científica, atualmente, compõe o imaginário popular de todo o mundo.

Aqui, neste texto em especial, vamos discorrer sobre a narrativa da ficção científica na ótica dos “centros de perspectiva”, isto é, por meio dos sujeitos modais, também famigeradamente conhecidos como enunciadores (Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.). Mais especificamente, analisamos um fragmento do fluxo narrativo do primeiro livro da história de Duna, romance de ficção científica de Frank Herbert, que ganhou notoriedade por apresentar um protagonista que é um revolucionário messiânico de apenas 15 anos. Seu nome é Paul Atreides,3 3 Críticas ao livro que tem Paul Atreides como “messias” se direcionam ao seu caráter de white savior (salvador branco). Na França o fenômeno é chamado de complexe du sauveur blanc - e não sem razão. Há muitos outros com esse mesmo perfil, principalmente no cinema, como Neo do filme Matrix e outros na mesma linha de homens brancos, héteros, cis e jovens. ora apresentado (pela teoria dos PDV) como enunciador modal (expressão não dita), ora como enunciador locutor (expressão dita, ou l2/e2).

1 O personagem, a ação e o PDV

Sem buscar descrever minuciosamente as características do revolucionário Paul, para fins de análise do ponto de vista na narrativa de Duna, devemos descrever uma das suas aptidões, ou melhor, sua hipersensibilidade. Em outras palavras, Paul foi criado por sua mãe, bruxa de uma seita intergaláctica que lhe ensinou a “hiperacuidade”4 4 Na verdade a “hiperacuidade” ou “hiperpercepção” decorre de uma combinação milenar de encontros genéticos. Contudo, é sua mãe quem o ensina a controlar essas aptidões. (Herbert, 2017HERBERT, Frank. Duna. Tradução de Maria do Carmo Zanini. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2017., p. 253). Assim, Paul é um personagem que revela características além da sensibilidade vista nos personagens “normais” da diegese, por questões pragmáticas inseridas em sua caracterização na narrativa. Paul “sente” coisas que não compreende. Esse traço é consideravelmente importante para a análise dos PDV em Duna, no caso de Paul. Com isso, aceitamos que traços psicológicos de personagens podem referendar seu posicionamento na narrativa - principalmente na fc - de forma a compor sua visão frente ao desenvolvimento da diegese. Isso não afasta, contudo, a importância de outro atributo da narrativa: a “ação” enunciativa desenvolvida no “enredo” (Candido, 2011CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. 12. ed. 2011. p. 51-80., p. 54) ou na “intriga” (Todorov, 2008TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução e prefácio de Leyla Perrone-Moisés. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 83-84). Essa ação se desenvolve com o uso dos verbos nocionais, mas também com os verbos sensoriais. O desenvolvimento da diegese depende da compreensão da ação na trama ficcional. Estamos inteiramente de acordo com Todorov, pois “não há personagens fora da ação, nem ação independente de personagens” (2019, p. 119). Isso implica que não há psicologismos, com a descrição detalhada das características dos personagens, sem a ação constituinte, geralmente exposta por um sequenciamento enunciativo da trama, que leva, inclusive, o personagem de um lugar a outro dentro da intriga da ficção científica. Esse “caminho” do personagem no texto pelo desenrolar de suas ações pode acontecer, não raramente, por coesão fórica. Na verdade, esse “vaivém” no enredo também se realiza pelas “percepções de mundo” que, em sua maioria, são demonstradas pelos verbos sensoriais e apontam para outro lugar no texto com finalidade semântica. No geral, as chamadas palavras fóricas “apontam para a recuperação da informação seja na situação seja no texto” (Neves, 1990NEVES, Maria Helena de Moura. Palavras fóricas: alguns pronomes e os artigos definidos. Alfa: Revista de Linguística, v. 34, São Paulo, p. 85-100, 1990. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/issue/view/289/36 . Acesso em: 11 de fev. 2023.
https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/i...
, p. 87). Isso acontece por meio de dois movimentos, chamados anafóricos (quando em retrospectiva) ou catafóricos (quando em prospectiva). Isto é, a coesão fórica recupera uma informação para compor a orientação semântica da intriga da narrativa e, no nosso caso, da ficção científica. Mais à frente veremos que essa recuperação de informação na literatura de fc, na verdade, pode promover o aperfeiçoamento do ponto de vista de um enunciador modal.

2 Narrador vs. Narrativa

Antes de falarmos de Duna, especificamente, devemos discorrer sobre o debate impactante na narratologia, que é a possível influência do narrador sobre sua narrativa.

O interesse pela narrativa ganhou dimensões importantes na metade do século XX. Antes disso, os formalistas russos, por volta de 1920, desenvolveram fecundos trabalhos sobre a natureza dessa forma textual (Todorov, 2008TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução e prefácio de Leyla Perrone-Moisés. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.). No entanto, a partir de uma orientação francesa, principalmente, a narratologia dividiu-se entre o estruturalismo e o pós-estruturalismo (Dosse, 1993DOSSE, François. A história do estruturalismo: o campo do signo - 1945 /1966. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1993.). Isso quer dizer que a diegese foi tratada ora como estrutura de elementos objetivos, ora como acontecimentos enunciativos na narração. Em outras palavras, de um lado a narratologia dedicou-se a privilegiar a estrutura objetiva da diegese (Todorov, 2008TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução e prefácio de Leyla Perrone-Moisés. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.; Greimas, 2014GREIMAS, Algirdas Julius. Sobre o sentido II: ensaios semióticos. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz e prefácio de Diana Luz Pessoa de Barros. São Paulo: EDUSP, 2014.) e, de outro, a analisar as visões dos investimentos subjetivos dos narradores (Genette, 2015aGENETTE, Gérard. Figuras 2. Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2015a. e 2015bGENETTE, Gerard. Figuras 3. Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2015b.; Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.). Mesmo assim, as diferentes abordagens sobre narrativas partiram de um debate em comum: a relação do texto da narrativa com o discurso de quem narra. Nesse sentido, o que se busca com esses diferentes estudos é enfatizar que a narrativa conta uma história evitando, aqui e ali, as “intrusões do autor” (Blin citado por Genette, 2015aGENETTE, Gérard. Figuras 2. Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2015a., p. 69). Claro, tais estudos sempre indicam um olhar tradicional sobre as “invisíveis”5 5 É a “personalidade poética” de Todorov, isto é, “um eu invisível a maior parte do tempo, que se refere ao narrador” (2019, p. 61). investidas do narrador no relato objetivo que se quer contar, seja por meio de uma história factual ou de uma ficção imaginada. No entanto, já se sabe que a literatura contemporânea desafia o olhar tradicional de desaparecimento do “autor”. O caso da ficção científica, evidentemente, não é dessemelhante. Nela, também parece que a narrativa fala por si mesma, sem um narrador. Se seguirmos de forma inequívoca pelo caminho da teoria da enunciação, de fato, não há mais narrador. Essas são as conclusões de Benveniste sobre os verbos em francês: a pessoa deixa de existir uma vez que o tempo do acontecimento passado tem o objetivo de pôr a pessoa do narrador fora da enunciação narrativa:

Na verdade, não há mais, então, nem mesmo narrador. Os acontecimentos são apresentados como se produziram, à medida que aparecem no horizonte da história. Ninguém fala aqui: os acontecimentos parecem narrar-se a si mesmos (1976, p. 267).

Essa compreensão da enunciação põe de um lado a narrativa (ou história) e de outro o discurso, ou seja, em uma ponta a objetividade, e na outra a subjetividade. Linguisticamente, isso significa que o abismo aprofundado entre a subjetividade do discurso e a objetividade da narrativa, de alguma forma, se encontra na impessoalidade ou pessoalidade da enunciação:

(...) é “subjetivo” o discurso em que se marca, explicitamente ou não, a presença de (ou a referência a) “eu”, mas esse “eu” não se define como pessoa que mantém esse discurso (...). Inversamente, a objetividade da narrativa define-se pela ausência de qualquer referência ao narrador (GENETTE, 2015aGENETTE, Gérard. Figuras 2. Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2015a., p. 65-66)

Na sequência, linguistas e críticos literários começaram a contestar esse caráter “não subjetivo” da narrativa e começam a se interessar pelas “pistas” do locutor-narrador ou, ao menos, pela contestação do caráter objetivo e inequívoco da narrativa. É por isso que Genette, após detalhada discussão sobre as fronteiras da narrativa, afirma:

O discurso pode “contar” sem deixar de ser discurso; a narrativa não pode discorrer sem sair de si mesma. Mas ela também não pode se abster sem cair na aridez e na indigência, e é por isso que a narrativa, por assim dizer, não existe em nenhum lugar em sua forma rigorosa (2015a, p. 69)

Isso implica afirmar que, se não há lugar algum em que a narrativa esteja em sua forma rigorosamente objetiva, então há indícios que a narrativa traga “intrusões do autor”, isto é, subjetividades do discurso de quem narra. Quem narra participa da narrativa em alguma medida. De forma enunciativa, contudo, adotando a impessoalidade da terceira pessoa, a narrativa permanecerá com a impressão de que “os acontecimentos parecem narrar-se a si mesmos” (Benveniste, 1976BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Tradução de Maria da Glória Novak e Luiza Neri e revisão do prof. Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Nacional - Universidade de São Paulo, 1976., p. 267).

3 Noções básicas da teoria interacionista dos PDV

Antes de apresentar uma análise do discurso narrativo da ficção científica de Duna, dizemos que a articulação das noções básicas da teoria dos PDV se fará somente por apresentação rápida de algumas dessas noções e notações (Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.) para atender às necessidades deste artigo. Depois, essas noções e notações são operadas em fragmentos do texto. Não é o objetivo aqui exaurir essas noções, que são de extenso debate dentro da teoria; apenas aquilo que interessa para a análise proposta. Esta apresentação tem cunho didático; esta seção, dentro deste artigo, pode ser pulada a qualquer momento pelo leitor competente a quem não interessam demonstrações básicas. Todavia, a leitura poderá ser esclarecedora acerca de alguns pontos da análise interacionista dos pontos de vista (PDV):

Quadro 1
Noções e notações básicas de análise. Fonte: elaborado pelo autor com base em Rabatel, na obra Homo narrans (2016).

4 O desafio de identificar o “PDV” e a “RE” na narrativa escrita

Um dos maiores desafios em uma análise dialógica da narrativa é a identificação do ponto de vista (PDV) e de quem ele é. Uma coisa é o PDV; outra é saber a quem ele pertence, ou, especificamente, de quem é a responsabilidade enunciativa do PDV (Ducrot, 2020DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Tradução de Eduardo Guimarães. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2020.; Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.). Isso quer dizer que o PDV revelado pelas falas dos personagens (por meio dos verbos dicendi ou sentiendi) ou pela percepção que estes manifestam na trama (mesmo sem verbos explicitamente locutórios) flutua na narrativa a ponto de existir (por que não?) um mesmo PDV para diferentes instâncias enunciativas. Basta que um e outro partilhem do mesmo “conteúdo proposicional” (Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., p. 59) e assim, haveria hipoteticamente um PDV para dois enunciadores, por exemplo. Contudo, o mais importante desse debate está na identificação do PDV - de quem é a responsabilidade (RE) desse mesmo PDV e, como uma cereja de bolo, como acontece a imputação de RE de uma instância enunciativa a outra. É a síntese de uma análise dialógica, ou, pelo menos, da análise que faremos aqui:

  1. identificar o PDV;

  2. identificar quem carrega a responsabilidade do PDV; e

  3. como lhe é imputado esse PDV.

Na teoria narratológica dos PDV - em especial pela contribuição da teoria interacionista dos PDV de Rabatel - o item (a) acontece quando percebemos o “centro de perspectiva” (2016, p. 87) como “fonte enunciativa” (2016, p. 84), ainda que sua forma não seja locutória. Já (b) diz respeito à própria instância que administra, ou melhor, hierarquiza os PDV e as responsabilidades em uma narrativa. Quem é o responsável? É responsável integramente pelo que diz aquele que diz o que diz, ou seja:

Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., p. 91)

(

Contudo, também é responsável pelo que diz aquele que diz, porque o narrador está dizendo que ele diz, ou seja:

Neste último caso, temos uma responsabilidade limitada e, no primeiro caso, uma responsabilidade integral (Rabatel, p. 91-92). Já a imputação do item (c) é um deslizamento do PDV de uma instância enunciativa a outra. Esse movimento também acontece na responsabilidade por cada PDV, isto é, não só acontece o deslocamento do PDV, mas também de quem toma ou transfere a responsabilidade pelo mesmo PDV. Nesse último caso de responsabilidade por imputação - também chamado de responsabilidade limitada -, o Locutor Primeiro (aquele que escreveu “Ele diz que X”) imputou o PDV ao “Ele”; mesmo que saibamos que quem disse foi o Locutor Primeiro, é a “Ele” que o Locutor Primeiro atribui responsabilidade de dizer o que, em tese, já havia dito. Esse debate é tão sério que imputar uma responsabilidade enunciativa pode e deve gerar responsabilidades jurídicas. Basta trocarmos “X” por um exemplo espúrio, como “você é macaco”. Nesse caso teremos um “Ele” que teve o PDV racista imputado e cuja responsabilidade enunciativa gerará efeitos penais e jurídicos de uma aberrante injúria, a bem dizer, totalmente adoxal, vergonhosa e infame6 6 Os aspectos enunciativos dos discursos adoxais (discursos “vergonhosos”) foram debatidos no livro Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis (Emediato, 2023). Ressaltamos essa obra pelo aspecto pragmático-enunciativo das análises dialógicas do discurso, tal como faremos aqui. (Emediato, 2023EMEDIATO, Wander (org.). Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis. Campinas: Pontes, 2023.).

Por fim, em (c), um PDV pode ser deslocado de uma instância a outra sem que exista um verbo locutório, isto é, um verbo dicendi ou sentiendi, como no caso de ambos os exemplos do verbo “dizer” no presente do indicativo (“Eu digo...” e “Ele diz...”). Via de regra, a responsabilidade enunciativa só pode existir se expressada pelo dito (Ducrot, 2020DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Tradução de Eduardo Guimarães. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2020.). Isso significa que somente com verbos locutórios, ou qualquer grafia que faça as vezes da locução polifônica - como incisas, aspas, travessão, itálicos etc. -, pode-se determinar responsabilidade. Outra forma de afirmar sobre a natureza da responsabilidade enunciativa é que ela só pode ser imputada de um locutor a outro. Portanto, somente ocorre por meio do discurso expressamente dito, escrito ou falado, isto é, um discurso narrado e relatado de uma instância enunciativa que diz1 (Locutor Primeiro) para outra que diz2 (locutor segundo). Isso significa que enunciadores modais - que nada dizem - podem ser responsabilizados enunciativamente? Claro que sim! Existem formas de deslizar os PDV para atribuir o que chamamos de quase-RE, isto é, uma responsabilidade quase enunciativa7 7 Preferimos “responsabilidade quase enunciativa” a “quase responsabilidade enunciativa”, porque entendemos que existe uma imputação de responsabilidade. Ela só não é essencialmente enunciativa. Mantivemos, contudo, a abreviatura convencional construída por Rabatel (2016, passim). (Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.). Isso acontece quando se atribui um PDV sem o uso de verbo dicendi ou locução expressa. É o caso daquele que diz ou escreve (Locutor Primeiro) para atribuir uma ação a outro que não está dizendo, mas supostamente sentindo e sem nada a dizer, isto é:

Neste caso em especial, aquele que diz “Ele ama X” é o locutor-narrador, e não é o locutor-narrador quem ama. Ele imputa esse PDV sentimental ao “Ele”, mas “Ele” não disse que amava - quem disse foi o locutor-narrador. Ou seja: o locutor-narrador imputou ao “Ele” a responsabilidade sentimental de amar “X”. Como essa imputação não é uma “responsabilidade enunciativa” em seu aspecto exclusivamente locutório, então dizemos que lhe foi imputada uma quase-RE, ou uma responsabilidade quase enunciativa. De mais a mais, interessa mesmo é saber que tanto o PDV quanto a RE, ou a quase-RE, são imputadas, geralmente, para atender aos interesses do gestor dialógico da narrativa, isto é, o locutor-narrador.

5 O PDV dentro da narrativa

O desenvolvimento da abordagem enunciativa na narratologia revelou que apenas a detecção do texto como impessoal (pelo pronome “ela” ou “ele”, por exemplo) ou como pessoal (pelo pronome “eu”) não é suficiente para revelar múltiplas “visões” que os próprios personagens desenvolvem dentro da intriga. A partir da década de 1970, essas “visões” passaram a se chamar “pontos de vista” (PDV), mais especificamente. Trazendo as contribuições de análises do cinema (narrativa audiovisual), o PDV é:

(...) a perspectiva óptica de um personagem cujo olhar ou visão domina uma sequência, ou, em seu sentido mais amplo, a perspectiva visão geral do narrador em relação aos personagens e aos acontecimentos do mundo fictício8 8 Na versão em espanhol... “(...) la perspectiva óptica de un personaje cuya mirada o visión domina una secuencia, o, en su sentido más amplio, la perspectiva general del narrador hacia los personajes y los hechos del mundo ficcional” (Tradução do autor). (Stam; Burgoyne, 1992, p. 106).

Podemos aceitar as diferentes “visões” retiradas de dentro da própria diegese como “perspectivas ópticas” ou, ainda, da relação dessas visões (ou PDV) com o próprio leitor ou espectador. A “visão” do narrador-diretor (ou PDV do Locutor) pode se diferenciar da “visão” dos personagens (ou PDV dos enunciadores) e, por sua vez, se diferenciar do efeito quase incalculável da “visão” final do intérprete (PDV do leitor-espectador). Linguisticamente falando, o PDV1 do locutor-narrador pode ser antiorientado ao PDV2 do enunciador e, além disso, sugerir leitura diversa no PDV3 do “protoenunciador” ou do “enunciador prototípico”, que é o modelo de leitor-espectador-idealizado da fc (Rabatel, 2013RABATEL, Alain. O papel do enunciador na construção interacional dos pontos de vista. In: EMEDIATO, Wander (org). A construção da opinião da mídia. Tradução e prefácio de Wander Emediato. Belo Horizonte: Editora Fale/UFMG, NAD, 2013. p. 19-66., p. 54). Ou seja, na narrativa o PDV1 pode não coincidir com o PDV2 e, por sua vez, também não coincidir com o PDV3 (como quando o leitor não capta uma ironia, por exemplo). No sentido exclusivamente enunciativo, o PDV3 é imputado ao leitor “mágico” dessa trama, pois ele abre as “vias de acesso aos textos” (RabateL, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., p. 45) que se multiplicam a cada performance dos personagens, cada um ao seu modo e em cada momento distinto no fluxo da narrativa. Melhor dizendo, o leitor:

(...) estando, ao mesmo tempo, dentro e fora, com todos os personagens cujos PDV é capaz de reconstruir, e por sobre eles, por sua mobilidade, o que lhe permite, assim, recuperar sentido, a partir do interior da obra, e articular a intentio operis com a intentio auctoris, relacionando-as com as preocupações de seu hic e nunc (Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., p. 45-46).

O leitor articula as intenções da narrativa (intentio operis) e as intenções do narrador (intentio auctoris) quando abre acesso aos pontos de vista (PDV) de diferentes personagens que, a cada manifestação enunciativa, revelam-se centros de subjetividade modal ou dêitica. O PDV é, dentre outras definições, o “olhar” por esse centro de perspectiva com autonomia subjetiva, inclusive, de personagens e leitores da diegese. Os pontos de vista, portanto, manifestam-se nas mais diferentes instâncias enunciativas.

6 Fragmento de Duna

Duna é uma narrativa heterodiegética9 9 De acordo com Genette, a narrativa pode ser homodiegética, heterodiegética, intradiegética, extradiegética, autodiegética e metadiegética. O estudo narratológico de Genette foi fundamental para o entendimento da participação ou não do narrador na própria diegese (2015a; 2015b). , ou seja, o narrador não participa da narrativa, a exemplo do clássico estudo da enunciação proposta por Benveniste (1976)BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Tradução de Maria da Glória Novak e Luiza Neri e revisão do prof. Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Nacional - Universidade de São Paulo, 1976.. Nesse sentido, Duna é uma diegese cuja relação entre Locutor e narrativa é a do distanciamento do narrador por seu efeito de objetividade e apagamento enunciativo.

Sobre a cena do trecho selecionado para a análise: ela descreve o momento em que Paul e sua família (junto ao séquito do duque Leto, seu pai) se preparam para deixar Caladan (planeta natal da casa Atreides) em direção a Duna (planeta feudo cedido pelo Imperador). Os preparativos e mudanças já estão em fase final para sair do planeta de origem. Alguns objetos ainda estão na sala de treinamento de Paul. Nessa sala, Paul recebe ensinamentos militares de Thufir Hawat (velho “Mentat”, conselheiro conhecido como “mestre dos assassinos”). A cena se dará entre Paul e Thufir. Paul já está na sala.

Figura 1
Corpus de análise da narrativa de Duna.

Antes de continuar, é aconselhável uma segunda leitura do trecho selecionado para capturar com mais aderência a configuração do texto, agora sabendo que a narrativa de Duna, quando põe o enunciado em itálico, expressa o pensamento do personagem. Veremos adiante que isso é mais do que uma questão de estilo.

Para fins de análise dividiremos essa cena em três fragmentos, definidos no quadro 2.

Quadro 2
Corpus dividido em três fragmentos

Nos fragmentos 1 e 2 identificamos 3 (três) instâncias enunciativas, a saber:

  • O narrador (L1/E1) - Locutor Primeiro (locutor-narrador) heterodiegético da narrativa e gestor dialógico dos PDV;

  • “Thufir Hawat” (e2) - enunciador segundo Thufir Hawat;

  • “o garoto”, Paul (e3) - enunciador terceiro com hipersensibilidade, Paul Atreides.

Essa primeira passagem de cena - inicialmente pela leitura do fragmento 1 - deve ser analisada considerando essas 3 (três) instâncias enunciativas, pois elas podem revelar de quem é a responsabilidade enunciativa (RE) de um PDV bastante opaco na sua identificação, isto é, do PDV enunciativo de “entrou de mansinho” e “suavemente”10 10 Este documento possui uma errata: http://dx.doi.org/10.1590/2176-4573p64318. em uma ação descrita como, ao primeiro olhar, simplesmente cuidadosa de Thufir, por advérbios de modo. São três as hipóteses possíveis de RE para o PDV cuja identificação é inicial e aparentemente mera descrição da ação de Thufir pelo modo como ele o faz:

Quadro 3
Hipóteses de RE e PDV

Cada hipótese de responsabilidade enunciativa se direciona a cada instância: ou ao narrador (hipótese 1), ou a Hawat (hipótese 2), ou a Paul (hipótese 3).

No caso do PDV pelos advérbios mansinho e suavemente, temos três possibilidades de aferir “de quem é o PDV”, ou melhor, de quem é a responsabilidade enunciativa (RE) do que está narrado. Ou temos uma mera descrição do narrador, ou uma quase-RE de Thufir, ou temos uma quase-RE por hiperpercepção de Paul como “centro de perspectiva”. É a síntese: são três hipóteses possíveis para dizer de quem é a visão da entrada de mansinho:

  1. Ou essa visão é mera descrição verbo-adverbial de L1 (narrador), na hipótese 1;

  2. Ou essa visão é de Hawat, pois mansinho e suavemente definem o processo de entrada como uma quase-RE de e2, na hipótese 2;

  3. Ou essa visão é de Paul, pois mansinho e suavemente completam-se em sentido pela característica pragmática do personagem, isto é, ele “sente” o processo de entrada de Hawat, na hipótese 3.

O que se pode concluir é que esta última hipótese, que considera o “psicologismo” do personagem de Paul, não é uma análise estritamente enunciativa. De todo modo, isso só reforça a pergunta: afinal, de quem é o primeiro ponto de vista (PDV) da entrada sorrateira, de mansinho e suavemente, de Hawat?

Vejamos o enunciado onde novamente se encontra este PDV:

Ex.1 (fragmento 1):

Thufir Hawat entrou de mansinho na sala de treinamento do Castelo Caladan, fechou a porta suavemente.

Deixando, por ora, os advérbios aparentemente descritivos de lado, pensemos nos verbos. Fechou e entrou não são verbos locutórios explícitos (nem há sinais polifônicos), então só pode haver, caso haja, uma quase-RE heterodiegética. Não se trata de responsabilidade integral (como em Eu digo X); também não é RE limitada, porque não há locutores segundos. Resta-nos uma quase-RE, uma vez que o enunciador Thufir realiza a ação pelos verbos nocionais. Contudo, não existem verbos com expressão de sentimentos ou percepções sensoriais - aí está o problema! São verbos de ação e não de percepção, e isso mantém muito opaco o discernimento preciso de imputação do PDV, levando-nos a aproximar cada vez mais esse PDV à hipótese 1. Fomentando uma insatisfação com a aproximação do PDV desse fragmento ao RE do narrador, por “mera descrição da cena”, propõe-se um método extraenunciativo, ou seja, sugere-se acrescentar comentários perceptivos imputados aos enunciadores (e2 ou e3), já que não existem verbos com a função de mostrar de forma transparente os “estados de espírito” do enunciador. Vamos fazer a exemplo do que nos ensina Rabatel (2016)RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., ou seja:

Para a caracterização geral do fenômeno, é secundário saber se esse PDV imputado provém de uma fala, de um pensamento, de um ouvir dizer ou de uma inferência. Da mesma forma, se ele é imputado justamente ou não, de forma baseada em certeza ou hipotética. Por outro lado, esses dados importam de um ponto de vista pragmático (p. 93).

Tentemos incrementar esses comentários, em uma configuração hipotética, para avaliar sob o ponto de vista pragmático a quem poderia pertencer a ação de entrada na sala, construindo-se exemplos para sustentar as outras hipóteses (2 e 3). Estamos aqui tateando universos possíveis de construções enunciativas não existentes (dado que não foram escritas por L1). Entretanto, temos a consciência de que o ponto de vista pragmático, extraenunciativamente, poderá importar limites descritivos para a análise. Por outro lado, isso também pode demonstrar importante papel na configuração do PDV global, a exemplo da caracterização dos personagens:

Ex.1 hipotético (a.1):

Thufir Hawat entrou de mansinho na sala de treinamento do Castelo Caladan, fechou a porta suavemente. Essa era uma atitude pensada por ele (e2) no momento de entrar sorrateiramente OU;

Ex.1 hipotético (b.1):

Thufir Hawat entrou de mansinho na sala de treinamento do Castelo Caladan, fechou a porta suavemente. Essa era a impressão de Paul (e3).

No hipotético (a.1) e no hipotético (b.1), as percepções foram construídas para, respectivamente, corresponderem a Thufir e a Paul. Ou seja, em (a.1) o PDV seria de e2. Em (b.1), de e3. Contudo, ao aplicarmos a operação de incrementação de um comentário perceptivo de L1/E1 (do locutor-narrador), retiraríamos a heterodiegese característica da narrativa de Duna para incluir uma homodiegese, a qual lançaria o narrador na cena, o que desconfiguraria, por óbvio, a própria narrativa de Duna. O narrador, assim, se encontraria dentro da situação encenada com Paul e Hawat.

Ex.1 hipotético (c):

Thufir Hawat entrou de mansinho na sala de treinamento do Castelo Caladan, fechou a porta suavemente. Eu vi (L1), de fato, ele entrou sorrateiramente.

Com efeito, podemos aceitar que existe a possibilidade de esse PDV não pertencer a L1/E1. O narrador (L1/E1) parece - ao menos inicialmente - deslizar esse PDV. Se aceitarmos, por ora, que o PDV da entrada é dos personagens (enunciadores) e não do narrador (Locutor Primeiro), ainda teríamos outro grande desafio: a quem é deslizada essa quase-RE? Para Thufir (e2) ou para Paul (e3)?

Para responder com propriedade essa pergunta, precisamos entrar no que alguns estudos da narrativa indicam como PDV por referenciação (Cortez, 2004CORTEZ, Suzana L. Referenciação e construção do ponto de vista. Sínteses Revista dos Cursos de Pós-Graduação, Campinas, v. 9, p. 139-151, 2004. Disponível em: https://revistas.iel.unicamp.br/index.php/sinteses/article/view/6290. Acesso em: 14 de fevereiro de 2022.
https://revistas.iel.unicamp.br/index.ph...
). Antes, porém, devemos demonstrar que a sequência da cena (a sequência enunciativa da “intriga”) é um ponto de vista (PDV) representado e “existencial” de e2 Thufir:

Ex.2 (fragmento 1):

(...). Ficou parado ali um momento, sentindo-se velho, cansado e surrado pelas intempéries. Sua perna esquerda doía no ponto em que o haviam ferido uma vez, a serviço do Velho Duque.

Três gerações deles agora, pensou.

“Ficou parado ali”11 10 Fazemos, daqui adiante, uma análise enunciativa da tradução do livro “Dune” (Herbert, 2010) para o português. Isso significa muita coisa, porque são dois idiomas diferentes. No entanto, guardadas as proporções, defendemos que se pode analisar minuciosamente uma tradução por uma questão semântica e comparada, claro, sempre apontando as “reticências”. O verbo com a locução adverbial “entrou de mansinho” é a tradução de “slipped into”, o que seria com mais literalidade “escorregou para dentro”. Nesse caso, parece ser uma opção do tradutor a flutuação semântica do sintagma verbal (em inglês) para o sintagma adverbial (em português). Já o advérbio “suavemente” é a tradução de “softly”, este sim mais próximo do significado dicionarizado do português por causa da equivalente função que cumprem os sufixos “-mente” (português) e “-ly” (inglês). O que importa é que ambos especificam a maneira e dão modo à ação verbal. Por isso, reiteramos, é inteiramente possível a análise aqui proposta. define uma passagem, uma divisão de planos. Há um distanciamento que opõe o plano de L1-narrador face ao plano de e2-personagem. O “ali” do personagem na cena (naquele lugar diferente do “aqui” do narrador extracena), embora seja uma descrição de L1-narrador, é percebida por e2-personagem, ou melhor, é “ali” que o PDV do personagem Thufir manifesta sua percepção. É “ali”, em outro plano da diegese, distante do narrador, que e2 sente sua idade e o seu esgotamento (“sentindo-se velho, cansado e surrado”). Não se trata apenas de uma caracterização genérica do personagem, mas de um “estado de espírito” enunciativo movido pela “perna esquerda que doía”. Ou seja, após a descrição da entrada suavemente e de mansinho da primeira parte do fragmento 1, no ponto seguinte da narrativa, e2 saiu de uma ação sorrateira para uma sensação de cansaço, um sentido sofrimento físico no momento do encontro com Paul. Especificamente, se no início a identificação do “PDV da entrada” é opaca, na sequência o “PDV sentido” é do enunciador Thufir. Basta observarmos o verbo sensorial no reflexivo e emocional “sentindo-se”, que passa a um sensorial e físico “doía” no pretérito do imperfeito12 11 “Ficou parado ali” é a tradução de “He stood there a moment” (Herbert, 2010). Novamente, de forma comparada, respeitando os limites dos idiomas, “ali” e “there” cumprem a mesma função de divisor de planos enunciativos, defendido aqui entre o narrador e o personagem. . Os verbos sensoriais abrem acesso ao PDV do enunciador sobre seu ânimo, e isso indica na sequência que, se a entrada ainda gera dúvida sobre o PDV e sua possível imputação, depois fica claro que Thufir é um “centro de perspectiva” na sequência do fragmento 1 em razão da manifestação de um PDV sensorial.

Por fim, “Três gerações deles agora, pensou” demonstra a complexidade desse PDV, pois ele também pensa sobre as gerações dos Atreides em sua reflexão “existencial”. Como já dito, o itálico na narrativa de Duna corresponde à manifestação de pensamento dos personagens. Contudo, além de ser apenas um recurso estilístico, neste caso em particular o itálico demonstra um monólogo interior. Quando a instância enunciativa pensa (como no itálico em Duna), o PDV está explícito, todavia, está explícito ao leitor, pois o PDV do “pensamento” é interno ao enunciador. Os outros enunciadores - como Paul (e3) - não têm acesso a esse pensamento na narrativa13 12 Não existe esse tempo verbal em inglês. Reiteramos, contudo, que semanticamente o original “ached”, que foi traduzido como “doía”, tem o mesmo sentido de promover sensações existenciais no personagem por meio de uma ferida que o remete a reminiscências de outros tempos. Ou seja, continua sendo um verbo sensorial. . Thufir (e2) não diz o que pensa. Ele se move no recinto, sente as dores da memória e também pensa um PDV representado sem se expressar polifonicamente. Não há “mistura de vozes” nesse caso, e sim uma “mistura de espaços mentais” (Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., p. 64). Se há “vozes”, elas não saíram da cabeça de e2. Ou seja, ao mesmo tempo temos um PDV que sente, que pensa, que raciocina e que se sensibiliza, mas ele não é dito - e por isso não há um locutor segundo (l2/e2) e sim um enunciador dialógico (e2). O resultado é que não há RE limitada. Essa é a dimensão complexa do enunciador Thufir (e2) que expõe um monólogo interior em pleno exercício de autodialogismo.

Mais à frente, já no fragmento 2, o itálico não servirá como manifestação de reflexão “existencial”. Será um pensamento sobre o próprio treinamento do garoto, que parece ter se esquecido dos seus ensinamentos de combate.

Ex.: 3 (fragmento 2)

Olhou para o outro lado do recinto iluminado pela luz do meio-dia que, aos borbotões, atravessava as claraboias, e viu o menino sentado de costas para a porta, absorto em documentos e mapas espalhados sobre uma mesa.

Quantas vezes terei de dizer ao garoto para não se sentar de costas para a porta? Hawat limpou a garganta.

O PDV continua a ser uma percepção do enunciador Thufir por quase-RE. Porém, agora sabemos que o PDV é de Thufir, uma vez que os verbos permanecessem sensoriais (“olhou”, “viu”). Para e2 o menino está “absorto”, revelando que ele mesmo levanta hipóteses sobre o estado de ânimo do garoto. Ou seja, o próprio personagem Thufir, como enunciador, realiza a caracterização do outro personagem Paul. “Quantas vezes terei de dizer ao garoto para não se sentar de costas para a porta?” é uma autorreflexão, mas diferente da existencial: por meio de uma pergunta retórica, ele agora julga a forma como Paul fica disperso. Nesse monólogo interno Thufir se queixa da recorrente desatenção do prodígio. Percebemos isso por uma clara orientação dialógica de sentido. “Quantas vezes terei de dizer...” nos diz que Thufir já disse isso outras vezes. É novamente um autodialogismo, isto é, um pensamento interno, mas agora não mais uma reflexão existencial, e sim uma manifestação de certa irritabilidade.

Por fim, parece que o desafio inicial ainda não foi superado: de quem é o PDV da entrada de mansinho e suavemente? Para respondermos essa pergunta, precisamos recorrer à hipótese aqui defendida de aperfeiçoamento do PDV pelo processo de referenciação; teremos de falar sobre o PDV fórico.

7 A referenciação e os PDV

Muitos estudos da teoria dos PDV se dedicam à compreensão da expressão da subjetividade por meio da fonte de percepção enunciativa em apenas um enunciado. Isso evidencia a complexa busca pela identificação da responsabilidade de um PDV, às vezes, em registros unitários de discurso (Ducrot, 2020DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Tradução de Eduardo Guimarães. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2020.). No entanto, como sabemos, narrativas como as típicas de ficção científica são construídas com centenas ou milhares de enunciados ficcionais, com mobilização de muitos outros enunciadores. Os enunciadores são tratados, em muitos casos, como sinônimo de manifestação de percepções nos enunciados, mas estudos avançados dentro do quadro teórico já admitem que somente a percepção não resume os mecanismos de exposição dos PDV. Isto é:

Os mecanismos do PDV, genialmente identificados por Ducrot, vão além, legitimamente, do quadro dos relatos de percepção, apoiando-se na compreensão de um mecanismo enunciativo-referencial em ação por todo o lugar (Rabatel, 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., p. 66).

O tecido de uma narrativa é composto pela sequência enunciativa das ações dos personagens, mas também pela expressão perceptivo-sensorial das instâncias enunciativas. Contudo, muitos desses personagens são enunciadores que se comunicam por processos de referenciação e se tornam locutores quando dizem o que pensam em diferentes direções da narrativa - mas há aqueles que não dizem. Nesse caso, lhes são imputados uma atividade quase enunciativa em um processo de referenciação fórica, ou seja, assim como temos o mecanismo da percepção, temos também o mecanismo enunciativo-referencial para indicar um PDV, às vezes além do enunciado. Assim, o ponto de vista (PDV) pode não estar encerrado em um enunciado se quisermos observar o aperfeiçoamento semântico de um texto, ou melhor, a compreensão geral do seu sentido. Sendo assim, o PDV se manifestaria além da fronteira do referente (Cortez, 2004CORTEZ, Suzana L. Referenciação e construção do ponto de vista. Sínteses Revista dos Cursos de Pós-Graduação, Campinas, v. 9, p. 139-151, 2004. Disponível em: https://revistas.iel.unicamp.br/index.php/sinteses/article/view/6290. Acesso em: 14 de fevereiro de 2022.
https://revistas.iel.unicamp.br/index.ph...
). As palavras, ao se conectarem em um processo de textualização coerente (os nomes, os verbos, os pronomes, os advérbios etc.), produzem sentido dentro de um texto, a exemplo do que nos mostra a linguística textual. A esse fenômeno damos o nome de referenciação ou processo de referenciação, porque essa conexão semântica se faz sempre presente e está em permanente dinamismo. Há no processo de referenciação a viagem fórica do léxico de partida (ou referente) ao léxico de chegada (ou referido). O movimento de coesão da referenciação fórica pode ser prospectivo (catafórico) ou retrospectivo (anafórico), mas a referenciação é mais do que uma palavra que se refere a uma outra palavra - ou que se refere a um objeto inanimado do mundo. O processo de referenciação mobiliza o locutor do discurso para compor a coesão de sentido, tudo isso atravessado por questões interacionais, interlocutivas e intersubjetivas. Há uma dinâmica social na referenciação:

A questão da referenciação opera um deslocamento (...): ela não privilegia a relação entre palavras e coisas, mas a relação intersubjetiva e social dentro da qual versões do mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação aos propósitos práticos e em curso ações dos enunciadores (Mondada, 2001MONDADA, Lorenza. Gestion du topic et organisation de la conversation. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 41, Campinas/SP, p. 7-36, 2001. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636999. Acesso em: 9 ago. 2023.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 9).14 13 Paul, embora hipersensível, não é telepata, ao menos nesse ponto da narrativa.

De uma forma geral, a literatura já entende que ela se refere à própria ficção que narra e ela também já sabe que se refere aos objetos no mundo, mas também a sujeitos como o próprio leitor. É por isso que entramos na relação de objetos e sujeitos em plena produção de sentido no discurso literário. Isto é:

No discurso literário, como no discurso cotidiano, o sentido pode ser isolado de um conjunto de outros sentidos aos quais se poderia dar o nome de interpretações. Entretanto, o problema do sentido é aqui mais complexo: enquanto, na palavra, a integração das unidades não ultrapassa o nível da frase, em literatura, as frases se integram de novo em enunciados, e os enunciados, por sua vez, em unidades de dimensões maiores, até obras inteiras (Todorov, 2008TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução e prefácio de Leyla Perrone-Moisés. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 59).

Não é inadmissível observar - em uma heterodiegese - um PDV referente se completando em um enunciado referido. Como dito, as investigações sobre os PDV são às vezes encerradas em uma unidade mínima do discurso, isto é, levadas em consideração nos elementos linguísticos indicados por um único enunciado. Porém, em gêneros complexos como os romances de ficção científica, esses PDV podem ser expressos por processos “interenunciativos”, isto é, em coerências semânticas que viajam de um referente a um referido.

É nessa viagem que analisaremos o próximo fragmento 3, logo na sequência progressiva da narrativa em que há uma situação de diálogo construída pelo narrador (L1/E1). Isto é, para remeter à entrada de mansinho e suavemente de Hawat, e2 resolve atravessar a sala e, na sequência, ele escuta de Paul sua percepção:

Ex.3:

- Ouvi você chegar pelo corredor - disse Paul. - E ouvi você abrir a porta. (1ª)

- Os sons que produzo podem ser imitados. (2ª)

- Eu saberia a diferença. (3ª)

É bem possível, Hawat pensou.

A situação apresentada é dialogal entre Paul e Thufir Hawat. Há duas falas de Paul (a 1ª e a 3ª) e uma fala de Hawat (a 2ª). Isso significa que não são mais enunciadores modais (percepções não ditas), e sim enunciadores locutores (percepções ditas). O verbo locutório disse abre a Paul a perspectiva de fala sobre o seu ponto de vista (PDV). A responsabilidade enunciativa é limitada. Há imputação de PDV por verbum dicendi, ou seja, essa “abertura” polifônica é uma imputação de PDV do narrador a um locutor segundo (ou terceiro), significando - como já se sabe -uma RE por imputação. Nesse caso, não haveria sequer a necessidade de uma “abertura” por um verbo dicendi, uma vez que o travessão15 14 No original: “La question de la référenciation opère un glissement [...]: elle ne privilégie pas la relation entre les mots et les choses, mais la relation intersubjective et sociale au sein de laquelle des versions du monde sont publiquement élaborées, évaluées en termes d’adéquation aux finalités pratiques et aux actions en cours des énonciateurs” (Tradução do autor). é um sinal polifônico, isto é, indicador de diálogo por deslizamento de RE aos outros locutores. Com efeito, Hawat e Paul são locutores segundo e terceiro, respectivamente (l2/e2 e l3/e3), e seus enunciadores estão em consonância com seus devidos locutores, pois manifestam os pontos de vista (PDV) de cada instância enunciativa. Novamente temos três instâncias enunciativas. Contudo, nesse momento da diegese, são bastante diferentes:

  • O narrador (L1/E1) - locutor primeiro relator da narrativa e gestor dialógico;

  • Hawat (l2/e2) - locutor segundo em consonância com o enunciador segundo Thufir Hawat;

  • Paul (l3/e3) - locutor terceiro em consonância com o enunciador terceiro com hiperpercepção Paul Atreides.

Diferente dos exemplos dos fragmentos 1 e 2 - quando a relação era entre um locutor-narrador e dois enunciadores modais (Paul e Hawat) -, o fragmento 3 estabelece uma relação entre três locutores. Isto é: todos os três no fragmento 3 dizem e são responsabilizados pelo que dizem. Logo, afasta-se imediatamente a possibilidade de imputação por quase-RE, que é uma espécie de responsabilização não enunciativa. Enquanto nos fragmentos 1 e 2 temos um dialogismo por relação entre enunciadores modais, no fragmento 3 temos um dialogismo polifônico por relação entre locutores falantes.

Contudo, ainda falta o mais importante: nesse diálogo existem verbos ditos com expressão de percepções sensoriais! É o que se vê em ouvi e saberia. São justamente esses verbos que indicam a coesão do PDV dos enunciadores modais (fragmento 1) e dos enunciadores locutores (fragmento 3). São verbos referentes dos locutores (ouvi e saberia) que viajam aos advérbios referidos dos enunciadores (mansinho e suavemente) para recuperar a informação do PDV do protagonista na cena. Chegamos ao PDV hiperperceptivo do agora locutor Paul (fragmento 3) que inicialmente estava opaco no PDV do enunciador modo-adverbial Paul (fragmento 1). Todavia, a viagem por referenciação - de recuperação de informação - acontece do fragmento 3 ao fragmento 1 em retrospectiva. Vejamos:

Quadro 4
Viagem retrospectiva do PDV

Logo, tem-se um PDV anafórico, pois, na progressão da narrativa de Duna, o diálogo é póstumo à situação descritiva da entrada de mansinho, ou seja, é uma referenciação retroativa. Essa indicação de um PDV anafórico, contudo, parece carecer de legitimidade por, no mínimo, indicar uma dúvida: será que Paul de fato ouviu a entrada de mansinho? Ou apenas revelou isso para afrontar Thufir? Ou será que ele mentiu?

Essa dúvida não pode prosperar se entendermos que o PDV fórico aperfeiçoa a sua manifestação por meio da propriedade do personagem, ou seja, por suas características. É nesse sentido que Paul é importante na observação da sua descrição psicológica, moral e extraordinária. Ele é um garoto prodígio, criado para ser o novo messias intergaláctico. A construção da hipersensibilidade pela característica pragmática do protagonista se realiza na recuperação semântica da informação sobre as propriedades do personagem nos verbos e advérbios que o transformam em uma instância enunciativa que ouve sons do caminhar suavemente mais do que qualquer outra instância enunciativa poderia fazer. Além disso, não estamos sozinhos ao defender que esse PDV e essa RE são de Paul. O personagem Thufir Hawat também está inclinado a aceitar que Paul “sentiu” a entrada de mansinho ao deslizar essa percepção ao garoto, uma vez que Thufir (e2) manifesta a possibilidade no seu PDV exposto em “É bem possível”. O itálico demonstra que ele está claramente inclinado a acreditar na percepção de Paul porque julgou a possibilidade por uma modalidade adverbial. Nesse momento, sabemos que o próprio enunciador Thufir confessa a si mesmo não ter conseguido enganar Paul com passos sorrateiros. O enunciador Paul, então, pousa o PDV semântico nos referidos adverbiais do fragmento 1 com um olhar e uma visão que só ele poderia lançar. Thufir (e2) não só aceita como acredita nessa possibilidade. Isto é, Paul vai de um personagem caracterizado como hipersensível (e3) a um locutor dialógico hiperperceptivo (l3/e3). Trata-se de “superpoderes” explicados aqui de forma linguística: a soma do psicologismo do personagem mais o PDV anafórico dos referentes aos referidos. Em outras palavras, é um PDV construído pelo conjunto enunciativo da referenciação e pela caracterização pragmática do personagem na intriga de Duna. Os verbos sensoriais e os advérbios modais viajam semanticamente para compor o PDV fórico da diegese da fc. De fato, não deixa de ser um gênero “fantástico”, ou seja, não deixa de ser uma viagem.

Assim, defendemos a hipótese de que o aperfeiçoamento de um PDV, com difícil identificação inicial da sua responsabilidade (ou seja, de quem será o PDV), poderá ocorrer na narrativa de forma póstuma, fórica e semântica. Defendemos que a dúvida inicial em suspenso, quando ingressamos na análise do “centro de perspectiva” do enunciador revolucionário Paul Atreides, é superada quando o PDV sobrevoa interenunciativamente a diegese entre referidos e referentes. É dele o PDV da entrada de mansinho e suavemente após a recuperação da informação pelos verbos sensoriais. É dele essa visão por hiperpercepção do referente verbal ouvi aos referidos adverbiais de mansinho e suavemente. Em outras palavras, é um PDV panóptico pelas propriedades do personagem, porém aperfeiçoado enunciativamente pela viagem anafórica do PDV que começa pelos verbos sensoriais ditos (enunciador locutório) e terminam, em um movimento retrógrado, nos advérbios modais referidos (enunciador modal).

Considerações finais

A ficção científica é desprezada pelo círculo de acadêmicos, intelectuais e estudiosos da narrativa. Subestimada, ela é considerada literatura menor em meio às consagradas composições ficcionais do discurso literário. O seu lugar parece não merecer estudo nem da crítica literária, nem da linguística.

Contudo, a partir de uma amostra de um texto de ficção científica, procuramos demonstrar como ela é rica em possibilidades de análise enunciativa. A teoria dos PDV oferece importantes noções e notações que funcionam incisivamente na percepção dialógica (PDV de enunciadores) e polifônica (vozes de locutores) dos “centros de perspectiva”.

No caso especial de Duna, uma possibilidade se abre na teoria, pois os modalizadores que revelam sujeitos modais (como os advérbios) podem gerar dúvidas sobre a responsabilidade enunciativa. Ainda, é possível dizer que um PDV não é do narrador (não sendo mera descrição), havendo dois ou mais enunciadores em uma cena. Aliás, dizer que o PDV não é mera descrição do narrador desafia o senso comum sobre a quem pertence o PDV.

Como os romances de ficção científica constituem um gênero complexo, é necessária uma análise com abrangência semântica por meio da referenciação, para compreendermos seu processo de responsabilidade enunciativa. Afinal, os PDV não estão necessariamente presos à unidade mínima do discurso, isto é, no enunciado. Um PDV, pelo processo de referenciação, pode se aperfeiçoar semanticamente utilizando-se de léxicos referentes e referidos.

Em Duna, o revolucionário Paul detém hiperpercepção, razão pela qual os verbos referentes, de alto teor perceptível, podem viajar dentro da diegese para informar do PDV exatamente quando pousam nos léxicos referidos. Esse movimento de viagem pode ser para frente, em uma catáfora, ou para trás, em uma anáfora. É realmente fascinante como os sentidos prospectivos e retrospectivos do discurso da ficção científica podem nos levar a verdadeiras viagens interestelares pelo universo das palavras.

  • 1
    Nesse ponto, tratamos a ficção científica a partir do subgênero space opera. A simplificação é proposital para remeter o leitor a leituras mais detalhadas desse gênero textual (WestfahL, 2003WESTFAHL, Gary. Space Opera. In: JAMES, Edwaed; FARAH, Mendlesohn (eds). Science Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 197-208.).
  • 2
    Há quem recorra a Thomas Morus, com a publicação da famosa fantasia Utopia em 1516, para fundar o gênero, ou, ainda, quem vá a 1627, com a obra Nova Atlantis, para dizer que tudo começou em Francis Bacon. O que nos parece mais plausível é que a ciência e a narrativa ficcional se criaram por meio de uma interdiscursividade dialógica. Eleger um “pai fundador”, um “adão bíblico” (Bakhitin, 2006BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-306., p. 300) é um debate estéril e não dialógico.
  • 3
    Críticas ao livro que tem Paul Atreides como “messias” se direcionam ao seu caráter de white savior (salvador branco). Na França o fenômeno é chamado de complexe du sauveur blanc - e não sem razão. Há muitos outros com esse mesmo perfil, principalmente no cinema, como Neo do filme Matrix e outros na mesma linha de homens brancos, héteros, cis e jovens.
  • 4
    Na verdade a “hiperacuidade” ou “hiperpercepção” decorre de uma combinação milenar de encontros genéticos. Contudo, é sua mãe quem o ensina a controlar essas aptidões.
  • 5
    É a “personalidade poética” de Todorov, isto é, “um eu invisível a maior parte do tempo, que se refere ao narrador” (2019, p. 61).
  • 6
    Os aspectos enunciativos dos discursos adoxais (discursos “vergonhosos”) foram debatidos no livro Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis (Emediato, 2023EMEDIATO, Wander (org.). Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis. Campinas: Pontes, 2023.). Ressaltamos essa obra pelo aspecto pragmático-enunciativo das análises dialógicas do discurso, tal como faremos aqui.
  • 7
    Preferimos “responsabilidade quase enunciativa” a “quase responsabilidade enunciativa”, porque entendemos que existe uma imputação de responsabilidade. Ela só não é essencialmente enunciativa. Mantivemos, contudo, a abreviatura convencional construída por Rabatel (2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1., passim).
  • 8
    Na versão em espanhol... “(...) la perspectiva óptica de un personaje cuya mirada o visión domina una secuencia, o, en su sentido más amplio, la perspectiva general del narrador hacia los personajes y los hechos del mundo ficcional” (Tradução do autor).
  • 9
    De acordo com Genette, a narrativa pode ser homodiegética, heterodiegética, intradiegética, extradiegética, autodiegética e metadiegética. O estudo narratológico de Genette foi fundamental para o entendimento da participação ou não do narrador na própria diegese (2015a; 2015b).
  • 10
    Este documento possui uma errata: http://dx.doi.org/10.1590/2176-4573p64318.
  • 10
    Fazemos, daqui adiante, uma análise enunciativa da tradução do livro “Dune” (Herbert, 2010HERBERT, Frank. Dune. London: A Gollancz eBook, 2010.) para o português. Isso significa muita coisa, porque são dois idiomas diferentes. No entanto, guardadas as proporções, defendemos que se pode analisar minuciosamente uma tradução por uma questão semântica e comparada, claro, sempre apontando as “reticências”. O verbo com a locução adverbial “entrou de mansinho” é a tradução de “slipped into”, o que seria com mais literalidade “escorregou para dentro”. Nesse caso, parece ser uma opção do tradutor a flutuação semântica do sintagma verbal (em inglês) para o sintagma adverbial (em português). Já o advérbio “suavemente” é a tradução de “softly”, este sim mais próximo do significado dicionarizado do português por causa da equivalente função que cumprem os sufixos “-mente” (português) e “-ly” (inglês). O que importa é que ambos especificam a maneira e dão modo à ação verbal. Por isso, reiteramos, é inteiramente possível a análise aqui proposta.
  • 11
    “Ficou parado ali” é a tradução de “He stood there a moment” (Herbert, 2010HERBERT, Frank. Dune. London: A Gollancz eBook, 2010.). Novamente, de forma comparada, respeitando os limites dos idiomas, “ali” e “there” cumprem a mesma função de divisor de planos enunciativos, defendido aqui entre o narrador e o personagem.
  • 12
    Não existe esse tempo verbal em inglês. Reiteramos, contudo, que semanticamente o original “ached”, que foi traduzido como “doía”, tem o mesmo sentido de promover sensações existenciais no personagem por meio de uma ferida que o remete a reminiscências de outros tempos. Ou seja, continua sendo um verbo sensorial.
  • 13
    Paul, embora hipersensível, não é telepata, ao menos nesse ponto da narrativa.
  • 14
    No original: “La question de la référenciation opère un glissement [...]: elle ne privilégie pas la relation entre les mots et les choses, mais la relation intersubjective et sociale au sein de laquelle des versions du monde sont publiquement élaborées, évaluées en termes d’adéquation aux finalités pratiques et aux actions en cours des énonciateurs” (Tradução do autor).
  • 15
    Originalmente, no texto em inglês, encontramos o diálogo com aspas e não por travessão. Não há qualquer alteração no sentido, pois ambos são sinais de polifonia explícita e dialogal.

REFERÊNCIAS

  • ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. Traduzido por Júlia Elisabeth Levy. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 169-214.
  • ANDREWS, Stephen E.; RENNISON, Nick. 100 Must-Read Science Fiction Novels Londres: A & C Black Publishers Limited, 2006.
  • BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-306.
  • BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral Tradução de Maria da Glória Novak e Luiza Neri e revisão do prof. Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Nacional - Universidade de São Paulo, 1976.
  • CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção São Paulo: Perspectiva. 12. ed. 2011. p. 51-80.
  • CORTEZ, Suzana L. Referenciação e construção do ponto de vista. Sínteses Revista dos Cursos de Pós-Graduação, Campinas, v. 9, p. 139-151, 2004. Disponível em: https://revistas.iel.unicamp.br/index.php/sinteses/article/view/6290 Acesso em: 14 de fevereiro de 2022.
    » https://revistas.iel.unicamp.br/index.php/sinteses/article/view/6290
  • DOSSE, François. A história do estruturalismo: o campo do signo - 1945 /1966. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1993.
  • DUCROT, Oswald. O dizer e o dito Tradução de Eduardo Guimarães. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2020.
  • EMEDIATO, Wander (org.). Interações polêmicas e violência verbal em temas sociais sensíveis Campinas: Pontes, 2023.
  • GENETTE, Gérard. Figuras 2 Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2015a.
  • GENETTE, Gerard. Figuras 3 Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2015b.
  • GREIMAS, Algirdas Julius. Sobre o sentido II: ensaios semióticos. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz e prefácio de Diana Luz Pessoa de Barros. São Paulo: EDUSP, 2014.
  • HERBERT, Frank. Duna Tradução de Maria do Carmo Zanini. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2017.
  • HERBERT, Frank. Dune London: A Gollancz eBook, 2010.
  • MONDADA, Lorenza. Gestion du topic et organisation de la conversation. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 41, Campinas/SP, p. 7-36, 2001. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636999 Acesso em: 9 ago. 2023.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636999
  • NEVES, Maria Helena de Moura. Palavras fóricas: alguns pronomes e os artigos definidos. Alfa: Revista de Linguística, v. 34, São Paulo, p. 85-100, 1990. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/issue/view/289/36 . Acesso em: 11 de fev. 2023.
    » https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/issue/view/289/36
  • RABATEL, Alain. O papel do enunciador na construção interacional dos pontos de vista. In: EMEDIATO, Wander (org). A construção da opinião da mídia Tradução e prefácio de Wander Emediato. Belo Horizonte: Editora Fale/UFMG, NAD, 2013. p. 19-66.
  • RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.
  • ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção 12. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 09-49.
  • STAM, Robert; BURGOYNE, Robert; FLITTERMAN-LEWIS, Sandy. New Vocabularies in Film Semiotics: Structuralism, Post-structuralism, and Beyond. London and New York. Taylor & Francis e-Library, 2005.
  • STAM, Robert; BURGOYNE, Robert; FLITTERMAN-LEWIS, Sandy. Nuevos conceptos de la teoria del cine Barcelona: Paidós, 1992.
  • TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas Tradução e prefácio de Leyla Perrone-Moisés. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
  • WESTFAHL, Gary. Space Opera. In: JAMES, Edwaed; FARAH, Mendlesohn (eds). Science Fiction Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 197-208.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O artigo intitulado “A Ficção Científica, o Enunciador Hiperperceptivo e a Viagem do Ponto De Vista Referencial” submetido à Revista Bakhtiniana, ao refletir enunciativamente sobre narrativas de ficção científica, a partir, especialmente, dos trabalhos de Alain Rabatel (2013RABATEL, Alain. O papel do enunciador na construção interacional dos pontos de vista. In: EMEDIATO, Wander (org). A construção da opinião da mídia. Tradução e prefácio de Wander Emediato. Belo Horizonte: Editora Fale/UFMG, NAD, 2013. p. 19-66. e 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.), traz, por um lado, uma contribuição pertinente para os estudos discursivos praticados no Brasil, notadamente, para os que se detêm sobre fenômenos enunciativos e, por outro, para os estudos literários. Não se trata de uma apologia gratuita aos estudos sobre ficção científica, mas de uma espécie de "puxão de orelhas" para que os/as estudiosos/as do discurso e da literatura prestem mais atenção nesse tipo de gênero literário, que impõe ao discurso, enquanto objeto teórico-analítico, questões muito relevantes. Embora o artigo não engendre nem um gesto teórico inovador em relação ao que foi perscrutado alhures por Rabatel acerca da teoria dos Pontos de Vista - alicerce epistemológico do estudo - ele coloca alguns problemas teóricos para essa teoria. O/a autor/a não propõe soluções para esses problemas, mas nem era esse o objetivo primordial do trabalho perquirido. Seu intento foi dar visibilidade a esses problemas para tratamentos futuros. Para a publicação, o/a autor/a deverá fazer uma criteriosa revisão de linguagem, pois ao longo do texto é possível detectar a presença de inúmeros problemas das mais diversas naturezas: concordância, digitação, coesão... Esses problemas comprometem a leitura do texto. O resumo é uma espécie de síntese condensada desses problemas, que dormem escondidos não somente nos cantos do texto, mas, no texto em questão, em todo o trabalho. Sugiro também que o/a autor/a mude a ordem do item “5) Noções básicas da teoria interacionista dos PDV” para o lugar do item “3) O PDV dentro da narrativa”, pois da forma como está disposto no artigo, me parece um pouco deslocado o que poderá confundir o/a leitor/a. CORREÇÕES OBRIGATÓRIAS [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    26 Jun 2023

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O texto do artigo “A Ficção científica, o enunciador hiperperceptivo e a viagem do ponto de vista referencial” adéqua-se ao tema proposto pelo autor. Os objetivos traçados são plenamente atingidos no decorrer do trabalho. O autor demonstra conhecimento do tema proposto, e a abordagem dos PDV encontra-se fundamentada em autores de referência como Rabatel (2013RABATEL, Alain. O papel do enunciador na construção interacional dos pontos de vista. In: EMEDIATO, Wander (org). A construção da opinião da mídia. Tradução e prefácio de Wander Emediato. Belo Horizonte: Editora Fale/UFMG, NAD, 2013. p. 19-66., 2016RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa. Pontos de vista e lógica da narração: teoria e análise. Tradução e prefácio de Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v. 1.) e Cortez (2004)CORTEZ, Suzana L. Referenciação e construção do ponto de vista. Sínteses Revista dos Cursos de Pós-Graduação, Campinas, v. 9, p. 139-151, 2004. Disponível em: https://revistas.iel.unicamp.br/index.php/sinteses/article/view/6290. Acesso em: 14 de fevereiro de 2022.
https://revistas.iel.unicamp.br/index.ph...
. As análises são precisas e detalhadas com o rigor que se espera encontrar em um trabalho científico. O trabalho, ao certo, trará contribuições para o campo do conhecimento dos estudos do texto e do discurso. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    27 Jun 2023

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer III

Considerando o estado atual das teorias textuais e semânticas, não há a rigor referente, mas antes um processo de referenciação. É vital aproveitar esse pressuposto no texto em vez de falar de possibilidade. Nesse sentido, não faz sentido dizer “Quando nomes, verbos, pronomes e advérbios se conectam coerentemente para a produção de sentido, dentro de um texto - a exemplo do que nos mostra a linguística textual -, damos a este fenômeno o nome de referenciação”, porque a teoria de Mondada, por exemplo, e outras, dizem que eles sempre se conectam. Cabe assim alterar essa parte e mudar o título, inclusive, substituindo tudo que diz “referência”, como algo estático, para “referenciação” ou “processo de referenciação”, dinâmicos. Consultar o texto anotado. APROVADO COM RESTRIÇÕES [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    13 Jul 2023

Parecer editorial

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer editorial

Considerando os pareceres acima, solicitamos que o autor atenda às solicitações dos pareceristas e reenvie o artigo para a revista até 31/07/2023. Informamos ainda que existe a possibilidade de interação com os pareceristas no site da revista.

Interação pareceristas e autor

Prezado professor Dr. Roberto Leiser Baronas,

Muito obrigado pelas considerações sobre o artigo. Farei as correções obrigatórias, a título de exemplo, a permuta, no texto, entre as seções 3 e 5.

Stener Carvalho Fernandes Barbosa

Prezada professora Dra. Maria de Fátima Silva dos Santos,

Muito obrigado pelas considerações que levaram à aprovação. E sim, tomara que contribua para o debate sobre a teoria interacionista dos PDV. Particularmente minha pesquisa recai sobre corpus institucionais e de temas sociais sensíveis, como projetos de lei polêmicos (aborto, sexualidade, escola sem partido, etc). Ou seja, não se relaciona com o texto de ficção científica. Mas este artigo sobre ficção científica me ajudou a desenvolver um olhar sobre a teoria e sua aplicabilidade. Além, é claro, de expor a minha admiração por esse gênero do discurso literário.

Stener Carvalho Fernandes Barbosa

Prezado professor Dr. Adail Ubirajara Sobral,

Também quero agradecê-lo pela leitura atenta. Já estou lendo Lorenza Mondada para dar mais robustez ao argumento sobre o PDV e o processo de referenciação. Provavelmente entrará nas referências bibliográficas.

Stener Carvalho Fernandes Barbosa

Espero que entre no corpo do texto igualmente rs. Posso reler, inclusive.

Adail Ubirajara Sobral

  • recomendação: aceitar

Parecer IV

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer IV

As correções solicitadas foram realizadas.

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    28 Ago 2023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2023
  • Aceito
    23 Out 2023
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com