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Espaço, modernidade e branquitude: notas desde Cidade Ademar, São Paulo1 1 Agradeço à Viviane Nogueira, Ana Cristina Araújo, Emmily Leandro, Karoline Santos da Silva, Lea Tosold, Natália Alves e Renato Emerson pelas leituras e conversas cuidadosas e pelo incentivo à escrita deste texto. Agradeço também a todas as pessoas que compõem os núcleos de pesquisa e estudo NEGRAM/IPPUR e GIRA – Coletiva de estudo-intervenção antirracista e anticolonial, espaços de debate, acolhimento e inspiração que foram fundamentais ao desenvolvimento deste texto.

Resumo

Neste artigo intento retomar a noção de espaço e sua construção como categoria moderna orientada pela racialidade, pelos pilares ontoepistemológicos da separabilidade, da determinabilidade e da sequencialidade, pautada em uma pretensão universal. Contraponho o espaço moderno ao espaço-lugar, tal como proposto por Muniz Sodré, para, em meio a essa contraposição, vislumbrar outras possibilidades de compreender e habitar o espaço. Apresento assim o movimento de renovação urbana em curso em Cidade Ademar (SP) enquanto jogo com a afetabilidade como caminho para explorar as frestas que a representação espacial moderna busca ocultar no distrito. Trato, enfim, de apresentar/confrontar o sujeito moderno que se esconde sob o manto da racionalidade e da universalidade, aquele que organiza e se apropria do espaço por ele continuamente nomeado, a fim de desnaturalizar a violência moderna/colonial que suprime outros entendimentos espaciais orientados pela relacionalidade, ou pela afetabilidade.

Palavras-chave:
Espaço-lugar; Território; Modernidade; Branquitude; Branqueamento do Território

Abstract

In this article I attempt to reclaim the notion of space and its construction as a modern category oriented by raciality, by the onto-epistemological pillars of separability, determinacy and sequentiality, based on a universal pretension. I contrast modern space with place-space, as proposed by Muniz Sodré, in order, in the midst of this contrast, to glimpse other possibilities of understanding and of inhabiting space. Thus, I present the ongoing movements of urban renewal in Cidade Ademar, São Paulo, while playing with affectability as a way to explore the cracks, which modern spatial representation seeks to hide in the district. Lastly, I attempt to present/confront the modern subject who hides himself under a cloak of rationality and universality, who organizes and appropriates the space he continually names, in order to denaturalize the modern/colonial violence that suppresses other spatial understandings oriented by relationality, or by affectability.

Keywords:
Place-space; Territory; Modernity; Whiteness; Whitening of the Territory

Após escrever este ensaio, pude entender um pouco melhor o que me movia: buscava desaguar incômodos no papel e nomeá-los. Chamo de incômodos as urgências que nos movem à pesquisa, aquilo que se convencionou nomear como “problemas de pesquisa”. Faço-o, no entanto, com as dificuldades de partir de mim, compreendendo meu corpo e as marcas que ele carrega. Como partir de mim, como me expor, sem fazer de meu corpo objeto a ser dissecado por uma academia fundada sob a ossada de meus antepassados? Tento seguir a trilha aberta pelas conversas com minhas avós e outros tantos que viveram Cidade Ademar, São Paulo, corpos que produzem e sempre produziram conhecimento, e me pergunto a que lugares essa trilha poderia me levar enquanto pesquiso o distrito onde vivemos. Não parto da racionalidade absoluta, das abstrações não afetáveis que algum sujeito universal poderia utilizar para analisar o objeto distante que planeja conhecer. Meu corpo se rebela perante sua condição de objeto no campo das ideias e agora já não desejo acessar esse lugar que me é negado. Ao contrário, almejo a dissolução desse campo abstrato, buscando uma escrita que reaproxime sentir e pensar, que reposicione meu corpo em um lugar onde teoria e prática, afetações e abstrações não sejam campos cindidos, separados. Chego aqui cansado de me enclausurar até onde a gramática moderna tem me permitido chegar, a cada dia menos inseguro quanto aos caminhos que se abrem a partir de sua crítica.

Figura 1
Meu pai e eu em frente à nossa casa

Toda a dificuldade deste texto, como do[s] anterior[es], vem da vontade “onipotente” de desligar-me dos mestres, como se pudesse inventar uma língua dentro desta própria em que escrevo. (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, M. B. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. [S.l.]: Filhos da África, 2018. , p. 420).

Introdução

Nasci e cresci em Cidade Ademar, distrito localizado na periferia da Zona Sul de São Paulo que faz fronteira com Diadema e é ocupado por uma população majoritariamente negra (IBGE, 2010IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.). Aprendi minhas primeiras palavras ainda na casa de meus avós, que nos acolheram, me fizeram saber que era bem-vindo neste mundo, e que vivem na região há meio século. Foi desde lá que fiz minhas primeiras viagens à Cidade,2 2 Grafo em alguns momentos do texto a palavra “Cidade” com a letra inicial maiúscula para indicar os “distantes (em relação ao local periférico onde vivia) centros de comércio e serviços”. Trato desses centros enquanto Cidade partindo de memórias afetivas, como descrevo, por entender que a noção corrente, de uso popular, sintetiza elementos centrais em uma cidade desigual como São Paulo, na medida em que ganha sentido como resultado do reconhecimento da distância geográfica, das dificuldades de acesso, das cisões entre cidade legal e cidade ilegal/irregular, das oposições e complementariedades entre centro e periferia. Enfim, trago a noção por seu potencial sintetizador e acessibilidade. como nos referíamos aos distantes centros de comércio e serviços, e a partir de onde fui experenciando a vida urbana. Foram nessas longas jornadas em ônibus lotados - e, para nós, caros - que comecei a expandir meus horizontes e entendimentos sobre a cidade, seus lugares e signos. Foi no processo de expansão do meu mundo que descobri que todo o cuidado era pouco enquanto estivesse na rua, que meu espaço de aprendizado, sociabilidade e lazer - meu espaço de vida - já era, antes do meu nascimento, um espaço de perigo e violência, um dos mais violentos da cidade nos anos 1990 (FOLHA, 1990CIDADE Adhemar, em Santo Amaro, é o bairro mais violento de São Paulo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 nov. 1990. Caderno Cidade, p. 1. ). Aos poucos, enquanto me deslocava para acessar os hospitais, os parques, os projetos esportivos gratuitos no centro da cidade, compreendi que estava distante, apartado da Cidade. “Eu saudava o mundo com um aceno e o mundo me amputava o entusiasmo. Estavam pedindo que eu me confinasse, que eu me encolhesse”3 3 Ao final desses três primeiros parágrafos, reproduzo trechos extraídos do capítulo “A experiência vivida do negro”, escrito por Frantz Fanon (2020). Trago-os aqui para apontar para uma experiência comum, onde tempos e espaços distintos (os vividos por mim e os narrados-vividos por Fanon) se entrelaçam, e que, portanto, integra também os espaços narrativos construídos neste texto ao tensionar a forma de produção científica mediante sua organização/gramática moderna. Adiante, ainda na introdução, retomo a explicação sobre tais espaços narrativos. (FANON, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. , p. 130).

Meu mundo poderia estar em expansão, mas essa expansão demarcava que a nossa casa estava distante, em uma zona de atraso, perigo, com pouca infraestrutura e pouca segurança: um espaço em urbanização, a ser civilizado. Lá eu via as relações de cuidado e apoio mútuos que eram estabelecidas entre minha avó e nossas vizinhas; o fato, para mim impressionante, de que boa parte das pessoas que ali viviam tinha erguido a própria casa; e as histórias sobre como o bairro havia conquistado alguma infraestrutura ao longo dos anos (com muita luta dos moradores, soube depois). Contudo, todos esses signos de potência, que pareciam desenhar um futuro certamente esperançoso para nós, não eram refletidos, ou tomados em conta, quando da construção das narrativas e das políticas públicas direcionadas à Cidade Ademar - ou, mais especificamente, Americanópolis e Vila Missionária, os bairros que localizam a casa de meus avós. “Queria ter chegado lépido e jovial a um mundo que fosse nosso e que juntos construíssemos” (FANON, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. , p. 128).

Inconformado com a distância e a desigualdade que demarcavam meu espaço em relação à Cidade que conhecíamos, fizemos o que podíamos para que eu pudesse me integrar, para que soubessem que também posso ser civilizado, inteligente, que posso cuidar do mundo, mas que meu mundo demanda cuidado. Foi só aos quinze anos, a quadras de casa, quando pela primeira vez vi um revólver apontado para minha cabeça em um enquadro de rotina realizado pela Polícia Militar, que compreendi que eu não era lépido e jovial4 4 “Nas colónias, o interlocutor válido e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o polícia e o soldado” (FANON, 1979, p. 23). . Era muleque, neguim, menor. Aparentemente o processo que significava meu distrito a partir da violência me significava também como perigoso. Meu corpo simbolizava o perigo que, me alertavam, eu devia temer. “Enquanto eu esquecia, perdoava e somente desejava amar, minha mensagem me era devolvida como uma bofetada em pleno rosto. O mundo branco, o único respeitável, negava-me qualquer participação” (FANON, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. , p. 130).

Hoje, Cidade Ademar passa por um processo de intensa renovação urbana. Com a aprovação, em São Paulo, do novo Plano Diretor (2014) e do Plano de Zoneamento (2016), o distrito vem sendo palco de fortes transformações, que têm como epicentro o bairro de Jardim Prudência, ocupado por uma população majoritariamente branca. Em meio a sua verticalização, a paisagem urbana rapidamente se modifica: pequenas e grandes casas dão lugar a condomínios fechados; pequenos comércios perdem lugar para grandes galerias destinadas ao aluguel; feirantes de rua e ambulantes defrontam-se com agentes reguladores e repressivos do Estado; novos cartazes de “vizinhança solidária” informam que os moradores estão prontos para chamar a Polícia Militar caso identifiquem qualquer atitude suspeita, a fim de garantir a segurança no bairro. São signos que parecem montar o cenário da nova vida que os diversos empreendimentos lançados na região anunciam (Figura 2).

Figura 2
Vizinhança solidária, Jardim Prudência

O processo de transformação no distrito, informado pelas experiências nele vividas, levanta algumas questões para mim. A racialidade, que demarca nossos corpos e experiências, estrutura de alguma forma esse processo? Como a narrativa de uma “nova vida”, prometida pelos empreendimentos e mediada pelas transformações no distrito, se relaciona com as narrativas anteriormente produzidas sobre o local? Enfim, que tipo de compreensão sobre o espaço viabiliza as formas de compartimentação, apropriação e transformação sob as quais ele parece estar submetido?

Principio este artigo com memórias, reflexões e questionamentos que impulsionam o processo de escrita deste mesmo texto, deslocando-o de um processo apenas abstrato-racional para um processo repleto de afetações que me expõem enquanto autor. A trama que teço ao longo deste artigo é permeada por reflexões, exposições e referências destacadas, escritas em itálico. Objetivo contribuir, com esses espaços narrativos, para evidenciar encontros e tensões que se desdobram do esforço prático e teórico de compreender para dissolver a gramática moderna e suas expressões de violência, bem como para expor (im)possibilidades construídas e enunciadas fora da gramática moderna que, embora ocultadas, existem.

Ao longo do texto articulo noções de espaço, modernidade e território para pensar de forma racializada a construção material e ideológica do espaço como categoria moderna e situar as experiências e transformações anunciadas. Busco aqui diálogo com diversas(es) autoras(es)5 5 Privilegio aqui o diálogo com autoras(es) da diáspora, sobretudo aquelas(es) que produzem seu conhecimento desde o Brasil, reconhecendo sua potência e a importância de valorizar sua produção em um contexto no qual nosso trabalho tende a ser pouco estimado. Sem a pretensão de exaurir o campo, apresento em notas de rodapé ao longo do texto alguns conceitos e/ou autoras(es) que dialogam com a temática e não puderam ser aprofundados neste artigo, a fim de apresentar pontes possíveis e auxiliar a aproximação de eventuais leitores à produção acadêmica que circunda as questões aqui trabalhadas. que apontam para o entendimento da racialidade como fundamentalmente imbricada na construção do que chamamos modernidade, espaço ontológico, epistemológico6 6 Ou ontoepistemológico, como sugere Denise Ferreira da Silva (2007). SILVA, D. F. da. Toward a global idea of race. [S.l.]: University of Minnesota Press, 2007. v. 27. e base para práticas concretas de apreensão e transformação do mundo. Partindo de pontos diversos e organizando seus pensamentos de formas distintas, essas pessoas têm reivindicado a racialidade, e com isso a racialização da espécie humana e do espaço que habitamos, como elemento estruturante das teorias e práticas elaboradas no Ocidente7 7 Trato aqui da Europa, das Américas e da África, tendo em vista que a inclusão dos dois últimos continentes nesta categoria, que em alguma medida abriga um repertório político, cultural e epistêmico comum, se dá a partir da realização da violência colonial. pós-iluminista.

Trata-se, enfim, de uma escrita exploratória onde desejo aproximar os conceitos discutidos a um caso concreto de transformação urbana a fim de testar as possibilidades de entendimento que se abrem a partir da trama teórica construída. Ao não buscar respostas, esboço um caminho metodológico sob o qual possa realizar minha investigação e aprofundar a pesquisa em curso sobre Cidade Ademar. Tramo aqui bases que possam sustentar as reflexões vindouras.

1. Da modernidade

Muniz Sodré abre seu livro O terreiro e a cidade (1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. ) tratando da necessidade do pensamento ocidental moderno de desvendar (ou criar) sentidos para atribuir à realidade que o cerca. “É preciso transformar a qualquer preço o fato em ideia, em descrição, em interpretação [...]’” (id., ib., p. 8). Sendo a interpretação, ela própria, proveniente de uma base simbólica, também abstrata, cria-se uma “duplicação imaginária do real”, “interpreta-se sempre [com base em] uma interpretação já dada” (id., ib., p. 8). Esse olhar é, em alguma medida, partilhado pela artista e acadêmica Denise Ferreira da Silva, que afirma como práticas e discursos modernos almejam determinar a realidade, e obliterar A Coisa8 8 Coisa, aqui, se refere à matéria em estado bruto, um “referente de indeterminação” que o olhar moderno não é capaz de explicar em sua plenitude. Para aprofundamento do conceito, ver Silva (2019b). , pautando-se em sua “forma (abstração) ou pela lei (eficácia)” (SILVA, 2019bSILVA, D. F. da . Em estado bruto. ARS (São Paulo), v. 17, n. 36, p. 45-56, 2019b., p. 47).

Seguindo as diretrizes do pensamento moderno, é a partir do campo científico, em meio a permanentes conflitos e disputas internas, que se busca concretizar a determinação da verdade (ou das verdades, repartidas, compartimentadas), enquanto abstração. A ciência, como modelo do pensar que se pretende universal, compreende a realidade por meio de signos, os quais não se apresentam como aproximações do real, mas sim como a própria realidade, como “algo pleno, que preenche um espaço, leva ao conceito filosófico-científico e satisfaz à produção” (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 8).

Muniz Sodré compreende que no Ocidente é a universalidade, uma qualidade autoatribuída, que estabelecerá a verdade por intermédio da ciência e que, complementarmente, encontrará no campo científico sua fonte de legitimidade, uma das bases de exercício de seu poder. Para forjar-se, em contraposição às singularidades incontornáveis da Coisa - aquela que não se deixa esgotar pela teoria, que é imbricada, indeterminada, relacional -, o universal demanda oposições, seus Outros. Enquanto a categoria de universalidade, forjada pela racionalidade, permite a expressão da diversidade (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. , p. 27) e carrega a potencialidade da autodeterminação, os Outros ocupam o campo da diferença; são enclausurados em categorias mais estreitas e menos elásticas; são categorizados pelo olhar de alguém que não si mesmo; não alcançam a esfera da interioridade onde a razão governa; habitam a esfera da exterioridade; e, afetáveis, deveriam ser incapazes de autodeterminação (SILVA, 2014SILVA, D. F. da. Ninguém: direito, racialidade e violência. Meritum, Revista de Direito da Universidade FUMEC, v. 9, n. 1, 2014.).

Apresentando construções teóricas distintas, mas passiveis de diálogo, Sueli Carneiro e Denise Ferreira da Silva apontam para a racialidade como elemento estruturante desses Outros, constituídos e constituidores da modernidade, que, na teoria moderna, são apresentados e representados enquanto objetos, não sujeitos, assegurando assim a (pretensa) concretude do universal. Para essas autoras, a racialidade é um instrumento fundamental de classificação (leia-se, também, hierarquização) humana. Silva pode nos auxiliar a observar esse processo ao analisar a noção de diferença cultural, mobilizada a partir da racialidade:9 9 Outra análise crítica, bastante interessante, sobre a noção de diferença cultural pode ser observada em Fanon (2018).

Foi somente no início do século XX - depois que as análises da racialidade inscreveram o “Outro da Europa”, através da noção de diferença cultural, que esses homens em estado bruto puderam ser inscritos como variantes do Humano. [...] [Os Outros] são construídos como tipos específicos de seres humanos [...] como sujeitos afetáveis, aqueles cujas mentes não têm acesso à Razão, que é a capacidade cognitiva necessária para sustentar a ideia de uma lei moral e sua correspondente concepção de Liberdade. (SILVA, 2019bSILVA, D. F. da . Em estado bruto. ARS (São Paulo), v. 17, n. 36, p. 45-56, 2019b., p. 51).

Neste artigo, que almeja explorar um movimento de renovação urbana em um espaço predominantemente ocupado por uma população negra, cabe atenção à constituição do Outro, radicalmente Outro, encarcerado em uma imagem que não produziu sobre si mesmo e que não o reflete, o “inumano universal” (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 28), “uma alteridade situada nos confins do não-ser, para além dos Outros que foram admitidos, ainda que com reservas, na sua privacidade” (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. , p. 21). Trato aqui do corpo negro e da sua espacialidade, sobre os quais recairão, de forma privilegiada, as oposições criadas para construir esse sujeito universal e o espaço por esse corpo habitado.

Em Da diferença sem separabilidade, Silva (2016SILVA, D. F. da . Sobre diferença sem separabilidade. In: Bienal de Artes de São Paulo. Catálogo da 32a Bienal de Artes de São Paulo - Incerteza Viva, p. 57-65, 2016.) apresenta os três pilares ontoepistemológicos da modernidade: separabilidade, determinabilidade e sequencialidade. Para pensar o espaço junto a uma bibliografia crítica à modernidade, e em diálogo com Frantz Fanon, para quem “o mundo colonial é um mundo compartimentado” (1979FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Ebook.), darei aqui especial atenção à instrumentalização da separabilidade.

Esse princípio considera o social como um todo composto de partes formalmente independentes. Cada uma dessas partes, por sua vez, constitui tanto uma forma social como unidades separadas geográfica e historicamente que, como tal, ocupam posições diferentes diante da noção ética de humanidade, identificadas com as particularidades dos coletivos brancos europeus. (SILVA, 2016SILVA, D. F. da . Sobre diferença sem separabilidade. In: Bienal de Artes de São Paulo. Catálogo da 32a Bienal de Artes de São Paulo - Incerteza Viva, p. 57-65, 2016., p. 11).

Mediada pela racialidade, um significante sociológico da diferença humana que pressupõe desigualdades diante da noção ética de humanidade, encontramos a separabilidade também como categoria fundamental para se pensar a racialidade e vice-versa. No que diz respeito a este trabalho, confiro especial atenção à hierarquia racial que se constrói ancorada nessas categorias e, ao mesmo tempo, confere sentidos à operação das mesmas categorias. Sendo as particularidades dos coletivos brancos europeus um signo que compõe a determinação desse lugar normativo, e hierarquicamente mais alto, diante da noção de humanidade, sugiro aqui uma aproximação entre tais particularidades e o conceito de branquitude tal qual elaborado por Maria Aparecida Bento (2002BENTO, M. A. da S. Branqueamento e branquitude no Brasil. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 5-58.).10 10 Ciente do amplo debate que cerca os conceitos de branquitude, branquidade e brancura (aqui retomado como conjunto de características que fazem referência aos corpos e arcabouços culturais, idealmente, brancos), mobilizados em sentidos distintos nas últimas décadas, sugiro a discussão proposta por Lourenço Cardoso (2010), de forma a complementar e contextualizar o uso dos trabalhos e conceitos aqui retomados. CARDOSO, L. Retrato do branco racista e antirracista. Reflexão e Ação, v. 18, n. 1, p. 46-76, 2010. Para a autora, esse conceito ao mesmo tempo remete a traços que compõem a identidade racial do branco brasileiro; demarca uma posição de poder em relação ao Outro racializado - eminentemente o negro, no caso brasileiro; permeia a construção das políticas de embranquecimento postas em curso no Brasil; e parte da consideração do grupo branco como padrão universal de humanidade.

Com especial atenção às proposições de Muniz Sodré e Denise Ferreira da Silva, destaco então três características estruturantes do pensamento moderno: i) sua pretensão universalizante; ii) a racialidade, que vincula as particularidades dos coletivos brancos europeus, a branquitude/brancura, a noção de humanidade; e iii) a separabilidade como ferramenta para tratar da diferença. No desenvolvimento do presente texto, acessarei tais categorias/características do pensamento moderno para discuti-las tendo em vista suas implicações com relação ao lido do espaço e sua construção enquanto categoria moderna.

2. Do espaço

Seguindo o caminho trilhado por Sodré (1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. ), apresento o espaço moderno enquanto síntese abstrata, conceito sobre o qual se firmará de forma mais ou menos generalizada o entendimento do espaço na(s) teoria(s) moderna(s). Localizo-o para entendê-lo a partir do que é: conceito particular, situado socialmente-espacialmente-historicamente que, contudo, se pretende universal, normativo.

Em sua reconstrução histórica do conceito de espaço, e de suas diversas transformações, Sodré encontra no Renascimento europeu um movimento de constrangimento do entendimento espacial. Para esse autor, é nesse contexto sócio-espaçotemporal que o espaço passa a ser passível da abstração teórica de forma mais radical, sendo compreendido como homogêneo, infinito e tridimensional. É um movimento-chave que compreende simultaneamente a contínua tentativa de superação do espaço através da racionalidade e da abstração, e seu constrangimento conceitual, que, em busca de sua determinabilidade, o confina à abstração homogênea. Foram essas as bases erguidas para o/pelo pensamento de Descartes, por exemplo. Tal abstração torna-se possível tendo como princípio o entendimento de um referencial absoluto pretensamente universal, ainda que subjetivo, como argumentaria Kant séculos mais tarde, que é o olho do observador. Para Sodré (1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 24-25), “tais são os pressupostos da Geometria e da física modernas”. Enfim, “o olhar cria o espaço” enquanto “[...] uma rede de relações entre os objetos e um referencial absoluto diante da relatividade do movimento dos corpos. Ao mesmo tempo é só extensão, vinculado ao corpo, daí não se poder conceber um espaço vazio”.

Não por acaso, é um movimento teórico que ocorre ao redor do século XV. É quando o espaço passa a ser cada vez mais dedutível, plenamente compreensível em sua abstração - separável, categorizável e hierarquizável -, que os encontros entre território europeu e território americano, território civilizado e selvagem, acontecem. É partindo dessa concepção de espaço que o espaço colonial compartimentado passa a ser demarcado, sob as ossadas dos povos originários e africanos escravizados. Movimentos teóricos e práticos modernos se dão em continuidade, em conformidade muitas vezes, aplicando em terra firme o que a mente europeia enuncia no campo das ideias diante de um mundo conhecido em radical expansão. O desconhecido, o diferente, defronta-se com as tecnologias de abstração, separação, ordenação e determinação modernas, que embasarão a construção pós-iluminista do espaço como “extensão uniforme, sem nenhum lugar privilegiado, equivalente em todas as suas direções, mas não perceptível pelos sentidos” (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 26).

Antes, durante e depois desse processo de reconstrução dos sentidos da terra e do espaço, no entanto, existem outros entendimentos espaciais, também com longas raízes históricas. Ao discutir esses entendimentos, com especial atenção às noções trabalhadas pelos povos originários latino-americanos, Rogério Haesbaert (2020HAESBAERT, R. Do corpo-território ao território-corpo (da terra): contribuições decoloniais. GEOgraphia, v. 22, n. 48, 2020., p. 86) aponta como “a ‘ontologia dualista’ da modernidade hegemónica, que separa a cultura da natureza, o sujeito do objeto, faria frente a ontologias políticas, de caráter relacional”. Tratarei aqui de uma dessas outras possibilidades de leitura e prática que se rebelam diante do constrangimento universalista do espaço moderno: o espaço-lugar. Sodré (1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 26), o compreende como

[...] um espaço qualitativo, não determinado por qualquer ponto absoluto, mas pelos objetos concretos, as coisas, a que está afeto. [...] [Nele] o modo de existência do ser humano, sua presença [...] tende a exterminar as generalizações abstratas do espaço ao organizar o mundo.

A importância, opositiva e autodeterminada, do espaço-lugar, tal qual apresentado por Sodré, não se dá apenas em função de seu caráter teórico. Assim como a teoria moderna, em sua pretensão universal, precisa ser posta em prática para garantir-se universal, a concepção de um espaço-lugar se faz também material, mas em caráter plural. Sua condição, como espaço de afetabilidade e indeterminação, pode ser caminho, ou destino, opositivo às operações de separabilidade modernas, para a construção de espaços, ou áreas, não localizáveis (dentro da gramática moderna), “como expressão singular de cada um dos outros [espaços] existentes, e também do todo emaranhado em que elas existem”11 11 Trago a citação de Denise corrompida, na medida em que sua reflexão versa sobre existentes - corpos humanos e mais-que-humanos -, para, em diálogo, pensar possibilidades de compreensão e interação com o espaço situadas além daquilo que a gramática moderna permite explicar. (SILVA, 2016SILVA, D. F. da . Sobre diferença sem separabilidade. In: Bienal de Artes de São Paulo. Catálogo da 32a Bienal de Artes de São Paulo - Incerteza Viva, p. 57-65, 2016., p. 11). Em outras palavras, a existência do conceito-prático de espaço-lugar, afetado pela vida que dele emerge e o compõe, aponta ao mesmo tempo para a não universalidade do conceito de espaço moderno e para a existência de formas de ser (como interação/percepção com a realidade) para além daquelas previstas pela teoria moderna.

3. Do espaço moderno: ficcionando o universal, materializando o social

Como apontei, o espaço moderno não se restringe a um conceito, a uma abstração. Ao informar, enquanto teoria, a maneira pela qual percebemos e interagimos com o mundo, com a realidade, o conceito revela sua força como transformador da própria realidade. A fim de compreender o processo de renovação urbana que se anuncia com o lançamento de novos empreendimentos residenciais no Jardim Prudência, viabilizados graças à nova legislação urbana que rege a cidade,12 12 A relação que desenvolvo neste artigo entre branquitude e o processo de renovação urbana em curso em Cidade Ademar perpassa também a ação estatal. Essa relação não será aprofundada neste texto, na medida em que transcende seu escopo, porém, reconhecendo sua importância para uma discussão mais ampla sobre a temática, aponto o trabalho de Stella Paterniani como um caminho possível para o aprofundamento da discussão. PATERNIANI, S. Z. Da branquidade do estado na ocupação da cidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 31, n. 91, 2016. lanço um breve olhar para esse bairro, cuja centralidade, nesse movimento, é importante anunciar, nada deve ao acaso.

Jardim Prudência, localizado no quadrante noroeste do distrito de Cidade Ademar, aparece na maior parte dos registros como o bairro/região fundante da ocupação urbana do distrito, o que refuto ao apresentar o movimento de ocupação de bairros como Jardim Miriam (SILVA, A., 2019SILVA, A. C. Vila Missionária: constituição e desenvolvimento da periferia na cidade de São Paulo (1960-1990). São Paulo: Arquivo Histórico Municipal, 2019. , p. 53). Partindo da observação de um anúncio de imóveis no que viria a ser o Jardim Prudência (Figura 3), observo distinções entre o processo de loteamento do bairro em relação ao loteamento de bairros pobres no período, onde a população é racializada: no lugar de loteamentos informais, encontramos aqui loteamentos regulamentados; no lugar de vielas que acompanham córregos, encontramos arruamentos obedecendo aos traçados mais modernos; no lugar de terra batida, ruas asfaltadas. Não destinado às massas desempregadas ou subempregadas vindas, sobretudo, do Nordeste e Norte do país, esse loteamento é voltado a trabalhadores formais e mais bem remunerados que prosperam nesse momento de intensa industrialização.

Figura 3
Venda de imóveis e terrenos em Cidade Ademar (1949)

São quase detalhes, contudo de grande importância, quando reconhecida a perspectiva higienista que organizou boa parte da urbanização paulistana no período. É assim que o loteamento é construído (simbolicamente e materialmente) como “decente e ordeiro” e se diferencia das imagens de marginalidade e violência que significam favelas, cortiços e outros espaços onde viviam aqueles tidos como miseráveis, vagabundos e desordeiros - espaços importantes de moradia dos trabalhadores pobres e negros no período (ROLNIK, 1989ROLNIK, R. Territórios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro. Revista de Estudos Afro-Asiáticos, v. 17, p. 1-17, 1989.; 1994ROLNIK, R. São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política. In: KOWARICK, L. (org.). As lutas sociais e a cidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. ). Proponho que são justamente essas distinções racialmente informadas, operações de separabilidade, determinabilidade e sequencialidade da realidade, que garantem ao bairro uma posição de vanguarda na colonização urbana do distrito, em oposição ao apagamento da história dos bairros que o cercam.

As distinções entre o bairro e o restante do distrito não se restringem a anúncios e processos de loteamentos feitos há mais de meio século. Ainda no começo do século XXI, o bairro se destacava do restante do distrito, não apenas por sua aparência, mas também por seus ocupantes e suas condições de ocupação. Composto de grandes casas, com quintais e ruas arborizadas, a imagem do bairro se distingue de seu entorno no distrito - com casas menores, muitas vezes sinalizadas como irregulares, que em meio ao concreto e ao asfalto caracterizam o bairro de Americanópolis, vizinho ao Jardim Prudência, como uma das zonas menos arborizadas da cidade. Enquanto a quase totalidade do distrito apresenta índices de baixa renda e forte presença negra (Mapa 1), Jardim Prudência destaca-se como espaço de sobrerrepresentação da população branca e alta concentração de renda (Mapa 2). O loteamento moderno e regularizado de ontem é, hoje, espaço de habitação de uma população branca, mais bem remunerada, e epicentro de um processo de renovação urbana.

Mapa 1
Mapa racializado de lançamentos de residenciais verticais em Cidade Ademar - proporção de pessoas brancas por setor censitário 13 13 Para pensar a sub-representação/sobrerrepresentação de brancos e/ou de negros com relação ao distrito e aos setores censitários que o compõem, tomo por referência a composição racial do município tal qual mensurada pelos dados do Censo de 2010, que apontam uma população com 63,9% de pessoas brancas e 34,6% de pessoas pardas e pretas (29,1% e 5,5%, respectivamente) em São Paulo (SP). A categoria negra simboliza a soma de pardas e pretas. Os lançamentos residenciais verticais foram selecionados a partir da liberação dos respectivos alvarás, de acordo com sua classificação de uso do solo e de sua adesão à categoria “R2v”. Classificações de uso do solo disponíveis em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/classificacao-de-usos/. Acesso em: 25 maio 2022.

Mapa 2
Mapa racializado de lançamentos de residenciais verticais em Cidade Ademar - proporção de pessoas negras por setor censitário

O espaço moderno não precisa ser homogêneo, mas deve ser passível de homogeneização - bem como de qualquer transformação que o sujeito humano pense nele infundir: o espaço moderno é esfera sob controle do homem. Sendo parte de um todo, abstrato, “uniforme, sem nenhum lugar privilegiado” (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 26), qualquer ponto desse espaço cartesiano nega suas características singulares e se dispõe ao homem, para que dele se aproprie. Não há, aqui, sujeição do homem ao espaço: em nenhuma medida esse homem é afetado pelo espaço. É esse homem que do espaço se apropria, que o doma, o ocupa, o subjuga.14 14 Sobre a teoria moderna e a sociedade capitalista como estruturas que organizam uma “imagem do mundo como aquilo que deve ser conquistado (ocupado, dominado e subjugado)” pelo homem (SILVA, 2019a, p. 55), recomendo a leitura de Em estado bruto, de Denise Ferreira da Silva (2019b).

O conceito de engana-olho (trompe-l’oeil) (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 33) pode nos ajudar a compreender a pretensão colonial-moderna-universalizante para com o espaço colonial. Posta em prática das mais variadas formas, a teoria espacial que informa a construção das colônias é a mesma que pressupõe o espaço como campo de dominação desse homem não afetável. Em sua urgência pela dominação racional, que demanda a reflexão de si e de sua cultura, o colonizador branco fabrica uma imagem que aponta para um horizonte de desenvolvimento e liberdade (SILVA, 2019bSILVA, D. F. da . Em estado bruto. ARS (São Paulo), v. 17, n. 36, p. 45-56, 2019b., p. 51), ao passo que nega o espaço preexistente, seu entorno e as relações que ali já se estabelecem. Ora, é isto que vejo no processo em curso em Cidade Ademar: em um primeiro momento, um movimento de separação entre bairros formais - modernos, legais, a serem ocupados por uma protoclasse-média branca - e os demais bairros; e, em um segundo momento, a negação do entorno mediada pela aproximação entre os empreendimentos lançados em Jardim Prudência e nos “bairros nobres”, prenunciando melhor infraestrutura, acesso e liberdade, mas assegurando modernidade, distinção e branquitude nesses espaços.

No tempo-espaço do Brasil colonial, arquitetura e urbanismo podem ser compreendidos como áreas da ciência que dramatizam a natureza, negando seu entorno e fabricando a imagem da modernidade (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 30). Trata-se de um processo que pretende a transformação radical do espaço colonial segundo a imagem da metrópole, e não sua mera representação (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 33). Em sua argumentação, Sodré apresenta casos esdrúxulos, porém frequentes, como o das casas senhoriais que pintavam falsas janelas em suas paredes, ficcionando estarem às margens do Tejo,15 15 Rio que banha os territórios espanhóis e portugueses na Europa. cenas longe de serem especificidades do Brasil colonial.

Juliana Góes argumenta que “os espaços urbanos são frequentemente imaginados como a representação da modernidade ocidental nos discursos modernos/coloniais” ([S.d.], p. 8; tradução do autorGÓES, J. Western modernity, urban spaces, and race: challenges to decolonial praxis in the African diaspora in the Americas. [2022]. No prelo.).16 16 Uma versão mais sintética do artigo com o qual dialogo aqui, de autoria da Cientista Política e Socióloga Juliana Morais de Góes, pode ser encontrada em Góes, J. Western modernity, cities, and race: Challenges to decolonial praxis in the African diaspora in the Americas. Sociology Compass, e13033, 2022. https://doi.org/10.1111/soc4.13033 Sustento que, no movimento em curso em Cidade Ademar, essa imaginação colonial esteja sendo posta em prática não apenas na forma dos edifícios - que apontam para o modo como as construtoras estão “buscando referências mundiais”,17 17 Referência à construtora e incorporadora EzTec, responsável pelo empreendimento Artis Jardim Prudência. Disponível em: https://www.eztec.com.br/a-eztec/. Acesso em: 8 ago. 2021. ao fabricarem imagens que refletem um imaginário das grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos. Neste sentido a “distinção” e a “modernidade” que mascaram o desejo de tornar-se metrópole e alcançar o desenvolvimento, que fazem desses edifícios a promessa de uma “nova vida”,18 18 A ideia de que os empreendimentos imobiliários na região simbolizam o acesso a uma “nova vida” é veiculada de distintas formas na quase totalidade das peças de marketing observadas. Por sua literalidade, faço referência aqui à peça do empreendimento “Open Marajoara”, disponível em: https://www.even.com.br/sp/sao-paulo/jardim-marajoara/residencial/open-marajoara. Acesso em: 8 ago. 2021. que engana os olhos de quem observa suas peças publicitárias (Figuras 4 e 5), demandam a aniquilação do espaço-lugar preexistente mediante o reconhecimento da superioridade da metrópole. Aqui, sonhos de possessão são autorizados e incentivados: que os colonizados lancem seus olhares de desejo, luxúria e inveja sobre a cidade dos colonos! Que busquem a assimilação desejando instalarem-se no lugar do colono, ser o colono! (FANON, 1979FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Ebook., p. 24). Almejando uma nova vida, outro nível de viver, fora dos constrangimentos a que está circunscrito em seu espaço de atraso, o(a) colonizado(a) é impelido a assumir sua pretensa inferioridade, construída pela teoria moderna, a qual demanda e legitima a violência que o movimento de civilização e modernização pressupõe.

Figura 4
Material publicitário do empreendimento Vidi Eleva Cupecê

A constante aproximação narrativa entre os empreendimentos e outros “bairros nobres” - mais ricos, mais brancos e, consequentemente, com melhor infraestrutura - vincula os empreendimentos lançados a bairros do eixo sudoeste de São Paulo, região ocupada por segmentos de classe média e alta brancos, com forte coesão social, que, através de diversas estratégias diretas e indiretas, mantém a população negra a distância (FRANÇA, 2017FRANÇA, D. S. do N. Segregação racial em São Paulo: residências, redes pessoais e trajetórias urbanas. 2017. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. , p. 176). Aproximados da já não tão distante frente de expansão imobiliária da Cidade, os empreendimentos se aproximam também do futuro e do progresso que o novo centro econômico de São Paulo promete - promessas de uma nova vida de liberdade que apenas essa racionalidade moderna pode alcançar.

Figura 5
Material publicitário do empreendimento Artis Jardim Prudência

Figura 6
Cidade Ademar, território de bandidos

Alocados em uma “vizinhança nobre” (WISE Jardim Prudência), os empreendimentos distanciam-se da narrativa racializada de violência, crime e tragédia que foi amplamente veiculada durante a segunda metade do século XX sobre o distrito periférico onde aprendi a viver, outrora o mais violento da cidade (Figura 6). O projeto de renovação em curso - cujo epicentro é um loteamento planejado que se destaca no distrito por sua renda e sua brancura - oferece ao seu entorno o presente do futuro, do desenvolvimento, da valorização, contanto que sua história particular dê lugar à história universal do progresso, que compartimenta e separa espaços de atraso e espaços de desenvolvimento, autorizados no presente. Nesse jogo de narrativas, vislumbro uma missão civilizatória interna, “o desenvolvimento técnico, geralmente elevado, do grupo social [colonizador] assim aparecido autoriza-o a instalar uma dominação organizada” (FANON, 2018FANON, F. Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, v. 13, Dossiê: Questão ambiental na atualidade, 2018., p. 78), que passa pelo apagamento e distorção da história desses bandidos de cultura inferior. Dessa maneira, da memória colonial à realidade da globalização fazem repetir o movimento de transformação espacial que têm seu guia no Norte, na metrópole, nos centros de poder modernos e ocidentais. Tais conexões com os bairros de alto padrão destacados são a outra face do processo que constrange e invisibiliza espaços que são significados em oposição a essa imagem moderna, a esse lócus privilegiado pela/para acumulação capitalista.

Nessa complexa trama, encontro o capital, abstração-realidade que confere sentido às relações de produção capitalistas, como possível ponto de fuga19 19 Por ponto de fuga, “entenda-se: um ponto situado fora do quadro espaçotemporal da experiência, fora do mundo, capaz de outorgar ao observador um poder de abrangência absoluto. Nesse espaço ordenado por uma linha de fugir em profundidade, as representações (as imagens) ‘fogem’, frente ao olhar do observador. Na verdade, o olhar ‘cria’ o espaço, cujo centro ou ponto principal, por coincidir como olho, recebe mesmo - de Viator - o nome de ‘sujeito’” (SODRÉ, 1988, p. 24; grifos meus). da modernidade: o capital organiza, e assim produz, a realidade conforme sua própria lógica, eminentemente moderna, alicerçada em uma dinâmica de acumulação própria. Uma vez que o sistema capitalista tem a necessidade constante de produzir mercadorias, categoria na qual busca confinar o espaço (abstrato, mensurável, repartível, apropriável), a negação do espaço-lugar acontece em acordo com a (re)produção capitalista do espaço moderno, que é perene e fundamentalmente inconclusa, graças às resistências que a ela se opõem. A radicalidade opositiva na qual o espaço-lugar está situado no pensamento moderno, seu lugar de Outro espacial, ameaça a universalidade, a verdade moderna, a partir de sua existência. É um espaço que, como observa Beatriz Nascimento (2018NASCIMENTO, M. B. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. [S.l.]: Filhos da África, 2018. ) ao refletir sobre a experiência afro-brasileira do quilombo, pode participar

[...] da produção de “subjetividades territorializadas no eu, no corpo físico”, livres da ética de produção e da acumulação que secciona o homem, segundo a ordem do sistema do Capital. Estaríamos falando de um outro sistema em construção vindo de um território de origem africana, não mais de um lugar do passado, mas moderno. (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, M. B. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. [S.l.]: Filhos da África, 2018. , p. 427; grifos da autora).

Como forma de enfrentamento para com o espaço-lugar, as significações sobre o espaço que dele emergem, põe-se em prática uma gestão colonial do espaço, regime de expropriação territorial, que se relaciona diretamente com a racialidade (SILVA, 2019aSILVA, D. F. da A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019a. a). O espaço confinado à categoria de mercadoria (a busca por confiná-lo enquanto espaço moderno), a produção espacial como mecanismo de acumulação capitalista, a negação do espaço-lugar e as operações de separabilidade entre o espaço fragmentado e seu entorno (como significante de um espaço relacional e não completamente repartível), como ferramentas na produção de um espaço homogêneo, moderno, encontram-se e complementam-se. Trata-se de um encontro que reflete a ideologia desterritorializante do capital (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 26), que, em busca da supressão do espaço, demanda a destruição do espaço relacional, afetável.20 20 Tendo em vista a impossibilidade de aprofundar a temática neste artigo, aponto para dois caminhos possíveis para analisar as tramas entre expropriação capitalista, apropriação do espaço e racialidade. Por uma via marxista, há o conceito de “acumulação por espoliação”, cunhado por David Harvey em O novo imperialismo (2005), que observa a espoliação constantemente reordenada espaçotemporalmente e direcionada ao Outro. Denise Ferreira da Silva, de forma opositiva, propõe o conceito de “acumulação negativa” para indicar um continuum acumulado que une “o efeito da expropriação colonial e, posteriormente, a violência jurídica, simbólica e cotidiana” (2019a, p. 180) de expropriações dirigidas ao sujeito racial subalterno. HARVEY, D. O novo imperialismo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.

4. Do espaço afetável: possibilidades de leitura

Para a realização dessa utopia espacial capitalista, no entanto, encontram-se obstáculos: o real não parece esgotar-se, ou ainda aniquilar-se, quando em face de sua representação divergente. Buscando pensar Cidade Ademar a partir de laços de afetabilidade livres da ética de produção e da acumulação, ainda que não alheios a ela, experimento apresentar cenas que iluminam aquilo que a gestão colonial do espaço pretende soterrar. As relações de afeto e cuidado que acontecem entre moradoras que olham os filhos umas das outras enquanto estão na rua, zelando por eles como zelaram por mim; a memória das lutas e conquistas das diversas sociedades de amigos do bairro no distrito, em busca de melhorias de infraestrutura para seu espaço, hoje materializadas até mesmo no chão de asfalto que guia nossos percursos; os (cada vez mais escassos) jardins que embelezam e protegem as entradas das casas com pimenteiras, espadas-de-ogum e folhas de guiné, enquanto demarcam conexões com ancestralidades e cosmologias de matriz africana; e mesmo o amor, a alegria e às vezes as brigas que preenchem a tempos os botecos que o distrito abriga e promove ao som do forró (Figura 7).

Figura 7
Forró no Jardim Miriam

Apresento essas cenas cotidianas, algumas imagens permeadas pelos corpos destes Outros, para pontuar que, como disse Sabotage (2000)Intérprete: Sabotage. UM BOM lugar. Rap é compromisso. São Paulo: Cosa Nostra. 2000, faixa 3 (5’05 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GA7LcSX8tYE. Acesso em: 9 nov. 2021.
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21 21 Trago aqui Sabotage e, posteriormente, GOG como dois autores que me ajudam a pensar Cidade Ademar com base na afetabilidade, mas também como expoentes do movimento hip hop, cultura de rua que compõe minha formação e que tem como uma de suas temáticas centrais as experiências da população negra nas cidades, elemento central para (re)pensar o urbano no século XXI. , “de Santo Amaro a Pirituba o pobre sofre mas vive”; e, vivendo, relaciona-se com seu espaço, lhe confere significado. Ao investigar Cidade Ademar tendo como guia a afetabilidade que me permite pensá-la como espaço-lugar, me aproximo da vida e da história que ela abriga. Expressões culturais racializadas e mobilizações políticas comunitárias, que se encontram entramadas, pautaram e pautam, ainda hoje, caminhos localmente informados para a construção continuada desse espaço. São cenas que entram em conflito com a narrativa de violência, que resumia o distrito a um território de bandidos, que demandava intervenção externa sob as bandeiras da civilidade, da segurança e do progresso. São também cenas que me provocam a pensar a quem está destinado esse distrito em processo de renovação. Ao deslocar o cuidado do olhar das moradoras pela vigilância das guaritas, das câmeras e do policiamento militar, pergunto-me: Quem é protegido? Como eu e minha avó conversávamos dia desses, a gente sabe que não dá para confiar nessa raça. Ao estabelecer bares de rock e pubs onde antes havia botecos tocando “rap, forró e samba, os verdadeiros sons do gueto”, como disse GOG (1994)Intérprete: GOG. BRASÍLIA periferia. Dia a dia da periferia. Brasília: Só Balanço. 1994. Faixa 1 (7’22 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CTQm8BD4JAM. Acesso em: 9 nov. 2021.
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, que cultura se valoriza? Ao centralizar as imagens de desenvolvimento no distrito como as imagens dos novos empreendimentos, em detrimento das de mobilização política popular que compõe as ocupações de imóveis ociosos no bairro,22 22 A memória de uma dessas iniciativas pode ser acessada em https://www.facebook.com/Ocupa%C3%A7%C3%A3o-Vit%C3%B3ria-Antigo-Motel-Cleans-247447959002895/. Acesso em: 2 ago. 2021. que futuro se torna possível para o bairro e quais perspectivas de futuro são descartadas? Por que, enfim, o esquecimento da história, das narrativas, sobre o espaço-lugar de Cidade Ademar é acompanhado pela escrita de uma nova história mais próxima dos signos de branquitude?23 23 A página na Wikipédia referente ao Jardim Prudência, editada recorrentemente desde 2014 (quando do início do primeiro grande empreendimento no bairro, o EQ Jardim Prudência), oferece elementos para pensar quais características passaram a ser valorizadas no local. Destaco aqui a declaração (fictícia e/ou discutível) de que o bairro é formado por pessoas de ascendências alemã, portuguesa, estadunidense e italiana. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Jardim_Prud%C3%AAncia&oldid=58210539. Acesso em: 2 ago. 2021.

O espaço-lugar habitado pelo Outro, para mim, não é destinado à destruição criativa capitalista por ser espaço de vida do Outro, ou não apenas por isso. O espaço-lugar habitado pelo Outro demanda a destruição também por ser significado por presenças, práticas, rituais, por não ser apropriável, mas construído em relação àqueles que o habitam, afetável. É um espaço onde reside e resiste a possibilidade de que a terra exista “não como propriedade, mas como elemento indispensável ao conjunto da vida humana, em seu significado espiritual”, como aponta Beatriz Nascimento (2018NASCIMENTO, M. B. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. [S.l.]: Filhos da África, 2018. , p. 210), ao falar da relação que o quilombo instaura. Espaço e sujeitos encontram-se entramados, imbricados.

Ao propor outra forma de reconhecer e relacionar-se com o espaço, não organizada pela racionalidade, o espaço-lugar pode ser palco para a imaginação de outros futuros possíveis, outras teleologias que não a capitalista-moderna. Partindo das palavras de Sodré, ao tratar da cosmovisão nagô e do espaço do terreiro, poderíamos pensar em uma das possibilidades de afetabilidade do espaço como sua sacralização. A erradicação dessas formas que percebem e se relacionam com o espaço de outras maneiras, e por isso são categorizadas como tradicionais/primitivas, é anunciada como parte do desenvolvimento capitalista/urbano por autores como George Simmel e Louis Wirth, conforme aponta Juliana Góes. “Para eles, a vida na cidade findaria com as ordens sagradas e tradições tribais através da racionalização das estruturas sociais” (GÓES, [s.d.], p. 9; tradução do autorGÓES, J. Western modernity, urban spaces, and race: challenges to decolonial praxis in the African diaspora in the Americas. [2022]. No prelo.).

A resistência do espaço-lugar à constrição que tenta reduzi-lo a uma mercadoria e a impossibilidade de viver o luto do Outro24 24 Para um olhar sobre o cenário ético-jurídico que legitima a morte do Outro, demarcado racialmente, recomendo a leitura de Ninguém: direito, racialidade e violência, de Denise Ferreira da Silva (2014). são condições que, respectivamente, demandam e legitimam a destruição de tais espaços. São tentativas de destruição, ou assimilação, variadas em forma: das mais brutais àquelas que quase escondem por completo sua violência. Podemos pensar nas estratégias de criminalização, policiamento e violência que visam à aniquilação do “black sense of place” narradas por Katherine McKittrick (2011)McKITTRICK, K. On plantations, prisons, and a black sense of place. Social & Cultural Geography, v. 12, n. 8, p. 947-963, 2011., e que compõem a noção de “banimento racial” trabalhada por Ananya Roy (2019ROY, A. Racial banishment. In: ANTIPODE EDITORIAL COLLECTIVE (eds.) et al. Keywords in radical geography: Antipode at 50. John Wiley & Sons, Ltd, 2019, p. 227-230.), ecoando a manchete reproduzida acima (Figura 6, JORNAL DA TARDE, 1989CIDADE Ademar, território de bandidos. Jornal da Tarde. São Paulo: Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, 1989. Consulta: jan. 2019.), bem como algumas das experiências narradas ao longo do texto. Também podemos recorrer às pesquisas de Raquel Rolnik (1989ROLNIK, R. Territórios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro. Revista de Estudos Afro-Asiáticos, v. 17, p. 1-17, 1989.; 1997ROLNIK, R. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel, 1997. ) sobre a territorialidade negra e a legislação urbana de São Paulo no começo do século XX que narram o processo de criminalização e expulsão dos corpos negros da cidade. São formas distintas, mas que considero entrelaçadas em um movimento comum, moderno, capitalista e valorativo da brancura, que (almeja) reorganiza(r) a realidade utilizando-se de um específico repertório de práticas, discursos e imaginários. É justamente com o propósito de analisar esse movimento mais geral que Juliana Góes ([s.d.], p. 13; tradução do autor)GÓES, J. Western modernity, urban spaces, and race: challenges to decolonial praxis in the African diaspora in the Americas. [2022]. No prelo. argumenta que:

[...] para cumprir a expectativa de ser a representação espacial da modernidade ocidental, os governos das cidades buscam purificar e eliminar territórios e moradores racializados, especialmente os negros (a oposição direta à humanidade nas lógicas modernas/coloniais). Em outras palavras, os espaços urbanos são criados pela negação da existência espacial negra: do corpo - a unidade espacial básica - ao território [...].

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Sinto-me fazendo nós, tramando um tecido confuso e imbricado, que se expande em direções que desconheço e que ruma sem saber para onde. Não me preocupo tanto com a direção, mas com a firmeza dessa teia. Espero que a trama em construção sustente as reflexões do porvir. No campo indeterminado, e por vezes desvalorizado, no qual o reconhecimento da afetabilidade como qualidade de corpos e espaços, que se entramam, se imbricam, é base para a produção de conhecimento, inclusive científico, cisões entre corpo e mente, entre pesquisador e morador, se dissolvem. A pesquisa afetada se constrói sob medos, curiosidades, violências e esperanças que não apenas atravessam o corpo, mas que a partir dele ganham sentido, tornam-se possíveis. Sem receio algum de abandonar o pressuposto científico da objetividade (talvez encontre aqui desejo, na verdade), me pergunto, na medida em que exploro, quais são as possibilidades de um pesquisar conceitualmente rigoroso, mas também afetável, para os estudos urbanos? Desmobilizando o princípio de separabilidade que distancia, também, mente e corpo, o que pode emergir?

Até aqui temos uma complexa trama na qual as abstrações, as quais permitem compreender o espaço e com ele relacionar-se, são entrelaçadas a dinâmicas planetárias, como a de acumulação capitalista, e esbarram na subjetividade relacional e na inesgotabilidade do real, propostas pelo espaço-lugar.

Ao lançar mão do conceito de território25 25 O conceito de território é amplamente utilizado em distintas acepções, além da resgatada aqui por Sodré. Uma discussão mais geral do conceito, compatível com a noção aqui abordada, pode ser encontrada em Território e multiterritorialidade: um debate (2010), de Haesbaert. Outro texto do mesmo autor, o anteriormente citado Do corpo-território ao território-corpo (da terra) (HAESBAERT, 2020), também pode ser de grande valia para o diálogo na medida em que a abordagem relacional que pressupõe a noção de espaço-lugar poderia ser também trabalhada em suas aproximações e tensões em relação à bibliografia que discute colonialidade, colonialismo e decolonialidade, à qual o autor recorre de forma mediada pelas compreensões territoriais de povos originários da América Latina. HAESBAERT, R. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, v. 9, n. 17, 2010. https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2007.v9i17.a13531. , Sodré identifica esse espaço-lugar particular e retoma a possibilidade de que o espaço seja determinado (mesmo que de forma sempre aberta, inconclusa) pelas relações que com ele se mantêm. São essas interações que o marcam, que conferem identidades compartilhadas coletivamente, que permitem que ele seja exclusivamente significado (ainda que permeável a outras significações externas) (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 23). Esse espaço relacional, constituído por diferenciação e indeterminação, “o paradoxo quanto à percepção do real” (id., ib., p. 13), é fruto do processo de territorialização, que se define “como força de apropriação exclusiva do espaço (resultante de um ordenamento simbólico), capaz de engendrar regimes de relacionamento, relações de proximidade e distância” (id., ib., p. 13).

A concepção de território de Sodré possibilita imaginar que o espaço moderno, a relação moderno-capitalista de compreensão e apropriação do espaço, pode, como outros territórios significados por meio de outras formas de relacionar-se com o espaço, pressupor sujeitos. Neste sentido, ao contrário do alardeado, o espaço moderno não seria apenas uma abstração pretendida universal, mas sim resultado de um processo de territorialização específico que demanda um sujeito. Universalidade, separabilidade, sequencialidade, determinabilidade e outras características estruturantes do espaço moderno seriam então partilhadas por esse sujeito em sua forma de habitar e organizar esse espaço, essa realidade. Para compreender o processo de ressignificação do território que a renovação urbana em Cidade Ademar propõe, de desterritorialização, poderíamos pensar, sugiro o conceito de branqueamento do território trabalhado por Renato Emerson dos Santos (2009SANTOS, R. E. dos. Rediscutindo o ensino de geografia: temas da Lei 10.639. Rio de Janeiro: Ceap, 2009.). Partindo do reconhecimento de um projeto de branqueamento que estrutura o Estado brasileiro no pós-abolição, o branqueamento do território, além de apontar para a violência colonial ou antinegro, como o fazem os conceitos e as autoras elencadas anteriormente, explicita o sujeito interessado nesse projeto e por ele privilegiado - o sujeito branco que habita o campo da norma, do universal:

A ideia de branqueamento do território implica a redefinição de quem o ocupa e detém o poder de definição de uso do território, de sua imagem, da cultura que ele expressa e que é permitida ser expressada nele, e de sua ocupação enfim. O movimento compreende três dimensões: (i) branqueamento da ocupação do território; (ii) branqueamento cultural do território; e (iii) branqueamento da imagem do território. (SANTOS, 2009SANTOS, R. E. dos. Rediscutindo o ensino de geografia: temas da Lei 10.639. Rio de Janeiro: Ceap, 2009., p. 60).

Cabe findar a exposição dessa trama com um olhar sobre os sujeitos que criam e são criados pela teoria-prática moderno-capitalista.

5. Do espaço moderno ao sujeito moderno: quem é universal?

Uma teoria que se pretende universal; que busca representar e se apropriar de um espaço não afetável; que se ergue sobre a racionalidade como fundamento da verdade, gera e é gestada por um sujeito que, por sua vez, se pretende também universal, “criado por um conceito de cultura que espelhava as realidades do universo burguês europeu” (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 28).

Para forjar a si mesmo, fabular sua existência, esse sujeito faz consigo e com os demais o mesmo que fez com o espaço que alcançou: reparte, separa-o para então determinar quem é e ordenar a si e aos Outros na categoria de humanidade por ele mesmo forjada, tendo em vista que “a identidade é sempre algo que define fronteiras entre quem somos nós e quem são os outros; portanto, só existe em relação a uma alteridade” (SCHUCMAN, 2014SCHUCMAN, L. V. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, v. 26, n. 1, p. 83-94, 2014., p. 89). A si, o sujeito confere as benesses do mundo que imagina: a racionalidade, a objetividade, a ética inquestionável, a moral inabalável, a potência de liberdade, de paz. Aos Outros, confere aquilo que deseja expurgar de si. É o movimento de “ter a si próprio como modelo e projetar sobre o outro as mazelas que não se é capaz de assumir, pois maculam o modelo”, descrito por Maria Aparecida Bento (2002BENTO, M. A. da S. Branqueamento e branquitude no Brasil. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 5-58., p. 11) em seu estudo sobre branquitude no Brasil. É o movimento que fará Fanon (2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. , p. 147) que

Na Europa, o negro tem uma função: representar os sentimentos inferiores, as más índoles, o lado obscuro da alma. No inconsciente coletivo do Homo occidentalis, o negro, ou a cor preta, se assim se preferir, simboliza o mal, o pecado, a miséria, a morte, a guerra, a fome.

Esse sujeito, reivindico, aparece também como imagem, como engana-olho, que não quer representar o [homem branco ocidental] existente, mas, sim, sê-lo, falseá-lo, tendo como base a imagem que faz de si mesmo. É uma imagem que sustenta a própria definição de humanidade. Um sujeito que, por meio da razão (e da força), impõe de forma violenta a todos a quem categorizou como Outros o enclaurusamento em abstrações que, como todas aquelas orquestradas pela racionalidade, não são capazes de reconhecê-los em sua totalidade. Esse sujeito cria um mundo mediante a projeção de si e, como aponta Fanon (2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. , p. 130), exige que o Outro se confine, encolha. O que desejo aqui é demarcar o pacto constitutivo entre modernidade e branquitude. Como afirma Schucman (2014SCHUCMAN, L. V. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, v. 26, n. 1, p. 83-94, 2014., p. 92),

[...] em um mundo onde a ideia de civilidade e progresso está rotineiramente associada à cultura europeia e ao embranquecimento, fica difícil perceber tais discursos [que tratam da civilidade, racionalidade e progresso como virtudes] de nação e cultura em termos racialmente neutros.

A vinculação entre branquitude, modernidade e espaço me interessa porque, a partir desse prisma, posso tentar compreender o processo que se principia “no século XX, quando as cidades começaram a tornar-se símbolos da modernidade ocidental, associadas a ideais como progresso e civilização [...]” (GÓES, [s.d.], p. 12-13; tradução do autoGÓES, J. Western modernity, urban spaces, and race: challenges to decolonial praxis in the African diaspora in the Americas. [2022]. No prelo.r). Processo cindido, onde

[...] espaços urbanos somente representam a modernidade ocidental quando são espaços brancos. Espaços urbanos negros, no entanto, são vistos como espaços que precisam ser purificados e eliminados - áreas que impedem as cidades de progredirem. (GÓES, [s.d.], p. 22; tradução do autorGÓES, J. Western modernity, urban spaces, and race: challenges to decolonial praxis in the African diaspora in the Americas. [2022]. No prelo.).

Esse processo, longe de findar, se refaz, se transforma de maneira repetida, enquanto parte da incessante reprodução da violência colonial. Aqui, o processo de branqueamento do território - continuamente destinado a espaços racializados, espaços-lugar ou territórios ocupados e significados por grupos racializados - pode ser compreendido como movimento que (re)produz a cidade como espaço de branquitude, que continuamente organiza uma estrutura de manutenção de privilégios e poder pela e para a população branca, enquanto relega aos seus Outros a violência. Assim,

[...] a violência dx colonizadorx emerge como sinal de “salvação” e “benevolência”, um pré-requisito necessário para a suposta entrada das populações colonizadas - que, até então, segundo a lógica do progresso/desenvolvimento, estariam localizadas “fora” do “framework of temporal thinkability” - no rol da história. [...] A hierarquização garante que a violência possa ter continuidade para além de um rito de entrada a uma “ordem civilizacional”, convertendo-se em um processo continuado e sistemático. (TOSOLD, 2018TOSOLD, L. Autodeterminação em três movimentos: a politização de diferenças sob a perspectiva da (des) naturalização da violência. 2018. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. , p. 47-48).

Dentro dessa lógica colonial, que depende da racialidade para estruturar-se, Jardim Prudência, loteamento planejado, espaço da branquitude e de renda elevada, torna-se desde sempre espaço de desenvolvimento, progresso, latente. São os corpos, a cultura, a civilidade, esses signos de brancura, que fazem dele simultaneamente espaço passível de valorização, de aproximação com o eixo sudoeste, e espaço passível de desenvolvimento continuado. Em contrapartida, essa mesma lógica separa o espaço e diferencia e ordena seus segmentos, criando espaços avessos à civilidade, à branquitude, ao progresso - são espaços de atraso, violência, crime, negritude e banditismo. Em ambos os casos, seu destino é prenunciado e os limites de seu futuro, preestabelecidos. Ao primeiro, destinam-se o desenvolvimento e o futuro. Ao segundo, a civilização e a assimilação, como alternativas à aniquilação certa daqueles que vivem de forma que é insistentemente legada ao passado do desenvolvimento do homem, à barbárie, a algo além dos limites da verdadeira racionalidade (FANON, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. , p. 108).

As práticas, não apenas discursivas, que cindem, reclassificam e organizam o espaço, que o refazem à imagem de um ideal de espaço urbano moderno, são as que produzem e expandem o alcance do espaço moderno como categoria-prática que restringe o próprio imaginário das possibilidades de se habitar o espaço (urbano). Como tentativa de interromper a violência colonial que a nós é dirigida, de caminhar para além dela e do jogo da diferença que o institui (MOMBAÇA, 2020MOMBAÇA, J. A plantação cognitiva. MASP Afterall-Arte e Descolonização. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 2020.), apresento o desconhecido. Reforço a demanda pela compreensão da lógica moderna como processo de construção de ferramentas que a neguem e que, a partir daí, nos propiciem a escavação de todas as possibilidades do ser e habitar que o espaço moderno buscou obliterar. Encontro na forma relacional do espaço-lugar, que constitui a base para pensarmos o território - ambos espaços afetáveis, que inscrevem rotas de fuga ante a determinabilidade que forja o espaço moderno -, uma fresta para pensarmos e reconhecermos outras formas de habitar e compreender o espaço, sem, contudo, querer limitá-las às possibilidades inscritas nessa categorização. Assim como mais de “cinquenta anos depois, não há nenhuma razão para imaginar o ’novo homem’ de Fanon existindo de nenhum outro modo que de Outros-modos” (SILVA, 2019aSILVA, D. F. da A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019a. , p. 80), creio que não há nenhuma forma de experimentar o espaço de forma anticolonial que não de Outros-modos, relacionais e afetáveis. Ao não escrever soluções, mas possibilidades, me refugio no abrigo e na potencialidade do desconhecido. Como escreve Silva (2019bSILVA, D. F. da . Em estado bruto. ARS (São Paulo), v. 17, n. 36, p. 45-56, 2019b., p. 46),

[...] se a tarefa for des-pensar este mundo com vista a seu fim - isto é, sua decolonização, ou o retorno do valor total expropriado de terras conquistadas e corpos escravizados -, ela não almejará prover respostas, mas, em vez disso, implicará levantar questões que simultaneamente expõem e subvertem as formas kantianas do sujeito.

****

Comecei este ensaio com incômodos e acredito ter conseguido iniciar o processo de apropriação que me permite nomeá-los e com eles me defrontar. Como forma de encerrar o ensaio, me permito nomear um medo que me motiva a pesquisar o que pesquiso. Vejo nesse processo de renovação urbana que se dá em Cidade Ademar um processo de transformação onde acredito que, em breve, não caibam as relações de vizinhança que vi e construí, as feiras de rua ou seu barulho, a criançada preta na rua. Nessa transformação, encontro-me em uma história continuada que data de tempos ancestrais. Vejo meus avós espoliados de diversas formas e expulsos das terras do sertão. Vejo a avó de minha avó, indígena “pega no laço” e expropriada de sua forma de vida, de seu povo, da mata que já não mais existe materialmente. Vejo antepassados que, sem poder afirmar que existem, foram raptados em alguma parte do continente que se convencionou chamar África. O que vejo nesse processo em curso é seu potencial de desterritorialização, o branqueamento do território que pouco a pouco me expulsa de um território que nunca foi meu, mas onde eu sou. Diante desse processo muito podemos fazer, e fazemos, seja propondo narrativas críticas sobre a região por meio de informativos como o Expresso Periférico; seja trabalhando pela manutenção de nossa vida mediante iniciativas do “Coletivo de Orgânicos de Cidade Ademar”; seja propondo uma educação crítica, como a da “Escola de Cidadania de Cidade Ademar e Pedreira”; seja, ainda, escrevendo artigos que ajudem a demarcar a existência de outros entendimentos sobre o espaço, para citar alguns exemplos.26 26 Iniciativas que podem ser consultadas em: http://expressoperiferico.org/, https://organicoscidadeademar.org/ e https://www.facebook.com/escoladecidadaniacidadeademarepedreira/. Acessos em: 10 ago. 2021. Trata-se de iniciativas que podem auxiliar a des-pensar este mundo, pois colaboram para manter viva a memória de uma territorialidade (movimento fundamental para o processo de descolonização, como aponta Haesbaert (2020HAESBAERT, R. Do corpo-território ao território-corpo (da terra): contribuições decoloniais. GEOgraphia, v. 22, n. 48, 2020.), demarcada por afetos que permitem reconhecer que nossos corpos negros, como me disse Dona Linda dia desses enquanto voltávamos da casa de minha avó, são bem-vindos neste mundo porque são amados, apesar de tudo.

Referências

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  • SODRÉ, M. O terreiro e a cidade Petrópolis: Vozes , 1988.
  • TOSOLD, L. Autodeterminação em três movimentos: a politização de diferenças sob a perspectiva da (des) naturalização da violência. 2018. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
  • Intérprete: Sabotage. UM BOM lugar. Rap é compromisso São Paulo: Cosa Nostra. 2000, faixa 3 (5’05 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GA7LcSX8tYE Acesso em: 9 nov. 2021.
    » https://www.youtube.com/watch?v=GA7LcSX8tYE
  • 1
    Agradeço à Viviane Nogueira, Ana Cristina Araújo, Emmily Leandro, Karoline Santos da Silva, Lea Tosold, Natália Alves e Renato Emerson pelas leituras e conversas cuidadosas e pelo incentivo à escrita deste texto. Agradeço também a todas as pessoas que compõem os núcleos de pesquisa e estudo NEGRAM/IPPUR e GIRA – Coletiva de estudo-intervenção antirracista e anticolonial, espaços de debate, acolhimento e inspiração que foram fundamentais ao desenvolvimento deste texto.
  • 2
    Grafo em alguns momentos do texto a palavra “Cidade” com a letra inicial maiúscula para indicar os “distantes (em relação ao local periférico onde vivia) centros de comércio e serviços”. Trato desses centros enquanto Cidade partindo de memórias afetivas, como descrevo, por entender que a noção corrente, de uso popular, sintetiza elementos centrais em uma cidade desigual como São Paulo, na medida em que ganha sentido como resultado do reconhecimento da distância geográfica, das dificuldades de acesso, das cisões entre cidade legal e cidade ilegal/irregular, das oposições e complementariedades entre centro e periferia. Enfim, trago a noção por seu potencial sintetizador e acessibilidade.
  • 3
    Ao final desses três primeiros parágrafos, reproduzo trechos extraídos do capítulo “A experiência vivida do negro”, escrito por Frantz Fanon (2020)FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. . Trago-os aqui para apontar para uma experiência comum, onde tempos e espaços distintos (os vividos por mim e os narrados-vividos por Fanon) se entrelaçam, e que, portanto, integra também os espaços narrativos construídos neste texto ao tensionar a forma de produção científica mediante sua organização/gramática moderna. Adiante, ainda na introdução, retomo a explicação sobre tais espaços narrativos.
  • 4
    “Nas colónias, o interlocutor válido e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o polícia e o soldado” (FANON, 1979FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Ebook., p. 23).
  • 5
    Privilegio aqui o diálogo com autoras(es) da diáspora, sobretudo aquelas(es) que produzem seu conhecimento desde o Brasil, reconhecendo sua potência e a importância de valorizar sua produção em um contexto no qual nosso trabalho tende a ser pouco estimado. Sem a pretensão de exaurir o campo, apresento em notas de rodapé ao longo do texto alguns conceitos e/ou autoras(es) que dialogam com a temática e não puderam ser aprofundados neste artigo, a fim de apresentar pontes possíveis e auxiliar a aproximação de eventuais leitores à produção acadêmica que circunda as questões aqui trabalhadas.
  • 6
    Ou ontoepistemológico, como sugere Denise Ferreira da Silva (2007). SILVA, D. F. da. Toward a global idea of race. [S.l.]: University of Minnesota Press, 2007. v. 27.
  • 7
    Trato aqui da Europa, das Américas e da África, tendo em vista que a inclusão dos dois últimos continentes nesta categoria, que em alguma medida abriga um repertório político, cultural e epistêmico comum, se dá a partir da realização da violência colonial.
  • 8
    Coisa, aqui, se refere à matéria em estado bruto, um “referente de indeterminação” que o olhar moderno não é capaz de explicar em sua plenitude. Para aprofundamento do conceito, ver Silva (2019b)SILVA, D. F. da . Em estado bruto. ARS (São Paulo), v. 17, n. 36, p. 45-56, 2019b..
  • 9
    Outra análise crítica, bastante interessante, sobre a noção de diferença cultural pode ser observada em Fanon (2018)FANON, F. Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, v. 13, Dossiê: Questão ambiental na atualidade, 2018..
  • 10
    Ciente do amplo debate que cerca os conceitos de branquitude, branquidade e brancura (aqui retomado como conjunto de características que fazem referência aos corpos e arcabouços culturais, idealmente, brancos), mobilizados em sentidos distintos nas últimas décadas, sugiro a discussão proposta por Lourenço Cardoso (2010), de forma a complementar e contextualizar o uso dos trabalhos e conceitos aqui retomados. CARDOSO, L. Retrato do branco racista e antirracista. Reflexão e Ação, v. 18, n. 1, p. 46-76, 2010.
  • 11
    Trago a citação de Denise corrompida, na medida em que sua reflexão versa sobre existentes - corpos humanos e mais-que-humanos -, para, em diálogo, pensar possibilidades de compreensão e interação com o espaço situadas além daquilo que a gramática moderna permite explicar.
  • 12
    A relação que desenvolvo neste artigo entre branquitude e o processo de renovação urbana em curso em Cidade Ademar perpassa também a ação estatal. Essa relação não será aprofundada neste texto, na medida em que transcende seu escopo, porém, reconhecendo sua importância para uma discussão mais ampla sobre a temática, aponto o trabalho de Stella Paterniani como um caminho possível para o aprofundamento da discussão. PATERNIANI, S. Z. Da branquidade do estado na ocupação da cidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 31, n. 91, 2016.
  • 13
    Para pensar a sub-representação/sobrerrepresentação de brancos e/ou de negros com relação ao distrito e aos setores censitários que o compõem, tomo por referência a composição racial do município tal qual mensurada pelos dados do Censo de 2010, que apontam uma população com 63,9% de pessoas brancas e 34,6% de pessoas pardas e pretas (29,1% e 5,5%, respectivamente) em São Paulo (SP). A categoria negra simboliza a soma de pardas e pretas. Os lançamentos residenciais verticais foram selecionados a partir da liberação dos respectivos alvarás, de acordo com sua classificação de uso do solo e de sua adesão à categoria “R2v”. Classificações de uso do solo disponíveis em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/classificacao-de-usos/. Acesso em: 25 maio 2022.
  • 14
    Sobre a teoria moderna e a sociedade capitalista como estruturas que organizam uma “imagem do mundo como aquilo que deve ser conquistado (ocupado, dominado e subjugado)” pelo homem (SILVA, 2019aSILVA, D. F. da A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019a. , p. 55), recomendo a leitura de Em estado bruto, de Denise Ferreira da Silva (2019b)SILVA, D. F. da . Em estado bruto. ARS (São Paulo), v. 17, n. 36, p. 45-56, 2019b..
  • 15
    Rio que banha os territórios espanhóis e portugueses na Europa.
  • 16
    Uma versão mais sintética do artigo com o qual dialogo aqui, de autoria da Cientista Política e Socióloga Juliana Morais de Góes, pode ser encontrada em Góes, J. Western modernity, cities, and race: Challenges to decolonial praxis in the African diaspora in the Americas. Sociology Compass, e13033, 2022. https://doi.org/10.1111/soc4.13033
  • 17
    Referência à construtora e incorporadora EzTec, responsável pelo empreendimento Artis Jardim Prudência. Disponível em: https://www.eztec.com.br/a-eztec/. Acesso em: 8 ago. 2021.
  • 18
    A ideia de que os empreendimentos imobiliários na região simbolizam o acesso a uma “nova vida” é veiculada de distintas formas na quase totalidade das peças de marketing observadas. Por sua literalidade, faço referência aqui à peça do empreendimento “Open Marajoara”, disponível em: https://www.even.com.br/sp/sao-paulo/jardim-marajoara/residencial/open-marajoara. Acesso em: 8 ago. 2021.
  • 19
    Por ponto de fuga, “entenda-se: um ponto situado fora do quadro espaçotemporal da experiência, fora do mundo, capaz de outorgar ao observador um poder de abrangência absoluto. Nesse espaço ordenado por uma linha de fugir em profundidade, as representações (as imagens) ‘fogem’, frente ao olhar do observador. Na verdade, o olhar ‘cria’ o espaço, cujo centro ou ponto principal, por coincidir como olho, recebe mesmo - de Viator - o nome de ‘sujeito’” (SODRÉ, 1988SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes , 1988. , p. 24; grifos meus).
  • 20
    Tendo em vista a impossibilidade de aprofundar a temática neste artigo, aponto para dois caminhos possíveis para analisar as tramas entre expropriação capitalista, apropriação do espaço e racialidade. Por uma via marxista, há o conceito de “acumulação por espoliação”, cunhado por David Harvey em O novo imperialismo (2005), que observa a espoliação constantemente reordenada espaçotemporalmente e direcionada ao Outro. Denise Ferreira da Silva, de forma opositiva, propõe o conceito de “acumulação negativa” para indicar um continuum acumulado que une “o efeito da expropriação colonial e, posteriormente, a violência jurídica, simbólica e cotidiana” (2019aSILVA, D. F. da A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019a. , p. 180) de expropriações dirigidas ao sujeito racial subalterno. HARVEY, D. O novo imperialismo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.
  • 21
    Trago aqui Sabotage e, posteriormente, GOG como dois autores que me ajudam a pensar Cidade Ademar com base na afetabilidade, mas também como expoentes do movimento hip hop, cultura de rua que compõe minha formação e que tem como uma de suas temáticas centrais as experiências da população negra nas cidades, elemento central para (re)pensar o urbano no século XXI.
  • 22
    A memória de uma dessas iniciativas pode ser acessada em https://www.facebook.com/Ocupa%C3%A7%C3%A3o-Vit%C3%B3ria-Antigo-Motel-Cleans-247447959002895/. Acesso em: 2 ago. 2021.
  • 23
    A página na Wikipédia referente ao Jardim Prudência, editada recorrentemente desde 2014 (quando do início do primeiro grande empreendimento no bairro, o EQ Jardim Prudência), oferece elementos para pensar quais características passaram a ser valorizadas no local. Destaco aqui a declaração (fictícia e/ou discutível) de que o bairro é formado por pessoas de ascendências alemã, portuguesa, estadunidense e italiana. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Jardim_Prud%C3%AAncia&oldid=58210539. Acesso em: 2 ago. 2021.
  • 24
    Para um olhar sobre o cenário ético-jurídico que legitima a morte do Outro, demarcado racialmente, recomendo a leitura de Ninguém: direito, racialidade e violência, de Denise Ferreira da Silva (2014)SILVA, D. F. da. Ninguém: direito, racialidade e violência. Meritum, Revista de Direito da Universidade FUMEC, v. 9, n. 1, 2014..
  • 25
    O conceito de território é amplamente utilizado em distintas acepções, além da resgatada aqui por Sodré. Uma discussão mais geral do conceito, compatível com a noção aqui abordada, pode ser encontrada em Território e multiterritorialidade: um debate (2010), de Haesbaert. Outro texto do mesmo autor, o anteriormente citado Do corpo-território ao território-corpo (da terra) (HAESBAERT, 2020HAESBAERT, R. Do corpo-território ao território-corpo (da terra): contribuições decoloniais. GEOgraphia, v. 22, n. 48, 2020.), também pode ser de grande valia para o diálogo na medida em que a abordagem relacional que pressupõe a noção de espaço-lugar poderia ser também trabalhada em suas aproximações e tensões em relação à bibliografia que discute colonialidade, colonialismo e decolonialidade, à qual o autor recorre de forma mediada pelas compreensões territoriais de povos originários da América Latina. HAESBAERT, R. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, v. 9, n. 17, 2010. https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2007.v9i17.a13531.
  • 26

Disponibilidade de dados

Citações de dados

SMDUL. Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento. Geosampa, 2021. Disponível em: http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx Acessos em: 10 ago. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    14 Fev 2022
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