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Nietzsche e a moralidade do corpo* * Tradução de Saulo Krieger

Nietzsche and the Morality of the Body

Resumo:

Este artigo mostra que o imoralismo não resume a posição nietzschiana. Nietzsche fez uso das categorias éticas - notadamente as categorias de “dever”, de “justiça” ou de “compaixão” - em sua ótica de propor uma nova filosofia do corpo. Por essa tentativa de fazer uma moralidade proteiforme recair no coração mesmo das trocas orgânicas, Nietzsche reforma a moral sobre bases fisiológicas. Esse gesto visa reconstruir as leis de ação.

Palavras-chave:
moral; corpo; ética; fisiologia; virtude

Abstract:

This article demonstrates that immoralism does not sum up the Nietzschean position. Nietzsche made use of ethical categories - notably the categories of “duty”, “virtue”, “justice” or “compassion” - in order to propose a new philosophy of the body. In this attempt to plunge morality back into the heart of organism, Nietzsche reforms morality on physiological grounds. This gesture aims at reconstructing the laws of action.

Keywords:
morality; body; ethics; physiology; virtue

A moralidade efetiva do homem na vida de seu corpo écem vezes maior e mais fina do que jamais foi toda a moralização que depende do conceito.1 1 Nachlass/FP 1884-1885, 25 [437], KSA 11.128. Nietzsche

Um homem bem logrado,feliz, deve com toda a necessidade executar certas ações, e se desvia instintivamente de outras ações; ele transporta a ordem que representa fisiologicamente em suas relações com os homens e com as coisas. Numa fórmula: sua virtude é a consequência de sua felicidade...2 2 GD/CI, Os quatro grandes erros 2, KSA 6.89. Nietzsche

objetivo desta contribuição3 3 Este artigo retoma uma conferência proferida em 12 de outubro de 2022 na Universidade de Dijon. Agradeço aos professores Jean-Claude Gens e Jean-Philippe Pierron por terem me convidado, assim como ao público presente nesse dia, que me incentivou a aprofundar minhas ideias. será o de analisar a elaboração nietzschiana das categorias da ética - notadamente das categorias de “dever”, de “virtude”, de “justiça” ou de “compaixão” etc. -, uma vez que esse uso é destinado a reinterpretar a vida do corpo. Por sua tentativa de reposicionar uma moralidade proteiforme no coração mesmo das trocas orgânicas, Nietzsche reforma a moral sobre bases fisiológicas. Queremos provar que esse gesto visa reconstruir as leis da ação.

Não seria possível mostrar esse aspecto sem enfraquecer a imagem de um Nietzsche que se apresenta como o “primeiro imoralista"4 4 Ver EH/EH, Por que sou um destino 2, KSA 6.366. . Se o filósofo exige de seu leitor que ele se eleve acima da ilusão do juízo moral, não é menos verdade que o mesmo Nietzsche vez por outra faz uso das categorias da ética, adotando a ótica de propor uma nova filosofia do corpo e de fornecer, tomando essa base, indicações para uma “moral do futuro"5 5 Nachlass/FP 1885-1887, 2 [31], KSA 12.78. . Essa constatação de subversão e de reapropriação das categorias morais suscita uma questão: como aferir o pensamento de um autor como Nietzsche, que afirma que as regulações do corpo se opõem às leis da moralidade, mas para quem, inversamente, a vida do corpo se exprime em termos de moral?

Sendo posto o problema nesses termos, comecemos por relativizar a crítica ao moralismo. A fisiologia de Nietzsche, de sua parte, não estará isenta de preocupações morais. De fato, o filósofo desenvolve uma nova moral, ajustada às exigências de sua fisiologia. Existe aí um gesto inovador, que vira do avesso as balizas habituais6 6 Cf. S. Barbera, 2005. Nesse artigo, Sandro Barbera se apoia no fragmento 25 [437] de 1884 para reconstruir o debate de Nietzsche com Kant e Schopenhauer. em nome do ultrapassamento das barreiras disciplinares. Nietzsche tinha a intenção de rediscutir a separação entre a ética e a fisiologia para melhor recusar o dualismo que leva a opor a moral ao corpo. Se as leis da moral não raro entram em contradição com o corpo, isso explica por que o filósofo revaloriza o corpo em detrimento da moral. Mas o ponto a ressaltar é o de que essa revalorização visa desobstruir as regulações do corpo que serão elas próprias julgadas imperativas e servirão então de base a novas necessidades éticas. Nietzsche falará assim de novos “deveres” e de novas “virtudes”, que se oporão a novos “vícios"7 7 Cf. C. Bertot, 2022. ou a novas formas de “culpabilidade"8 8 Nachlass/FP 1884-1885, 26 [79], KSA 11.169: “Condições do sábio. É preciso se desconectar da sociedade para uma culpabilidade em todos os domínios”. . As antigas obrigações morais cada vez mais darão lugar a uma nova forma de autodisciplina, ou de “ascese”, destinada não a intimidar os instintos, mas a aumentar a vitalidade.

A filosofia nietzschiana do corpo se expressará então em termos de moral, isto é, ela tomará de empréstimo esquemas de pensamento da moral, mas isso para reinterpretá-los. É evidente que tal tentativa merece ser esclarecida. Expressar-se “em termos” de moral, em que isso seria diferente do que fazia a “velha” moral? O filósofo diz algo de coerente sobre esse assunto? A dificuldade em se resolver essa questão resulta das ambiguidades características da “nova língua” de Nietzsche.9 9 Cf. P. Wotling. 2019. Para dar uma visão geral dessa questão, partamos de uma célebre expressão nietzschiana. É frequente que o filósofo aborde questões de ordem fisiológica ao falar a linguagem da moral. Por vezes ele pontua tais desenvolvimentos pela expressão “moralisch geredet”, que se poderia traduzir por “para dizê-lo em termos de moral”, ou por “moralmente falando”.

Essa fórmula pode ser encontrada no fragmento 37 [4] de 1885, mas também no fragmento 10 [17] de 1887, ou ainda no fragmento 16 [10] de 1888, sempre em contextos em que se trata de dizer alguma coisa do corpo recorrendo-se a conceitos éticos. “Moralisch geredet”: esclarecer essa expressão, isso equivale, grosso modo, a confrontar duas opções interpretativas que não necessariamente serão antitéticas. 1) Tome-se o vocabulário da moral a constituir uma linguagem fraudulenta, que se trata de substituir, para melhor pô-la a distância, descredibilizá-la, desmistificá-la, enquanto ela visa camuflar e condenar implicitamente a vida do corpo.10 10 Para uma ilustração dessa primeira estratégia, ver Nachlass/FP 1887-1889, 16 [10], KSA 13.485: “Os grandes momentos de cultura foram sempre, moralmente falando (moralisch geredet), momentos de ‘corrupção’. Nessa passagem, Nietzsche se reapropria da palavra ‘corrupção’, sem lhe acrescentar a dimensão pejorativa que ela habitualmente comporta em razão da condenação moral (na qual o filósofo não crê, já que aqui ele evidencia muito mais uma degenerescência fisiológica). 2) Considere-se esse mesmo vocabulário a constituir uma linguagem figurada, oferecendo recursos de significação ou uma certa comodidade, para, de modo diferente dos moralistas, abordar questões que dependam da fisiologia e das trocas orgânicas.11 11 Para uma ilustração dessa segunda estratégia, ver Nachlass/FP 1884-1885, 37 [4], KSA 11.576: “Guiados pelo fio condutor do corpo, como eu o disse, ficamos sabendo que nossa vida só é possível graças ao jogo combinado de numerosas inteligências de valor muito desigual, portanto graças a um perpétuo intercâmbio de obediência e de comando sob formas inumeráveis — ou, em termos de moral (moralisch geredet), graças ao exercício ininterrupto de numerosas virtudes. E de que modo se poderia deixar de falar em moral!...”. Retornaremos mais adiante à manipulação nietzschiana da noção de “virtude”.

Se a segunda possibilidade que acaba de ser enunciada se adiciona à primeira - e nós demonstraremos, pelos textos, que este é o caso -, isto quereria necessariamente dizer que o modo de proceder nietzschiano iria mais longe do que uma estratégia negativa. Falar do corpo em termos de moral, isso não remete unicamente a realizar um gesto destruidor, mas pode significar também que o filósofo deseja pôr em evidência uma forma de moral até então minorada, incompreendida ou não percebida. Bem longe de considerar o corpo uma instância amoral que estaria a perpetuamente corrigir e “moralizar” - desde a exterioridade da norma, em direção à interioridade da vida -, Nietzsche não estaria atuando para substituir, de início, a moral pela vida do corpo? Desse modo, a moralidade “efetiva” do homem, com os seus “tu deves” e suas “virtudes” se assimilaria ao caráter imperativo de certas pulsões, levadas a desempenhar um papel regulador para a conservação e o crescimento da vida. Essas pulsões, que formariam comandos, e das quais não se poderia ignorar as exigências, opor-se-iam assim à moralidade distorcida, que contradiria as regulações do corpo.

Em virtude dessa dinâmica, vemos se desenhar uma oposição entre uma moralidade do corpo e uma moralidade voltada contra o corpo. É verdade que todos os esforços nietzschianos não foram estranhos, em última instância, a uma vontade de reconstruir as leis da ação,12 12 M/A 453, KSA 3.274: “Construir novamente as leis da vida e do agir — para essa tarefa nossas ciências da fisiologia, da medicina, da sociedade e da solidão não se acham ainda suficientemente seguras de si: e somente delas podemos extrair as pedras fundamentais par novos ideais (se não os próprios ideais mesmos).” ao fundamento das descobertas que digam respeito ao corpo. Nietzsche procura formular novos deveres, busca cultivar novas virtudes, prevendo um investimento do homem na vida de seu corpo. Se essa tarefa de autodisciplina já não tem nada que ver com o que significavam as obrigações éticas, algo aqui se assemelhará a um equivocar-se quanto ao que a moral antes recomendava que se fizesse, no sentido de que uma “última moral” atacaria pelas costas a moral antiga.

A crítica à moralidade tradicional

Analisaremos de início o modo como a moralidade tradicional foi crucialmente alvejada. Em paralelo ao seu esforço de reinterpretar o corpo, Nietzsche critica a moral quanto à forma que ela havia assumido até o presente. Com relação a esse procedimento paradoxal, convém levantar a seguinte questão: o gesto crítico de Nietzsche não o levará a negar a possibilidade da moral em geral? Naverdade esse não é o caso, já que o filósofo quer fazer de modo com que a moral seja reavaliada e não contradiga a vida do corpo.

Ao fazê-lo, Nietzsche inverte as relações de prioridade entre a moral e o corpo: critica os pensadores da ética por eles subordinarem a vida do corpo às exigências da moral.13 13 Nachlass/FP 1884-1885, 25 [309], KSA 11.91: “Toda ética até aqui se mostrou indefinidamente limitada e local: cega e de má fé com relação a leis reais. Ela esteve aí não para explicar, mas para impedir certas ações”. Para inverter essa tendência, o filósofo mostra que os assim chamados fenômenos morais resultam de uma interpretação equivocada de processos fisiológicos. Numa primeira abordagem14 14 Mais adiante trataremos com mais vagar da questão do reducionismo (à que Nietzsche não sucumbe). , ele se empenha em reconduzir - e também em reduzir - o que ele até o presente considerava como fatos morais (as condutas morais, os sentimentos morais e os juízos morais) a processos fisiológicos não percebidos ou a más interpretações de processos fisiológicos. Como testemunho dessa estratégia, citemos o fragmento 6 [445] de 1880, no qual Nietzsche anuncia o fio condutor de sua crítica à moral. Ele aqui sustenta que “os estados morais são estados fisiológicos”15 15 Nachlass/FP 1880-1882, 6 [445], KSA 9.313. (moralische Zustände sind physiologische Zustände). Tomando como base esse princípio, o filósofo parte em campanha contra os preconceitos morais.

Esse fragmento de 1880 é revelador da viragem que se opera durante o período de redação de Aurora. A partir dessa época, Nietzsche passa a relegar a moral a uma série de crenças intelectuais. Critica as categorias éticas, mas também a consciência moral, e os preconceitos a respeito da ação. O que se denominava uma “boa ação”, uma “qualidade moral” não seria mais do que um mal-entendido. Ações ou qualidades semelhantes de modo algum são possíveis, se nos atemos às características da vida. Como pensador imoralista, ele se opõe, assim, aos formuladores da ética, que muitas vezes acreditaram em propriedades que não podem existir do modo como eles as concebiam.

Uma vez que no início da década de 1880 Nietzsche põe em questão os “fatos morais”, então ele de pronto retorna à fisiologia. Ao que tudo indica, isso significa que ele desmistifica a moral em função das leis reais do organismo - e de fato, essa estratégia não está ausente. No organismo, tal como Nietzsche o tem em vista, a parte consciente não é mais que um pequeno recanto. Em outros termos, a crença na “virtude” ou o sentimento de “desinteresse” são desmentidos com base no restante do acontecimento tomado em seu todo.16 16 Nachlass/FP 1887-1889, 11 [83], KSA 13.39. Nietzsche pensa que antes dele ninguém teve a coragem de interpretar a virtude ou o desinteresse como consequências da imoralidade, isto é, como simples astúcias e aparências a resultar do fato de que o homem se conformava à moral por interesse. Que haja nas condutas morais um cálculo de utilidade, carecendo-se profundamente de razão, o filósofo não o ignora, mas ele deseja sobretudo relacionar as “condutas morais” a interesses ou a impulsos que emanam da vida do corpo, uma vez que este sofre precisamente da incorporação de crenças morais.

Nessa perspectiva, não causará espanto ver Nietzsche, em especial a partir da década de 1880, reconduzindo a moralidade tradicional a processos fisiológicos tendencialmente antinaturais e anormais, vindo a assumir diversas formas: o filósofo retraduz as condutas morais em doenças nervosas, ele as associa a modificações irregulares do fluxo sanguíneo ou respiratório, ou reduz as ações morais ao desenrolar de uma atividade muscular que se tornou rotineira. Não poderíamos entrar aqui no detalhe dos textos, tantas e tão diversas são as ocorrências.

Por concisão, citemos o aforismo 83 de Aurora, que ilustra essa estratégia. Nietzsche mostra aí que toda crença na moralidade do homem pode ser desconstruída. De modo geral, a tendência a ter por “verdadeiros” os fatos morais resultam de uma interpretação equivocada das alterações do corpo: “Uma gota de sangue a mais ou a menos, em nosso cérebro, pode tornar extremamente miserável e dura a nossa vida, [...] O mais terrível, porém, acontece quando não se sabe que essa gota é a causa. E sim ‘o Diabo’! Ou ‘o pecado’! - ”17 17 M/A 83, KSA 3.79. . Nietzsche não se contenta aqui em afirmar que os fenômenos morais são condicionados fisiologicamente. De modo algum é o caso, para o filósofo, de evidenciar a presença de uma base corporal que tornaria possíveis os sentimentos morais e as condutas morais. Trata-se muito mais de reinterpretar o conjunto de crenças morais como más interpretações do corpo. O aforismo 83 de Aurora apresenta uma desordem fisiológica (aqui, a variação anormal da quantidade de sangue) como causa de um mal-estar corporal; mas o homem vítima de preconceitos morais acrescenta ao sofrimento físico uma ideia de culpabilidade: reinterpreta o seu mal-estar como uma punição, resultante, a seus olhos, de uma responsabilidade moral.

Diante desses preconceitos morais associados a um condicionamento cultural - que aqui é o de uma religião -, Nietzsche reinterpreta o comportamento humano de modo diferente. No fragmento 9 [86] de 1887, ele propõe um modelo de retradução. Uma paradigma linguístico servirá de guia para decodificar essa linguagem figurada dos afetos que era a moral, retirando-lhe sua carga ética: “Minha tarefa é a de retraduzir os valores morais aparentemente emancipados e desnaturados em nossa natureza própria, isto é, em sua ‘imoralidade’ natural”18 18 Nachlass/FP 1885-1887, 9 [86], KSA 12.380. . A referência à natureza, nesse aforismo, não nos afasta da fisiologia do fragmento de 1880 acima citado, no qual o filósofo restituía os estados morais a estados fisiológicos. Tem-se uma continuidade porque a “natureza” de que fala Nietzsche aqui nada mais é do que a physis de que ele falava sete anos antes; o filósofo passa a insistir em caracterizar essa natureza por sua imoralidade, que não é uma lacuna; é uma positividade, pois a natureza afirma sua indiferença quanto à moral, e isso mesmo nas condutas morais.

A retradução dos valores morais segundo os termos da fisiologia levará a demonstrar a homogeneidade de tudo o que lhe acontece, no sentido de que jamais existiram valores morais. Em certo sentido, os valores morais foram imorais, se com isso se entende que eles se constituíam em ficções que se opunham à inocência do vir-a-ser e serviam para afastar o homem de seus instintos, e para fazer com que ele experimentasse uma culpabilidade em face de seu corpo. Outro fragmento da época de A gaia ciência ilustra com precisão esse tipo de contrassenso fisiológico, e desse contrassenso se pode rastrear a história, na escala de um indivíduo ou de um povo. Trata-se do fragmento 11 [103] de 1881:

O que é a moralidade! Um indivíduo, um povo sofreram uma alteração fisiológica (eine physiologische Veränderung), sentindo-a segundo o sentimento geral e interpretando-a na linguagem de seus afetos e segundo o grau de seus conhecimentos sem duvidar de que essa alteração se situa na physis. Como se ele tivesse fome e pensasse em saciá-la com conceitos e com usos, com louvor e repreensão!19 19 Nachlass/FP 1880-1882, 11 [103], KSA 9.478.

Nietzsche relaciona aqui a história da moral a uma doença. Para um indivíduo ou para um povo, a incorporação de uma moral está aparentada ao fato de suportar uma “alteração fisiológica”. Toda moral começa por um adestramento que visa modificar a estrutura dos instintos, no sentido de uma perniciosidade. Essa alteração justamente não foi percebida, já que foi reinterpretada, ou “retraduzida” na linguagem da moral dominante. Isso tinha em vista relacionar uma perturbação da vida do corpo a categorias éticas, em nome das quais os instintos de crescimento foram estigmatizados em razão das faltas morais. Assim fazendo, a docilidade e o enfraquecimento do homem viam-se reinterpretados como uma perfeição moral. Quando Nietzsche afirma que o homem “sofre” da incorporação de uma moral, ele mostra que esse sofrimento foi retraduzido de maneira positiva.

Uma vez que o filósofo critica diferentes morais - essencialmente a virtude antiga ou a moral cristã20 20 A despeito da condenação geral à moral heleno-cristã, Nietzsche não desconsidera as diferenças entre a virtude antiga e a moral cristã. No aforismo 122 da Gaia ciência, ele ressalta que a virtude dos gregos nos é inacessível em razão de nossa impregnação pelos ideais cristãos. A ideia grega de virtude é a ideia de excelência. Na tradição pagã, o agente moral podia se voltar para a sua própria perfeição. Na perspectiva cristã, nenhum homem é “sem pecado”, e é por isso que a noção de virtude, visando à perfeição, não é solucionável no âmbito do cristianismo. -, ele chega aqui a essa mesma conclusão. A tradução do fisiológico em moralidade consistia em reinterpretar a renúncia à força como uma escolha deliberada, e a obediência à moralidade, como um mérito; esse circuito de prestidigitação representa incontestavelmente uma proeza, mas o adestramento efetuado pela moral não teria nada de bom. A moral não foi mais do que um longo condicionamento exercido sobre o corpo, a fim de fazê-lo se desviar maquiavelicamente dos instintos, no sentido de uma domesticação. Próprio à moral foi, igualmente, mascarar suas próprias fundações fisiológicas, enquanto ela se reduzia a um desvio de processos fisiológicos. O escamoteamento da fisiologia humana assumia a forma de aberrações antinaturais, com as quais Nietzsche se diverte a ressaltar seu caráter ilógico. No fragmento que acaba de ser citado, ele ressalta que seria absurdo pretender saciar a fome com culpas, como se lhe bastasse acusar-se moralmente de ter fome, para cessar a vontade de comer.

Contra as inconsequências da moral, esta que consiste em traduzir, com as piores maneiras intelectuais, a fisiologia humana em bem e mal, Nietzsche retraduzirá a moral em fisiologia. Trata-se de fazer um retorno à língua inicial, que tinha sido objeto de numerosos erros de tradução, eles próprios emaranhados, superpostos e difíceis de desembaraçar. O aforismo 230 de Para além de bem e mal enunciará claramente esse projeto nietzschiano visando “retraduzir o homem de volta à natureza”, isto é, “triunfar sobre as muitas interpretações e conotações vaidosas e exaltadas, que até o momento foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura21 21 JGB/BM 230, KSA 5.167. . À leitura desse texto, parece que a redescoberta do homo natura representa um desafio: tratar-se-á de encontrar um texto sob múltiplos textos, o texto da naturalidade no homem, recoberto pelas interpretações morais, religiosas, ou pelas teorias éticas.

Para compreender esse desafio, prestemos atenção à linguagem de Nietzsche. O filósofo caracteriza a naturalidade no homem como um “texto”, unificado e dotado de sentido. Mas essa naturalidade foi traduzida em não naturalidade, pela reescrita de um texto superposto ao primeiro. Esse texto sobreposto foi, segundo as palavras de Nietzsche, “rabiscado”, escrito de maneira rápida e sem cuidados, desajeitadamente e sem a preocupação de bem traduzir o texto de partida. Mas o filósofo remete aqui à ideia de pintura. O texto rabiscado pretendia dar cor ao homem, pretendia lhe fazer retoques para transformá-lo em um espetáculo suportável aos olhos; enfim, a moral se transmutava em “arte”.

Assim, não teria o texto da naturalidade sido destruído, ou modificado de forma tal que seu sentido original fosse impossível de encontrar? Como redescobrir a fisiologia natural do homem? Como retornar aos instintos imemoriais, se eles foram desviados de sua direção? Por referência a qual “natureza” Nietzsche pretende reinterpretar a moral? Essa questão não se põe sem dificuldades. Convém dissipar um mal-entendido segundo o qual se desejou ver no pensamento do filósofo um reducionismo biológico - supondo que a esfera da moral se veria reconduzida ou reduzida a fenômenos orgânicos. Não se trata disso, e a crença na realidade da moral para ele não tem mais legitimidade do que a crença na realidade do corpo. Para Nietzsche, o corpo se resume a uma configuração de instintos, suscetível de receber uma forma segundo as preferências morais em vigor. Por essa razão, seria ingênuo atribuir a ele uma forma de biologismo, pois o corpo humano não é passível de ser conhecido integralmente pela ciência.

Se Nietzsche escapa ao moralismo, claramente ele escapa à acusação de biologismo, pois o corpo tal como ele o pensa não é o dos biólogos; não se trata de um corpo subordinado a leis científicas, mas de um corpo que se autoproduz. Nietzsche se interessa pelo corpo enformado pelas morais humanas, segundo uma diversidade quase infinita de configurações. A rigor, esse corpo não é objeto de ciência alguma, já que é perpetuamente inscrito nas lógicas de moralização, que, elas próprias, pouco serão conformes à verdade das ciências. Por falsas que sejam, as morais modificarão o corpo e desenvolverão traços humanos diferenciados. É esse processo de moralização que convém retraduzir em fisiologia.

Recorrer ao vocabulário fisiológico, para Nietzsche, não significa elaborar uma fisiologia em sentido estrito. Equivale a opor à linguagem absolutizada da moral uma outra estratégia de designação. Nietzsche se envolve num processo de interpretação das interpretações, ou de tradução das traduções, segundo uma lógica da transferência de sentido. Assim sendo, nenhuma linguagem terá valor último. Essas indicações metodológicas nos fazem entrar na segunda parte deste artigo, na qual se tratará de fazer ver que o filósofo não propõe uma “fisiologia” em sentido estrito.

Reinterpretar o corpo em termos de moral

Nietzsche pôs em questão os saberes de sua época - sendo eles da ética ou da fisiologia -, chegando a propor uma nova inteligibilidade do corpo. Se nos pareceu que ele não é passível de ser considerado um “especialista da ética”, vamos agora aprofundar as razões que fazem com que ele tampouco seja um “fisiologista” em sentido estrito. O primeiro gesto que singularizaria Nietzsche em relação à fisiologia e, de modo mais geral, em relação à ciência, seria o de negar que se possa conhecer o corpo. Não será jamais recorrendo a um “saber” no sentido objetivo e dogmático do termo, que o filósofo se relacionará com o corpo humano. A seus olhos, a complexidade do corpo22 22 Cf. P. Wotling, 2005, p. 188: “Para Nietzsche, não há e não pode haver aqui conhecimento do corpo em sentido estrito”. excede a capacidade de conhecimento do homem, e a ciência não será exceção a esse princípio geral. Um fragmento póstumo de 1885, que analisaremos em seguida, proporciona uma visão geral desse postulado. Trata-se do fragmento 34 [46], no qual Nietzsche afirma que não se poderia igualar, por uma forma qualquer do pensamento, a complexidade do corpo. Segundo ele, nenhum conhecimento se fará então suficientemente potente para explicar as engrenagens do corpo, trazendo-as à transparência do conceito, ou à de leis gerais.

Ao proceder dessa forma, Nietzsche porém não ignora que a vida prática, com suas necessidades imperiosas, convida-nos a formar uma representação do corpo, essencialmente destinada a controlá-lo. Viver é formar uma imagem do corpo, destinada a agir sobre o mundo. De que modo agir sobre o mundo, sem se representar o corpo de uma maneira ou de outra? De que modo Nietzsche resolveu essa dificuldade que exercia um papel fundador, mesmo para o seu próprio pensamento?

Segundo o filósofo, o único meio de formar uma representação destinada a controlar o corpo seria o de introduzir uma forma de fixidez no vir-a-ser incessante. Se o corpo desafia o intelecto, até nos fazer duvidar da capacidade de conhecê-lo, é ao lhe introduzir formas fixas - esquemas intelectuais, fáceis de compreender - que se poderia reduzir a sua complexidade. Segundo Nietzsche, essa simplificação nos seria tão inevitável quanto indispensável: “O estudo do corpo fornece uma concepção de uma complexidade indizível. Se nosso intelecto não tivesse algumas formas fixas, seria impossível viver. Mas quanto a esse fato nada está provado no que diz respeito à verdade de todas as realidades lógicas"23 23 Nachlass/FP 1884-1885, 34 [46], KSA 11.434. . Esse texto confirma que o fenômeno do corpo escapa a toda apreensão conceitual. A rigor, o corpo é mais complexo do que o espírito, de tal modo que seria vão pretender conhecer o primeiro pelo segundo. Isso não significa, ainda uma vez, negar a necessidade de ter de se representar o corpo, já que essa é uma necessidade vital. Uma vez que o próprio Nietzsche se proporá a reinterpretar o corpo, ele jamais pretenderá reafirmar a verdade das “realidades lógicas”, mas pretenderá, isto sim, isolar no intelecto uma série de formas fixas, suscetíveis de proporcionar uma apreensão do corpo - por falta, assim sendo, de dizer a verdade do corpo.

Ao se mostrar preocupado com oferecer um modelo de inteligibilidade do corpo, Nietzsche aplicará uma “moral do método”, segundo o aforismo 36 de Para além de bem e mal - moral traduzindo uma probidade intelectual. Trata-se de interpretar o corpo obedecendo a certas formas fixas. Forçado a encontrar um fio condutor, Nietzsche proporá uma interpretação rigorosa, destinada a produzir efeitos. Nessa ética metodológica, durante a década de 1880 o filósofo faz a tentativa de interpretar o corpo segundo um paradigma moral.24 24 Cf. W. Müller-Lauter, 1998, p. 157: “Se em 1883, Nietzsche ainda aplicava ao problema da moral a fisiologia mecanicista, isso passa a servir ao inverso da explicação dos processos fisiológicos. O conceito de ‘moral’ é concebido aqui, evidentemente, de maneira ampla, a ponto de ultrapassar a esfera dos desejos e das paixões humanas que (…) deveria fornecer o ‘modelo’ de todo vir-a-ser. O ‘discurso metafórico’, que faz do corpo um edifício coletivo, remete ao domínio supraindividual de uma organização social - a exemplo de outras determinações que já foram mencionadas, por exemplo, ‘comunidade’, ‘aristocracia’”. Isso causa surpresa em face de sua crítica à moral baseada em uma má interpretação da fisiologia, crítica esta desenvolvida na mesma época. É preciso concluir daí que Nietzsche por vezes retraduzirá a moral em fisiologia, enquanto paralelamente reinterpretará o corpo em termos de moral? Se tal é o caso, como compreender a utilidade de um tal dispositivo, que parece circular ou estéril?

Essa proposição teórica, homogênea e unificada, terá por objetivo competir com a moral tradicional. O filósofo se pergunta se as morais humanas teriam sua origem em uma luta pela vida ou em uma luta contra a vida. Se a moral ascética visava enfraquecer o corpo, ela provinha de uma luta contra a vida; ao conferir às pulsões naturais um caráter imperativo, procede-se a reinventar uma moral reajustada à fisiologia. Em certos textos de 1884 e 1885, ele explica, assim, que o crescimento do corpo deveria resultar do exercício ininterrupto de numerosas virtudes, formando outras tantas qualidades voltadas à afirmação da vida. Em outros textos, Nietzsche se interessa pela compaixão dos órgãos, esta que serve como revelador do estado do corpo, ainda que houvesse órgãos no comando e outros que são chamados a se conformar ao dever (este seria seguido de uma execução, ou de uma recusa de execução).

Todos esses esforços visando a reintroduzir um paradigma moral respondem a uma necessidade intelectual e prática. Nietzsche repensa o corpo, para melhor agir sobre ele. Ele pretende avaliar as maneiras de pensar o corpo segundo o grau de controle que elas proporcionam. O corpo humano, tão complexo, dificilmente seria explicável pelas leis da causalidade, e nosso aparelho matemático não seria aqui de utilidade alguma. Para um autor como ele, que se pergunta como agir sobre o corpo, o modelo mecânico não oferece uma real satisfação, enquanto o paradigma moral se revela promissor, já que oferece uma tomada de ação. Eis o motivo pelo qual encontramos textos contraditórios durante os anos 1884 e 1885. Em certos textos, Nietzsche valoriza o mecanismo porque ele vê aí, provisoriamente, o método mais probo de interpretação do corpo, enquanto em outros ele interpreta o corpo humano de outra forma, e isso porque o organismo não obedece a nenhuma necessidade mecânica. Esse é o indício pelo qual Nietzsche deveria construir uma interpretação concorrente, a fim de controlar o corpo humano. O paradigma de uma subversão e de uma reapropriação de categorias morais não mais será estranho a esse objetivo.

Para bem ilustrar a oposição do mecanismo ao paradigma moral, passemos a ler alguns textos de 1884. No fragmento 25 [448], ele afirma: “O método que considera o mundo do ponto de vista mecânico é, por ora, de longe o mais probo: a boa vontade de controlar tudo o que o pode ser, todas as funções lógicas de controle, tudo o que não mente nem engana, estão aqui em ação"25 25 Nachlass/FP 1884-1885, 25 [448], KSA 11.132. . Nesse ponto, Nietzsche explica que o mecanismo não se constitui num esforço para atingir a verdade. Representa uma tentativa de controle. Ele admira o mecanismo em razão de sua eficácia e de sua probidade, visto que “nada mente nem engana”, no sentido em que o erro não tem lugar; mas afirma também, em outros textos, que o corpo humano não obedece a essa necessidade mecânica.

Convoquemos dois textos contemporâneos, que mostram que o filósofo não chega a interpretar o corpo segundo um paradigma mecanicista. Em razão dessa falha, ele se propõe a considerar o organismo com o auxílio de exigências morais. Citemos de início o fragmento 25 [432] de 1884, que é complexo. Esse texto contém numerosas marcas tipográficas, que traduzem ensaios ou tentativas da parte do filósofo. Há pontos de interrogação e travessões, interrupções do raciocínio e hesitações, afinal Nietzsche está pondo uma interpretação à prova:

Nós podemos considerar tudo o que é preciso fazer para CONSERVAR o organismo como uma “exigência moral”: há um “tu deves” para cada um dos órgãos que é intimado pelo órgão que comanda. Há uma insubordinação dos órgãos, há fraquezas da vontade e de caráter do estômago, por exemplo. Lá não reina necessidade mecânica - - -? são dadas certas ordens que não podem ser inteiramente seguidas (porque a força aí não é suficiente). Mas muitas vezes um esforço extremamente tenso do estômago, por exemplo, para realizar sua tarefa - uma mobilização da vontade, como a conhecemos pela experiência por ocasião de tarefas difíceis. O esforço e o grau que ele atinge NÃO podem ser compreendidos a partir de motivos conscientes: a obediência no caso do órgão não é um mecanismo que atua - - -?26 26 Nachlass/FP 1884-1885, 25 [432], KSA 11.126.

O caráter interpretativo do procedimento de Nietzsche aparece claramente nesse texto. Atentemos à pontuação e aos termos empregados. O filósofo se propõe a considerar o organismo “como” uma estrutura obediente às regras morais. Aqui ele não afirma que essas regras sejam de fato comandos éticos. Trata-se, por ora, de tentar obter um ganho de inteligibilidade e de controle, imaginando que o corpo obedece a deveres. Ao fazer essa escolha de método, ele se põe em busca de ações úteis para “conservar” o organismo. O objetivo de Nietzsche não é um progresso teórico, e sim ele deseja sobretudo compreender os recursos graças aos quais a vida se conserva e aumenta.

Nietzsche reinterpreta o corpo como uma grandeza variável, uma configuração de órgãos mais ou menos obedientes. Os órgãos respeitam ou não respeitam imperativos essenciais para o bom funcionamento do todo. Se há desobediência, o corpo está arriscado a se pôr a perder, enquanto a vitalidade aumenta ao que o corpo se mostra obediente. Há sempre uma possibilidade de obediência e de desobediência, já que o corpo não responde a uma conduta mecânica. Há uma certa imperfeição na vida do corpo, que corresponde ao que se passa na vida moral.

Raciocinado assim, Nietzsche distinguirá organismos anárquicos e corpos sãos, que respeitam os comandos garantidores de uma prosperidade. Mas o filósofo quer ressaltar a insubordinação em todo o corpo. O organismo é uma realidade por demais complexa para obedecer a uma regularidade perfeita. Nietzsche imagina regulações sobre o modelo do dever e prevê desvios em relação à regra. Certas ordens transmitidas pelos órgãos que comandam não são seguidas pelos órgãos que supostamente deveriam obedecer. Isso revela que a estrutura de comando não é suficientemente forte. O organismo é uma estrutura que não é infalível: o paradigma moral autoriza essas falhas ou deficiências.

Nietzsche explica que por vezes fazemos nós mesmos a experiência de uma desobediência interior, uma vez que sentimos uma fraqueza no estômago em seguida a uma refeição desequilibrada. O erro alimentar é compensado por uma tensão aumentada em se realizar um trabalho de digestão que monopoliza uma força grande demais. Nietzsche se interessa por esses ajustes de trocas orgânicas, por esses processos de compensação na sequência de uma desobediência, que são o indício de que há uma força de comunicação entre os órgãos, assim como um reequilíbrio nas relações de comando e de obediência entre as diferentes partes.

No fragmento 25 [432] de 1884, o filósofo escolhe assim o modelo do dever para interpretar o organismo. Trata-se de pensar comandos que provoquem uma reação de obediência e que por vezes engendrem uma desobediência. Pode-se comparar essa estratégia interpretativa à do fragmento 25 [426] de 1884. Aqui, Nietzsche recorre ao conceito de “virtude”. Essas duas opções interpretativas não são opostas, e sim muito mais complementares. O dever visa entrever o organismo segundo a perspectiva do comando, enquanto a virtude teria em vista muito mais caracterizar a ótica da obediência, tão logo esta se dê:

Os juízos “funções superiores” e “inferiores” devem estar já em todos os sistemas orgânicos, bem antes de toda sensação de prazer e de desprazer. A hierarquia é o primeiro resultado da avaliação: na relação dos órgãos entre eles, todas as virtudes devem já se exercer - obediência, zelo, prestatividade, vigilância -, o caráter de máquina está absolutamente ausente em todos os organismos (autorregulação).27 27 Nachlass/FP 1884-1885, 25 [426], KSA 11.124.

Esse texto confirma que Nietzsche tende a fazer uso do conceito de “virtude” muito mais para designar a obediência no seio do corpo. Mas trata-se de uma simples questão de perspectiva. Se seguimos o raciocínio do filósofo, não importa qual órgão seria suscetível de comandar e de obedecer, segundo a relação que ele estabelece com uma coisa ou com outra. Se um órgão aparece como função superior, ele comanda e enuncia um dever a outros órgãos, e, se aparece como função inferior, deve obedecer e dar mostras de virtude.

Observar-se-á que Nietzsche fala de “juízos” no mesmo organismo, num contexto em que faz uso do conceito de “virtude”. Durante o ano de 1884, ele redefine as virtudes como inteligências do corpo. Deseja mostrar que os órgãos funcionam com boa inteligência, uns com os outros. Cada órgão possui dons de percepção e capacidades de ação no seio de uma coletividade. Não é preciso conceber os juízos dos órgãos tomando o modelo de um conhecimento proposicional, e sim sob a forma de um sentimento de inferioridade e de superioridade, que se faz acompanhar de direitos ou de deveres.

Se os órgãos podem ser interpretados como seres vivos dotados de inteligência e capazes de entabular relações de comunicação, tal significa, de qualquer modo, que eles também formam entidades elementares que dão mostras de uma certa compaixão. Isso, Nietzsche o expressa no fragmento 25 [431] de 1884: “Existe no organismo humano, entre os órgãos diferentes, ‘compaixão’? Certamente, e no grau mais elevado. A forte ressonância e a extensão, pouco a pouco, de uma dor: uma propagação da dor, mas não da mesma dor"28 28 Nachlass/FP 1884-1885, 25 [431], KSA 11.126. .

Esse texto menciona uma comunicação entre os órgãos, inserindo no centro o prazer e a dor, como era o caso no fragmento 24 [426]. Nesse texto precedente, Nietzsche observava que o prazer e o desprazer se disseminam pelo organismo. Aos olhos do filósofo, o prazer e o desprazer, no entanto, não são indícios confiáveis, pois o sentimento de hierarquia prevalece, segundo a inferioridade e a superioridade. A compaixão dos órgãos se realiza segundo sentimentos agradáveis ou desagradáveis, mas o prazer ou o desprazer não são indicadores perfeitamente congruentes. A dor não é necessariamente o indício de um mal-estar, da mesma forma que o prazer pode acompanhar um estado perigoso. Assim, a dor em uma situação de desespero pode testemunhar um “zelo” e a segurança que um órgão traz a um outro, e isso prova que o organismo quer se conservar e que a estrutura de comando se mantém vigorosa. Inversamente, o prazer pode se revelar perigoso, já que confere testemunho de um relaxamento da vigilância. O prazer será o indício de que a estrutura de comando relaxa, o que não é bom sinal. Ao final, a recusa do sofrimento proporcionará um indício do estado enfraquecido do corpo, enquanto a resistência será uma garantia de saúde.

Se bem se analisa essas descobertas, compreende-se que Nietzsche faz mais do que um uso paródico das categorias morais: chega a teorizar uma ética que se ilustra pelas trocas orgânicas. Essa ética permite estabelecer diferenças, entre organismos mais ou menos vigorosos, segundo a medida em que são virtuosos. Isso permite, então, ao filósofo, afastar-se das morais naturais ou antinaturais. A moralidade do corpo teorizada por Nietzsche só pode mesmo entrar em oposição em relação a todas as morais da desvalorização do corpo que prevaleceram até o presente. A ideia de reinscrever uma certa moralidade no corpo autoriza assim a reavaliar os juízos morais em que transparece uma condenação do corpo. Nietzsche quer mostrar que o corpo contém em si todos os pré-requisitos para a sua conservação, e isso implica que a moralidade consciente possa se constituir numa perturbação.

Bem refletindo a esse respeito, o filósofo visa estabelecer novas relações de prioridade entre o domínio físico e o domínio intelectual. Essa mudança de perspectiva de início implica redefinir de maneira integral a moralidade numa ótica fisiológica. Essa moralidade situada na vida do corpo se traduzirá, posteriormente, nos juízos morais, que serão apenas um fenômeno terminal e superficial, ou um sintoma que manifestará tanto a saúde quanto a doença do corpo. Para confirmar esse aspecto, citemos o fragmento 25 [437] de 1884:

A moralidade efetiva do homem na vida de seu corpo é cem vezes maior e mais fina do que toda moralização que depende do conceito jamais o foi. O número de “tu deves!” que trabalham continuamente em nós! As considerações que têm uns pelos outros os postos de comando e os postos de obediência! O saber sobre as funções superiores e as inferiores que estão em ação aqui! O ensaio a se fazer, de considerar tudo o que tem o aspecto de utilidade como o ÚNICO a conservar a vida e por consequência o único a ser conservado - - - Na mesma relação em que se encontra o objetivo com relação a sua busca efetiva encontra-se o juízo moral com relação à atividade de julgar, que efetivamente se dá com muito mais variedade e fineza no organismo - o juízo moral aqui mais não é do que o seu prolongamento, o ato final.29 29 Nachlass/FP 1884-1885, 25 [437], KSA 11.128.

Esse fragmento permite distinguir a moralidade efetiva situada no corpo daquela que se exprime num nível superficial, nos juízos morais ou nos conceitos. Nietzsche observa que o corpo é o local primordial da moralidade: todos os “tu deves” e todas as “virtudes” desempenham uma função já no plano fisiológico. Uma vez que o corpo sabe o que é preciso fazer, a moral consciente se adapta, mas traduz de maneira apenas aproximativa os comandos da vida. Ao raciocinar assim, Nietzsche se propõe a seguir o fio condutor do corpo e a restringir progressivamente a moral às ações úteis para conservar o organismo. Doravante é a conservação da vida que deve decidir o que é a moralidade, e não a moralidade consciente que deve impor suas leis à vida.

Reconstruir as leis da ação

Todos os problemas da ação devem ser postos novamente, pois a moral é redefinida a partir das exigências do corpo. Essa reforma esboçada em 1884 será a todo tempo sempre aprofundada por Nietzsche nos textos posteriores. Tratar-se-á sempre de revalorizar a sabedoria do corpo e de instaurar uma ordem de prioridade, com relação a toda forma de moralização que dependa do conceito.

Ao inverter as relações do corpo e da moralidade consciente, Nietzsche vai assim reconstruir as leis de ação. A ação humana nada mais é do que uma repercussão dos vícios e das virtudes que se exercem na esfera fisiológica. Ela não é um resultado da deliberação ou do raciocínio.30 30 Aos olhos de Nietzsche, uma linha de conduta acompanhada de uma necessidade permanente de justificação simplesmente fracassa em fazer o essencial, isto é, em agir, com firmeza, sem se embaraçar nos labirintos de um raciocínio que acabará por comprometer a segurança dos instintos. Ver Nachlass/FP 1887-1889, 14 [129], KSA 13.310: “Havendo saber, não há perfeição em nenhuma ação de nenhum tipo”. Se a execução da ação deriva do estado do corpo, a consciência não mais representa um real guia: ela se vê efetivamente relegada à classe de epifenômeno. É a moralidade ou a imoralidade do corpo que vão repercutir nos atos. Poderíamos assim conceber a moral de um homem, ou de um povo, como consequência da ordem ou da desordem que eles encarnam fisiologicamente. As morais ascéticas, que professam a condenação do corpo e naturalizam a degenerescência, são reinterpretadas por Nietzsche como consequências de vícios ou aberrações fisiológicas, enquanto as morais aristocráticas voltadas para a afirmação da vida traduzirão a virtude do corpo da mesma forma que as ações.

Ao reavaliar a vida moral dessa maneira, Nietzsche fixa novos critérios para reformar os comportamentos humanos. Isso nos conduzirá, então, a estudar um último uso do vocabulário moral na obra do filósofo, que se inscreve em sua tentativa de quebrar as antigas tábuas de valor e escrever novas tábuas. Tal implica proceder, uma vez mais, a uma subversão e a uma reapropriação das categorias morais, a fim de reconstruir as leis da ação.

Para ilustrar a reapropriação das antigas categorias morais para fins de transvaloração dos valores e de renovação de ideais, insistamos no uso complexo que Nietzsche faz da noção de “virtude” (Tugend). Façamos a escolha de nos debruçarmos sobre essa categoria moral, pois é por meio dela que Nietzsche resume seu projeto de transvaloração dos valores. Isso o leva a distinguir as antigas qualidades morais em relação ao que o profeta Zaratustra nomeia a “nova virtude”31 31 Za/ZA I, Da árvore na montanha, KSA 4.53. . No aforismo 214 de Para além de bem e mal, Nietzsche oporá ainda certas velhas virtudes a outras qualidades, que formarão os traços distintivos dos europeus do futuro. O filósofo rejeita as “virtudes ingênuas, inteiriças virtudes pelas quais temos em alta estima, mas também um pouco à distância, nossos avós”32 32 JGB/BM 214, KSA 5.151. , e ele fala igualmente das futuras virtudes, as dos “europeus de depois de amanhã”. Com relação a essa confrontação - que opõem as virtudes do passado e as virtudes do futuro -, perguntamo-nos como Nietzsche pode criticar um conceito envelhecido e dele se reapropriar.

No coração da concepção nietzschiana das virtudes encontra-se uma reflexão sobre a historicidade. Por que Nietzsche faz a escolha de subverter esse conceito antigo de virtude, com o intuito de nele insuflar uma nova significação? Como compreender o fragmento 2 [31] de 1885, que teria podido servir de título a Para além de bem e mal: “Nossas virtudes. Indicações para uma moral do futuro”33 33 Nachlass/FP 1885-1887, 2 [31], KSA 12.78. ? Para esclarecer esse aspecto, vamos nos deter no “virtuísmo” nietzschiano. Nietzsche compartilha com os teóricos da ética o preconceito otimista segundo o qual será sempre possível adquirir virtudes e corrigir falhas. O filósofo abandona a moral, já não acredita no pecado ou no mérito, mas considera ser possível incorporar qualidades reais. No fragmento 26 [197] de 1884, afirma o seguinte: “Que se possa adquirir virtudes e se livrar de falhas, aí não se tem nenhuma dúvida: o que exatamente se passa nesses casos? ”34 34 Nachlass/FP 1884-1885, 26 [197], KSA 11.201. . Esse fragmento é significativo de uma nova maneira de pensar. Nietzsche afirma quase a mesma coisa que os teóricos da ética ou os teólogos, mas na verdade quer dizer outra coisa. Não deseja inserir o homem no caminho do aperfeiçoamento moral ou da santidade; não deseja afastar o homem do pecado ou da imoralidade. O seu propósito vai se situar mais no plano do êxito fisiológico.

Nietzsche considera que o homem deve favorecer seu corpo para adquirir virtudes, em escala individual ou coletiva. Se o corpo é negligenciado, no curso de gerações se contrairão vícios e numerosas deformidades. Quando se insere o debate nesse nível físico, nada o impede, na sequência, de observar a linha de conduta que um indivíduo ou uma linhagem vão adotar no decorrer do tempo. Segundo Nietzsche, os seres humanos transpõem em suas condutas o êxito ou o fracasso que encarnam fisiologicamente. A proposta do filósofo se pretende fisiológica, mas as virtudes ou os vícios comportamentais derivam dessa esfera originária de condicionamento.

Para um autor como Nietzsche, que se pergunta sobre como agir quanto às virtudes, convém então favorecer ao máximo o homem no plano físico, sem o superproteger: será mais útil prescrever-lhe o que é difícil, a fim de que ele se fortaleça. As morais não são destinadas, segundo Nietzsche, a reprovar os comportamentos humanos, mas, ao contrário, a valorizar os que são valorosos. Segundo essas oposições, uma moral visa selecionar os comportamentos por meio dos quais o homem se fortalece e capitaliza os bons instintos. De nada serve corrigir superficialmente os costumes se não se transformar em profundidade os instintos humanos, durante um longo período de tempo. Desde a época de Aurora, essa problemática vem substituir as reflexões dos teóricos da ética sobre o aperfeiçoamento moral.

No fragmento 7 [155] de 1880, Nietzsche já invertia as relações de prioridade entre as necessidades éticas e o melhoramento do corpo: “Levar a sério os detalhes que nos tocam mais de perto e favorecer o homem ao máximo no plano físico - ver qual gênero de ética nele então se desenvolve - esperar! as necessidades éticas devem ser adaptadas a nosso corpo!- Mas os atletas!”35 35 Nachlass/FP 1880-1882, 7 [155], KSA 9.348. . Nietzsche desenvolve uma reflexão sobre as necessidades éticas que progressivamente serão as mais bem adaptadas ao corpo.36 36 Cf. H. Lemke, 2000. Ver em particular as análises do fragmento 7 [155] de 1880 nas páginas 287-288. Essa reflexão comporta uma dimensão temporal: convém favorecer o corpo, e esperar. O filósofo toma o exemplo dos atletas, que não podem transigir com sua disciplina física. Um atleta começa por se tornar forte, deverá continuar a sê-lo e, para tanto, não poderá agir de outra forma que não seja a de desenvolver necessidades éticas adaptadas ao corpo. Entre os atletas, o corpo é posto diante dos mais duros dispêndios e se fortalece gradualmente. O atleta busca os meios de conservar sua força, e isso garante que os melhores hábitos de vida serão integrados. Nietzsche se pergunta se é possível conceber analogamente as necessidades éticas de um indivíduo, ou de um povo, segundo esse mesmo modelo.

Todo bom hábito decorre do fortalecimento do corpo. É um resultado, e não apenas um começo. Assim, o problema das relações entre as causas e as consequências deve ser momentaneamente posto de parte. Essa reforma da causalidade em moral implica avaliar os vícios e as virtudes de forma diferente de como o fizeram os teóricos da ética. Se doravante é a conservação da vida que deve decidir sobre o que é a moralidade, e se as necessidades éticas devem se adaptar ao corpo, isso quer dizer que um modo de vida virtuoso será o resultado de um longo condicionamento, preparado já de início. A virtude se definirá assim como uma vantagem evolutiva, comparável a um capital acumulado. A Gaia ciência, notadamente o aforismo 9, explica que uma virtude adquirida num estágio embrionário será transmitida aos herdeiros, e se tornará inata para eles.37 37 Cf. M. Langer, 2010. Progressivamente, o modo de vida virtuoso de uma linhagem se enraíza no organismo. Ao final, a sucessão de gerações favorece a interiorização e o crescimento da virtude. As qualidades adquiridas por um indivíduo não são perdidas: as virtudes se conservam, se transmitem e germinam, chegando a conhecer uma florescência, isso com a condição de progredir pacientemente.

Esse cuidadoso trabalho se voltará para a situação inversa, uma vez que a herança assume a forma de uma engrenagem, e um complexo vicioso se transmite no curso de gerações. Aos olhos de Nietzsche, o comportamento depravado de um indivíduo ou de uma casta traduzirá uma desordem anterior no coração dos instintos. O vício jamais será uma causa do pecado ou da infelicidade, ao contrário do que afirmam os teóricos da ética, mas será sempre uma consequência de numerosos erros, ou aberrações fisiológicas.

Conclusão

Com relação a essas inversões de perspectivas sobre o organismo e sobre a ação, Nietzsche afirma que seria necessário rever nossas crenças relacionadas a virtudes ou vícios.38 38 Nachlass/FP 1887-1889, 14 [113], KSA 13.290. Não é o caso de que a virtude vá trazer a felicidade e a prosperidade, mas sim, ao contrário, é a felicidade e a prosperidade que tornam virtuoso. Da mesma forma, não é o vício que vai nos corromper e trazer o infortúnio, e sim, ao contrário, são a corrupção e o infortúnio que nos tornam viciosos. Ao raciocinar assim, Nietzsche de modo algum deseja moralizar: o vício, a seus olhos, não é nem falta nem pecado, e sim muito mais uma tara, resultante de uma alteração ou de uma degenerescência física mantida pelos ancestrais. Da mesma forma, a virtude não é um mérito moral: ela se torna uma inclinação do corpo são. Pois o corpo em saúde realizará instintivamente as ações que garantem sua conservação, após uma longa capitalização dos ancestrais, tendo cultivado os bons instintos. É a razão ou a desrazão do corpo que produzirão então os comportamentos virtuosos ou viciosos. Nietzsche inverte as relações de causalidade dos teóricos da ética, mas também se dá os meios para cultivar novas virtudes em face do princípio de calúnia do corpo, que durante muito tempo serviu de princípio às morais.

Referências

  • BARBERA, Sandro. “‘Die thatsächliche Moralität des Menschen’. Nietzsches Auseinandersetzung mit Kant von der Morgenröthe bis zu Jensteits von Gut und Böse”. In: Beatrix HIMMELMANN. Kant und Nietzsche im Widerstreit Berlin/New York: de Gruyter, 2005, pp. 130-142.
  • BERTOT, Clément. “Pulsions et vertus. Les enjeux d’une lecture arétique de Nietzsche”. In: L’Art du comprendre, 26, 2022, pp. 43-72.
  • LANGER, Monika. Nietzsche’s Gay Science. Dancing Coherence New York: Palgrave Macmillan, 2010.
  • LEMKE, Harald.“Nietzsche: Kritische Theorie als Ethik”. In: Renate RESCHKE, Nietzscheforschung. Jahrbuch der Nietzsche-Gesellschaft, Band 5/6. Berlin: Akademie Verlag, 2000, pp. 279-292.
  • MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche. Physiologie de la volonté de puissance Trad. J. Champeaux. Paris: Allia, 1998.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: de Gruyter, 1999.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Aurore Trad. É. Blondel, O. Hansen-Løve, Th. Leydenbach. Paris: Flammarion (col. “GF”), 2012.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Par-delà bien et mal Trad. P. Wotling. Paris: Flammarion (col. “GF”) , 2000.
  • WOTLING, Patrick. “L’entente de nombreuses âmes mortelles. L’analyse nietzschéenne du corps”. In: Jean-Christophe GODDARD. Le corps Paris: Vrin (col. “Thema”), 2005, pp. 169-190.
  • WOTLING, Patrick. “‘Physiologisch gefragt’, ‘psychologisch geredet’, ‘moralisch ausgedrückt’. La logique du ‘nouveau langage’ de Nietzsche”. In: Céline DENAT, Alexandre FILLON, Patrick WOTLING (org.). Les logiques du discours philosophique en Allemagne de Kant à Nietzsche Reims: ÉPURE, Langage et pensée 13, 2019, pp. 319-342.
  • *
    Tradução de Saulo Krieger
  • 1
    Nachlass/FP 1884-1885, 25 [437], KSA 11.128.
  • 2
    GD/CI, Os quatro grandes erros 2, KSA 6.89.
  • 3
    Este artigo retoma uma conferência proferida em 12 de outubro de 2022 na Universidade de Dijon. Agradeço aos professores Jean-Claude Gens e Jean-Philippe Pierron por terem me convidado, assim como ao público presente nesse dia, que me incentivou a aprofundar minhas ideias.
  • 4
    Ver EH/EH, Por que sou um destino 2, KSA 6.366.
  • 5
    Nachlass/FP 1885-1887, 2 [31], KSA 12.78.
  • 6
    Cf. S. Barbera, 2005BARBERA, Sandro. “‘Die thatsächliche Moralität des Menschen’. Nietzsches Auseinandersetzung mit Kant von der Morgenröthe bis zu Jensteits von Gut und Böse”. In: Beatrix HIMMELMANN. Kant und Nietzsche im Widerstreit. Berlin/New York: de Gruyter, 2005, pp. 130-142.. Nesse artigo, Sandro Barbera se apoia no fragmento 25 [437] de 1884 para reconstruir o debate de Nietzsche com Kant e Schopenhauer.
  • 7
    Cf. C. Bertot, 2022BERTOT, Clément. “Pulsions et vertus. Les enjeux d’une lecture arétique de Nietzsche”. In: L’Art du comprendre, 26, 2022, pp. 43-72. .
  • 8
    Nachlass/FP 1884-1885, 26 [79], KSA 11.169: “Condições do sábio. É preciso se desconectar da sociedade para uma culpabilidade em todos os domínios”.
  • 9
    Cf. P. Wotling. 2019WOTLING, Patrick. “‘Physiologisch gefragt’, ‘psychologisch geredet’, ‘moralisch ausgedrückt’. La logique du ‘nouveau langage’ de Nietzsche”. In: Céline DENAT, Alexandre FILLON, Patrick WOTLING (org.). Les logiques du discours philosophique en Allemagne de Kant à Nietzsche. Reims: ÉPURE, Langage et pensée 13, 2019, pp. 319-342..
  • 10
    Para uma ilustração dessa primeira estratégia, ver Nachlass/FP 1887-1889, 16 [10], KSA 13.485: “Os grandes momentos de cultura foram sempre, moralmente falando (moralisch geredet), momentos de ‘corrupção’. Nessa passagem, Nietzsche se reapropria da palavra ‘corrupção’, sem lhe acrescentar a dimensão pejorativa que ela habitualmente comporta em razão da condenação moral (na qual o filósofo não crê, já que aqui ele evidencia muito mais uma degenerescência fisiológica).
  • 11
    Para uma ilustração dessa segunda estratégia, ver Nachlass/FP 1884-1885, 37 [4], KSA 11.576: “Guiados pelo fio condutor do corpo, como eu o disse, ficamos sabendo que nossa vida só é possível graças ao jogo combinado de numerosas inteligências de valor muito desigual, portanto graças a um perpétuo intercâmbio de obediência e de comando sob formas inumeráveis — ou, em termos de moral (moralisch geredet), graças ao exercício ininterrupto de numerosas virtudes. E de que modo se poderia deixar de falar em moral!...”. Retornaremos mais adiante à manipulação nietzschiana da noção de “virtude”.
  • 12
    M/A 453, KSA 3.274: “Construir novamente as leis da vida e do agir — para essa tarefa nossas ciências da fisiologia, da medicina, da sociedade e da solidão não se acham ainda suficientemente seguras de si: e somente delas podemos extrair as pedras fundamentais par novos ideais (se não os próprios ideais mesmos).”
  • 13
    Nachlass/FP 1884-1885, 25 [309], KSA 11.91: “Toda ética até aqui se mostrou indefinidamente limitada e local: cega e de má fé com relação a leis reais. Ela esteve aí não para explicar, mas para impedir certas ações”.
  • 14
    Mais adiante trataremos com mais vagar da questão do reducionismo (à que Nietzsche não sucumbe).
  • 15
    Nachlass/FP 1880-1882, 6 [445], KSA 9.313.
  • 16
    Nachlass/FP 1887-1889, 11 [83], KSA 13.39.
  • 17
    M/A 83, KSA 3.79.
  • 18
    Nachlass/FP 1885-1887, 9 [86], KSA 12.380.
  • 19
    Nachlass/FP 1880-1882, 11 [103], KSA 9.478.
  • 20
    A despeito da condenação geral à moral heleno-cristã, Nietzsche não desconsidera as diferenças entre a virtude antiga e a moral cristã. No aforismo 122 da Gaia ciência, ele ressalta que a virtude dos gregos nos é inacessível em razão de nossa impregnação pelos ideais cristãos. A ideia grega de virtude é a ideia de excelência. Na tradição pagã, o agente moral podia se voltar para a sua própria perfeição. Na perspectiva cristã, nenhum homem é “sem pecado”, e é por isso que a noção de virtude, visando à perfeição, não é solucionável no âmbito do cristianismo.
  • 21
    JGB/BM 230, KSA 5.167.
  • 22
    Cf. P. Wotling, 2005WOTLING, Patrick. “L’entente de nombreuses âmes mortelles. L’analyse nietzschéenne du corps”. In: Jean-Christophe GODDARD. Le corps. Paris: Vrin (col. “Thema”), 2005, pp. 169-190. , p. 188: “Para Nietzsche, não há e não pode haver aqui conhecimento do corpo em sentido estrito”.
  • 23
    Nachlass/FP 1884-1885, 34 [46], KSA 11.434.
  • 24
    Cf. W. Müller-Lauter, 1998MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche. Physiologie de la volonté de puissance. Trad. J. Champeaux. Paris: Allia, 1998., p. 157: “Se em 1883, Nietzsche ainda aplicava ao problema da moral a fisiologia mecanicista, isso passa a servir ao inverso da explicação dos processos fisiológicos. O conceito de ‘moral’ é concebido aqui, evidentemente, de maneira ampla, a ponto de ultrapassar a esfera dos desejos e das paixões humanas que (…) deveria fornecer o ‘modelo’ de todo vir-a-ser. O ‘discurso metafórico’, que faz do corpo um edifício coletivo, remete ao domínio supraindividual de uma organização social - a exemplo de outras determinações que já foram mencionadas, por exemplo, ‘comunidade’, ‘aristocracia’”.
  • 25
    Nachlass/FP 1884-1885, 25 [448], KSA 11.132.
  • 26
    Nachlass/FP 1884-1885, 25 [432], KSA 11.126.
  • 27
    Nachlass/FP 1884-1885, 25 [426], KSA 11.124.
  • 28
    Nachlass/FP 1884-1885, 25 [431], KSA 11.126.
  • 29
    Nachlass/FP 1884-1885, 25 [437], KSA 11.128.
  • 30
    Aos olhos de Nietzsche, uma linha de conduta acompanhada de uma necessidade permanente de justificação simplesmente fracassa em fazer o essencial, isto é, em agir, com firmeza, sem se embaraçar nos labirintos de um raciocínio que acabará por comprometer a segurança dos instintos. Ver Nachlass/FP 1887-1889, 14 [129], KSA 13.310: “Havendo saber, não há perfeição em nenhuma ação de nenhum tipo”.
  • 31
    Za/ZA I, Da árvore na montanha, KSA 4.53.
  • 32
    JGB/BM 214, KSA 5.151.
  • 33
    Nachlass/FP 1885-1887, 2 [31], KSA 12.78.
  • 34
    Nachlass/FP 1884-1885, 26 [197], KSA 11.201.
  • 35
    Nachlass/FP 1880-1882, 7 [155], KSA 9.348.
  • 36
    Cf. H. Lemke, 2000LEMKE, Harald.“Nietzsche: Kritische Theorie als Ethik”. In: Renate RESCHKE, Nietzscheforschung. Jahrbuch der Nietzsche-Gesellschaft, Band 5/6. Berlin: Akademie Verlag, 2000, pp. 279-292.. Ver em particular as análises do fragmento 7 [155] de 1880 nas páginas 287-288.
  • 37
    Cf. M. Langer, 2010LANGER, Monika. Nietzsche’s Gay Science. Dancing Coherence. New York: Palgrave Macmillan, 2010..
  • 38
    Nachlass/FP 1887-1889, 14 [113], KSA 13.290.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
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