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AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS PARA PRODUZIR PESQUISAS COLABORATIVAS E COMPARATIVAS: O CASO DO “POR QUE POSTAMOS”

METHODOLOGICAL CHOICES TO PRODUCE COLLABORATIVE AND COMPARATIVE RESEARCH: THE CASE OF “WHY WE POST”

Resumo

Antropólogos geralmente trabalham sozinhos durante a maior parte de seus projetos de pesquisa, até a análise estar pronta para publicação ou para ser apresentada em eventos acadêmicos. Os nove pesquisadores do projeto “Por que postamos”, coordenado pelo antropólogo inglês Daniel Miller, colaboraram e cooperaram desde o momento em que o tema do estudo foi definido, e seguiram interagindo de maneira coordenada ao longo do processo. O objetivo deste artigo é descrever como esse experimento metodológico aconteceu e examinar as vantagens e desvantagens das escolhas que guiaram o trabalho conjunto dos nove antropólogos que atuaram na equipe entre 2012 e 2017.

Palavras-chave:
Metodologia, etnografia; pesquisa comparativa; colaboração; trabalho de campo

Abstract

Anthropologists generally work alone for most of their research projects, until the analysis is ready for publication or to be presented at academic events. The nine researchers from the “Why we post” project, coordinated by the English anthropologist Daniel Miller, collaborated and cooperated from the moment the theme of the study was defined, and continued to interact in a coordinated way throughout the process. The purpose of this article is to describe how this methodological experiment took place and to examine the advantages and disadvantages of the choices that guided the joint work of the nine anthropologists who worked on the team between 2012 and 2017.

Keywords:
Methodology; ethnography; comparative research; collaboration; fieldwork

O projeto “Por que postamos” (Why we post, em inglês), liderado pelo antropólogo Daniel Miller da UCL e realizado entre 2012 e 2018, resultou em 11 livros, um curso online, um site 1 1 Os livros e vídeos que resultaram desse projeto estão publicados sob licenças Creative Commons e disponíveis em: <www.ucl.ac.uk/why-we-post>. contendo o resultado da pesquisa de maneira resumida e acessível para leitores não especialistas, traduzido para todas as línguas dos países em que a pesquisa de campo aconteceu, um canal no YouTube2 2 <https://www.youtube.com/user/whywepost>. com mais de 100 vídeos editados, e uma série de artigos acadêmicos escritos em conjunto pelos pesquisadores do projeto, em parceria com outros acadêmicos ou produzidos individualmente.

Um dos motivos que propiciaram essa quantidade e diversidade de resultados foi a decisão metodológica posta em prática pelos participantes do projeto de ampliar e aprofundar as formas de colaboração e cooperação entre pesquisadores. Antropólogos geralmente trabalham sozinhos durante a maior parte de seus projetos de pesquisa, até a análise estar pronta para publicação ou para ser apresentada em eventos acadêmicos. Os pesquisadores do “Por que postamos” colaboraram e cooperaram desde o momento em que o tema do estudo foi definido, e seguiram interagindo de maneira coordenada ao longo do processo.

O objetivo deste artigo é descrever como esse experimento metodológico aconteceu e examinar as vantagens e desvantagens das escolhas que guiaram o trabalho conjunto dos nove antropólogos que atuaram na equipe entre 2012 e 2017. Os interessados na realização de pesquisas qualitativas comparativas e colaborativas encontrarão mais detalhes sobre os aspectos metodológicos deste projeto no livro comparativo Como o mundo mudou as mídias sociais (Miller et al., 2019aMiller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300.) e também em artigos publicados em inglês pela equipe como, por exemplo, Miller et al. (2016Miller, Daniel. (2016). Why we post: the comparative anthropology of social media. In Proceedings of the 8th ACM Conference on Web Science., 2019b)Miller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300., Miller (2015Miller, Daniel. (2015). “The Results of the Why We Post Project.” Why We Post, Why We Post - UCL. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=swj5KRf4Db0>. Acesso em 18 dez. 2020.
www.youtube.com/watch?v=swj5KRf4Db0...
, 2016Miller, Daniel. (2016). Why we post: the comparative anthropology of social media. In Proceedings of the 8th ACM Conference on Web Science., 2017)Miller, Daniel. (2017) Anthropology is the discipline but the goal is ethnography. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 7/1, p. 27-31., Miller e Sinanan (2017)Miller, Daniel & Sinanan, Jolina. (2017). Visualising Facebook: a comparative perspective. London: UCL Press., Haapio-Kirk (2017)Haapio-Kirk, Laura. (2017). Why we post: digital methods for public anthropology. Teaching Anthropology, 7/1..

Em seis anos de projeto, quatro foram de trabalho individual e conjunto envolvendo os participantes do “Por que postamos” e podem ser divididos claramente em três períodos: a fase preparatória de sete meses antes de partirmos para o trabalho de campo; os 18 meses em que cada um de nós viveu e trabalhou em sua localidade; e a análise dos resultados individuais e comparativos quando retornamos à UCL.

DESAFIOS DA PESQUISA HOLÍSTICA

Os locais pesquisados neste projeto foram Inglaterra e Itália na Europa; Turquia no Oriente Médio; Índia e China na Ásia; Chile, Brasil e Trinidad Tobago na América do Sul. Dois pesquisadores realizaram trabalhos de campo em localidades e em contextos demográficos diferentes da China. A escolha dessas localidades está justificada na introdução do livro comparativo do projeto (Miller et al., 2019aMiller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300.).

Do ponto de vista metodológico, um desafio inicial da equipe foi definir como comparar dados etnográficos resultantes de localidades afastadas entre si. Como fazer uma pesquisa de campo “clássica”, vivendo junto com o grupo que se está estudando, e gerar dados e evidências que possam ser comparados entre chineses do meio rural, chineses migrantes que trabalham em indústrias, indianos de vilas rurais que hoje são polos tecnológicos, curdos de classe média vivendo na Turquia, italianos urbanos de classe média, ingleses de pequenas cidades afastadas de Londres, moradores de uma área predominantemente pobre em Trinidad e Tobago, migrantes do campo vivendo em uma vila trabalhadora nas proximidades de resorts internacionais no Brasil e mineradores de origem trabalhadora no norte do Chile?

Este artigo não sugere que a pesquisa antropológica feita em grupo, de maneira colaborativa e comparativa desde o início, sirva para qualquer contexto nem que ela represente um caminho melhor do que a da investigação conduzida de maneira individual para a realização de pesquisas etnográficas. Considerando que pesquisas realizadas coletivamente nesse modelo cooperativo sejam ainda raras entre antropólogos, o artigo indica algumas possibilidades para a pesquisa de um tema em contexto global. Esse experimento metodológico também tem contrapartidas, e esses casos e situações serão mencionados ao longo deste texto.

PESQUISAS ETNOGRÁFICAS TRADICIONAIS

No Departamento de Antropologia da University College London (UCL), assim como em outros departamentos similares em todo o mundo, o processo de elaboração de pesquisa de campo constitui um esforço de prever alguns cenários possíveis durante esse período. Além disso, se entende que a proposta seja apenas um exercício e que existam muitas oportunidades de o estudante fazer adaptações e mudanças na hora em que confronta suas expectativas com a realidade do campo. Muitas coisas podem dar errado em relação ao que a proposta antecipou, e o estudante responde a essas dificuldades e também às reflexões novas que o início da pesquisa proporcionou. Não é incomum, portanto, que a tese produzida por muitos dos meus colegas de doutorado tenha sido sobre assuntos muito diferentes daqueles que cada um deles inicialmente pensou em estudar.

Numa pesquisa colaborativa de proporções globais como a do “Por que postamos”, não é possível contar com essa liberdade para mudar de curso a partir de oportunidades que se abram. Uma das condições para permitir a comparação de dados entre dois ou mais campos de pesquisa é que se esteja pesquisando o mesmo tema. Simultaneamente, entretanto, os participantes tiveram liberdade para examinar aspectos de seu interesse dentro da temática principal.

O roteiro de trabalho que nossa equipe seguiu foi produzido durante os meses anteriores à viagem a campo, conforme detalharei adiante. Nosso time chegou ao trabalho de campo com minucioso roteiro de tarefas que precisavam ser executadas, muitas vezes concomitantes. Esse documento informava, por exemplo, temas a observar a cada mês visando à produção de relatórios que circulavam e eram comentados por todos os participantes.

Nesse sentido, os interesses de pesquisa individuais dos componentes da nossa equipe estavam submetidos aos objetivos definidos em conjunto durante as discussões preparatórias da equipe. Isso não significa dizer que não realizamos pesquisas etnográficas, mas antes que nosso trabalho tinha um componente coletivo que nos impunha limitações. No dia a dia os colegas de grupo cumpriam atividades iguais planejadas por pesquisadores que trabalhavam individualmente. Junto com a aplicação de questionários e a realização de entrevistas, a maior parte do nosso tempo foi dedicada a participar das rotinas do local.

PREPARAÇÃO ANTERIOR À PESQUISA DE CAMPO

O “Por que postamos” teve início com uma fase de sete meses de preparação para ir a campo realizada em reuniões em salas de trabalho na universidade. Nesse período, a rotina dos pesquisadores se resumia a participar de reuniões com a equipe para propor e discutir leituras de textos sobre nosso tema principal de pesquisa, as mídias sociais, publicados por antropólogos e também por outros cientistas sociais. Essas reuniões aconteciam durante pelo menos metade do dia, praticamente todos os dias. Cada texto nos ajudava na busca de questões que poderiam ser examinadas coletivamente nas diferentes realidades de campo. Além disso, também identificamos problemas e lacunas da literatura acadêmica que poderia ser incorporada e ampliada na nossa pesquisa de campo.

Além de ler e discutir as pesquisas produzidas sobre mídias sociais, nossas reuniões diárias ou quase diárias serviram para definir as regras visando ao funcionamento conjunto da pesquisa. A meta era criar oportunidades regulares durante a realização do campo para que os participantes da equipe avançassem em conjunto, mantendo o foco pelo menos parcialmente unificado na produção de evidências e no debate sobre os mesmos tópicos. Esse foi o aspecto que possibilitou a realização de uma pesquisa comparativa nos moldes que definimos, na qual nove pesquisadores estavam espalhados pelo mundo e imersos em contextos culturais e sociais diferentes entre si. Um resultado desses exercícios foi a produção de um cronograma com os temas que, a cada mês da pesquisa, deveriam ser foco da atenção do pesquisador.

Por exemplo, em um mês o assunto comum foi registrar as maneiras de indivíduos e as várias famílias da localidade se conectarem à internet. No caso do meu campo na Bahia, registrei, por exemplo, que, nos primeiros meses, a maioria dos moradores não acessava a internet pelo celular, porque os serviços de sites de redes sociais não funcionavam bem no tipo de smartphone que eles tinham na época e que a distribuição de acesso no local acontecia a partir de serviços informais que compravam conectividade e redistribuíam via transmissão por rádio. Durante cada mês, portanto, uma das atividades em grupo dos pesquisadores era examinar assuntos iguais e posteriormente, ao fim de cada mês, ler e comentar os relatórios sobre o tema produzido pelos outros membros do grupo. Dessa maneira, produzimos recursos para observar similaridades e diferenças entre os campos pesquisados.

Junto com as atividades do calendário de cada pesquisador, tivemos atividades como a realização de entrevistas e a aplicação de questionários, material produzido durante os encontros preparatórios. Continuavam sendo questões definidas pelo grupo, mas cada pesquisador tinha liberdade para adicionar perguntas que considerasse relevantes para o seu campo.

Além de questionários e roteiros de entrevistas com questões comuns para os nove campos, estabelecemos que cada uma dessas atividades seria realizada de maneira sincronizada nas mesmas datas pelos nove pesquisadores. A coordenação permitiria o uso do material coletado previamente em atividades futuras. Por exemplo, dependíamos dos resultados das sessões prévias de coleta de material visual compartilhado em sites de rede social, aplicação de questionários e realização de entrevistas para elaborar questionários aplicados coletivamente no período final das nossas pesquisas.

Ao trabalhar de maneira cooperativa, conseguimos compartilhar a resolução de questões práticas como a mencionada a seguir. Em vez de resolver individualmente questões práticas da pesquisa, como a formulação do documento de autorização a ser assinado após a gravação de entrevistas em campo, formulamos esse material conjuntamente. Nenhum material foi usado sem ter as devidas autorizações, incluídas as dos responsáveis legais quando o informante era menor de idade. O material recolhido da internet também foi integralmente anonimizado a partir de normas estabelecidas não por critérios individuais, mas a partir da colaboração do grupo, considerando contextos antecipados em cada localidade e país em que as pesquisas aconteceriam. O resultado, do ponto de vista do projeto, foi termos tido soluções compartilhadas e aprimoradas com base nas participações do grupo, que posteriormente simplificaram as possibilidades de utilizar o material para estudos comparativos.

Três doutorandos participantes da equipe tiveram vantagens e desvantagens nesse período preparatório em relação à redação dos projetos de qualificação individuais. O foco do trabalho coletivo em questões metodológicas e no exame dos principais debates acadêmicos sobre o tema da pesquisa nos ajudou a redigir partes da revisão bibliográfica necessária para cada um compor o projeto individual. A intensa rotina de trabalho em grupo, entretanto, limitou o tempo que os doutorandos tiveram para examinar a literatura específica sobre seu campo de pesquisa. Visando à aprovação no exame de qualificação, cada doutorando completou seu próprio projeto lendo e analisando a bibliografia sobre o local estudado e sobre as pesquisas já feitas sobre mídias sociais no país em que moraria.

Em momento posterior, depois que a equipe retornou de seus trabalhos de campo, o professor Daniel Miller, coordenador do projeto, confidenciou sobre esse período preparatório que seu objetivo principal ao nos ocupar com sessões intensas de leitura e debate fora fomentar o relacionamento entre nove pessoas que não se conheciam previamente. Em sua opinião, a existência de vínculos de confiança dentro do grupo seria um estímulo importante para os participantes manterem, durante a pesquisa de campo, seus compromissos acordados coletivamente - apresentados adiante -, como a produção de relatórios, a aplicação de questionários ou a realização de entrevistas.

TRABALHO CONJUNTO DURANTE A PESQUISA DE CAMPO

Durante os 18 meses de pesquisa de campo tivemos como referência um documento produzido coletivamente intitulado “Field work manual” (Manual para a pesquisa de campo). Esse material, de aproximadamente 50 páginas, resultado coletivo dos sete meses iniciais de preparação antes das viagens a campo, se tornou nosso manual de orientação e incluiu o cronograma das atividades mensais conjuntas, questionários, perguntas para entrevistas, listas de contato para situações emergenciais, entre muitos outros itens.

O resultado das discussões sobre o trabalho coletivo que gerou esse manual considerou, primeiramente, que os participantes deveriam compartilhar entre si, no dia 25 de cada mês, um relatório de cinco mil palavras, em inglês. Elegemos então os assuntos de cada um desses relatórios. Mensalmente, em quase todos os 18 meses de trabalho no campo, tivemos um assunto em comum para prestar atenção particular e produzir um relatório. Essa disciplina manteve a equipe trabalhando em sintonia e de modo colaborativo. Em vez de estarmos isolados, cada uma em sua localidade, tínhamos o compromisso de produzir periodicamente um documento relacionando os usos e as consequências das mídias sociais a um tema. Esses relatórios eram compartilhados em datas definidas. Todos os pesquisadores liam os oito relatos dos outros membros da equipe e enviavam de volta a cada autor com suas considerações anotadas na forma de comentários deixados ao longo de cada texto. A leitura e as anotações eram atividades individuais, o que significa que todo mês cada um de nós lia aproximadamente um volume de 40 mil palavras com registros das pesquisas nos demais campos do projeto. O material que resultou dessa prática foi também útil posteriormente, quando retornamos do campo e iniciamos a fase de análise e redação dos resultados. Como produzimos relatórios com conteúdo claro e compreensível para ser lido por outras pessoas, precisamos recorrer menos a anotações feitas em nossos cadernos de campo, sempre escritas de maneira menos detalhada e organizada.

Mensalmente, ao longo de toda a pesquisa de campo, no fim do mês, depois da leitura dos relatórios, tínhamos conversas ao vivo por meio de um serviço de comunicação por voz pela internet. Falávamos em torno de 90 minutos sobre nossas impressões dos relatórios lidos no mês e tratávamos também de questões práticas como problemas de saúde, gastos que não estavam previstos ou eventos inesperados vividos no campo - por exemplo, a ameaça de morte que recebi em função do boato de que eu seria um informante da polícia -, e as experiências dos membros do grupo ajudaram a encontrar soluções. Nesse caso, fui orientado a abandonar as visitas a áreas ocupadas ilegalmente e me envolver com assuntos que não despertassem suspeitas, visitando escolas, festas infantis e cultos evangélicos.

O calendário de trabalho do grupo incluiu também a aplicação de dois questionários, um nos meses iniciais e outro na metade do período da pesquisa, e a realização de 50 entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio e em vídeo, bem como a coleta de amostras de conteúdo visual postado nas mídias sociais das pessoas que acompanhamos durante a atuação no campo, cujas regras tinham sido definidas no período preparatório da pesquisa. Como essa prática é menos conhecida e aplicada, vale a pena detalhar as orientações para reunir o material visual e o explorar de maneira comparativa. Em primeiro lugar, para evitar que os exemplos gravados representassem usuários de determinados perfis demográficos (por exemplo, apenas jovens, que costumam participar das redes sociais com mais frequência do que outros segmentos etários), definimos a escolha de 20 informantes com perfis demográficos diferentes e proporcionais (em relação a sexo, escolaridade, idade etc.), e durante uma semana definida, nos incumbiríamos de acessar o perfil dessas pessoas no Facebook (ou na plataforma mais usada no país) e gravaríamos as 20 últimas imagens que cada informante havia postado, que poderiam ser fotos pessoais ou outros conteúdos, como memes, que o informante tivesse compartilhado em seu perfil online. O resultado dessa parte do estudo pode ser encontrado no capítulo 11 do livro comparativo (Miller et al., 2019aMiller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300.) ou no capítulo 3 de cada uma das nove monografias publicadas a partir do projeto “Por que postamos” e cujos capítulos seguem igual estrutura, como será explicitado adiante.

Nossas obrigações coletivas não nos impediam de fazer mudanças no que havia sido definido. Foi o caso, por exemplo, da substituição do tema de pesquisa “mídias sociais entre pessoas mais velhas” pelo tema “impacto das mídias sociais na educação e nas escolas”. O primeiro havia sido debatido durante o período de preparação e por isso constava do manual da equipe como tema a ser observado em um dos meses do trabalho de campo. Ao cabo de alguns meses, porém, vários pesquisadores mencionaram dificuldades para levantar dados sobre usuários de mídias sociais com mais idade. No meu caso, vivendo em uma localidade no extremo da área metropolitana de Salvador, na Bahia, era raro encontrar pessoas com mais de 40 anos que usassem sites de rede social, porque tinham dificuldades para ler e consequentemente para navegar por esses serviços usando o computador ou o telefone celular. Na maior parte das localidades, as pessoas de mais de 50 anos geralmente não usavam o computador e menos ainda a internet, a não ser com ajuda de intermediários. Por outro lado, o tema da escola e da educação, que não fora levantado durante discussões durante os meses preparatórios, era assunto recorrente nas conversas que os pesquisadores tinham com seus informantes. No meu campo, onde era comum pais repreenderem os filhos por meio de castigos físicos, eu escutei de algumas mães que seus filhos - quando eram pegos fazendo o que não deviam - pediam para apanhar em vez de ser proibidos de usar a internet. Muitos pais conseguiam fazer acordos com os filhos no sentido de que se comportassem em sala de aula e passassem de ano mediante a promessa de lhes dar como prêmio smartphones ou computadores. Em virtude dessa novidade, o tema da educação, que não estava no manual, tomou o lugar do outro que não tinha rendido o resultado esperado. A proposta de inclusão do tema da educação nos assuntos observados coletivamente veio do pesquisador que atuava na China rural, Tom McDonald. Ele mencionou durante uma de nossas reuniões como a internet se tornara importante tema de debate na localidade em que ele estava por ser percebida como algo que comprometia a disciplina dos estudantes.

Em maio de 2014, os nove pesquisadores do projeto “Por que postamos” deixaram temporariamente as localidades em que conduziam suas pesquisas para se reunir presencialmente durante um mês, examinar os resultados preliminares de seus trabalhos e definir outras atividades a desenvolver capazes de aumentar as chances de comparação dos resultados obtidos sobre os usos e as consequências das mídias sociais em contextos tão distantes e diferentes. Elaboramos então as perguntas de um questionário que foi aplicado por todos os pesquisadores nos últimos três meses de campo.

Uma das questões propostas durante esse encontro foi sugerida por Costa, que estava trabalhando em Madrin, na Turquia. Ela queria saber se nas demais localidades, pais de adolescentes decidiam por seus filhos a aceitação ou rejeição de um pedido de amizade em rede social. A pergunta foi incluída no questionário mas, com base nos 12 meses prévios de convívio com os moradores da localidade baiana onde eu estava morando, eu sabia que isso não acontecia, ou seja, que filhos não pediam autorização a seus pais para aceitar ou rejeitar um pedido de amizade no Facebook ou em outra rede social. Apesar disso, durante a aplicação do questionário, muitos dos participantes começaram a responder “sim” a essa questão. Posteriormente esclareci que eles estavam entendendo algo diferente do que a pergunta proposta por Costa pedia. Em vez de responder sobre pais e mães controlando quem se tornava amigo online do filho ou filha, eles se referiam a pedidos de amizade que chegavam de pessoas que eles não conheciam pessoalmente, mas que eram amigos de amigos. Na localidade em que eu morei era comum receber convites de amizade de pessoas desconhecidas. Quem recebia o convite mostrava a foto e o perfil da pessoa que solicitava o contato para parentes que supostamente conheciam essa pessoa, a fim de se informar sobre quem ela era. Essa questão, portanto, deu-me oportunidade de perguntar mais sobre os critérios e procedimentos no uso das redes sociais: o que representava esse vínculo? Ele emulava algum tipo de relação fora das interações online ou era algo exclusivo desse ambiente? E de fato havia fora da internet uma versão desse tipo de relacionamento associado à ideia de “conhecer de vista”, no qual se sabe quem a pessoa é em função dos vínculos em comum que existe entre você e essa pessoa.

Este último exemplo resume uma das vantagens de se fazer pesquisas em grupo, que é ser forçado, ao acompanhar o que acontece nas outras localidades pesquisadas, a estar atento a aspectos do próprio campo que possivelmente não teriam sido percebidos. Depois do choque inicial do pesquisador ao chegar a um contexto estranho ao seu, gradualmente esse estranhamento se torna menos intenso e explícito à medida que formamos vínculos de confiança na localidade. Essa “naturalização” dos valores e dos modos de relacionamento locais durante a pesquisa de campo aconteceu com menos intensidade no caso do projeto “Por que postamos”, devido ao estímulo contínuo para o exame da alteridade nos demais campos pesquisados.

ANÁLISE E REDAÇÃO EM GRUPO

Nosso manual para a pesquisa de campo não considerava, naturalmente, nossas atividades a partir do momento em que voltássemos a nos reencontrar para começar a analisar as evidências, processar os resultados e redigir as conclusões de cada pesquisa. Apesar da falta de planejamento específico para esse momento final, o que acabou acontecendo foi a manutenção da rotina estabelecida de produção simultânea de textos com os mesmos recortes temáticos e, em seguida, no coletivo, a avaliação desses conteúdos. Assim escrevemos os capítulos do livro comparativo (Miller et al., 2019aMiller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300.) e logo depois os capítulos das monografias individuais. O processo de trabalho dessas duas etapas também está apresentado no artigo produzido pela equipe do projeto (Miller et al., 2019bMiller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300.).

Para a redação do volume comparativo (Miller et al., 2019aMiller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300.), definimos, a partir de discussões em grupo e do resultado das pesquisas de campo, quais deveriam ser os temas de cada capítulo dessa publicação. Para produzir cada um dos 14 capítulos distribuímos cada tema entre os nove pesquisadores de maneira que cada capítulo tinha um autor principal. Os participantes mais experientes lideraram a redação de mais de um capítulo. O responsável pelo tema - geralmente o pesquisador que tivesse com o assunto maior interesse ou familiaridade - produzia a primeira versão do capítulo. Esse material era então repassado em sequência para dois outros pesquisadores, que revisavam o material e acrescentavam casos e referências bibliográficas. No último estágio de preparação, cada capítulo voltava ao pesquisador que fizera a primeira redação, que, então, o finalizava. Essa solução permitiu que o livro fosse o resultado do trabalho coletivo e colaborativo dos participantes, incluindo exemplos de várias localidades pesquisadas.

Na prática, a dinâmica de funcionamento do grupo para escrever esse livro se parece com a de peer review, que é usada em revistas acadêmicas; no caso do “Por que postamos”, porém, os revisores não se limitavam a apontar falhas; também adicionavam reflexões e dados de suas pesquisas. Essa solução nos pareceu mais próxima da forma de trabalhar adotada pelo grupo e melhor do que adotar a prática tradicional de produzir uma coletânea em que cada participante da pesquisa escreve individualmente capítulos sobre um aspecto do estudo usando principalmente referências de um campo de pesquisa. Em função da opção pela coautoria dos capítulos, a maior parte dos nove pesquisadores contribuiu com a redação da maior parte dos 14 capítulos desse livro, e, por isso, decidimos não atribuir autoria específica por capítulos. O livro é coassinado por toda a equipe do projeto.

A última etapa de nosso trabalho conjunto foi a redação das monografias. Cada pesquisador deveria escrever uma monografia com os resultados individuais de sua pesquisa de campo. Também nessa situação buscamos um modo de colaboração dos pesquisadores em todos os trabalhos. A solução que viabilizou essa ideia de maneira satisfatória foi estruturar nossos livros com capítulos sobre temas iguais e na mesma sequência. Cada pesquisador escreveria os capítulos estritamente a partir de seus dados coletados em campo e das análises da bibliografia que considerasse útil e relevante. Cada pesquisador produziu sua própria monografia, mas, porque trabalhamos em conjunto, nos mesmos prazos, sobre o mesmo tema geral em cada capítulo, pudemos mais uma vez tirar proveito da cooperação da equipe.

Assim, no final de cada ciclo de redação, circulávamos cada versão entre os membros da equipe. Por exemplo: os nove pesquisadores trabalharam ao longo da mesma semana para produzir o primeiro rascunho de seus capítulos iniciais. Esses documentos, então, foram distribuídos, como fizemos durante a pesquisa de campo, e todos leram e comentaram os rascunhos de todos, enriquecendo cada documento. Eram apontadas possíveis referências bibliográficas, passagens que não estavam claras, indicados casos etnográficos de seus campos que poderiam ser usados comparativamente e, eventualmente, referidos relatórios escritos durante as pesquisas de campo com casos etnográficos que poderiam ser incorporados no capítulo. Ao mesmo tempo, ler os oito capítulos sobre o mesmo assunto, mas tratando de campos diferentes, servia como fonte de inspiração para descrições que poderíamos adicionar e argumentos que poderíamos também analisar a partir das evidências do próprio campo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A principal vantagem dessa solução para o trabalho acadêmico no caso de pesquisas feitas em grupo pode ser vista também como desvantagem. O fato de eu estar trabalhando com oito pessoas obrigou-me a seguir um roteiro rígido e não mudar de assunto no meio da pesquisa. Em contrapartida, acompanhei o trabalho dos outros membros da equipe, tirei proveito de suas reflexões e experiências etnográficas. Essa experiência de aprendizado que acontece pelo relacionamento dentro de grupos é descrita na literatura antropológica sobre aprendizado (Lave & Wenger, 1991Lave, Jean & Wenger, Etienne. (1991). Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge: Cambridge University Press.).

Além de influenciar positivamente na ampliação do impacto da pesquisa, nossa experiência de trabalho em grupo teve consequências positivas também no aspecto da saúde mental do pesquisador. O trabalho solitário de pesquisa acadêmica em geral e antropológica em particular costuma cobrar um preço alto do estudante, especialmente do antropólogo que se compromete a passar muitos meses em um lugar distante do seu, como foi o nosso caso. O mesmo estudante, ao retornar, tem uma rotina intelectual solitária porque dificilmente haverá outro estudante no mesmo departamento trabalhando em pesquisa semelhante, estudando populações semelhantes e usando referências teóricas semelhantes. Por isso é difícil receber ajuda dos colegas, pois eles não estão familiarizados com a bibliografia específica nem com o agrupamento social estudado.

Diferentemente dos demais estudantes de nosso departamento, nós nunca tivemos que pedir para colegas o favor de ler nossos manuscritos. Fazer isso era parte rotineira do trabalho. Consequentemente recebemos muitas sugestões ao longo de todo o processo. Isso foi útil especialmente para nós, doutorandos, porque pudemos conviver com pesquisadores mais maduros e experientes na mesma disciplina, que nos ajudavam do ponto de vista acadêmico, com referências e análises sobre os assuntos que pesquisamos, e também do ponto de vista emocional. E, mesmo quando líamos o trabalho de outra pessoa da equipe, tínhamos oportunidades de fortalecer nossas próprias pesquisas, apenas por ver como o outro chamava a atenção sobre um determinado aspecto que não tínhamos considerado inicialmente; e também ter acesso a referências de livros e artigos sobre os assuntos que estávamos trabalhando (por exemplo, o uso de mídias sociais nas escolas), mas escritos por pesquisadores de outros países.

O projeto “Por que postamos” produziu muitos resultados que a limitação deste artigo, não permite examinar. Mencionei rapidamente no início deste texto como escolhemos as nove localidades pesquisadas, mas podemos ir mais longe e perguntar por que exatamente essas localidades, por exemplo, na Ásia ou na América do Sul? Por que a decisão de estudar os efeitos das mídias sociais de forma comparativa? Em que medida pudemos estabelecer comparações entre cada localidade e usando quais tipos de evidências? Respostas para essas e muitas outras questões estão disponíveis em Como o mundo mudou as mídias sociais (Miller, 2019aMiller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative anthropology - The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p. 283-300.), escrito originalmente em inglês pelos nove pesquisadores da equipe, mas traduzido e disponível em português para a venda em formato impresso e gratuitamente em PDF, podendo ser localizado no site do projeto ou via consulta a sites de busca.3 3 Todos os livros da coleção “Por que postamos”, em todas as línguas em que foram traduzidos, estão disponíveis nesta página: <https://www.uclpress.co.uk/collections/series-why-we-post>. Devido ao fato de estar disponível para venda nos formatos impresso ou ebook, mas também poder ser baixada integralmente grátis em formato PDF, essa coleção de livros antropológicos se tornou acessível para bibliotecas, acadêmicos e estudantes, principalmente em localidades em que esse material não chegaria, e isso contribuiu para a série ultrapassar a marca de um milhão de downloads em agosto de 2020.

A intenção deste artigo não é convencer antropólogos e outros cientistas sociais a abandonar pesquisas feitas individualmente, mas apontar que existem caminhos alternativos a esse modelo. A maior dificuldade para a realização de experimentos semelhantes ao do “Por que postamos” talvez seja não uma objeção do pesquisador, mas a limitação de gastos com pesquisas no campo das humanidades. No nosso campo, o pesquisador geralmente é o responsável por conseguir os próprios recursos para a pesquisa, particularmente como doutorando ou pós-doutorando. As ideias postas em prática durante o projeto “Por que postamos”, entretanto, podem mobilizar grupos de pesquisa a pensar sobre maneiras de trabalhar colaborativamente.

Como pesquisador desse projeto, não pude tomar algumas decisões individuais sobre minha pesquisa; não pude alterar planos sobre o tema pesquisado sem que isso fosse aceito e fizesse sentido para os outros oito participantes da equipe. Dentro do tema uso e consequências do uso das mídias sociais, contudo, tive igual oportunidade à dos antropólogos de realizar uma pesquisa de longa duração com base em observação participante. O fato de ter trabalhado em um grupo não me impediu, durante a pesquisa de campo, de ir a jantares, participar de conversas na rua e em bares, frequentar rotinas de religiosos em suas igrejas conversar com o ou a informante sobre aquilo que lhe fosse relevante. A tarefa de enviar relatórios mensais e ler o material dos meus colegas consumia talvez dois ou três dias de trabalho ao longo do mês, mas poder observar o que acontecia em mais oito campos sem precisar desviar minha atenção da localidade, pois estávamos tratando dos mesmos assuntos, tornou minha percepção mais sensível às particularidades de meu campo.

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    Os livros e vídeos que resultaram desse projeto estão publicados sob licenças Creative Commons e disponíveis em: <www.ucl.ac.uk/why-we-post>.
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    Todos os livros da coleção “Por que postamos”, em todas as línguas em que foram traduzidos, estão disponíveis nesta página: <https://www.uclpress.co.uk/collections/series-why-we-post>. Devido ao fato de estar disponível para venda nos formatos impresso ou ebook, mas também poder ser baixada integralmente grátis em formato PDF, essa coleção de livros antropológicos se tornou acessível para bibliotecas, acadêmicos e estudantes, principalmente em localidades em que esse material não chegaria, e isso contribuiu para a série ultrapassar a marca de um milhão de downloads em agosto de 2020.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Haapio-Kirk, Laura. (2017). Why we post: digital methods for public anthropology. Teaching Anthropology, 7/1.
  • Lave, Jean & Wenger, Etienne. (1991). Situated learning: legitimate peripheral participation Cambridge: Cambridge University Press.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Revisado
    21 Set 2020
  • Aceito
    19 Out 2020
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